segunda-feira, 26 de setembro de 2016

FEITIÇOS DE AMOR - CAPÍTULO VIII








FEITIÇO DE AMOR – PARTE VIII

Na segunda-feira fomos todas à escola, como sempre: Dora, Flora e eu. Tentei ser mais gentil com minha prima, pois afinal de contas, queria impressionar Fred, e se quisesse ficar por perto quando eles estivessem ensaiando, teria que me dar bem com ela. Flora, que já tinha percebido meu interesse pelo rapaz, dissera-me no domingo à noite que estava boquiaberta com meu sangue frio e poder de manipulação – um lado meu que ela não conhecia. Quase brigamos, pois não conseguia ver a mim mesma daquela forma, mas achei melhor não complicar ainda mais as coisas, e fomos dormir.

Tia Maya e mamãe estavam mais amigáveis. Eu nunca vira minha mãe aparecer sempre tão bem arrumada em casa. Tinha certeza de que ela estava tentando superar Tia Maya. 

Na volta da escola, eu pensava no ano letivo eu estava terminando. Mais duas semanas, e Dora partiria para  a audição junto com Fred. Os dois juntos. Eu faria de tudo para ir também. Já tinha conversado com Tia Joana e Tio Nestor, tentando convencê-los a me levar. Disse que gostaria de estar perto de Dora em um momento tão importante, mas os dois se entreolharam e disseram que iam ver o que poderiam fazer. Achei que não tinha conseguido convencê-los, afinal. 

Mamãe continuava recebendo alguns de seus – clientes? Pacientes? – para algumas consultas e sessões de meditação. A vida seguia quase normalmente, e nada de muito diferente aconteceu durante aquela semana. 

Papai trabalhava na loja o dia todo, só voltando para casa na hora do jantar. Ele, que sempre almoçara em casa, passou a comer em um restaurante na cidade. Eu tinha certeza que era para evitar Tia Maya, e achei que aquele não era um bom sinal, pois se os dois não sentissem mais nada um pelo outro, tal comportamento seria desnecessário. Flora e Dora achavam a mesma coisa. Mamãe fazia de tudo para agradá-lo, cozinhando seus pratos prediletos no jantar e andando cada vez mais bonita e bem-arrumada. Derramava-se em gentilezas, ignorando a presença de Tia Maya, tentando não demonstrar o ciúme que todos sabíamos que a roía por dentro. Tia Maya seguia a vida, cuidando de Vó Duda o tempo todo. As duas passavam muitas horas juntas no quarto de minha avó, ou sentadas na varanda da casa recordando os velhos tempos, muitas vezes, acompanhadas de Tia Joana. Mamãe cuidava de suas aulas de meditação, da casa e de si mesma. 

Eu estava me apaixonando cada vez mais por Fred, que passou a frequentar a casa de Dora diariamente. Os dois ficavam algumas horas ensaiando as canções que pretendiam apresentar juntos. Os arranjos que ele preparava eram delicados, condizentes com a voz cristalina de minha prima, e o violão e o piano pareciam nascer de dentro de um mesmo coração quando eles tocavam juntos. 
Na escola, todo mundo já estava sabendo da participação de Dora no programa, e ela era um tipo de celebridade. Aquilo me incomodava um pouco, pois pela primeira vez, ela estava aparecendo mais do que eu. Na hora do intervalo, alunos e alguns professores se juntavam em volta dela, pedindo que tocasse alguma coisa. Eu ficava entre eles, olhando, sentindo um misto de orgulho e de medo, amor e despeito. 

Ao final daquela semana, que fora mais tranquila em todos os aspectos, Vó Duda sentiu-se mal e precisou ser internada às pressas. Aquilo foi demais para mim. Aquela casa sem ela passou a ser, pela primeira vez, uma coisa concreta e ameaçadora. A realidade dolorida de sua ausência era algo com o qual eu não tinha conseguido assimilar. Flora parecia mais conformada, pois ela acreditava na vida após a morte e nas coisas que mamãe dizia sobre a alma, a existência extracorpórea e a vida que continuava além deste mundo. Ela e mamãe acreditavam em coisas como reencarnação, carma, vidas passadas. Conceitos que para mim não faziam muito sentido. Mamãe acreditava em magia. Flora estava ficando exatamente como ela, e já sabia preparar algumas ‘poções’ mágicas para combater resfriados, dores de garganta, cólicas, acne e outras coisas. Eu não sabia se acreditava naquelas coisas. 

Dora era a mais forte. Após uma noite no hospital com vovó, Tia Maya pediu que alguém a substituísse, e Dora imediatamente se ofereceu. Ficou duas noites com vó Duda. Logo em seguida, mamãe a substituiu, e depois, Tia Joana. Eu estava ansiosa, pois temia que me pedissem para ficar no hospital durante a noite – eu tinha pavor dos corredores imensos, longos e vazios do hospital. Tudo cheirava a morte e solidão. Eu definitivamente não sabia lidar com aquelas coisas.

Felizmente, ao final daqueles cinco dias e cinco noites, Vó Duda recebeu altas e voltou para casa. Parecia bem mais fraca, mas mesmo assim, ainda andava pela casa toda dando suas ordens. E ninguém se atrevia a contestá-la. 

Durante a estadia de Vó Duda no hospital, eu e mamãe tivemos uma conversa estranha. Eu estava em meu quarto fingindo que estudava para a prova final de inglês quando ela bateu. Abri o livro e mandei-a entrar. Mamãe já tinha notado a minha dificuldade em lidar com o que estava acontecendo. 

Ela sabia que eu não era forte como Flora e Dora. E que eu não sabia como falar sobre a morte, como começar a aceitar aquilo tudo. 

Ela entrou, sentando-se na beirada da cama, e pegando meu livro, fechou-o. obrigou-me a olhar para ela:

-Filha... você quer conversar?

Endureci o rosto:

-Não, mãe. Eu estou bem!

Ela balançou a cabeça, apertando os olhos, alisando a colcha, como quem procura as palavras certas para dizer.

-Notei que você e eu estamos um tanto distantes. É por causa do que você ficou sabendo sobre o meu passado?

-Não, mãe. Eu não a julgo. Todo mundo erra.

-Sim. E é por isso que eu estou aqui. tenho medo do que eu estou vendo, Eleanor. Temo que você esteja pronta a cometer o mesmo erro que eu. Quero dizer, quanto à sua prima Dora e... Fred.

Permaneci calada, brincando com a tampa da caneta.

-Joana veio me perguntar o que eu acho de você acompanhá-los na viagem, junto com Dora. E eu disse que não vou deixá-la ir.

Meu coração deu um pulo:
-Mãe! Como você pôde fazer isso? Sabe o quanto eu desejo ir!

-Sim, e também o porquê. Filha, Dora está apaixonada pelo Fred. Joana me disse. Ela está totalmente, completamente apaixonada por ele.


Eu ri, meu riso mais sarcástico:

-Ah, mas o que isso tem a ver? A senhora deixou de amar meu pai quando o conheceu, só porque ele estava com Tia Maya?

Ela me fuzilou com os olhos:

-E então, você não tinha dito há apenas alguns minutos que não me julgava? Só porque quer cometer o mesmo erro que eu cometi? Ainda não te contei o resto da história, Eleanor! Joana acha que Fred também está se apaixonando por Dora.

Aquilo me exasperou:

-E como ela pode saber? Eu sei que ele é o cara certo para mim, mãe! Se Dora está apaixonada pelo Fred, pronto: eu também estou! E ele tem o direito de escolher entre nós duas! E eu sei muito bem que eu tenho chances, pois ele me olha... ele me olha de um jeito... diferente... eu sei, mãe!

-Talvez ele esteja confuso. Mas você se arriscaria a perder a amizade de Dora por causa de um menino que amanhã pode ir embora?

-Ora, e ela está preocupada em não se envolver com ele por causa de mim? Parece que não!
Mamãe afastou uma mecha do meu cabelo, acariciando meu queixo:
-É aí que você se engana, filha. Joana me disse que ela ainda não ficou com o Fred por causa de você. 

Por aquilo eu não esperava, e fiquei sem reação. Mamãe respirou fundo, e me dando um beijo na testa, levantou-se, dizendo:

-Pense nisso, querida.

E saiu do quarto.  Logo em seguida, comecei a me sentir sufocada, e saí também. Fui para o quintal dos fundos, e sentei-me no meu velho balanço de infância.  Papai o tinha construído, um para mim e outro para Flora. Eu costumava ir para aquele lugar, bem junto à floresta, sempre que queria pensar. E eu estava tão envolvida por meus pensamentos que não notei Tia Maya chegando por trás de mim. Ela chamou meu nome, e eu estremeci. Naquelas quase três semanas, nunca tinha ficado à sós com ela. Tia Maya se aproximou devagar, sentando-se no balanço ao lado do meu.

-Estamos todos preocupados com você, Eleanor.

-É, parece que de repente a minha vida virou problema de todo mudo.

Ela pareceu magoada, pois eu colocara uma boa dose de fúria em meu tom de voz.

-Esse tom agressivo me fez lembrar a sua mãe quando tinha a sua idade.

Pensei melhor: por que eu não gostaria de Tia Maya? Afinal, que culpa ela tinha de tudo o que acontecera? Minha mãe tinha tomado o homem da vida dela! Olhei para ela pela primeira vez, quero dizer, olhei de verdade. E o que eu vi, foi algo bem diferente da mulher destruidora de lares que eu tinha em mente. Eu vi uma mulher linda, e muito sofrida. Alguém que abriu mão de tudo o que mais quis na vida para que a família não fosse destruída. Uma mulher que perdera até mesmo o filho do amor de sua vida. E que era o tempo todo julgada por isso.

A pergunta que eu tanto queria fazer desde o início aflorou em meus lábios:

-Tia... por que você não lutou pelo amor da sua vida?

Vi que lágrimas vieram aos seus olhos, mas ela conseguiu disfarça-las com um sorriso triste. Parecia para mim que ela estava pensando no que iria – ou no que poderia – me dizer. E que talvez ela nunca tivesse respondido àquela pergunta antes. Finalmente, a voz de Tia Maya saiu como um pedacinho de vidro quebrado:

-Não lutei porque eu amava Agnes. Eu amava Vó Duda e Vô Sérgio, e queria mostrar gratidão por eles terem me recebido em sua família. Eu não queria causar nenhum conflito. Na verdade, eu achei que um dia eu poderia ser feliz de outra forma, com outra pessoa...

-E não conseguiu, não é?

Ela negou com a cabeça, os olhos baixos. 

-Eu não entendo... Vó Duda sempre disse que a amava da mesma forma que amou Tia Joana e mamãe. Disse que a mandou para longe para defende-la de mamãe. Mas... sabe, tia Maya, eu não acredito nisso.

-Nem eu, querida. Depois que eu tive um filho, eu entendi que é impossível amar a outra pessoa da mesma forma que se ama a um filho. Sua avó quis defender sua verdadeira filha, e ajudá-la a ser feliz. Eu não era, nunca fui e jamais serei amada por ela da mesma forma.

Eu senti pena dela.

-E mesmo assim, você voltou só porque ela pediu? Por que?

-Porque eu sei que ela me ama da maneira dela. E precisa de mim aqui. E eu farei por ela o que eu puder, pois nem mesmo assim, poderei compensar o que ela deu para mim: uma família. E porque... Joana e Agnes também precisam de mim.

Eu fiquei pensando naquilo durante algum tempo. Trovões ribombaram ao longe. O vento fez o vestido dela produzir um farfalhar gostoso, e pela primeira vez, gostei realmente de Tia Maya. A presença dela me agradava, e eu sabia que ficaria triste quando ela fosse embora.

-Tia... pelo menos a sua parte na herança você vai reclamar, não é?

-Não... eu não preciso. Meu primeiro marido me dá uma ótima pensão, e minha firma de construção é um trabalho rendoso. 

Fiquei boquiaberta:
-Mas... a casa, a loja, até a casa de tia Joana e Tio Nestor... sei que Vó Duda tem muito dinheiro aplicado... tudo também lhe pertence!

-Não quero nada, Eleanor. 

-Mas...

-Não quero nada, a não ser estabelecer a paz entre nós novamente. Poder saber que vocês estão aqui, que eu posso visita-los e dizer a qualquer um que eu tenho uma família. 

Eu me levantei do balanço, e caminhando até ela,  a abracei. Eu não tinha muitos gestos de carinho em relação a ninguém, mas Tia Maya era especial, e eu senti vontade de dar a ela aquele presente. 
-Tia... saiba que em mim você sempre terá uma família. E tenho certeza que em Flora, Dora, Tia Joana e Tio Nestor, papai... e até em mamãe. E também nos nossos cachorrinhos, que parecem que já se apaixonaram por você. também, você leva eles para passear todos os dias... 

Ela riu:

-É verdade, eu adoro animais, mas moro em um apartamento e não posso tê-los, pois passo muitas horas fora de casa trabalhando. Mas levarei saudades deles quando eu me for. E de vocês.

Abracei-a novamente, querendo que aquele momento jamais chegasse: o momento em que Vó Duda morreria, e Tia Maya iria embora. 





2 comentários:

  1. Boa noite, Ana, de alguma forma os filhos copiam e repetem o comportamento dos pais, só mesmo a compreensão da atitude de quem perdoou, pode nos fazer refletir e mudar de rumo.
    História muito linda, Ana, qual será o final?
    Torcendo pra que seja o mais justo possível para todos...
    Felizes dias, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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  2. Boa noite Ana
    Um conto envolvente e muito interessante
    Tomara que no final o amor faça felizes todos esses corações angustiados pela sombra de um passado que ainda causa dor pela falta de perdão
    Beijinhos querida

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