quinta-feira, 21 de agosto de 2014

MINHAS TIAS - Parte III




Minhas Tias - Parte III


O rosto pálido de minha mãe descansava sobre a alvura da fronha, entre o fogo de seus longos cabelos cuidadosamente arrumados em duas faixas vermelhas e sedosas que desciam sobre seus seios. Como era bela! Suas pálpebras azuladas moviam-se, e percebi que ela sonhava, e às vezes, seu rosto assumia uma expressão angustiada. Naquele momento, desejei mais que nunca, ardentemente, conhecer a história de nossa família para saber o que causava aquela angústia em minha mãe, aquele profundo estado depressivo do qual ela jamais saía por mais que algumas poucas horas de cada vez.

Os dias que se seguiram foram melancólicos, e Dr. Javier entrou e saiu de nossa casa praticamente diariamente. Mamãe mal comia, engolindo algumas colheradas de sopa ou chá com torradas, por insistência carinhosa de Nana. De todas as suas tristezas, acho que aquela fora a maior. Meu pai andava pela casa feito um zumbi, tentando concentrar-se em seu trabalho no escritório, mas eu passava pela porta entreaberta e o via sentado à sua escrivaninha, triste e pensativo.

Certa manhã, antes de ir para a escola, dei uma passada no quarto de minha mãe ( a esta altura, os leitores já devem ter percebido que meus pais não partilhavam o mesmo quarto) para despedir-me, como fazia todas as manhãs. Isto significava apenas olhá-la dormir. Mas naquela manhã, ela abriu os olhos e sorriu para mim, estendendo os braços para que eu me aconchegasse. 

-Filha querida, minha pobre e doce Alana... eu sinto muito... sinto muito por todos estes anos em que eu não pude estar presente em sua vida... sinto pelo fato de que ocupei-me muito mais com meus próprios problemas do que com os seus. Mas por favor, perdoe-me, e saiba que eu fiz o melhor que eu consegui, por você, por seu pai e por nós.

Olhei-a nos olhos, e ela chorava.

-Mamãe, eu jamais a culparia por nada nesse mundo. Eu a amo, e sinto-me amada, e para mim, é o que importa. Mas por que tem que ser assim? Por que você é assim? Por que não consegue ser feliz, mamãe? Eu tenho tanto medo...

Aquela foi a primeira vez que eu chorei perto de minha mãe.

Ela me abraçou mais forte, o mais forte que conseguiu com seus braços pálidos e fracos. beijou-me a testa, e suspirando, afastou-me dela, dizendo:

-Agora vá, minha menina. Vá para a escola. Cuide bem de sua vida. Saiba que sempre estarei com você.

Aquela frase encheu-me de preocupação e de medo. Disse que não queria ir à escola naquele dia, mas ela foi firme:

-Eu estou mandando, filha. Por favor, não me contrarie hoje. Não agora. Eu não posso... eu não... posso!...

Dizendo aquilo, ela virou-se de costas para mim na cama, e após chamá-la algumas vezes, saí. Jamais me esquecerei daquela manhã em que vi minha mãe viva pela última vez.

Ao chegar da escola, as portas da frente da casa estavam abertas, e Nana veio em minha direção, tentando impedir que eu entrasse. Empurrei-a, pois eu imediatamente percebi o que estava acontecendo ao cruzar com o olhar vermelho de meu pai, de pé no alpendre, os braços estendidos ao longo do corpo. Havia um carro preto e lustroso parado à nossa porta.  Lembro-me de ter gritado; lembro-me de Nana me abraçando forte, e dizendo "Não olhe," enquanto uma maca levava o corpo inerte de minha mãe coberto por um lençol, uma mecha vermelha de cabelo pendurada. 

Depois acordei em meu quarto, os olhares preocupados de papai e Nana sobre mim. Olhei para o lado e vi o Dr. Javier colocando medicamentos em uma maleta, e jogando fora uma seringa usada, dizendo ao meu pai, com sua voz monótona, que havia me administrado um sedativo e que eu logo estaria bem.

Mas ele estava errado: por muitos meses após a morte de minha mãe, eu jamais fiquei bem, e pior ainda eu me sentia ao ver o quanto meu pai perdia peso a olhos vistos, o quanto ele se preocupava comigo, que deixara de ir à escola e ficava o tempo todo deitada na cama, sem conseguir interagir com ninguém. Eu percebia que estava matando o que ainda restava de meu pai, mas não tinha forças para reagir. Mas foi apenas por ele que, certa manhã, reuni forças para tomar um banho, pentear os cabelos e vestir alguma coisa que não fosse uma camisola e descer para tomar o café da manhã em sua companhia. 

Encontrei-o sentado à mesa, o jornal aberto em frente ao rosto. Quando percebeu minha presença, meu pai largou o jornal e levantando-se, veio ao meu encontro, e nós nos abraçamos. Choramos todas as lágrimas que ainda nos restavam naquela manhã. E choramos copiosamente, durante muito tempo. Pareceu-me que estávamos purgando todas as nossas mágoas, não apenas pela morte de mamãe, mas também pelos anos de silêncio aos quais ela nos confinara. Choramos pelas tardes nos jardins das quais ela não participou, as apresentações dos teatrinhos da escola às quais não compareceu, as festas e eventos sociais que meu pai não frequentou por sua causa, os sentimentos de medo e de culpa a que ela nos submeteu durante todos aqueles anos; a sensação de perda era muito forte, mas maior ainda, era a sensação de desperdício. Nossas vidas tinham sido desperdiçadas até ali. 

Olhei para meu pai, e vi um homem ainda muito bonito, mas precocemente envelhecido, magoado, profundamente triste. Pareceu-me que os anos caíram de repente sobre ele, aprofundando as rugas que antes eram apenas linhas de expressão, curvando seus ombros sempre tão eretos e embranquecendo seus cabelos castanhos quase totalmente. Havia nos olhos dele (e quem sabe, nos meus) uma dor que estaria sempre ali, mas havia também, ao lado daquela dor, uma esperança que insistia em nascer, em nos trazer de volta à vida, e dizer-nos que ainda valia a pena, e que poderia valer bem mais a pena agora. 

A dor era imensa, mas ao mesmo tempo, ela nos libertara. Estávamos prontos para continuar - ou melhor, começar a viver. 

(continua...)



Um comentário:

  1. Prezada Ana Bailune sou admirador de seus contos e pequenos romances devido aos fatores que apresenta em sua escrita que particularmente valorizo num contista e escritor: a verossimilhança, a profundidade ideológica de seus personagens e desdobramento de seus enredos. Seus escritos são simplesmente excelentes. Parabéns. Aproveitando o ensejo, gostaria de convidá-la a visitar e assinar o meu Canal ESTAÇÃO DA POESIA no You Tube que acabo de abrir e que trará muito entretenimento, reflexão, conhecimento e humor.
    https://www.youtube.com/user/estacaodapoesia/

    ResponderExcluir

Obrigada por visitar-me. Adoraria saber sua opinião. Por favor, deixe seu comentário.

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...