segunda-feira, 27 de março de 2017

LIMBO - conto surreal completo







Estou aqui, sozinha. Às vezes fica tudo muito confuso, e não consigo me lembrar do que fiz há apenas alguns minutos – acho que o tempo aqui é um conceito totalmente abstrato, e se uso a palavra ‘tempo’, é por falta de uma denominação melhor. A cada dia eu desperto sem saber há quanto tempo estive dormindo. A cada dia eu adormeço sem perceber que isso vai acontecer.
Levo algum tempo para lembrar-me de tudo quando acordo. Esfrego os olhos e o pensamento antes de me lembrar que estou aqui, talvez há um tempo longo demais, e não sei quanto tempo mais eu terei que ficar. Não sei o que fui antes. Não me lembro de nada, embora eu possa sentir, por questão de milissegundos, um aroma que me arremete para trás e rapidamente me traz de volta. Ou então ouço uma risada que me parece familiar, mesmo que ela só dure menos que um milésimo de segundo. Tento agarrar-me a alguma dessas supostas lembranças, mas elas brincam de esconder.

Há um bosque. Escuto passarinhos enquanto passeio por ele, e vejo suas sombras se movendo entre as árvores. Ouço o barulho de um córrego, mas nunca consigo chegar até ele. O verde é quase um veludo de musgo, uma cor que não sei definir, mas diferente do verde que penso ter conhecido um dia. As cores são as mesmas – posso denominá-las como verdes, azuis, amarelas, brancas, vermelhas. Mas ao mesmo tempo, elas são diferentes dos verdes, azuis, amarelos, brancos e vermelhos dos quais eu me esqueci. 

Há uma casa. Volto para ela quando o sol começa a avermelhar o horizonte. Temo a escuridão. Sempre que volto, encontro velas acesas em todos os cômodos, mas não sei como elas surgem. Só sei que estão ali. fecho as portas e janelas para não ver o que há lá fora, se movimentando na escuridão. Sei que há alguma coisa, e ela me causa medo, seja o que for. Tranco-me no quarto com a grande cama de dossel. Desço o véu e fecho os olhos, e tudo desaparece.

Há livros. Eu os leio e releio, mas logo me esqueço do que está escrito, então eu leio tudo outra vez. Para logo esquecer-me de novo. As capas são muito antigas. As letras nas capas são douradas e rebuscadas, e as lombadas, grossas e gastas. Parece que esses livros já foram lidos muitas vezes, por outras pessoas. Na última página de cada um deles, sempre está escrito à caneta tinteiro: “Um dia, você vai lembrar de tudo.”

Há música. Ela é suave e começa a tocar de repente, sem que eu tenha controle e sem que eu saiba de onde ela vem. Parece estar em todo lugar. É doce, ritmada e suave. Nunca ouvi nada parecido, mesmo sabendo que se eu tivesse ouvido, certamente não me lembraria. A música às vezes me faz chorar, pois ela é tão triste e tão bonita ao mesmo tempo... mas ela me alimenta. Assim como o vento: fico lá fora, de braços abertos em direção ao bosque, e quando o vento vem, eu abro bem a boca. Não sei porque eu faço isso, mas parece ser a coisa certa a se fazer. Porque aqui não existe nenhuma água e nenhuma comida. Preciso me alimentar de alguma coisa, e acho – sei – que a música e o vento servem para este propósito. 

Há um vestido. Ele me espera sempre que eu acordo. Ele é azul, e o tecido é leve e esvoaçante. Parece-se com um céu de crepúsculo, quando as estrelas começam a surgir. A barra é da cor do horizonte quando o sol se põe, sendo que a parte mais escura, que fica sobre os pés, é de um roxo avermelhado vivo. O vestido vai clareando até a parte de cima, e torna-se branco nas mangas. Usá-lo faz com que eu me sinta muito especial, mas eu não sei para que. Nem porquê. Todas as noites, antes de deitar-me, eu dispo o vestido e o coloco sobre a cadeira – acho. Na verdade, eu não tenho certeza. Só sei que quando eu acordo, estou nua, e o vestido está lá, me esperando, como se alguém o tivesse lavado e passado. 

Há um par de sapatos. Eles são de tecido, uma espécie de cetim de cor bege, macios e silenciosos. Quando eu os calço, é como se eu deslizasse pelo chão de mármore quadriculado da casa, sem fazer qualquer ruído ou deixar qualquer marca. É engraçado, porque eu às vezes sinto como se meus pés não tocassem o chão realmente, como se eu deslizasse a alguns centímetros acima do piso. Pareço flutuar. Sinto como se eu dançasse, e quando isso acontece, começo a rodopiar à música que toca, e então eu me perco de mim, do cenário que me cerca e eu não sei o que acontece, para onde eu vou, para onde tais sapatos me levam.

Há sonhos. Quando eu acordo, eu sei que passei muito tempo em outro lugar, com pessoas que eu devo conhecer muito bem, mas das quais eu não guardo a menor lembrança. Mesmo assim, sinto saudades delas. Isso faz com que acordar seja bem melancólico, mas logo me esqueço de tudo, até mesmo das pessoas dos sonhos. Mas fica um rosto, que aparece e desaparece em lampejos muito rápidos. É engraçado vê-lo aparecer e desaparecer da minha frente, e lembrar-me dele e esquecê-lo logo imediatamente. Em questão de segundos, sinto dor e indiferença. Há o reconhecimento e o esquecimento. Posso ficar deitada na cama, vivendo isso até que olho para o vestido e o par de sapatos, e então eu os visto e vou até o bosque.

Há silêncio. Ele goteja das paredes sem fazer qualquer ruído, mas ecoando pela casa toda. Ele penetra a minha pele, dando uma sensação gelada de medo, e de alívio. Ele desliza entre as copas das árvores do bosque, e entra pelos olhos dos passarinhos, transformando-se em canto. Ele me aperta pela cintura, e me conduz para dentro de um lugar que eu sei ser eu mesma, e me obriga a olhar em um espelho. É difícil e doloroso. Mas eu nunca me lembro o que eu vi quando olhei. O silêncio ensurdecedor fala comigo. Ele me agita, me acalma, me atiça e me protege. 

Há coisas das quais eu gostaria de me lembrar, mas acho que há mais coisas das quais eu gostaria de me esquecer para sempre. Talvez por isso eu fique aqui, protegida delas. Talvez por isso eu só tenha este vestido, feito de gaze de céu noturno, e esse bosque em volta de mim feito uma redoma que me protege daquilo que está além, mas que também me isola de mim mesma e do que eu não quero ver, nem lembrar. Talvez por isso haja livros que eu leio, e que me dizem a verdade, e ela seja tão dolorosa, que eu me esqueço do que li. E a música pode ser o meu último contato com a realidade, e as cores, eu mesma as inventei para que pudesse pintar o meu mundo da maneira que eu mesma escolhi. Calço meu par de sapatos mágicos e caminho pelo mundo do esquecimento. Ninguém há de se lembrar de mim, e eu não mais me lembrarei de ninguém.

Eu e o silêncio caminhamos de mãos dadas, e eu o suporto porque posso fingir que não o escuto.





5 comentários:

  1. Maravilhada com toda essa magia e encantamento Ana
    E é assim o silêncio muitas vezes nos protege do que nos faz sofrer por isso nós o valorizamos tanto. Parabéns pelo conto excepcional
    Beijos

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. A cada leitura e releitura que aqui faço, mais aprendo... Histórias encantadoras! Gratidão.
    Abraço.

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