domingo, 28 de abril de 2013

Treva e Luz




Era uma vez duas amigas que viviam em uma pequena vila, e que tinham nascido exatamente no mesmo dia e à mesma hora. Uma chamava-se Treva - cabelos e olhos do negro mais negro, tão negro, que à noite, o céu sentia ciúmes das estrelas, pensando que elas poderiam querer ornar os cabelos de Treva. Ela usava sempre negro - nas roupas, sapatos e acessórios. Sua fala era rouca e mansa, e sua atitude, sempre taciturna. Apesar de preferir a escuridão, ela às vezes gostava de passear à luz do dia, mas logo se recolhia, pois as demais pessoas não gostavam de topar com ela pelas esquinas da vila.

Luz era muito bela, e tinha olhos azuis cristalinos e pele alvíssima. Vestia sempre branco, e sua fala era alegre e cheia de vida. Adorava ficar à luz do sol, e evitava as noites muito escuras, pois temia que sua alvura fosse contaminada pela escuridão.

Mas havia uma hora do dia em que Luz e Treva sempre se encontravam, pois não estava tão escuro assim que fosse ferir a sensibilidade de Luz, e nem tão claro que fosse ofuscar os olhos de Treva: era a hora do crepúsculo. Ao por-do-sol, as amigas se encontravam em uma colina e colocavam em dia os seus assuntos. Eram muito unidas, embora fossem tão diferentes.

Um dia, chegou à aldeia um jovem cavaleiro, que pertencia à corte. Belo e garboso, segundo diziam, procurava por uma dama que lhe servisse de esposa. Assim que ficou sabendo de sua chegada, Treva ornou-se com seu véu negro bordado de fios de luar, seu vestido de veludo mais negro e seu colar de ônix. estava linda! Esperou até que escurecesse, e ficou à porta da taverna onde o cavaleiro se divertia com os amigos, aguardando que ele saísse. Assim que saiu da taverna, Juno - este era o nome do belo cavaleiro - diante da linda visão de Treva, que lhe sorria, apaixonou-se por ela. Chegando perto da moça, apresentou-se e os dois ficaram conversando até o dia amanhecer. Ao raiar do sol, Treva despediu-se de Juno e foi para casa. 

Juno foi sonhando com a beleza da moça pelo caminho, totalmente enlevado, achando que tinha finalmente encontrado a esposa perfeita! Linda, profunda em seus pensamentos, discreta, apaixonada. Mas de repente, ao virar a curva, deparou com outra dama tão bela quanto Treva: Luz esperava por ele, displicentemente sentada a uma pedra. Vestia o manto mais branco, bordado de fios de sol. Seus cabelos loiros e macios, ornados com pedrarias douradas e azuis, espalhavam-se em volta de seu rosto alvo como se fossem raios, e seu sorriso claro e meigo imediatamente capturou a atenção de Juno.

Sentando-se com ela na pedra, os dois conversaram até a hora do crepúsculo, quando Luz despediu-se dele e foi ter com Treva no alto da colina, como sempre faziam. Juno seguiu para a estalagem aonde se hospedara, totalmente divido entre Treva e Luz. Chegando à colina, Luz imediatamente contou à Treva sobre seu novo amor:

-Conheci alguém!
-Eu também!
-Ele é o mais lindo jovem que já vi em minha vida!
-O meu também! Passamos muitas horas juntos, conversando, e acho que estamos apaixonados!
-Nós também! Meu amado pertence à corte!
-O meu também! E ele é um cavaleiro do Rei!
-O meu também é! E seu nome é Juno!
-Não pode ser!
-Mas... por que não?
-Porque meu amado também chama-se Juno!
-Mas eu o vi primeiro!
-Não! Eu o vi primeiro! Nos conhecemos à noite!
-Mas nós nos conhecemos ao raiar do dia!
-Falamos por horas e horas!
-Nós também! E ele adorou meus olhos azuis!
-E meus olhos negros!
-Você mente!
-Você mente!
-Ele é meu!
-Não é não!

Assim, Luz e Treva começaram uma batalha que duraria várias luas. À noite, Treva mostrava a Juno todo o seu encanto e paixão, envolvendo-o completamente por seu manto negro bordado de luar, e durante o dia, Luz o envolvia em sua pureza e sua doçura, cobrindo-o com seu manto branco ornado de fios de sol.

Treva e Luz passaram a odiar-se mutuamente. Esperavam que Juno logo tomasse sua decisão a respeito de qual delas seria sua esposa, mas o jovem parecia cada vez mais indeciso. Pressionado por ambas, incapaz de tomar uma decisão e não desejando ferir nenhuma delas, Juno partiu da cidade numa fria tarde de outono, sem sequer despedir-se. Deixou, a cada uma, um bilhete de adeus.

Dizem que até hoje Treva e Luz são inimigas mortais, e uma se acha sempre bem melhor que a outra. Esqueceram-se do quanto ambas são importantes, e mesmo devendo encontrar-se todos os dias, ao crepúsculo e ao amanhecer, suas discussões são sempre tão acirradas que tingem o horizonte de vermelho.

O homem carrega dentro de si a Treva e a Luz até os dias de hoje, e em certos momentos, deita-se com Treva, enquanto em outros, acorda com  Luz.



quinta-feira, 25 de abril de 2013

O Feitiço





Noite de lua. Uma mulher caminha pela moderna cozinha do seu chalé iluminado pela luz das muitas velas acesas. Mexe com suas ervas, que escolhe e despedaça com as próprias mãos dentro de uma grande panela negra de ágata em formato de caldeirão, que trouxera de sua última viagem à Paris. Totalmente fashion!

Ela caminha - ou melhor, desliza pelo chão, com seu olhar elegante preso atentamente às ervas que escolhe. Sente-se muito à vontade dentro do seu vestidinho preto com saia longa de bailarina, decote em 'V' profundo, os negros cabelos presos em um coque no alto da cabeça - penteado que lhe empresta um ar elegante e sóbrio. Os olhos verdes como esmeraldas estão emoldurados por longos e grossos cílios, as pálpebras desenhadas com delineador preto. Sinal de mistério.

De repente, ela escancara a porta do chalé, e despindo-se das suas sandálias couture Jimmy Choo e soltando os longos cabelos, que despencam em ondas pelas suas costas, ela sai descalça pela noite. Carrega consigo uma garrafinha contendo a sua poderosa poção. Dirige-se a um bosque ali perto, onde, com a ajuda dos poderes da lua, lançará o seu feitiço. 

E a lua está especialmente grande e brilhante, pois é noite de lua azul. Ela murmura palavras ininteligíveis enquanto, olhando para a lua e erguendo em sua direção a garrafinha contendo a poção mágica, sente-se entrando lentamente, em um transe sensual. Permanece naquela posição durante alguns minutos, e depois, abrindo a tampa da garrafa, despeja metade do conteúdo sobre ela mesma, e a outra metade, após um bom gole, derrama no chão.



Vagarosamente, ela caminha de volta para o seu chalé. É tarde da noite, e há poucas pessoas caminhando pela calçada, mas os que passam por ela, ao perceberem seu olhar injetado, os braços retos ao longo do corpo, os pés descalços e o estranho perfume que dela emana, afastam-se dela por medo, e por fascínio, não conseguem deixar de olhar para trás quando ela passa.

Ela entra em casa, fechando a porta atrás de si, e desenhando sobre ela uma estrela de cinco pontas - o pentagrama - a fim de selar a entrada às almas das trevas que possam tê-la seguido.

Do outro lado da cidade, um homem acorda de um sono agitado e estranho, com uma linda e misteriosa mulher que andava descalça por uma floresta. Está ofegante e suado, e ao levantar-se da cama, percebe que há alguma coisa estranha no quarto que o impede de voltar a dormir; uma presença que ele não consegue ver ou explicar. A esposa pergunta se ele está se sentindo bem, e ele responde que acabara de ter um sonho muito estranho e perturbador. Mas antes que pudesse começar a contá-lo, percebe que, na mesma hora, a mulher volta a cair no sono.


Ele se levanta e vai até a cozinha buscar um pouco de água, e no caminho, de repente começa a pensar em sua nova colega de trabalho - uma loira fascinante. Estranhou a maneira como o fascínio daquela moça só tinha sido percebido por ele naquele exato momento, durante o qual ele caminhava até a cozinha. Antes, nem sequer a notara direito. Enquanto bebe sua água, começa a ter fantasias a respeito dela. 



Da sua cama, a bruxa sente as vibrações de seu feitiço sendo realizado. Vira-se de lado, fechando os olhos. Sua cliente ficaria satisfeita.


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Café na Cama






Café na Cama


Ele acordou de mansinho, olhar ainda embaçado, mas a tempo de ver a pontinha da camisola, antes que ela entrasse no banheiro. Escutou o chuveiro sendo ligado, e teve uma sensação de conforto. 

Era manhã de sábado. Ele pensou, com ternura, na mulher com quem tinha passado a noite, e no quanto demorara a encontrá-la. Após cinco anos de divórcio e muitos relacionamentos vazios, já descrente de que voltaria a gostar de alguém de verdade, ela apareceu em sua vida.

Gostou imediatamente dela: a maneira de sorrir, o tom de sua voz, seu gosto para vestir-se. Estavam entre amigos em comum quando se conheceram, e ficaram trocando olhares a noite toda. 

No dia seguinte, ele não pode deixar de perguntar a seu amigo quem era aquela mulher, e onde ela se escondera durante tanto tempo. Ele respondeu-lhe que se tratava de uma velha amiga de escola, que estivera morando fora do país por um longo tempo, na França, e acabara de retornar. E o melhor de tudo: solteira!



Não hesitou em chamá-la para sair. Depois de algumas noites de jantares, teatros, cinemas e conversas, finalmente dormiram juntos. Para ele, foi mais do que uma noite no paraíso: qualquer palavra seria o suficiente para estragar aquele momento completamente! Não havia nenhum adjetivo que ele conhecesse que pudesse descrever como ele se sentira. Teve certeza absoluta: era ela!

Ainda na cama, ouvindo o barulho da água do chuveiro que caía sobre o corpo que ele amara há apenas algumas horas, repetiu para si o nome dela. Soava doce em sua boca, e sentia uma espécie de cócega na ponta da língua ao pronunciá-lo. 

Levantou-se da cama e foi até a cozinha, preparar um café da manhã para ambos. Assoviava, enquanto abria armários e gavetas, escolhendo as melhores xícaras, uma toalha de mesa limpa, a lata de biscoitos importados. Arriscou até uma omelete! 

Ouviu quando ela saiu do chuveiro, e o barulho da mola do colchão quando ela deitou-se. Decidiu levar-lhe o café na cama. 




Mas ele não sabia que ela tinha apenas sentado na cama para calçar os sapatos. 

Ao chegar no quarto, segurando a bandeja, encontrou apenas o cômodo vazio, e nem sinal dela. Lembrou-se que não tinha sequer o número de seu telefone, pois os encontros que tiveram foram todos marcados pessoalmente, ao final do encontro anterior.

Teve a ideia de ligar para o amigo, e perguntar-lhe se ele não poderia dar a ele o número de telefone dela. O amigo pareceu surpreso; respondeu-lhe: "Ela viaja hoje de volta para a França! Não disse nada a você?"

Sentou-se na cama e tomou o café, já frio.


 

domingo, 21 de abril de 2013

As Cartas Parte III - Final





As Cartas - Parte III


"Nós tomamos uma decisão que eu não sei se terei a coragem de assumir, pois a minha vida não é só minha, eu tenho as meninas, eu tenho a sociedade para dar satisfações. Ele quer que eu vá embora com ele, e eu sei que é a coisa que eu mais esperava ouvir na minha vida. Ele me ama. Mas ele não quer assumir as meninas, também, elas são filhas de outro homem, ele quer começar sua própria família. Não sei se tenho coragem. Mas eu preciso dele. Ele me deu um tempo para pensar. 
Mas ele já deixou claro, que se eu quiser ficar com ele, devo deixar tudo para trás, esta casa, esta história de vida, meu passado para trás, e recomeçar tudo com ele. Olho nos olhos dele e sinto que nunca mais serei a mesma depois de tê-lo conhecido, pois ele despertou alguma coisa em mim que estava morta: e é meu amor próprio, minha auto estima, minha vontade de ser e de viver. Agora eu me sinto capaz de enfrentar o mundo. 
Queria que as coisas ficassem assim para sempre, mas ele me deu um ultimato, eu preciso decidir."

E Amanda já sabia qual tinha sido a decisão da mãe, mas continuou a abrir os envelopes e ler as cartas:

"Descobri que estou grávida de novo. E não é do meu marido, não é de Carlos. Estou grávida dele, carrego um filho dele. Não sei como ele vai reagir quando eu contar, e agora eu preciso confessar tudo para Carlos, pois já não fazemos nada há tanto tempo que ele vai saber que o filho não é dele. Não sei como essa história vai acabar. Agora eu penso que jamais deveria ter me envolvido com ele, eu amo minhas filhas, eu fui egoísta... mas é tarde demais."




De repente, Amanda sentiu seu coração acelerar; ela acabara de entrar naquela história! Mas... então Carlos não era seu pai! Toda a sua vida era uma mentira, nada do que sabia sobre si mesma era real... tudo estava bem claro,agora: a maneira complacentemente indiferente com que o pai a tratava, enquanto demonstrava pelas outras um amor quase apaixonado; os presentes de aniversário que ele uma vez 'se esqueceu' de comprar. A bondade fria, a quase piedade que via nos olhos do pai quando ele a olhava. Os carinhos dela que ele não conseguia suportar por muito tempo, afastando-se quando ela se aproximava, mas não sem antes afagar sua cabeça meio-sem jeito, dando aquele sorrisinho indecifrável que agora ela compreendia: mágoa.

"Contei tudo a ele. Carlos parece estar quebrado ao meio. E eu o quebrei, eu! Mandei as meninas para a casa de minha irmã para conversarmos. Achei que ele ia me matar, me bater, mas ele apenas sentou-se e respirou fundo, puxando todo o ar à nossa volta, me sufocando com sua tristeza. Depois, ele me disse que nunca mais tocaria em mim, e que se eu quisesse, poderia arrumar as malas e sair. Só quis saber o nome dele - do seu rival - e eu disse. Depois ele saiu, desapareceu a tarde toda, e eu tive medo. A minha barriga já está aparecendo, e eu levo um filho que é fruto de pecado. Pode ser fruto de uma tragédia. Como fui irresponsável! Agora as minhas atitudes pesam, e a única coisa que eu posso fazer, é lamentar pelas minhas escolhas erradas, pois vou embora desta casa, e nunca mais verei minhas filhas."

Após uma pausa, a carta continuava:





"Ele voltou, falou-me que tinha conversado com seu rival e me disse que eu não tinha mais motivos para ir embora. Perguntei o que ele tinha feito, ah, me Deus, o que ele fez? Mas Carlos disse que o meu 'namorado' tinha arrumado as malas e partido, assim que ele lhe contara que eu estava esperando um filho dele. Assim, e enquanto me falava essas coisas, ele me olhava de uma maneira fria, os olhos injetados de vingança. Enquanto eu me tornava água e me derretia na frente dele, meus veios se infiltrando no assoalho desta casa para o resto da vida, tornando-se raízes de uma vida que eu não queria mais, ele me dirigia aquelas palavras... eu acabei, estou no fim. Ele foi embora. Afinal, não me amava... jamais fui capaz de conquistar o amor de alguém. Nunca fui nem serei amada. Agora, é esperar esta criança nascer."

Amanda deixou escapar um soluço, e as lágrimas jorraram aos borbotões. Mas ela não conseguia odiar a mãe;seu amor por Dora tinha sempre sido tão grande, tão abrangente e cheio de perdão e de justificativas para a sua indiferença por ela... pensou em Carlos, o homem que ela acreditara a vida toda ter sido seu pai, e de coração, perdoou-o. Ele a criara com todo o amor  que fora capaz de sentir por ela, a filha de outro. Jamais tinha sido brusco ou rude, apenas não sabia o que fazer com ela, como conviver com ela, pois sempre que a olhava - ela agora compreendia - via a traição de Dora. 

A única coisa que a incomodava naquela história toda, era o fato de saber que Dora não a amara de verdade, vendo nela a pedra de tropeço que a  impedira de mudar sua vida, como tanto desejara.



O dia amanhecia,  entre cores douradas e rubras. Segurando uma enorme xícara de café, Amanda estava à janela, vendo a beleza exuberante do novo dia, que parecia zombar de sua tristeza. O que podemos fazer, quando descobrimos que nosso passado é uma mentira, e que não fomos verdadeiramente amados? Pior ainda, fomos apenas tolerados, como um estorvo, uma coisa da qual alguém precisa tomar conta e ajudar a crescer, por pura obrigação ou piedade, quem sabe...

Amanda não sabia mais quem era naquela história toda, pois ela era apenas metade de uma história. Tinha metade do sangue de suas irmãs, que também não sabiam de nada. Como elas reagiriam quando soubessem? Será que ainda gostariam dela? Olhou o relógio: sete da manhã. Não ia trabalhar, não tinha condições. Inventaria uma desculpa qualquer. Não se importava.

O telefone tocou; era Bárbara, sua irmã mais velha. 

-Oi, querida. Te acordei?
-Não, Bárbara. Nem fui dormir esta noite.
-Precisamos conversar. Também não dormi.

De alguma forma, pelo tom da voz da irmã, Amanda sentiu que ela sabia de tudo. Afinal, pelas contas que tinha feito mentalmente, Bárbara tinha treze anos quando aquilo tudo aconteceu. Impossível que ela não tenha percebido nada. Amanda testou o solo:

-Fiquei sabendo de umas coisas.
-É, eu sei.
-Como você sabe?!
-Carla me telefonou e disse que você tinha ficado com os livros antigos do vovô. Daí, achei que à essa altura, amante de livros como você sempre foi, já teria achado as cartas. Eu as achei antes que mamãe morresse, já na fase terminal da doença. Pensei chegar a tempo e queimá-las antes que as lessem, mas não pude ir. Tive reuniões que me prenderam aqui. Então pensei que o que tivesse que ser, seria.

Amanda ficou em silêncio. Bárbara podia ouvir sua respiração.

-Agora eu sei porque eles nunca me amaram...
-Não diga isso, Amanda! Jamais. Mamãe amava muito você. Papai também, ele a aceitou como se fosse dele.
-"Como se fosse." Mas tratando-me como seu eu não fosse. Ele sempre foi tão frio comigo, e mamãe, tão distante!
-Não sei se ajuda, mas eu ouvi uma conversa entre eles, certa vez. Você tinha uns dois, três anos. Ele olhava para você, enquanto mamãe a alimentava, e eu - juro - ouvi-o dizer que jamais pensou que poderia amar tanto assim uma criatura quanto amava você. Depois, ele olhou para mim, dizendo: "Amo você e suas irmãs também."
-Você está dizendo isso para me consolar!
-Não, eu juro que é verdade. E mamãe sorriu para ele, pela primeira vez em anos. E ele estendeu a mão sobre a mesa, segurando a dela. Senti que a perdoava. 
-Ele jamais a perdoou. Não poderia!...
-Ele a perdoou, sim. Pense nos anos que se seguiram, Amanda! lembra-se daquelas viagens à praia, durante as férias? Éramos tão felizes!

As memórias afloraram na mente de Amanda, e ela lembrou-se dela mesma e de suas quatro irmãs, Carla, Teresa e Lídia  adolescentes, enquanto Bárbara já era adulta, e ela, apenas uma criança. Lembrou-se dos risos. De repente, veio-lhe à cabeça uma cena da qual já se esquecera há muito tempo: os pais de mãos dadas à beira d'água, olhando o mar. Juntos.




-Amanda, a gente sempre tem a mania de focar no que foi ruim. Mas pense bem, e verá que fomos uma família unida e feliz. Somos! Você jamais será menos do que nossa irmã querida.

A tarde estava fria, e Amanda saiu para dar uma caminhada pelo parque. Ligara para o trabalho e pedira férias. Sentou-se em um dos bancos, e ficou olhando o chão enfeitado pelas folhas coloridas de outono. Estava com quase quarenta anos de idade, e sentia-se como uma adolescente em plena crise existencial. Seu casamento não ia nada bem - admitia, por sua própria culpa, pois não tinha investido muito nele. Era emocionalmente distante, assim dizia seu marido. Nem sabia se ainda o amava...  Às vezes, os sentimentos se modificam quando são deixados lá fora sozinhos. Um vento frio açoitou-lhe o rosto. 

Voltou para casa, e preparou um café. Sentou-se no sofá, ligando a TV e enroscando-se em uma manta. Acabou adormecendo.

Despertou minutos depois, e entre as pálpebras entreabertas, avistou sob a poltrona um outro envelope. Levantou-se de um salto para pegá-lo, e de repente, pensou se deveria ou não abri-lo; já tinha tido emoções demais naqueles últimos dias. Guardou-o dentro de um livro. Nunca mais lembrou-se dele.

*   *   *




Anos depois, após seu dolorido divórcio, numa tarde em que se sentia especialmente miserável, Amanda olhou-se no espelho, e sentiu-se muito velha. Estava sozinha em casa. Há alguns dias não falava com suas irmãs. Cada uma tinha seus próprios problemas.  De repente, pareceu ter ouvido a voz da mãe dizendo: "A vida não é nenhum mar de rosas, mas a gente precisa aprender a nadar." Lembrou-se da carta. Correu para a estante, derrubando no chão todos os livros. Sentou-se no tapete, abrindo-os um a um e sacudindo-os freneticamente, até que, finalmente, um envelope amarelado - a última carta, a que não lera - caiu no colo dela. Abriu-a:



"Minha querida filha Amanda, 
Decidi escrever-lhe esta carta para você ler nos momentos difíceis. Talvez um dia você se sinta muito triste, como estou agora, e queira alguém com quem partilhar seus sentimentos, e não haja ninguém em volta - como agora não há para mim. Enquanto escrevo, você me olha da sua cadeirinha, enquanto leva colheradas de comida à boca - errando a trajetória da maioria delas. Você sorri, e parece tão contente em ser deixada assim, livre para sujar-se à vontade. Tão inocente! Sabe, eu a amo demais, assim como às suas irmãs. Mas cometi muitos erros, erros que eu espero, vocês nunca fiquem sabendo, pois eu morreria de vergonha do que fiz, ah, deixa isso pra lá... só quero que você saiba o quanto eu a amo.
Seu pai também a ama muito, e mesmo com aquele jeito distante dele, tem um coração de manteiga - o mais bondoso coração que eu já encontrei na minha vida, e olha, eu quase o joguei fora! Nunca faça isso, Amanda, dê valor às pessoas que ama, Às suas irmãs, e se um dia você se casar, ame a pessoa que estiver do seu lado, dê valor a ele, deixe ele saber como se sente, e nunca, mas nunca na vida, se esqueça disso: se a distância começar a surgir entre vocês, faça tudo para construir uma ponte sobre ela o mais rapidamente possível, ou então a vida vai acabar separando vocês... a vida ou então os sentimentos confusos e desacertados de vocês, não sei...
Às vezes uma coisa que parece certa pode ser o maior engano da vida da gente. Ficamos só pensando no que poderíamos ter feito de diferente das nossas vidas, e nem nos lembramos de dar valor ao que temos, ao que conquistamos - porque aquilo que temos, seja o que for, é fruto de conquista, mesmo que nos pareça insuficiente, e se não estivermos satisfeitos, devemos lutar para melhorar, e não ficar culpando os outros que estão em volta.
Fugir não é a solução, filha.
Muitas vezes, aquela janela que se abre e inunda de luz as nossas vidas escuras, é apenas uma falácia. Ninguém traz luz à vida de outro, se a própria pessoa não souber cultivar a própria luz. Quando a gente cultiva a própria luz, não cai na armadilha causada pela falsa luz que algum oportunista projeta dentro da nossa escuridão. A gente só consegue ver com clareza se segurarmos a nossa própria lanterna! Ou então, virá alguém que projetará a luz apenas aonde for interessante para eles que nós enxerguemos. Fuja das ilusões da vida: encontre a sua luz!
E eu descobri, a tempo, que a minha luz é você, são suas irmãs e seu pai; esta casa, a nossa família, a nossa vida. Olhe para dentro! Encontre a sua!

Amor, 
Mamãe."



Após ler aquela carta, Amanda chorou todas as lágrimas que vinha tentando conter; chorou pela sua vida desacertada, pelo seu passado desencontrado, pelas suas relações mal-cuidadas. Chorou a noite toda. Mas na manhã seguinte, sentia-se leve, de uma forma como jamais se sentira antes.
Pegou o telefone e ligou para o ex-marido. Ainda havia tempo para refazer sua vida.



As Cartas - Parte II





As cartas - Parte II


Ao chegar em casa, Amanda acomodou os livros em um canto da estante, e ficou olhando as lombadas antigas. Eles tinham pertencido ao seu avô, e Dora os guardara com muito carinho durante todos aqueles anos. Nem sequer permitia que tocassem neles. De repente, lembrou-se de uma tarde em que ainda eram crianças, e ela, a menorzinha, após mexer no armário da mãe enquanto ela tinha saído, encontrou os livros, pegando um deles para rabiscar. Quando Dora chegou em casa, ela levou uma surra inesquecível, e Bárbara, a mais velha, que tinha ficado responsável por olhar as irmãs menores, ficou de castigo por uma semana. 

Pensou: "Será que meus rabiscos ainda estão aqui?"  E zombeteiramente, disse em voz alta: "Mamãe! estou mexendo nos seus livros! venha me pegar!" Riu daquele pensamento. Ao puxar o segundo livro da estante, ele escapuliu de sua mão, e vários papéis amarelados - alguns, dentro de envelopes caíram ao chão. Ao verificar os outros livros, Amanda encontrou antigos cartões postais - alguns datando dos anos 20 e 30 -, mais fotografias, e mais cartas.Viu que algumas tinham sido escritas à caneta tinteiro, tão antigas... eram cartas de seu avô à sua mãe. Começou a lê-las, e viu que o conteúdo era formal, as emoções, contidas. Haviam sido escritas durante as viagens do avô. Apenas mandavam notícias. Guardou-as; pensou que as irmãs gostariam de lê-las. 

As cartas que estavam envelopadas - algumas lacradas - não tinham remetente. Dora não as enviara. Abriu a primeira, e reconheceu a caligrafia rebuscada da mãe. Falava de um dia angustiante; falava de seu pai:




"Como fazê-lo compreender que eu não o amo? Se ele me toca, eu só consigo me encolher. Mas como dizer a ele, após anos de casamento, que eu quero deixá-lo? E para onde eu vou? Nunca trabalhei, não tenho um lugar para onde ir, nem ninguém que possa me ajudar. Se ao menos eu não tivesse me afastado tanto das minhas amigas! E tudo por causa dele. Não queria que eu saísse, que eu tivesse amigas, e eu fui levando... os cuidados com as crianças que não paravam de nascer e crescer, a casa, as tarefas... a vida foi passando, e quando vi, estava velha! 
Às vezes eu penso que deveria ter me tornado freira."

Amanda se perguntou se deveria continuar lendo aquelas cartas, que na verdade, eram como diários. Mas lembrou-se que a mãe estava morta, e continuou. Uma das cartas tinha sido escrita anos antes de Amanda nascer:

" Hoje ele passou pelo portão e sorriu para mim de novo. Ergueu a aba do chapéu. Ele é tão galante que tenho medo de fazer alguma loucura. Tão bonito, e o perfume que fica depois que ele passa... e sinto que não estou ainda tão velha, e que se alguém me olha daquela forma, é porque eu ainda existo. Depois, vem uma das meninas me chamando, e meu coração se quebra, pois sei que eu preciso cuidar delas, não posso deixar as minhas filhas, que não tem culpa de nada..."

Sua mãe tivera um amor platônico! Quantas coisas mais ela não sabia sobre a vida daquela mulher? Foi abrindo os envelopes e lendo as cartas apaixonadas de sua mãe para o estranho que passava, cartas que nunca tinham sido entregues. Descobriu que ele tinha sido mais que um simples amor platônico, e que talvez tivesse representado uma tábua de salvação para Dora, em momentos muito difíceis de sua vida. O tal homem, cujo nome nunca era mencionado nas cartas, fora amante de sua mãe! Entre sentimentos confusos, amanda continuou lendo aquelas cartas, e descobrindo todos os segredos que a mãe guardara durante todos aqueles anos...




"Tivemos nosso momento de amor. Tinha que acontecer! E eu não me importei com o que os vizinhos poderiam pensar, não liguei para nada... as meninas estavam na escola, durante a tarde, e convidei-o para entrar. E ele entrou, e aconteceu, e eu nunca, em toda minha vida, me senti tão bem e tão completa, e foi tão bonito e tão maravilhoso que eu acho que nunca mais vou conseguir deixar que meu marido me toque de novo. E de hoje em diante, se ele quiser, eu vou abrir as portas para ele, e mesmo que ele nunca queira me assumir, para mim o que ele me dá já é mais do que bastante; ele me faz sentir viva de novo, ele me dá esperanças, ele cura a minha alma. E eu não me importo com mais nada, as meninas terão sua mãe, eu terei minha vida."

Amanda levou a mão à boca, como a encobrir o escândalo daqueles momentos furtivos que sua mãe vivera.  Meu Deus! Ela não conhecia aquela mulher... lembrava-se da mãe nos últimos dias de vida, já velha e doente, os olhos sem brilho entre as pálpebras enrugadas, o ar doce e conformado de quem sabe que seu fim estava chegando, a voz pequena, como a de alguém que sabe que suas palavras já não tem mais peso nos ouvidos de quem as escuta. A mãe que conhecera não era aquela mulher apaixonada das cartas.

Ela passou a madrugada perdida naquelas cartas, caminhando entre aquelas linhas. O marido chegou em casa, eles jantaram, falaram do dia, e ele foi dormir, e Amanda voltou para as cartas.


As Cartas - Parte I




As Cartas



Amanda espalhara sobre a colcha as fotos, livros e objetos miúdos que a mãe deixara. Era o dia que as cinco irmãs tinham marcado para decidir quem ficaria com o quê. Das cinco, apenas três compareceram, pois Bárbara, a mais velha, não conseguira organizar-se para participar, envolvida que estava com as obrigações de trabalho, e  Lídia, na última hora, preferiu não estar presente, pois jamais se dera bem com a mãe, e era difícil para ela despertar tantas lembranças. 

Assim, estavam ali Amanda - a mais jovem das cinco irmãs - Carla e Teresa.

O sol de fim de tarde penetrava pela janela, numa luz opaca e amarelada, dando aos livros, fotos e objetos uma aparência ainda mais antiga. Amanda percorreu com os olhos as capas dos livros mais novos, e viu que alguns tinham sido presenteados por ela - e pela aparência intocada, viu que a mãe jamais os lera. Percebeu também, ao abrir os armários, que muitos dos seus presentes tinham permanecido fechados nas caixas e embalagens; eram dezenas de blusas, cachecóis, livros, bijuterias e perfumes, todos intactos, envoltos em sacos plásticos e papel de seda, ou perfeitamente acondicionados em suas caixas originais.

Seu coração apertou-se; a mãe sempre preferira Teresa. Pensou na solidão que sentira ao casar-se, quando teve a clara impressão de que a mãe apenas esperava por aquele momento para que pudesse, enfim, abster-se da responsabilidade que tivera com ela até aquele momento. Quando Amanda a convidava para visitá-la em sua nova casa, a mãe quase sempre desmarcava na última hora, alegando ter se lembrado de algum outro compromisso. Quando comparecia, ficava o tempo todo perguntando as horas, dizendo que precisava ir embora logo, pois alguém a esperava em algum lugar. Amanda sempre tivera fantasias sobre como as duas ficariam amigas inseparáveis quando ela se casasse, pois a mãe finalmente descobriria que sentia sua falta, mas aquilo não aconteceu. O casamento apenas serviu para afastá-las ainda mais.

Dizem que toda mãe e todo pai tem seus filhos preferidos, e Amanda sabia que não tinha sido a favorita de nenhum dos dois. 




Nascera quando sua mãe tinha trinta e nove anos, e dizem, fora fruto de uma gravidez inesperada. Uma das tias, durante uma conversa íntima na cozinha de sua casa durante o seu chá de panela, deixara escapar - após alguns Martinis - que a mãe estava para pedir o divórcio, mas descobriu que estava grávida de Amanda, o que estragou seus planos. Assim, Amanda, depois daquela tarde reveladora, passou a sentir-se ainda menos desejada.

Quando Dora -a  mãe - ficou viúva, aos sessenta e dois anos de idade, após anos de um casamento morno e sem amor, pareceu despertar novamente para a vida; passou a sair bastante e frequentar alguns clubes; reatou velhas amizades que tinham sido afastadas pela aspereza do marido e teve até mesmo alguns   namorados, que eram descartados após algum tempo -  assim que começavam a querer 'morar junto.'

Bem, as três irmãs - Amanda, Teresa e Carla - estavam no quarto, experimentando bijuterias (a maioria, colocavam de lado para doação), revendo velhas fotos e documentos e decidindo quem os guardaria            ( Carla não queria nenhuma delas) e lembrando  acontecimentos e histórias que, de algum modo, envolviam alguns daqueles objetos: "Ela estava usando este colar na minha formatura", "Esta blusa foi presente de aniversário da tia Gabi, lembram-se como ela detestou?" ou "Ela adorava esta echarpe!"

De repente, Amanda deparou com uma coleção de velhos livros, que separou para si, já que as irmãs não demonstraram nenhum interesse neles. A tarde anoiteceu, e após algumas xícaras de chá com bolinhos na cozinha da casa, a reunião terminou. Amanda ficou com as chaves, pois ficara decidido que seria ela a mostrar a casa para os interessados que surgissem. Antes de fechar a porta, segurando os velhos livros que agora eram seus, ela ainda olhou para dentro, para a sala semi-escurecida, os móveis gastos, os muitos paninhos de croché sobre os braços das poltronas e sobre os tampos das mesas; então, era assim.


quinta-feira, 18 de abril de 2013

A Mãe






Os dedos finos da chuva tamborilavam no parapeito da janela, dizendo: "Lembre! Lembre!" Ela olhava para fora, e já não sabia se enxergava a chuva no vidro, ou se eram suas próprias lágrimas. Aconchegou-se ao cachecol. Fungou.

Mais um dia.

Suspiro.

Ainda de camisola, foi lá para fora, para a vida, fazer aquilo que todos esperavam dela: viver. Ou algo assim. Preparou o café em transe, despediu-se do filho, que saiu para a faculdade, beijou o marido sem nem sequer vê-lo direito. Ele dissera algo; o que, meu Deus? Não importava. Aprendera a olhar as pessoas, ver seus lábios se mexendo, sorrir levemente e acenar com a cabeça. Mas o que eles diziam? Não tinha a menor importância. Sabia que, quando alguém afagava seu ombro - o que doía -, tinha que dizer "Obrigada."

Às vezes, quando estava um pouco mais alerta, escutava-os dizendo: "Já fazem dois anos..."  mas por que o tempo só não passava para ela?

Achava cruel, a maneira como as pessoas se aproximavam sorrindo, perguntando (quase afirmando) se estava tudo bem, e antes que ela respondesse , iam passando, pois na verdade, não estavam interessados na reposta; ninguém queria ouvir a ladainha de uma pessoa enlutada. Queriam - exigiam - que ela estivesse bem.

Lavou as xícaras, secou-as e guardou-as no armário. Também desfez a mesa do café - sem ter comido quase nada; apenas brincava com os alimentos, enfiando alguma coisa na boca, para que não fosse obrigada a ouvir as mesmas ladainhas: "Você precisa comer, você precisa reagir, você precisa sair mais..."

Você precisa.

Pegou a caixa com as fotografias, como sempre fazia, e sentou-se na cama, espalhando-as sobre a colcha gasta. Lá estava ela, sorrindo, entre as amigas; e a primeira comunhão. O aniversário de nove anos, o de doze, o de vinte. A foto de formatura . Os sorrisos congelados para sempre, a imagem de uma menina feliz e morta.

Morta.

A realidade doía. 

Guardou as fotos e foi às compras no supermercado. 



A manhã estava morna e cinzenta. Parecia que nunca mais ninguém veria o céu azul, ou que ele fosse apenas uma lenda. A chuva havia passado, mas no chão, poças de água de todos os tamanhos. Encontrou um vizinho, que acenou para ela alegremente, e ela automaticamente, acenou de volta. Passou, seguiu.

Chegou em casa com as compras e começou a preparar o almoço. A irmã ficara de passar para almoçar com ela. Pôs a carne no forno, começou a picar os legumes. De repente, entrou em um transe. O tiquetaque do relógio na parede acima da pia parecia ter o poder de hipnotizá-la, levando-a de volta ao passado, quando a menina vivia. E escutava os ecos de seus risos pela casa, a voz dela pedindo: "Mãe, passa a minha blusa azul?" E lembrou-se de quando ralhava com ela, por deixar tudo para a última hora: "Por que não pediu ontem, filha?"

E agora, voltando aos legumes picados - após um pequeno talho no dedo, que foi lavar sob a torneira da pia - ela só pensava que gostaria de ficar o resto da vida passando todas aquelas blusas azuis, verdes, amarelas, brancas... se isso fosse trazê-la de volta por apenas um ou dois minutos que fossem!

Jogou os legumes na caçarola, pôs o sal, refogou , jogou água. Olhou a carne no forno. Olhou o arroz, enxugou as mãos no avental. Recostou-se contra a pia, olhou a cozinha embaçada pelo vapor das panelas. Abriu a porta, mas a luz que vinha lá de fora, apesar do tempo cinzento, e os gritos das crianças brincando, era vida demais para ela. Fechou aporta.



Olhou para o corredor. Escuro. Vazio. Nunca mais ela passaria por ele apressada, para dar-lhe um beijo antes de ir. Nunca mais. Esta era a sua frase, a frase que representava todas as expectativas que pudesse ter sobre a vida: "Nunca Mais."

A distância que se fizera entre ela e o marido estava cada vez mais se esticando, e ela sabia que a hora em que aquele elástico absurdamente longo se partiria, estava chegando. Ele ia embora. Aliás, já tinha ido; só o corpo dele estava por ali, vagando. Às vezes pensava o que sentiria se ele morresse. Choraria? Será que acordaria? Sentiria falta dele? Não sabia que ele pensava exatamente a mesma coisa, e se fazia as mesmas perguntas. E depois que ele fosse embora, e o filho finalmente se mudasse - estava procurando apartamento - o que ela faria?

Já passava dos quarenta. Estava fora do mercado de trabalho há muito tempo. Passara a juventude cuidando dos filhos, da casa, do marido. Nunca fizera mal a ninguém na vida! Nunca, nem uma vez, desejara mal a qualquer criatura viva, e sempre que podia, recolhia animais abandonados na rua e ajudava-os a encontrar um dono. Diziam que ela era boa. 

Então, por que?!

Lembrou-se do dia do velório, quando uma senhora que nem sequer conhecia, aproximou-se dela e disse: "Deus quis assim!" A partir daquele momento, ela passou a odiar Deus. Até mesmo sua querida santinha, a quem tinha sido sempre tão devota, passou a ser encarada como uma inimiga. Só não jogara a imagem fora porque tinha sido presente de sua mãe, que trouxera para ela de uma viagem que tinha feito à Fátima. 



E todos diziam que ela tinha que se apegar a alguma coisa; precisava ter fé! Ora, fé ela tivera, durante todo o período da doença da filha! Tinha feito promessas e mais promessas, rezado missas, feito novenas. Nunca tinha sido tão carola, a fé brotando por entre seus dedos, despejando-se dos seus olhos, saindo-lhe pelos poros enquanto afagava a cabeça da filha no leito de hospital, dizendo a ela que ia ficar boa, que ia curar-se. E ela realmente acreditou na cura! Mas sua santinha havia praticado a maior das traições: levou sua menina! Levou sua menina, por pura inveja, porque seu Filho também tinha sido levado! E por causa disso, ela agora odiava todas as mães, e levava-lhes os filhos! Era como uma cínica serial killer de véu branco.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo toque da campainha. Abriu a porta para a irmã, que a abraçou, trazendo a vida lá de fora. Cheirava à chuva fresca e fumaça dos carros. Era vida demais, e ela encolheu-se dentro dos braços da irmã, para tentar evitar ao máximo o toque daquele corpo. A irmã, ao olhá-la novamente, comentou:

-Que tempo! Já começou a chover de novo!

Ela pegou a bolsa da irmã, pendurando-a no cabide do corredor. Sorriu, seu sorriso leve e casual. A irmã sentou-se à mesa da cozinha, dizendo:

-Você está bem melhor hoje, querida. Parece bem melhor!

Ela sorriu novamente, concordando com a cabeça. Era isso que esperavam dela.



OLHOS NEGROS







Clara e Mara eram gêmeas. Eram quase idênticas, mas Clara tinha olhos negros, e Mara, olhos azuis. Ninguém sabia de onde vinham os olhos negros de Clara, pois a família era toda de pessoas de cabelos e olhos claros. Mas os olhos de Clara eram tão escuros, tão negros, que era difícil enxergar neles qualquer expressão. Só se desmanchavam quando ela sorria. 




As meninas moravam com os pais em uma cidadezinha muito pequena, lá no sul de algum país. Uma cidade onde a maioria das pessoas tinha olhos claros, e mesmo quem os tinha escuros, não os tinha tão negros quanto os olhos de Clara. Mara nascera primeiro: era duas horas mais jovem que a irmã. A mãe costumava dizer que ela praticamente 'escorregara' para fora dela. Clara nascera quase morta: cordão umbilical enrolado em volta do pescoço. Teve que ser retirada à força pela parteira, causando muito sofrimento à sua mãe. Parecia que não queria sair. Mas saiu.



As pessoas da cidade eram muito supersticiosas, e tinham medo dos olhos de Clara. Tudo começou quando as meninas tinham cinco anos de idade, e foram brincar com a filha da vizinha, na casa desta. Dizem que as meninas tiveram uma discussão, dessas discussões bobas de criança, e a filha da vizinha levou um tombo e quebrou  a perna. 





Logo depois, alguém jurou que a samambaia que estava na varanda secara devido aos olhares de Clara.

Quando o vizinho fazendeiro ralhou com as meninas na rua, porque elas estavam irritando o seu cavalo, a produção de leite de um dia inteirinho azedou. 




E muitas dessas histórias foram passando de pessoa para pessoa, as versões cada vez mais aumentadas, e Clara passou a ser cada vez mais temida. As outras crianças começaram a evitá-la, e até seus pais a temiam um pouco. Um dia, ao colocar as meninas de castigo por elas terem quebrado a terrina de sopa, a mãe ficou estarrecida ao ver todos os legumes e verduras da horta murcharem.




Ao completarem sete anos, as meninas exultavam em beleza. Eram as mais lindas crianças da região. Estavam quase sempre juntas, a não ser quando havia um aniversário (para o qual apenas Mara era convidada), ou quando havia alguma quermesse, pois os pais, temendo que Clara aprontasse 'das suas', deixavam-na trancada dentro de casa e levavam apenas Mara. Mesmo assim, às vezes, via-se algum desastre; como no dia em que a máquina de algodão doce produziu algodão amargo.



A direção da escolinha local também passou a proibir a entrada de Clara na escola, pois de repente, o sinal tocava fora do horário do recreio, causando o maior rebuliço entre as crianças, ou a merenda fresquinha estragava na panela.

Um dia, os vizinhos se reuniram em assembléia. As queixas eram muitas. Queriam que os pais das meninas tomassem providências contra Clara. Já estavam cansados de legumes murchos, samambaias mortas, vacas sem-leite, telhados furados, crianças que levavam tombos, algodões-doces amargos e outras peripécias. Ou eles tomavam uma providência, ou a família seria expulsa da cidade.



A mãe ficou desesperada. Não sabia o que fazer, pois apesar de tudo, amava sua filha de olhos negros tanto quanto amava a de olhos azuis. Mas numa manhã de sábado, quando acordou, Clara tinha desaparecido.

Não sabiam que, ciente dos problemas que todos pensavam que ela causava, a menina decidiu fugir para longe dali. 



Ela chorou muito no início, pois sentia saudades dos pais e da irmã. Mas foi caminhando, as lágrimas secando, e ela, crescendo cada vez mais, até que se tornou uma linda mocinha.  




Acabou trabalhando como garçonete em uma lanchonete de uma cidade vizinha. Aprendeu a ler e a escrever, fez muitos amigos e percebeu que ali, a sua maldição não a importunava. Um dia, conheceu um belo rapaz, com quem se casou, e foi muito feliz, para todo o sempre.

Enquanto isso, na sua cidade natal, as colheitas murchavam, o leite secava e as crianças caíam.



terça-feira, 16 de abril de 2013

A Voz




 




Ela acordou no meio da noite, após ouvir, novamente, a voz. Há dias a mesma coisa acontecia: despertava, sempre às três da manhã, ouvindo uma voz que chamava seu nome. Mas logo após despertar, por mais que tentasse ouvi-la novamente, nada acontecia.


Não conseguindo retomar o sono, ela decidiu ir até a cozinha preparar um chá. Chá de alguma coisa. Alguma coisa que pudesse ajudá-la a dormir novamente. Mas quando chegou no topo das escadas, acendendo a luz e olhando para baixo, subitamente teve vontade de cantar. E cantou.


Soltou a voz em uma velha canção dos Beatles, e a voz foi descendo lentamente pelos degraus, ao mesmo tempo que subia pelas paredes, penetrava nas frestas das janelas e saía para o jardim, arrastando-se pelo gramado e finalmente, elevando-se com o vento, indo atingir as outras casas e os outros ouvidos que dormiam. 


As pessoas acordavam, escutando aquela canção dos Beatles, em uma voz maravilhosamente límpida e afinada, e nem ela mesma sabia de onde vinha aquela voz que cantava dentro dela. Só sabia que não tinha como fazê-la calar. Ela dominava-lhe a garganta, impedindo-lhe os movimentos do corpo. Quando parou de tentar lutar contra a voz, deixando que ela a tomasse completamente, a voz começou a fluir também através de seus poros. Cantava, através dos olhos, dos ouvidos e de todas as aberturas de seu corpo. Jamais alguém cantara daquela maneira, tão completamente.





Àquela altura, um grupo de vizinhos vestindo seus robes e pijamas já se enfileirava à porta de sua casa, impossibilitados de dormir e ao mesmo tempo, encantados pela música perfeita que estava sendo produzida. 


A canção terminou, mas logo uma outra começou, agora, uma linda ária. E ela deixou-se cantar, mesmo porque não tinha outra alternativa: a voz não era dela, parecia possuída por uma força arrebatadora que a dominava completamente. E cantava. E nem queria mais parar de cantar. Ela tornou-se a voz. A voz tornou-se ela.


Pela manhã, encontraram-na morta no topo das escadas, com um sorriso leve  e uma expressão tranquila. Morrera de tanto cantar. Morrera feliz.



domingo, 14 de abril de 2013

MACABRA - Parte I




Ela sorria um riso sem alegria, embora aberto e falsamente luminoso, a fim de enganar os mais incautos. Andava pela rua desejando um falso bom dia a todos que passavam por ela. Assim era Amália: um equivocado retrato da felicidade. Abria os braços e acolhia calorosamente - pelo menos, era o que tentava transparecer - as suas vítimas, e quando estas menos esperavam, sugava-lhes o sangue vagarosamente, as unhas sujas dedilhando-lhes  as aortas. 

Amália escolhia suas vítimas conforme o sucesso que estas tinham em algum projeto no trabalho, ou até mesmo, na vida pessoal. Observava e armava o bote, enquanto se aproximava feito a melhor amiga, a incentivadora, a que sempre estava disponível. 

Ela mesma tentava aparentar sucesso. Dizia-se a melhor em sua área de atuação, A Engenharia Construct, onde trabalhava como engenheira chefe, e portava orgulhosamente os prêmios que conquistara durante sua carreira - embora nenhum daqueles prêmios emoldurados na parede de seu escritório fossem realmente significativos. Mas eram suficientes para impressionar os mais desavisados. Apenas os profissionais que entendiam do assunto, percebiam que Amália era uma falácia. 

Fernanda chegou à Construct como uma trainee recém-formada; exatamente por este motivo, Amália não lhe deu muita atenção, pois não via ali nada que pudesse destruir. Ignorava-a solenemente, e nem sequer respondia quando Fernanda a saudava com um 'bom dia' ou 'boa tarde.' Fernanda não compreendia a atitude de Amália, mas também achava melhor não questionar; afinal, ela era antiga na empresa, amiga de Caio, o diretor, e tinha uma carreira de sucesso - Fernanda vira os diplomas nas paredes do escritório de Amália.

O pessoal do escritório, os mais antigos, que já conheciam Amália, mantinham-se longe dela, e tentavam não chamar sua atenção ou brilhar mais que ela, pois já tinham visto as pessoas que ela esmagara serem demitidas da companhia ou saírem por vontade própria, tal o impacto de sua maldade sobre elas e suas vidas íntimas. Ninguém se esquecia de Salete, a secretária que cometera suicídio após uma demissão por justa causa. Havia especulações de que papéis importantes da companhia tinham sido encontrados dentro de sua bolsa, e que ela estaria passando informações para a empresa concorrente. É claro, a denúncia havia sido feita por Amália, e todos desconfiavam de que as mesmas eram falsas; mas como ignorar as evidências? Lá estavam os papéis, dentro da bolsa de Salete, dias depois da companhia concorrente lançar no mercado um projeto que tinha sido feito por um dos engenheiros da Construct. 

Também ainda eram frescas as memórias do que acontecera com  Dara, uma das engenheiras contratadas pela firma há dois anos. Era firme e arrojada, apresentando projetos maravilhosos; mas além de ser uma ótima profissional, era uma linda mulher, que logo caiu nos encantos de Caio, o presidente da Construct e   atraente cinquentão divorciado. Os dois começaram a namorar, o que foi suficiente para despertar o sinal de alerta de Amália. Havia uma vaga para o cargo de engenheira chefe, que Amália vinha desejando há tempos, e agora que Dara estava tendo um relacionamento com Caio, Amália sabia quem seria a escolhida; precisava agir rápido. 


Aproximou-se de Dara, tornando-se sua melhor amiga. Solícita, ajudava-a nos projetos, e oferecia-se para fazer horas extras a fim de auxiliar a 'amiga.' Ficou sabendo que Dara frequentava a mesma academia de ginástica que Paulo, um dos trainees contratados à mesma época que Dara,  mas cujo contrato estava vencendo, e já tinha sido determinado que ele não seria contratado definitivamente pela empresa. Paulo era um metrossexual declarado: cultivava o físico, era vaidoso e gostava de de achar-se irresistível. Pesquisando melhor, Amália descobriu que Dara e Paulo haviam tido um rápido relacionamento no passado, mas que Dara o havia deixado por causa de sua imaturidade e egocentrismo. Mas aquela informação foi o bastante para que ela arquitetasse seu plano.

Durante dias, passou a observar Paulo cuidadosamente, e percebeu em conversas, que ele era uma pessoa fútil e ambiciosa, tanto quanto incompetente para atingir seus objetivos. Assim, combinou de almoçarem juntos, e Amália ofereceu-lhe dinheiro - uma boa quantia - para que ele concordasse em ajudá-la. Estava tudo planejado; em um dos serões com Dara, Amália oferecer-lhe ia um café com um pouco de sonífero, e depois, alegando não sentir-se bem ,  iria embora mais cedo; assim que ela saísse, Paulo entraria no escritório (vazio àquela hora) e tentaria simular cenas de sexo com Dara, que semi-dopada, não poderia reagir, enquanto Amélia fotografaria as cenas.

Dito e feito: no dia seguinte, as fotografias apareceram no computador de Caio, que demitiu Dara e Paulo imediatamente, dando à Amália o tão almejado cargo. Os colegas de trabalho desconfiavam mas não tinham como provar nada, e assim, ficavam longe dela. Alguns - os mais fracos, aproximavam-se de Amália por medo e tentavam mostrar-se amigos. Ela fingia aceitar-lhes a amizade, e o limitado grupinho almoçavam juntos. De vez em quando, Amália tratava de conseguir a um deles uma pequena remuneração extra, algum prêmio ou promoção insignificante para mantê-los fiéis. 

E assim, Amália dominava a todos, mas sem que este domínio fosse explícito. Caio confiava nela cada vez mais. Nada acontecia na Construct Engenharia sem que Amália ficasse sabendo, aprovasse ou reprovasse. Quando caio viajava, deixava a empresa aos cuidados dela - para desgraça dos demais funcionários.
Durante uma reunião, Fernanda, a nova estagiária, apresentou uma opinião sensata contra um dos projetos de Amália. Provou, com argumentos irrefutáveis, o porquê do projeto não poder dar certo se feito daquela maneira. Apesar da fúria ao ouvir Fernanda ser elogiada por Caio, Amália agradeceu seu empenho e pediu-lhe mais detalhes sobre o que Fernanda sugeriria para salvar o projeto. Ouviu com atenção, e agradeceu novamente. Entre os funcionários, olhares significativos eram trocados.

Após a reunião, Amália vomitou no banheiro, enquanto chorava de ódio: "Como aquela novatazinha se atreve a me contrariar? E o pior de tudo, é que ela está certa... mas desmoralizou-me diante de Caio e de todos! Ah, ela vai pagar!" Assim, lavou o rosto com água fria e saiu, de cabeça erguida, sorrindo, como se nada tivesse acontecido.

Convidou Fernanda para ajudá-la no projeto, e ambas passaram a trabalhar juntas. Mas Fernanda já tinha sido prevenida a respeito de Amália. Alguém deixara um bilhete anônimo em sua mesa. Passou a observar, e com habilidade, conseguiu, durante as happy hours, que os colegas lhe contassem algumas das maldades que Amália fizera. Assim, preparou-se com cuidado contra suas investidas...

MACABRA - PARTE FINAL




Quando o projeto ficou pronto, Fernanda sabia que Amália tentaria dar um jeito de livrar-se dela; assim sendo, ficou muito atenta. Durante a reunião de apresentação do projeto, notou que Amália tentou focar a atenção de todos sobre seu próprio desempenho, como se Fernanda não tivesse participado de nada. Inteligentemente, Fernanda tinha cartas na manga; Amália mal tinha participado de uma das etapas do projeto - a principal - deixando tudo nas mãos de Fernanda. Então, Fernanda começou a arguir discretamente Amália sobre aquela fase do projeto, e gaguejando, Amália não conseguiu responder corretamente as perguntas, deixando clara a sua ignorância. Fernanda, fingindo não perceber o constrangimento de Amália, demonstrava 'boa vontade' ao responder as perguntas que ela mesma fazia, como se tentasse ajudar a sua colega, deixando Caio e os demais participantes impressionados com seu conhecimento, competência e generosidade. Ao final da reunião, sua participação ativa no projeto ficara bem clara, e todos a parabenizaram.

Amália mal podia conter sua fúria! Mas respirou fundo, e tentou mostrar serenidade e gratidão à nova 'amiga e colaboradora,' que reagiu da mesma forma: fria e sorridente. 

Mas Amália começou a fazer uma campanha silenciosa contra Fernanda, tentando desacreditá-la diante dos outros diretores da empresa; fazia-se de vítima, dizendo que Fernanda, demonstrando ambição desmedida e ingratidão, tentara passar-lhe à perna no projeto que, afinal, tinha sido dela! Dizia que a fim de não causar uma situação embaraçosa, mantivera-se em silêncio, mas que não podia mais calar-se. Ela sabia que Caio era uma pessoa que primava pela dignidade e concorrência leais dentro da empresa, não admitindo deslealdade ou competição acirrada entre os funcionários. Achava que o trabalho dentro da empresa deveria ser feito em grupo, pelo bem da mesma, e não apenas por ambição pessoal. 

Sem que ninguém mais soubesse, a não ser os diretores, começou a, literalmente, "fazer a caveira" de Fernanda. Alguns acreditaram nela, incluindo Caio. 
Algumas semanas depois, Caio chamou Fernanda para uma conversa em seu escritório. Estava disposto a demiti-la sumariamente, caso ela não começasse a seguir as regras da empresa. Fernanda ficou surpresa com a advertência, mas preferiu calar-se, já que não tinha argumentos ou provas para defender-se. Notou que, se quisesse manter o seu emprego e limpar a sua honra, precisaria de mais do que apenas desculpas.



Conseguiu mais informações sobre o caso de Dara e Paulo através de sua melhor amiga na empresa, Roberta. Assim, conseguiu localizar Paulo e ter uma boa conversa com ele. Levou-o para jantar em um bom restaurante, dizendo que tinha um negócio a propor-lhe. Ele imediatamente aceitou, pois além de ser ambicioso, gostou da oportunidade de desfrutar da companhia de uma bela mulher. Conforme a noite passava, Paulo sentia-se mais à vontade com Fernanda, achando que estava conseguindo seduzi-la. Finalmente, ela tocou no assunto de Dara; ele pareceu um pouco constrangido, mas sua vaidade logo fez com que ele contasse toda a verdade sobre o que acontecera na Construct; as armações de Amália contra Dara e outros funcionários, o plano para destruir Dara, os documentos que ele mesmo colocara na bolsa da funcionária que se suicidara. Claro, ele disse que não esperava aquela reação da moça, e que lamentava muito o ocorrido.

Paulo não sabia que Fernanda tinha em um dos botões da blusa, uma micro-câmera que filmava e gravava tudo o que acontecia durante aquele jantar. Quase ao final da conversa, Fernanda disse-lhe que tinha uma proposta a fazer-lhe; se ele tivesse provas de tudo o que contara a ela, ela lhe daria uma grande quantia em dinheiro- parte da herança de sua avó. Os olhinhos de Paulo brilharam: "E quanto isto significa?"  Fernanda escreveu um valor no guardanapo, e mostrou a Paulo, que sorriu, aceitando a proposta. 

Ele pegou seu telefone celular, dizendo: "Tenho todas as conversas com Amália filmadas e gravadas aqui. Pensei em chantageá-la  mais tarde, quando o dinheiro que ela me deu acabasse, mas depois da quantia que você me ofereceu, e diante da minha atual situação financeira ... bem , o dinheiro já está quase no fim, e pelo que vejo, Amália acabará sendo demitida da empresa... menina, você é mais esperta do que ela!" Fernanda sorriu fingindo uma maldosa cumplicidade: "Você pode apostar que com a sua informação, em breve estarei ocupando o cargo de Amália, e você será meu assistente pessoal... se é que me entende." Ele pegou a mão dela, mas fingindo casualidade, Fernanda retirou-a dizendo: "Mas antes... passe estas informações para o meu celular." E enquanto ele transferia os dados, Fernanda , pegando o talão de cheques (de uma conta há muito encerrada) começou a preenchê-lo com a quantia prometida. 

Paulo pareceu desconfiado ao ver o cheque, mas Fernanda, com seu charme e poder de persuasão, acabou convencendo-o a aceitar. Saíram do restaurante para o que seria 'uma grande noite de sexo,' para selar o contrato entre ambos, caso Fernanda não tivesse usado em Paulo o mesmo sonífero que ele  e Amália tinham usado em Dara.  Deixou-o dormindo no motel, rasgando a folha de cheque em mil pedaços. Também apagou as filmagens de seu celular, retirou todo o dinheiro de sua carteira e quebrou seus cartões de crédito; quando acordasse na manhã seguinte, Paulo teria um enorme problema pela frente...

Na manhã seguinte, no escritório, Fernanda procurou Caio, e entregou-lhe as provas que causaram a imediata demissão de Amália, seguida de um longo processo judicial contra ela e Paulo, seu comparsa.





FIM

Gostaria de sua opinião: Fernanda usou de meios pouco éticos para desmascarar Amália. Ela estava certa ou errada? Até que ponto deve a ética ser respeitada na vida e/ou nos negócios?


A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...