terça-feira, 15 de agosto de 2017

JARDIM DAS DESILUSÕES – CAPÍTULO V







Horas mais tarde, nós abrimos a porta do quarto. 

Mas isto só aconteceu horas mais tarde. Antes de abrirmos a porta, tudo o que eu sempre sonhara, desde que o conheci, aconteceu. Ninguém disse nada. Só nos beijávamos, nos abraçávamos e fazíamos amor. Eu aproveitava cada segundo, e alisava o corpo dele como se quisesse absorver seu cheiro e o toque de sua pele para sempre, para levar comigo quando ele fosse apenas uma lembrança – porque, de qualquer forma, eu instintivamente sabia que Nando não era e nem seria meu. Mas eu tentava negar aquela certeza com todas as minhas forças. 

Horas mais tarde, nós pensaríamos em como continuar com nossas vidas; mas não naquele momento! Precisávamos um do outro. Necessitávamos encontrar um no outro alento e consolo, paixão e satisfação. Acho que houve amor. Nós realmente nos amávamos. Eu sentia, pelo olhar dele, que ele me amava. De verdade. 

Horas mais tarde, resolveríamos o lado prático da coisa, se ele ficaria comigo ou não, se Maria viveria ou não, e se ela vivesse, se eles voltariam a ser um casal ou não. Mas naquele momento, havia coisas muito mais urgentes a serem resolvidas. Havia a fome de muitos meses, a ânsia de muitas noites, as incertezas que ambos precisávamos esclarecer de alguma forma – porque quando nos cansamos de tanto transar, ele me disse, baixinho, que também achava que me amava. Foi bem assim: “Eu acho que amo você, Cris.”

E por causa daquela curta frase, de repente, toda a minha vida valeu a pena. Todas as vezes em que não me senti bonita ou inteligente o suficiente, magra o suficiente, amada o suficiente. Tudo valeu a pena, e eu senti que estaria disposta a viver uma vida bem mais difícil que a que eu tivera se houvesse nela a promessa de novamente viver aquele momento, ouvir aquelas palavras: “Acho que eu amo você, Cris.” Eu poderia morar na rua e ser chutada todos os dias, me sentindo inadequada, desamada ou ignorada, se alguém me dissesse que um dia Nando me diria aquilo: “Eu acho que amo você, Cris.”

Dormimos abraçados a noite toda. Ou seja, ele dormiu. Eu fiquei acordada, bebendo as curvas do corpo dele, os cílios aloirados, a boca entreaberta, os cabelos claros enrodilhados em meus dedos. Eu seguia o ritmo da respiração dele, deitando a cabeça em seu peito e respirando profundamente. Achei que o perfume que ele sempre usava acabaria se entranhando em mim. Eu entrelaçava minhas pernas às dele, meus dedos aos dele, meus sonhos... não sei se ele os sonhava também. 

Horas mais tarde, nós abrimos a porta do quarto. E deparamos com a realidade. Giulia nos olhava. 

Estávamos de pé à porta, eu, enrolada em um robe, o corpo nu por baixo dele, e Nando, vestindo apenas suas cuecas samba-canção. Trazíamos sobre a pele os cheiros da noite. Eu tinha  a impressão de que nós exalávamos aquele cheiro pelo apartamento todo. Não esperávamos vê-la ali, pois ainda eram seis horas da manhã. Nossa intenção era ... eu não sei qual era a nossa intenção, pois não disséramos nada antes de sairmos do quarto. Só nos olhamos, sorrimos, entrelaçamos as mãos. E nos levantamos, abrindo a porta. 

E Giulia estava li, de pé, olhando para nós, acusando-nos com os olhos, apontando para nossos rostos um dedo imaginário cheio de culpa e vergonha. Eu vi quando Nando abriu a boca para dizer alguma coisa, mas Giulia o cortou com a voz fria:

-Ela acordou. 

E quando Maria acordou, meu pesadelo começou. 

Ele largou a minha mão de repente, entrando no banheiro:

-Vou tomar um banho e vou direto para lá.

Quando ele disse “Vou tomar um banho,” fechei os olhos de tanta dor. Senti que eu escorregava para o chão do corredor, e olhei para Giulia, mas ela apenas virou as costas e me deixou ali. Eu me sentia suja, e pensava que ele me achava suja. Não queria estar ali quando ele saísse do banheiro, então eu me levantei com esforço e me arrastei de volta para o quarto, deitando na cama onde, há apenas alguns minutos, ele tinha sido meu, completamente meu. 

Com o rosto à altura do travesseiro dele, peguei um fio de cabelo loiro que ficara por lá. Soprei-o, e as lágrimas começaram a cair. 

Nando e Giulia passaram o dia todo fora. Ainda tentei enviar uma mensagem para Giulia, mas ela não a respondeu. Eu não sabia mais o que fazer. Andava pelo apartamento, sabendo que minha presença ali não seria mais tolerada, nem sequer por mim mesma. Pensava no que faria. Teria que achar outro apartamento para terminar o curso... mas... não; melhor seria largar tudo e voltar ao Brasil. 

Esquecer aquelas pessoas, aqueles amigos que eu traíra. Todos eles me odiariam quando soubessem. Pensei nas amigas-girafa de Maria me olhando de cima de seus pescoços compridos, as pupilas dilatadas de ódio entre os cílios postiços. Pensei nos pais de Maria, me olhando com desprezo como se eu fosse a vagabunda que tentou destruir o relacionamento de sua filha querida enquanto ela estava correndo risco de morte. Pensei em Giulia e em seu olhar gelado, ela,  que tanto me avisou que aquilo ia acabar acontecendo. Mas não conseguia pensar no que Nando ia fazer. Certamente, não terminaria com Maria. Ele não trocaria sua bela namorada por mim. Ele não trocaria... afinal, ele dissera que a amava.

De repente, eu me lembrei de que ele também dissera que me amava!

Mas eu não estava pronta para ser “A outra.” Jamais aceitaria imaginar que ele estaria fazendo com Maria tudo o que tínhamos feito no quarto naquela noite de sonhos. Eu não poderia aceitar. E acho que Nando também não era esse tipo de cara. Teria que fazer uma escolha. 

Me olhei no espelho, deixando que o robe caísse aos meus pés: não, eu não era feia, embora não fosse o padrão de beleza ideal, como Maria e suas amigas modelos. Lembrei-me das palavras do velho do jardim: “Você tem uma beleza sutil. A beleza sutil é mais duradoura.” Como eu queria acreditar nele! Naquele momento, tudo o que eu queria, é saber-me bonita. Pensando assim, sem tomar banho, pois ainda não estava pronta para ‘lavar’ o corpo de Nando do meu, vesti-me e fui até o meu jardim. Quem sabe, eu pudesse encontrar o homem velho de novo?

Sentei-me no banco, sentindo o frio de final de tarde. Esperei. Mas ele não apareceu. Começou a escurecer. Começou a esfriar mais, e a nevar. Levantei-me e fui para casa. O apartamento estava escuro quando entrei, e bati a porta. 

Me assustei quando uma voz veio do sofá:

-Onde você estava, Cristina?

Sem acender a luz, pois não saberia como olhá-la nos olhos, sentei-me na poltrona oposta a Giulia:

-Passeando no jardim. Precisava pensar. Ficar sozinha. Sentir alguma coisa, nem que fosse frio... como está a Maria?

Giulia não respondeu. O silêncio baixou sobre nós duas. Escutei que ela se mexeu no sofá, respirando mais profundamente e fungando.
E eu compreendi imediatamente o que tinha acontecido:

-Ah, meu Deus... onde está Nando?

Ela respondeu, as lágrimas quase fazendo com que ela engasgasse:

-Deram um sedativo forte para ele. Está dormindo. 

-Eu... não entendo! Ela tinha acordado, pensei que estivesse melhorando.

-Todos pensamos. Mas ela teve um AVC. Na frente do Nando. Ele a estava olhando através do vidro. Viu quando os médicos chegaram correndo para ressuscitá-la, até que alguém percebeu que ele estava ali e fechou a cortina. Nando disse que ela estava sorrindo para ele, apesar de muito machucada, quando passou mal. 

Eu sentia que estava encolhendo aos poucos, e que logo caberia dentro de algum buraco no canto do rodapé. Eu queria desaparecer. Nenhuma de nós acendeu a luz. Comecei a sentir uma fome enorme –afinal, não comera nada naquele dia, nem na noite anterior. Fui até a cozinha e deparei com a vasilha cheia de macarrão com molho, e coloquei-a no micro-ondas. Apertei o botão e o aparelho acendeu, iluminando em volta. 

Giulia estava de pé à porta. Ela me olhava. De repente, acendeu a luz.

-Obrigada por perguntar como eu estou me sentindo, Cris. 

-Me desculpe, eu... achei que você estivesse com ódio de mim... tentei te mandar mensagens mas você não respondia...

Fui até ela, e nós nos abraçamos, chorando. O micro-ondas apitou, dizendo que o jantar estava quente. 


(continua...)





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