segunda-feira, 17 de julho de 2017

A ÁRVORE - Conto de Fadas Moderno -completo








A ÁRVORE




Sidônio mudara-se para aquele apartamento no quarto e último andar de um prédio antiguinho por causa da árvore. Era uma enorme figueira, linda e frondosa, plantada na calçada larga, e seus galhos estendiam-se na frente da janela de seu quarto e varanda da sala. O apartamento nem era exatamente como ele sonhara antes de comprá-lo – havia um outro bem mais interessante, construção recente, mas foi a árvore que ajudou-o a tomar a decisão. Ele simplesmente adorava acordar, abrir os olhos e ver os passarinhos cantando nos galhos. Os amigos gostavam de brincar, dizendo que após os quarenta, Sidônio se transformara em um amante da natureza; seria a idade? Ou teria sido o divórcio? 

Fato era que, depois que Sandra o deixou pelo professor de filosofia, Sidônio tornou-se um homem quieto, e passou a ler poesia – coisa que antes desprezava. 

Quando chegava em casa, após seu trabalho na redação do jornal, sentava-se na varanda com seu jantar encomendado no restaurante da esquina e jantava com sua árvore. Sentia que, de alguma forma, ela lhe fazia companhia. Ficava bastante tempo estudando seus galhos, o olhar percorrendo o tronco nodoso e antigo. Sabia que à esquerda havia um ninho de sabiá abandonado; sabia que os esquilos gostavam de brincar de correr pelos galhos na hora do almoço, e nos finais de semana, ficava observando os bichinhos. Passou a conhece-la tão bem, que cada galho tornara-se familiar. É claro que ele às vezes pensava em Sandra e no quanto fizera tudo por ela. Ajudou-a a pagar a faculdade; concordou em não ter filhos enquanto ela não se sentisse pronta, o que significava estabilizar a carreira. Não a amava mais – não agora, que tivera bastante tempo para pensar na injustiça e na ingratidão que ela demonstrara ao traí-lo durante dois anos, antes de pedir o divórcio. E a árvore, que se tornara sua confidente, a tudo escutava sem qualquer demonstração de tédio ou reprovação. 

Num domingo, despertou com um pequeno ruído. Parecia alguma coisa que roía devagar. Sonolento, pensou tratar-se da obra no apartamento de baixo. Quem sabe, estavam lixando as paredes. Fechou os olhos e voltou a dormir. Acordou mais tarde, à mesma hora de sempre, calçou os tênis e foi fazer sua corrida matinal. Na volta, passou na padaria, comprou seu pão e o jornal, parou na banca de revistas para conversar com alguns conhecidos e voltou ao apartamento, chegando em casa por volta das dez e trinta. Tomou um banho demorado e debruçou-se na sacada da varanda olhando a árvore, os raios de sol infiltrando-se através das folhas. Foi quando ele percebeu um buraco no tronco que não estava lá.

Era pequeno e redondo; deveria ter cerca de dez centímetros de diâmetro, quem sabe, um pouco menos. Talvez fossem os esquilos, ele pensou. Ou quem sabe, um pica-pau. Não deu mais importância ao evento e esqueceu-se do assunto. Porém, uma semana depois, notou que além do buraco, alguém tinha construído com muita habilidade um pequeno telhado de galhos e folhas sobre o buraco. Seria alguma brincadeira de criança? Mas qual criança conseguiria subir tão alto em uma árvore, arriscando a própria vida a fim de construir aquele telhado, que só ele poderia enxergar, já que aquele pedaço de tronco, que ficava bem na frente da sua varanda, só era visível do último andar?

Intrigado, ele ficou olhando o esmero da construção. Parecia alguma coisa feita por um artesão. As vigas eram talhadas em pequenos arabescos, e as folhas secas, tão cuidadosamente entrelaçadas umas às outras, que ele pensou que nem a ventania mais forte poderia derrubá-las. Percebeu que as vigas tinham sido firmemente fincadas no tronco. Apesar da sua curiosidade, ele foi mandado em uma viagem de negócios e alguns dias se passaram antes que ele olhasse para o pequeno portal, que deveria medir uns 30 centímetros, novamente.

E o que viu deixou-o sem palavras.

Era uma manhã de sábado. Sob o portal, um deck de madeira havia sido erguido. O buraco havia sido tapado por uma portinha de madeira redonda, ao lado da qual havia um vaso de flores bem miúdas,  do tamanho de um dedal. Sidônio arregalou os olhos, surpreso, e então ele ficou durante algum tempo observando aquela pequena obra de arte. Até que a portinhola se abriu, e uma moça não mais alta que seu dedo médio, começou a varrer o chão. Ela usava um vestido simples,  leve e esvoaçante, de cor lilás, e estava descalça. Seus cabelos iam até a cintura, em ondas avermelhadas e sedosas. Ele não conseguiu perceber detalhes do rosto mínimo da moça devido à distância – mais ou menos dois metros – mas notou que ela cantava uma canção que ele nunca tinha escutado, em uma língua que ele jamais ouvira antes. A voz dela, afinada e doce, chegou aos ouvidos de Sidônio como uma brisa, deixando-o em transe. 

Ele pensou estar alucinando. Piscou os olhos com força tentando banir a ilusão de ótica, mas quando os abriu, ela ainda estava lá, e olhava para ele. Desta vez, tendo terminado sua tarefa de varrer o chão, ela descansava em um galho de árvore bem próximo a Sidônio, que então teve a chance de perscrutar seu rosto e descobrir o quanto ele era belo. A moça era linda: cada detalhe mínimo parecia ter sido talhado à mão por um habilidoso artista: as mãos, os pés, os olhinhos encimados por longos cílios, e até mesmo o vestido. Sem saber mais o que fazer ou o que pensar, ele se viu cumprimentando-a:


-Bom dia, moça.

Ela hesitou um pouco antes de responder:

-Bom dia. 

Ficaram em silêncio por algum tempo, estudando um ao outro, e ela pensava se poderia confiar nele. Notou que ele era um homem bonito. Percebeu nos olhos dele que era uma boa pessoa, e que tinha bom coração. Aspirou com força o ar que vinha dele a fim de confirmar sua impressão, e finalmente, chegou mais perto. Sidônio ficou ainda mais encantado ao ver que ela podia voar. Dirigindo-se a ela, perguntou:

-Você existe mesmo, ou ainda estou sofrendo os efeitos do vinho do jantar de ontem?

Ela riu, e respondeu:

-Sou tão real quanto você. 

-Mas... de onde você vem? O que é você... ou... quem é você?

Ela voou para ele, pousando em seu ombro rapidamente, e indo instalar-se sobre a mesinha da varanda, sentando-se na beirada da xícara de café, respondeu:

-Meu nome é Joan. Sou uma fada.

-Hein? Você... quer dizer, uma fada mesmo? dessas que voam, jogam pó de pirlimpimpim e essas coisas?

Ela sacudiu a cabeça:

-Vocês humanos têm ideias loucas a nosso respeito. Não fazemos essa coisa de jogar pó em ninguém. Mas... sim, temos alguns poderes que vocês consideram mágicos. E sim, podemos voar. O que eu posso lhe dizer, é que fiquei surpresa quando você conseguiu me enxergar. Isso geralmente não acontece com frequência. Pelo menos, não mais...

-Quer dizer que há mais de vocês?

-Sim, embora... haja poucos hoje em dia. Somos uma espécie em extinção, graças aos humanos, que nos dizimaram. Não sermos vistas é nosso último recurso, nossa última defesa. Raramente um de vocês consegue nos ver... e quando veem, são crianças. Porque as crianças – digo, algumas delas – ainda têm o coração puro. 

-Você disse “algumas delas?” Não todas elas?

-Sim. Existem crianças realmente más, e outras que são bem maldosas, e ainda, algumas totalmente frias e indiferentes. Muitas de nós já caíram vítimas dessas criaturas. 

Sidônio ficou surpreso.

-Mas... como?

-Por acharmos que todas elas eram puras. Alguns foram trancafiados em caixas de brinquedos e morreram de fome e de sede, esquecidos... outros, dados como alimento a cobras e aranhas de estimação. E outros foram esmagados ao sentarem-se sobre nós. 

-Eu sinto muito!

Ela baixou os olhos. 

-Mas por que eu consigo vê-la?

-Porque você é um homem realmente bom. 

Ele ficou pensando no que ela acabara de dizer. Seria mesmo? Bem, os amigos diziam a mesma coisa. Alguns o criticavam por isso. Um de seus amigos dissera-lhe que ex-mulher abusara de sua confiança porque ele era bom demais, e que ele deveria ficar mais “esperto” dali por diante, ao envolver-se com outras mulheres. E seus pais afirmavam que dos três filhos, ele era o mais presente, o mais bondoso e o mais solícito. Sidônio ficou feliz por aquilo. Resolveu continuar a conversa:

-Então... só eu posso enxergá-la?

-Sim. 

-E se você não desejar mais ser vista por mim?

-É impossível. Se um humano pode nos ver, não podemos evitar sermos vistos. 

-E... há mais de vocês por aqui neste momento?

-Não. A maioria de nós prefere viver escondida no fundo de florestas inexploradas. Mas eu prefiro ficar aqui. Sabe, sou um tanto... reclusa. Não gosto muito de companhia.

-Mas há muita companhia por aqui. Estamos em uma cidade. 

-Mas eu escolhi esta árvore porque ela é bem alta... e só há um morador neste apartamento, portanto, ele é silencioso... não sabia que você seria capaz de me enxergar.

-Agora que sabe, o que vai fazer? Ir embora?

Ela encolheu os ombros miúdos, e começou a voejar em volta dele:

-Não... acho que talvez possamos ser amigos, pois eu acho que você anda precisando de companhia. 

Ele riu:::

-Vai ser minha fada-madrinha, ou algo assim?

-Se você permitir.

Ele pensou por algum tempo. Tentou encontrar uma explicação para o que estava acontecendo. Achou que poderia estar enlouquecendo. Abriu a boca para responder, mas de repente, achou melhor não levar mais aquilo adiante, e virando-se de costas, entrou no apartamento, fechando a porta.

Ficou vários dias sem ir à varanda. Dedicou-se ao trabalho, fazendo horas extra todas as noites e chegando tarde em casa. Também começou a sair todo final de semana com os amigos, e ficava a maior parte do tempo na rua, só voltando em casa para dormir. Após quase um mês, notando que a varanda estava um tanto suja, pois ele proibira a faxineira de ir até lá ou de abrir aquela porta, Sidônio achou que já estava na hora de enfrentar seu medo: munido de vassoura, balde e pano-de-chão, abriu a porta da varanda e passou a varrer, evitando olhar para a árvore. 

Qual não foi sua surpresa quando, de repente, a vassoura saiu de suas mãos, indo descansar junto à parede, enquanto a varanda simplesmente ficou limpa. Ele olhou em volta, tentando entender o que acontecera, quando escutou uma risadinha; lá estava sua amiga Joan, e ela parecia bastante divertida às custas dele. Sidônio levou um susto, e ela deu uma gargalhada:

-Pensei que já nos conhecêssemos, Sidônio. Ora, eu só te dei uma mãozinha... não gostou?

Ele respirou fundo, relaxando:

-Na verdade, sim. Poupou-me meia hora de esforço. Eu ia... tomar café. Quer um pouco?

Ela voou para dentro do apartamento, sentando-se sobre a geladeira, enquanto Sidônio preparava o café. Quando ficou pronto, ele olhou em volta procurando uma vasilha pequena o bastante para servir Joan, mas ela apenas disse: 

-Pode colocar na xícara normalmente.

Ele obedeceu, e num passe de mágica, uma forte luz inundou a cozinha, e ele precisou fechar os olhos depressa. Quando voltou a abri-los, ela estava sentada à mesa, e tinha quase o tamanho dele. Daquela vez, ele percebeu que ela usava um par de sapatilhas transparentes e flexíveis, de tecido, e usava um vestido verde e esvoaçante, simples como o primeiro que ele vira. Joan pegou a xícara, e tomou um golinho do café. Ele notou o quanto ela era linda, perfeita! Pensou que poderia apaixonar-se por ela facilmente, se ela não fosse uma fada. Se ela ao menos, existisse. Mal sabia ele que ela pensava a mesma coisa a respeito dele, que poderia apaixonar-se por ele, se não fosse um humano. 

Meses se passaram. Joan passou a frequentar o apartamento de Sidônio diariamente. Ele lamentava não poder apresenta-la aos amigos, pois somente ele podia vê-la; assim, falar sobre ela seria como admitir que estava louco. Joan era o seu segredo. 

Certa noite, eles estavam jogando cartas e comendo pizza. Ele acabara de ensinar Joan a jogar vispora, e ela já estava ganhando o jogo na primeira partida. Davam gargalhadas, divertidos, quando a campainha tocou. Sidônio entrou em pânico, mas Joan disse:

-Não se preocupe! Você se esqueceu de que só você pode me ver? Vá abrir a 
porta, fique tranquilo. 

Era Edu, um amigo do escritório.

-Oi, Sidônio. Estava passando por aqui e decidi vir visitá-lo. Você anda sumido. 

-Olá, Edu. Quer... entrar?

Sem responder, Edu passou por ele, e foi logo dizendo:

-Hum... que cheirinho de pizza! Ainda tem?

Dizendo aquilo, começou a andar em direção a cozinha. Eram amigos há anos, e não haviam cerimônias entre eles. Sidônio lembrou-se do que Joan lhe dissera, ou seja, para ficar tranquilo, pois somente ele podia enxerga-la. Por cima dos ombros do amigo, ele a viu ainda na forma humana, sentada à mesa. Piscou para ela, e ela piscou de volta. Mas Edu, que também estava enxergando Joan,  estancou o passo de repente, dizendo:

-Oops! Desculpe, não sabia que estava acompanhado!

Joan arregalou os olhos, e Sidônio sentiu o coração chegar até a garganta. Engoliu em seco, talvez tentando levar eu coração de volta ao lugar certo, e antes que pudesse dizer qualquer coisa, viu que Joan erguia-se da cadeira, estendendo a mão a Edu:

-Olá! Sou Joan. 

Edu segurou a mão dela, os olhos fixos em seu rosto:

-Olá, Joan. Sou Edu.

Sidônio notou que o amigo estava absolutamente fascinado por Joan, e sentiu ciúmes. Pigarreando, ele disse:

- Bem, Joan é... uma amiga. Não é, Joan?

Ela sorriu, e quando o fez, Edu sentiu que estava derretendo. Para disfarçar, puxou uma cadeira e sentou-se, pegando uma fatia de pizza e passando a mastigar grandes pedaços. Não conseguia tirar os olhos dela. Joan sentou-se na frente dele, e erguendo um braço, convidou Sidônio para juntar-se a eles. Sidônio gostou daquele gesto, e pegando a mão dela como somente um namorado faria, sentou-se ao seu lado. Joan notou que ele estava com ciúmes, e gostou. 
Finalmente, após quase duas horas, Edu levantou-se da cadeira e foi embora. Sidônio percebeu que o amigo estava apaixonado por Joan, e que conversara com ela a maior parte do tempo, quase ignorando-o. Joan foi atenciosa e gentil o tempo todo, o que deixou-o ainda mais enciumado. Depois que Edu saiu, Sidônio olhou para Joan, segurando a mão dela, e disse:

-Joan... eu... acho que ... quero dizer... é comum que humanos e fadas se enamorem uns dos outros? 

Uma faísca brilhante escapou dos olhos dela:

-Mais do que você pensa! Tenho certeza que nesse exato momento, existem muitos casais mistos por aí... embora nem sempre dê certo.

-Por que?

-Bem... nós fadas temos uma concepção de vida diferente sobre o amor. Não existe exclusividade, ou seja, ela só acontece se for natural. 

-Quer dizer que fadas podem se relacionar com mais de uma fada? Ao mesmo tempo?

-Sim... mas nós jamais procuramos por isso. Acontece às vezes. E quando acontece, simplesmente aceitamos. Nós não temos o sentimento de ciúme, ou de posse. Somente os humanos o tem. 

Sidônio pensou um pouco, e disse:

- Você se casaria comigo?

Ela demorou um pouco antes de responder:

-Se eu me casasse com você, minha invisibilidade seria quebrada. Isso significa que qualquer um poderia me ver. E eu teria que passar a maior parte do tempo do tamanho de um humano, e isso faria com que meus poderes diminuíssem bastante. Porque para manter-me deste tamanho, gasto bastante energia. Nós temos uma quantidade de energia limitada por dia. Nossos poderes mágicos dependem dela. 

-Mas você sente por mim o mesmo que eu sinto por você, Joan? Você se casaria comigo?

Joan sabia que amava Sidônio. Mas tinha muita coisa em jogo, desistir de tudo para ficar com ele... ela precisava de mais tempo para pensar. Quem sabe, viajar durante algum tempo e consultar sua família. Sua prima mais velha vivia com um humano na Irlanda, e eles eram felizes a maior parte do tempo, mas ela precisava fazer muitos sacrifícios e desistir de muitas coisas. Precisava aprender a sentir como uma humana. 

Joan disse:
-Preciso de tempo para pensar. Amo você também, Sidônio... mas... preciso de mais tempo.

Ele segurou, pela primeira vez, o rosto dela entre as mãos, beijando-a levemente nos lábios.

-Eu lhe darei o tempo que precisa.

Na manhã seguinte, Sidônio procurou por Joan, mas ela não estava em sua casinha na árvore. Por três dias, ele chamou por ela, sem obter resposta. 

Edu passou a visitá-lo diariamente naqueles três dias, sempre perguntando por Joan, o que o deixava irritado. Finalmente, Sidônio disse ao amigo:

-Eu e Joan estamos namorando. Ela viajou para dizer à família que aceitou meu pedido de casamento.

Edu pareceu muito constrangido:

-Ora... por que não me disse logo, amigo?

-Não queria ser grosseiro, mas percebo que você demonstra um interesse exagerado em minha noiva. Entenda uma coisa, Edu: eu a vi primeiro. Ela é minha. 

Edu ergueu o pescoço:

-E ela sabe disso?

-Como assim?

-Ela sabe que é propriedade sua, Sidônio? Porque naquela noite em que a conheci, ela foi bastante... atenciosa comigo, e pensei que estivesse interessada em mim. Nunca me engano nessas situações. 

Sidônio irritou-se:

-Ora, você é um Don Juan convencido, Edu! Joan não é para o seu bico. Ela, não! Ela não é como as franguinhas que você pega por aí. E já disse, estamos noivos!

-Mas você a apresentou como sua amiga!

-Ficamos noivos depois que você saiu.

Edu coçou a cabeça, dizendo:

-Bem... se é assim...

Após uma semana, Joan ainda não voltara de sua viagem, e Sidônio começou a desesperar-se. Temia que ela estivesse vendo Edu em segredo. Na sua imaginação, via os dois aos beijos e abraços. Durante a noite, acordava assustado, diante da possibilidade dela nunca mais voltar. Sua mente dava voltas. 

Não conseguindo mais trabalhar direito, pediu férias no trabalho por motivo de doença. Estava irritadiço, desatento e apático ao mesmo tempo, e seu chefe concordou que ele precisava ver um médico, e talvez um tempo afastado fizesse bem a ele. Quando deixava o escritório e estava a caminho de casa, Sidônio viu a redoma em uma loja de antiguidades.

Parou, e olhou a vitrine. Era uma redoma de forma ovalada, feita de vidro, com uma base de cobre. O vidro continha alguns furos, que pareciam ter sido feitos para que o ar pudesse passar. Achou que media por volta de 40 centímetros de altura por 30 centímetros de diâmetro.  Seu coração deu um salto, e ele precisou respirar mais fundo para se controlar. Ficou ali, parado em frente à vitrine, olhando a redoma. Alguns minutos se passaram, e o vendedor da loja veio ter com ele:

-Vejo que gostou da redoma. É antiga. Tem mais de duzentos anos. 

-Para que servia?

O moço explicou:

-Eram usadas para muitas coisas... colocar velas, ou expor objetos... também como pequenos jardins. Esta é perfurada, e acredito que era usada para colocar vasos de flores, talvez. 

Sidônio sentiu um calor surgir de dentro dele. Tomado por um impulso, comprou a redoma e levou-a para casa, colocando-a no centro da mesa. Notou o quanto o vidro era pesado. Ficou muitas horas olhando para ela, andando em volta dela, pensando no quanto ela lhe seria útil. Sua mente trabalhava de forma autônoma, ignorando o bom senso e a ética. Seu lado selvagem tinha vindo à tona, em jorros de paixão, medo e ciúmes. Se ela voltasse...

A possibilidade de Joan nunca mais voltar fazia com que seu estômago se revirasse. E se ela voltasse, ainda teria que conviver com a ameaça que Edu representava. Ela mesma tinha dito que infidelidades eram comuns entre as fadas. 

O dia acabou, e sombras começaram a entrar e acomodar-se nos cantos do apartamento, antes que Sidônio se lembrasse de acender as luzes. Ele foi até a janela, e quando olhou lá para baixo, viu Edu parado na esquina, as mãos nos bolsos, observando o apartamento. Acenou para ele, mas Sidônio entrou, fechando a porta de vidro e as cortinas da varanda. Pela greta, viu quando o amigo ainda esperou um pouco antes de ir embora. 

Achou que Edu estava ali esperando para ver se Joan tinha chegado. Irritou-se ainda mais, e naquele momento, sabia que sua decisão tinha sido tomada.
Joan ainda levou cinco dias para retornar ao apartamento. Certa noite, um Sidônio magro e barbado olhou para a árvore, desesperançado, e notou que havia luz lá dentro. Joan estava de volta! Imediatamente, seu olhar se iluminou, e não querendo que ela o visse naquele estado lastimável, Sidônio tratou de barbear-se, tomar um banho e comer alguma coisa rapidamente. Depois, abriu a porta da varanda e chamou-a. 

Joan atendeu, dizendo:

-Acabo de chegar! E trago boas notícias, Sidônio. Falei com minha família; alguns concordaram, outros não... mas mesmo assim, meus pais me apoiaram. Eu aceito me casar com você!

Dizendo aquilo, ela transformou-se na frente dele, enlaçando-lhe o pescoço. 
Passaram a noite juntos, e Sidônio jamais sentira nada parecido com o que Joan fez ele sentir.  Fazer amor com uma fada era bem diferente, e muito melhor, do que amar uma humana. Dormiram abraçados, e ela acordou ao lado dele em sua forma de fada, adormecida sobre o travesseiro. Ele ainda a olhou dormir por algum tempo, antes de dar seguimento ao seu plano.

Quando Joan despertou, estava sob a redoma de vidro. Ela olhou em volta, tentando compreender sua situação. Olhou para ele, surpresa e magoada, e 

Sidônio disse a ela:

-Não posso arriscar-me perde-la. Ficar sem você seria a morte para mim.
Joan enxugou uma lágrima, ainda não acreditando naquilo; achava que ele poderia estar brincando com ela:

-Ora... solte-me, amor. Nós vamos nos casar! Lembra-se?

Ele colocou a redoma sobre a mesa da cozinha, sentando-se em frente a ela, os cotovelos apoiados sobre a mesa.  Disse:

-Se você se casar comigo, acabará me traindo. Como minha primeira mulher. Eu vi o quanto você gostou de Edu, e ele de você. você mesma me disse que fadas amam diferente, que não levam a fidelidade em consideração.

-Mas Sidônio! Se você pensar bem, verá que os humanos também não o fazem. Apenas fingem! Eu estava disposta a desistir de grande parte de meus poderes e ser uma esposa para você, tornando-me humana, indo contra a minha natureza... 

-Você disse “estava?”

Ela pareceu desconcertada. Andava de um lado ao outro por dentro da redoma, os olhos em chamas.

-Você não pode me manter aqui! Se me soltar, prometo que me caso com você.

Ele balançou a cabeça, negando:

-Não! Se eu soltá-la agora, você voará por aquela janela e eu nunca mais a verei!
Ela sabia que ele estava certo. Desanimada, sentou-se, abraçando os joelhos. Teria que esperar uma chance para escapar dali. Porém, mais do que triste, Joan estava desiludida. Acabara caindo em uma armadilha, como tantas outras fadas que acreditaram em humanos. 

Sidônio esperava que ela dormisse, e quando isso acontecia, ele levantava a tampa da redoma rapidamente e jogava alguma comida e água lá dentro. Quando precisava limpá-la, agarrava-a com uma das mãos com tanta força, para que ela não fugisse, que Joan mal respirava. Depois, com a outra mão, limpava a redoma. 

A pobre Joan olhava pela vidraça do apartamento, para sua casinha na árvore, para o céu, a liberdade... o vidro era pesado demais para que ela o erguesse. Ele havia colocado uma pequena almofada na redoma, e ela passava o dia todo sentada ou deitada sobre ela. Seus poderes não funcionavam sob o vidro. 

Ele voltou a trabalhar, e quando Edu perguntou sobre Joan, Sidônio dissera que tinham desmanchado o noivado e que ela voltara para sua terra natal. Mas Edu percebia que havia algo diferente com o amigo. Ele não era mais uma pessoa doce e bondosa. Parecia ter envelhecido alguns anos de repente, e estava calado, isolando-se de todos. Também passou a exibir um comportamento estranho – às vezes, pegava-no falando sozinho, murmurando coisas. 

Vários dias se passaram. Nada mudava. Joan desistiu de pedir por sua liberdade, e tornou-se como um brinquedo nas mãos de Sidônio, que a queria somente para si mesmo, isolando-a de tudo. Vítima de suas desconfianças e de seu ciúme. Aos poucos, sua vitalidade começava a diminuir, e ela sabia que em breve estaria morta. Mais uma fada que deixaria de existir devido à interferência humana. Ele não acreditava nela, quando ela dizia que se permanecesse sob a redoma, começaria a definhar. Ele a olhava e dizia:

-Você me parece tão linda como sempre foi. Se a mantenho aí, é porque eu a amo, e não suportaria perde-la!

Ela notava que ele mesmo estava definhando. Parecia estar se transformando em uma outra pessoa. Apesar de tudo, ela ainda o amava. Os amores das fadas custavam muito a morrer. 

Sidônio lembrava-se de sua primeira noite de amor com Joan, e queria poder revivê-la; mas a possibilidade de que ela fugisse dele, o apavorava. Ele segurava a redoma entre as mãos, fascinado pela sua beleza da mesma forma que ficara na primeira vez que a vira. Sentia muito não poder amá-la com seu corpo, mas amava-a profundamente com sua alma. 

Certa manhã, Sidônio olhou a redoma e viu que Joan ainda não acordara. Ele chamou por ela, mas ela não respondeu. Aflito, bateu de leve no vidro, tentando despertá-la, mas Joan não se mexia. Ele chegou o rosto mais perto do vidro e viu que ela estava muito pálida. Desesperado, ele abriu a redoma, tocando a pele dela com a ponta do indicador: ela estava gelada. Cutucou-a de leve, chamando por ela. Aquela foi a chance de Joan, que de repente, voou para longe. Usando seus poderes, quebrou o vidro da varanda, escapando dali. Ele correu na direção dela, apoiando-se no parapeito da varanda, vendo-a afastar-se e ficar cada vez menor, sumindo para sempre no céu da manhã. 

Mas algumas fadas não tiveram a mesma sorte, e morreram à míngua nas mãos de humanos egoístas, ciumentos e dementes. Até hoje, ainda há fadas que caem nas garras de tais criaturas. Elas entregam de si muito mais do que deveriam, e sempre acabam perdendo seus poderes e tornando-se escravas. 






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