segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

MALDADES - FINAL






Conheci outra pessoa. Rogério é doce, terno, apaixonado. Com ele, sinto-me segura. Não posso dizer que o amor que sinto por ele seja tão forte quanto o que eu sentia por Sean, mas ao menos, levamos uma vida sem sobressaltos, feliz, e sinto-me segura.

Tivemos um bebê, uma linda menininha que hoje tem cinco anos de idade. Seu nome é  Ângela.

Um dia, vi-a brincando com um envelope amarelado. Reconheci a carta de Sean. Corri para ela:

-Onde achou isto, Ângela?

Sorrindo, ela me estendeu a carta:

- No armário da mamãe.

Quando cheguei ao quarto, vi que Ângela tinha aprontado uma das suas artes: toda a minha roupa estava jogada no chão, a porta do armário escancarada, e meu álbum de fotografias aberto, com várias fotos espalhadas pelo chão. Entre elas, o envelope que eu recebera de Sean há anos atrás. Lembrei-me que o tinha guardado dentro do álbum de fotos, e esquecido totalmente do assunto.

Eu agora estava curada. Sean era apenas uma sombra do passado, como em sombras se transformam todos os amores perdidos. Resolvi abrir a carta e lê-la. Por que não?

Sentei-me na cama. Rasguei o envelope, e vagarosamente, abri a carta.

“Minha Ana,

Eu nem sei como começar a dizer-lhe o que eu tenho a lhe dizer. O que fiz á imperdoável. Agi como um cafajeste. Você não o merecia. Mesmo assim, se você tiver que me julgar pelos meus atos, espero que possa me ver como um fraco, não como um cafajeste.

Mas eu não podia ficar ao seu lado convivendo com um fantasma: o fantasma da minha culpa.

Tenho uma confissão a fazer. Sei que depois de ouvi-la, você talvez tenha ódio de mim. Eu fui um fraco, e acabei me envolvendo com uma outra pessoa enquanto estava com você, e eu não consegui lhe contar a verdade, pois temia feri-la. Ainda mais sendo esta pessoa a sua melhor amiga: Clara.

Depois que ela morreu, vi o quanto você estava sofrendo por ela, e não suportava vê-la sofrer por alguém que não merecia. Ao mesmo tempo, eu sabia que eu mesmo também não merecia seu amor. Todas as vezes que eu olhava para você, o fantasma de Clara se colocava entre nós. Mesmo eu tendo decidido, na noite anterior, que eu não mais me relacionaria com ela, Clara ameaçou contar tudo a você.

Depois que a festa no Johnny’s terminou, ela apareceu  no sítio de madrugada. Eu já não agüentava mais olhar para ela. Clara estava sendo inconveniente, se impondo a mim, como se eu fosse alguma espécie de monstro que a seduzira, ela, a pobre mocinha inocente. Ela queria que eu me sentisse culpado por tudo. Mandei-a embora e afirmei-lhe que eu já tinha tomado a minha decisão, e que eu iria ficar com você. Ela saiu feito uma louca, dizendo que contaria a você tudo o que tinha acontecido entre nós dois; quando ela havia jurado, prometido, que se eu me decidisse por você, ela não interferiria e voltaria para Paris.

O resto você já sabe. Eu fui um covarde duas vezes: a primeira, por me deixar envolver com alguém como ela; a segunda, por ter praticamente fugido da cidade sem nem sequer ter me despedido de você.

Agora você já conhece meu lado negro.

Não tenho o direito de pedir a você que me perdoe. Mas, se ainda houver alguma esperança de ficarmos juntos novamente, ou se você ainda quiser esclarecer alguma coisa, ligue para o número de telefone que está nesta carta. Se você não ligar em uma semana, entenderei que você não quer mais me ver, e não voltarei a procurá-la.

Mas saiba que estar longe de você é uma dor constante. Sinto muito a sua falta, e se você ainda me quiser, apesar de tudo, tenha certeza de que será diferente. Eu prometo.

Você nem imagina o quanto está sendo difícil para mim ficar sem você.

Sean.”

Ao terminar de ler a carta, e relê-la algumas vezes mais, eu ainda não tinha certeza do que estava sentindo. Aquele número de telefone... será que ele ainda poderia ser encontrado através dele? Num impulso, corri para minha bolsa, apanhei o celular e disquei. Não tinha a menor ideia do que diria se ele atendesse, e nem sequer pensei em Rogério. Agi por impulso. Meu coração pulava dentro do peito a cada toque. De repente, após o quarto toque, ouvi o ‘click’, indicando que alguém tinha atendido. Mas a voz que me disse ‘alô’ do outro lado da linha não era de Sean. Tratava-se de uma voz feminina. Mesmo assim, apesar do medo que eu sentia, tinha que ir até o final daquela estória, nem que fosse para revê-lo ainda uma vez mais e concluir o adeus que ficara no ar.

-Alô! Gostaria de falar com Sean, por favor.

Silêncio do outro lado da linha.

- Quem está falando?

-Aqui é... é uma velha amiga, eu pensei... não nos vemos há muitos e muitos anos, e acabei de chegar de uma longa viagem e achei que talvez Sean, ainda ...

-Aqui é Judy. A mãe dele. Qual o seu nome?

- Meu nome é Ana.

-Bem, Ana... eu sinto muito, mas Sean não poderá falar com você. Ele... ele faleceu há dois anos.

Senti o mundo girar. Não podia desmaiar, pois estava sozinha em casa com Ângela. Sentei-me na beirada da cama e procurei respirar fundo algumas vezes.

-Como aconteceu?

- Eu... ele...

Notei que tinha despertado lembranças dolorosas na pessoa que falava comigo, e me senti muito cruel e indiscreta.

-Olhe, não precisa falar nisso se não quiser, está bem?

-Está tudo bem, é que ainda é muito difícil.  Mas eu estou bem. Você está bem?

- Não. Não tenho certeza. Você sabe quem eu sou?

- Não... quero dizer, você é uma velha amiga de Sean, pelo menos é o que você me disse.

- Meu nome é Ana. De Santo Onofre. Ele nunca falou de mim?

Silêncio do outro lado. Um suspiro.

-Oh, Ana, sim claro, eu sinto muito, muito mesmo...

Ela começou a chorar.

-Gostaria de poder encontrá-la pessoalmente. Tenho muitas coisas a lhe contar. Estou morando em uma cidade próxima da sua.

Anotei o endereço. Marcamos um encontro para o dia seguinte. Pedi a mamãe que ficasse com Ângela e disse a Rogério que iria viajar para ajudar uma velha amiga de faculdade que precisava de mim, mas que voltaria no dia seguinte.

Nos encontramos em um restaurante no centro da cidade onde ela estava morando. Quando cheguei, Judy já esperava por mim. Era uma mulher muito bonita, aparentando ter uns sessenta e poucos anos. Mal pude conter minha emoção ao ver nos olhos dela os olhos de Sean. Os mesmos olhos que me olharam tantas vezes, os olhos que haviam me cativado completamente desde a primeira vez que nos víramos.

Ela me cumprimentou com um aperto de mão polido, e convidou-me a sentar com um gesto tímido e um pequeno sorriso.

- Como vai, Ana?

-Eu estou bem.

Mas as lágrimas finalmente começaram a jorrar, enquanto a imagem dela ficava cada vez menos nítida diante de mim.

-Eu sei de tudo o que aconteceu. Sei de tudo. Sean contou-me tudo em detalhes. Ana, você não imagina o quanto ele estava arrependido do que fez. Ele amava muito você. Posso dizer com segurança que você, Ana, foi a única mulher que meu filho amou na vida. Ele nunca conseguiu se perdoar pelo que fez com você. Meu filho ... fraquejou. Mas sua amiga Carla era uma mulher vivida, experiente, e muito bonita. Ele simplesmente não conseguiu resistir às investidas dela. Você deve saber que é difícil para um homem... mas ele amava você. Ele mesmo me disse isso muitas e muitas vezes.

-Por que ele nunca disse isso a mim?

- Porque ele achava que não tinha o direito, depois de tudo que tinha feito com você. Sabendo que você estava inocente naquela estória sórdida.

Olhei-a nos olhos. Estava mais calma.

-Não, Judy. Eu não estava inocente. Eu sabia de tudo. Descobri na noite anterior à morte de Clara.

Ela levou uma mão à boca, num gesto de surpresa.

-Eu ouvi uma conversa entre os dois. Mesmo antes daquela noite eu já desconfiava, mas não queria confrontar Sean. Achava que seria melhor se eu lutasse por ele de uma outra forma. Mas após a morte de Clara acabei achando que as coisas se ajeitariam e voltariam a ser como eram antes. Triste ilusão...  ele se foi, fugiu de mim.

-Ele fez aquilo porque era fraco. Sentia-se muito mal pelo que tinha feito. Eu sei que é difícil acreditar no que vou lhe dizer, mas Sean era muito ético e muito digno. Acho que na verdade ele estava confuso, não sabia lidar com a situação, ou como contar a você, e ao mesmo tempo, não conseguiria viver com você tendo aquela mancha negra entre vocês. Eu o aconselhei a colocar tudo em uma carta. Ana, estive ao lado dele durante aqueles seis meses antes dele tomar coragem e escrever para você, e sei o quanto ele estava sofrendo. Vi meu filho definhar aos poucos, emagrecer, perder o interesse pela vida. Posso afirmar-lhe que apesar de ter agido mal, ele fez o melhor que sabia.

- Eu entendo.

- Depois que ele escreveu a carta, contando tudo, ele começou a sentir-se mais leve. Esperou por sua resposta durante toda a semana. Mas como não a obteve, chegou à conclusão de que ele não a merecia e que você não o tinha perdoado.

-Eu não li a carta. Quero dizer, eu a li  ante-ontem, quando minha filha... eu sou casada agora. Minha filhinha derrubou umas coisas de dentro do armário, e acabei encontrando a carta, e aqui estou eu.

-Fico feliz que você tenha refeito sua vida.

-Sim, eu agora vivo ... bem. Mas eu tenho que desabafar, me desculpe pelo que vou lhe contar, afinal, mal nos conhecemos.

- Diga o que quiser, Ana.

- Eu nunca deixei de amar Sean. Nunca o esqueci. Ele lhe contou da festa de aniversário no Johnny’s?

-Sim, contou. Disse-me que após a festa Clara o procurou, ameaçando contar tudo a você se ele não o fizesse. Foi quando ele terminou tudo com ela.

-Mas ela me procurou no dia seguinte pela manhã. Judy, eu nunca contei isso a ninguém, nem a minha mãe.

Ela inclinou-se em minha direção, para ouvir-me melhor.

- Eu estava lá. Quando ela morreu. Assisti toda a cena.

-Oh... mas por que você...nunca contou isso a ninguém?

-Porque eu poderia ter evitado. E não o fiz. Eu sabia que ela estava ali para me contar toda a verdade, e para tentar me afastar de Sean. Ela queria virar a estória a seu favor, fazendo-me terminar o relacionamento com ele, deixando o caminho livre para ela.

Ela pareceu confusa. Contei-lhe toda a estória, e foi como se tudo estivesse acontecendo novamente diante de mim. Judy ouviu tudo em silêncio, e quando terminei, ela respirou fundo. Achei que ela estaria escandalizada com minha frieza, mas ela pousou sua mão sobre a minha, fazendo uma breve carícia.

-Eu teria feito o mesmo. E não tenho certeza de que você teria conseguido evitar o acidente, se tivesse gritado. Essas coisas acontecem rápido demais, é difícil prever o que teria acontecido se, e se... não se sinta culpada por isso, Ana. Considere que Deus tem seus caminhos, e se Ele quisesse, Ele teria evitado a morte de Clara.

Senti um grande peso saindo de meus ombros. Passara todos aqueles anos sentindo-me sufocada por guardar aquela estória dentro de mim, e por tanto medo de ser censurada ao contá-la para alguém, que jamais o fizera. E aquela mulher, uma perfeita estranha, mas que no fundo, tinha tantas coisas a ver comigo, me ouvira e me compreendera sem me censurar um só minuto.

-Agora sei porque Sean escolheu você.

Vi que ela estava tentando conter as lágrimas, e eu também. Ficamos em silêncio por alguns instantes, olhando para a toalha de mesa. O garçon trouxe-nos as bebidas que tínhamos pedido, e tomei um gole generoso de vinho. Ela também.

-Mas Ana... por que você ligou? Se agora você é uma mulher casada?

-Porque eu queria ver Sean mais uma vez...

Recomecei a chorar.

-Precisava passar tudo a limpo. Quem sabe, para recomeçar minha vida com meu marido e deixar o passado para trás, ou até mesmo... não sei, fazer tudo diferente e ter uma nova chance com Sean.

-Você deixaria tudo para ficar com ele? Mesmo depois de tudo?

- Eu não sabia, mas agora eu sei: sim, Judy. Eu deixaria tudo para ficar com ele.

Ela enxugou uma lágrima com a ponta do dedo.

-Obrigada por estar sendo tão sincera comigo, Ana. Muito me conforta saber que ele era amado, e que você o perdoa.

-Eu o perdoo, é claro que eu o perdoo! Como poderia não perdoá-lo? Eu ainda o amo, Judy, eu o amo demais, e nem sequer sabia disso!

Tomamos mais um gole do vinho. O garçon trouxe nosso pedido, e em silêncio esperamos que ele nos servisse. Mas nenhuma de nós tocou na comida.

- Judy, eu sei o quanto deve ser difícil para você... mas como Sean morreu?

Ela respirou bem fundo, fechando os olhos por um instante. Quando me olhou, só pude ver uma grande paz em seus olhos, e não a dor que eu esperava; paz, ou resignação.

- Ele sofreu um acidente de carro. Tinha saído para buscar o pai no aeroporto. Aconteceu quando eles estavam voltando.

-E seu marido? Ele está bem?

- Ele também faleceu no acidente.

Fiquei muito chocada por tê-la feito reviver tudo aquilo.

-Oh, Judy, eu sinto muito, por favor, me perdoe!

-Está tudo bem, Ana. Você foi sincera comigo, e serei com você; nós estávamos nos divorciando. Iríamos contar a Sean naquela noite. Mas ele nunca ficou sabendo. Meu marido tinha uma outra mulher. Eu havia descoberto tudo há algum tempo , e quando tentei falar com ele sobre o assunto, ele simplesmente disse que queria o divórcio.

Percebi que ambas tínhamos partilhado grandes segredos.

Ela sorriu para mim, tranqüila.

-Mas tudo isso agora é parte do passado.

Após o almoço, perguntei-lhe se eu poderia visitar o túmulo de Sean. Ela assentiu, e fomos juntas ao cemitério, e deixei algumas flores no túmulo de Sean, junto com as últimas lágrimas que chorei por ele. Judy se afastou enquanto eu estava ajoelhada, olhando a pequena fotografia de Sean que estava na lápide. Quando ergui os olhos, ela tinha ido embora.

Nunca mais nos encontramos.

Voltei para casa e para Rogério. Quando cheguei já era noite, e ele foi me receber à porta de braços abertos, envolvendo-me num caloroso abraço. Ângela veio correndo juntar-se a nós. Compreendi que minha vida agora é esta, e que consigo ser muito feliz a maior parte do tempo, vivendo-a.

Basta deixar para trás as sombras e erros que todos cometemos no passado.


FIM




MALDADES - PARTE VII





Cheguei ao sítio de Sean. Tinha acabado de chover, e um arco-íris cruzava o céu. Achei a paisagem muito linda e muito triste. Parei o carro sob uma árvore. Eu precisava ser forte, ter coragem para fazer o que eu tinha ido fazer. Olhei para o pátio, e lembrei-me do dia em que tínhamos ficado noivos. Estávamos tão felizes! Se não fosse por Clara... estaríamos casados, vivendo juntos no sítio, talvez sentados à varanda olhando aquele arco-íris e fazendo planos para o futuro, planejando nossos filhos.

Entrei.

Lá dentro, tudo cheirava à adeus. O relógio cuco tiquetaqueava , e seu som enchia a casa vazia. Chamei por Sean, mas ele não respondeu. Ouvi passos arrastados; era Rita.

Ela pareceu muito surpresa em me ver. Arregalou os olhos e me olhou como se eu fosse um fantasma.

-Boa tarde, Rita. Onde está Sean?

-Boa tarde, dona Ana. A senhora por aqui? Ele viajou. Disse que não volta mais. Pensei que a senhora tinha ido com ele.

-Como assim, foi embora e não volta mais, Rita?

-Mas a senhora não sabia?! Meu Cristo!

-Foi embora para onde?

- Para o estrangeiro!

Ela se aproximou de mim, fazendo-me sentar no sofá.

-Sinto muito, dona Ana, muito mesmo. Vocês formavam um casal tão bonito! Mas “seu” Sean vendeu o sítio. Foi embora. Eu só estou aqui arrumando as minhas coisas, pois vou embora também. O novo dono chega amanhã. Eu vou ficar na casa de uma prima até arranjar outro trabalho. Quem sabe, o novo dono do sítio queira me contratar... nunca se sabe, não é? “Seu” Sean deixou uma carta de referências para mim. Se não conseguir o emprego de volta, eu...

Eu prestava atenção ao que ela me dizia sobre seus planos, tentando desligar-me da minha própria realidade. Minutos depois, Rita foi até a cozinha me preparar um café. Automaticamente, dirigi-me ao quarto de Sean. De repente, tudo era apenas uma brincadeira e ele estaria lá, sentado na cama, esperando por mim. Me abraçaria, começaríamos tudo novamente.

Mas a cama estava arrumada, impecável. Sobre a cômoda, um vidro de colônia esquecido. A colônia que eu lhe dera de presente de Natal. Peguei o vidro, abri e aspirei o perfume. As lágrimas finalmente desceram , tornando-se cascatas quentes sobre meu rosto.

Ele me dera a maior prova de desamor, indo embora sem nem mesmo despedir-se de mim, tratando-me como se eu fosse nada. Ele levara Clara com ele, em seu coração, e deixara tudo o que eu representava para trás, naquele vidro de perfume.

Derramei o conteúdo do frasco no chão. Virei as costas, saí do quarto. Passei por Rita , que segurava uma xícara de café, e saí da casa, sem nem mesmo olhar para trás.

Seis meses depois, recebi uma carta. Reconheci a caligrafia de Sean no envelope, e embora meu coração estivesse partido, eu simplesmente não pude abrir a carta. Eu sabia que ela provavelmente continha algumas desculpas que ele listara a fim de dar-me alguma satisfação. Talvez ele falasse de seu amor por Clara e do quanto ela lhe fazia falta.

Joguei a carta na gaveta da mesa de cabeceira, onde ela permaneceu por algumas semanas. As semanas tornaram-se meses, os meses tornaram-se anos.



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

MALDADES - PARTE VI



A manhã seguinte era um sábado. Acordei tarde, com um pouco de dor-de-cabeça. Mamãe levantou-se cedo e foi para a loja, pois havia muitos turistas na cidade . Marcio também acordou cedo para trabalhar. Achei que poderia dormir mais um pouco e decidir mais tarde o que iria fazer com minha vida, mas o telefone tocou. Era Clara.

- Ana, é Clara. Preciso falar urgente com você.                           

Tentei me fazer de idiota. Eu precisava de tempo para um contra-ataque, e sabia que se ela fosse me contar tudo, eu não teria como armar uma estratégia.

- Agora? Eu estou com dor-de-cabeça...

-Tem que ser agora. Você pode me encontrar na Estrada das Araras?

 -O que?Por que lá? Você sabe que horas são?

-Sei, são nove e meia da manhã; quero que seja lá porque não quero correr o risco de que alguém nos interrompa.

- Venha aqui em casa, eu estou sozinha.

- Não; Sean pode chegar de repente. Por favor, pode me encontrar lá? É pertinho daí; eu vou de bicicleta. Se você for caminhando, chegará em menos de vinte minutos, nem precisa ir de carro.

Concordei, minha cabeça à mil. Talvez fosse melhor “saber” de tudo através dela. Isso poderia contar pontos a meu favor com Sean, pensei. Talvez ele passasse a odiá-la por isso. Quando me peguei pensando daquela maneira, não me reconheci. Eu, a boazinha, a que sempre tentava fazer as coisas de modo a não magoar ninguém?  Pensando em tirar vantagem de uma situação, friamente? Bem, ela tinha começado aquilo, não eu. Estava apenas me defendendo. E se para não perder o amor de minha vida eu tivesse que ser dissimulada, roubar no jogo, eu estava disposta a fazê-lo. Seria tão manipuladora quanto ela. Afinal, ela estava tentando roubar a minha vida!

Tomei uma xícara de café, depois resolvi comer um biscoito. Precisaria de forças. Sempre ficava tonta quando não tomava café da manhã, e não queria que ela tivesse que me segurar. Lavei o rosto, prendi o cabelo. Olhei-me no espelho: estava com olheiras escuras, e resolvi por os óculos de sol. Finalmente, engoli uma aspirina.

Segui o conselho dela e fui caminhando. O dia estava lindo, radiante, a cidade alegre e movimentada. Passei pela loja e vi minha mãe atendendo seus clientes, feliz da vida com o movimento da loja. Também vi Nina e seus artesanatos.

Olhei na Pet Shop e vi Sean trabalhando. Marcio provavelmente estava lá atrás, na clínica, atendendo seus pacientes peludos. Olhei bem para ele, e uma força muito grande de repente tomou conta de mim. Disse para mim mesma: “Ana, você não vai perder este homem. Em breve, vocês estarão casados e felizes, morando no sítio. E você poderá estar aqui com ele, na loja, num sábado pela manhã. Depois, poderão almoçar juntos e ter o resto do sábado para fazer amor. Talvez tenham filhos, talvez plantem uma árvore. Você não vai perder este homem.”

Caminhei, resoluta. Cheguei antes de Clara, que estava atrasada, como sempre. Sentei-me sob uma árvore, pois o sol estava um pouco forte.

De onde eu estava, podia avistar a curva da estrada logo abaixo, de onde, a qualquer momento, ela surgiria em sua bicicleta.  A estrada estava quase deserta. Apenas alguns carros passavam de vez em quando.

Eu estava feliz, apesar de tudo.

Minha visão da estrada era bem ampla. Eu podia ver os carros que vinham em ambas as mãos, antes que eles próprios enxergassem uns aos outros, pois a curva era em declive e  bem fechada.  Clara teria que empurrar sua bicicleta por alguns metros até chegar onde eu estava.

Lá vinha ela, em sua bicicleta. Ainda estava um pouco longe. Algo me dizia que não me preocupasse, pois aquela batalha já estava ganha. Por isso, eu estava tão tranquila.

 Ela estava se aproximando da parte da estrada onde teria que empurra a bicicleta.Mas ela não via o que eu estava vendo. Como num sonho, vi a hora em que a caminhonete  se aproximava, na direção contrária. Olhei para Clara em sua bicicleta, no exato momento em que ela descia  dela. Pareceu-me que a perna da calça ou uma pulseira que ela usava no tornozelo tinha ficado presa na corrente da bicicleta, e ela, naturalmente, curvou-se para soltar a perna. Durou apenas um segundo: ela perdeu o equilíbrio, e para não cair, largou a bicicleta e foi parar do outro lado da rua, na contra-mão. Recuperou o equilíbrio e olhou para cima, me avistando. Pôs as mãos na cintura, como a analisar a situação. Levantei-me.

Ela estava ali, parada na contra-mão, enquanto a caminhonete  se aproximava. Eu poderia tê-la alertado. Se eu tivesse gritado, ela teria tido tempo hábil de voltar para o outro lado da estrada, onde sua bicicleta estava caída. Eu poderia ter gritado. Nem precisaria ter gritado muito alto, pois a distância não era tão grande. Eu até conseguia ver as listras azuis na camiseta dela. Pude perceber que ela tinha pintado as unhas de vermelho berrante– e me lembrei de que, na noite anterior, ela usava esmalte rosa.

Foi tudo rápido demais.

A caminhonete estava correndo um pouco – César , filho do Sr. Gomes, estava ao volante, e ele sempre corria. Pude até mesmo ouvir a música alta que tocava no rádio da caminhonete.

Ele fez a curva, diminuindo a velocidade, mas pronto a soltar o pé do freio assim que chegasse na reta da descida, onde , a apenas alguns metros, Clara me olhava, com ar desafiador, de mãos na cintura. Acho que, tarde demais, ela ouviu o barulho do motor da caminhonete. Acho também que, por um segundo, ela percebeu o que eu tinha feito. Ela sabia que eu poderia tê-la avisado, tanto que sua boca se abriu um segundo antes do choque, como se ela estivesse pronta para dizer alguma coisa. As mãos nem saíram da cintura.

César nem teve como frear; derrubou-a longe e passou por cima dela, deixando um rastro de sangue na estrada. Somente freou alguns metros depois. A descida íngreme contribuiu para o desfecho daquela  trágica estória.

Fiquei parada ali, olhando a cena. César desceu da caminhonete e se aproximou correndo do corpo esmagado de Clara. Ouvi um grito terrível. Ele pondo as mãos na cabeça. Outro grito: “Meu Deus!”

Depois, um pássaro cantou na árvore, logo acima de minha cabeça.

César não tinha me visto. Sem saber bem porque, escondi-me atrás da árvore para que ele não me visse. Com o coração aos pulos, a dor de cabeça ainda mais forte e o estômago embrulhado, vomitei em cima da grama.

Ouvi que outras pessoas se aproximavam, parando seus carros. Gritos. Minutos depois, o barulho da sirene da ambulância. E eu, o tempo todo atrás da árvore, tentando me dar conta do que eu tinha feito – ou do que eu não tinha feito. Afinal, eu fora a culpada ou não? Se eu tivesse gritado, mesmo que não desse tempo de Clara sair da estrada, isso teria mudado alguma coisa?

Será que ela tinha morrido? Ou teria problemas para o resto da vida? E se ela vivesse, teria percebido o que acontecera e contaria aos outros? Eu seria presa? Ou as pessoas me apontariam na rua, com ódio? Sean ficaria tão chocado que iria embora para sempre? E o que seria de minha mãe? E quanto à Nina? Meu Deus!

Em alguns poucos minutos, o peso daquilo tudo caíra sobre meus ombros. Sem olhar para trás, e tomando cuidado para não ser vista, afastei-me do local.

Voltei para casa evitando passar pelo centro da cidade. Abri a porta, voltei para o quarto e me despi. Joguei-me na cama. Minha cabeça doía e dava mil voltas. Meu corpo todo tremia, apesar do calor da manhã. Calafrios percorriam minha espinha, e eu me sentia nauseada. Via o sangue no chão. Ouvia o barulho terrível do caminhão, quando passou em cima de Clara e despedaçou seu corpo. Ouvia os gritos de César.

Tapei os ouvidos com força, mas não adiantou. Se fechasse os olhos, via Clara de mãos na cintura, a expressão perplexa do rosto ao ver o caminhão indo em sua direção, e o último olhar ainda mais perplexo que ela me dirigiu.

Minutos depois, minha mãe adentrou a casa, desesperada. Ao me ver deitada na cama, apertando a cabeça e chorando, ela estancou na porta do quarto:

-Já soube?

Nem sei bem porquê, respondi :

-Estou passando mal. Acho que bebi demais. Mas... soube do quê?

- Ana, você precisa ser forte.

Ela me ajudou a sentar na cama. Minha cabeça rodava ainda mais. Tentei olhar para ela, através das lágrimas.

-Ana, Clara sofreu um acidente  ainda há pouco.

Continuei olhando para ela, sem nada dizer.

-Ela... bem, ela está morta.

Nunca pensei que eu fosse capaz de fingir com tanta habilidade. Levei a mão à boca, simulando choque. Chorei ainda mais, e mamãe abraçou-me.

Depois, ela mesma pegou o telefone sobre minha mesinha de cabeceira e ligou para Sean, dando-lhe a notícia. Minutos depois, ele estava ao meu lado. Parecia muito transtornado. Ele tremia todo, e ao mesmo tempo, tentava me consolar, pedindo para que eu ficasse calma. Mas o mais importante era o calor do corpo dele contra o meu; a voz dele sussurrando em meu ouvido. A pressão de sua mão sobre a minha.

Eu não sofri. Não pela morte de Clara. Apenas senti uma imensa pena durante o velório, quando Nina jogou uma flor sobre o caixão, dando um soluço. Mas não fui capaz de aproximar-me dela e dar-lhe um abraço.  Seria como traí-la novamente – porque era isso que eu estava fazendo-traindo a todos. Eu chorava muito, mas não era por causa de Clara; era por Nina, Johnny, mamãe. E também pelo pobre César, que provavelmente, levaria um bom tempo para se recuperar do choque.

Os dias que se seguiram ao velório de Clara foram difíceis para todos. Mamãe passava o tempo todo com Nina, e eu ficava na loja.

Fevereiro chegou e passou. O verão terminava. Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Isto é, na medida do possível. Apesar de estar totalmente transtornada, Nina foi capaz de seguir em frente, pois era uma mulher muito forte. Finalmente, acabou aceitando a proposta de Johnny: vendeu a casa e foi morar com ele.

Sean achou melhor adiar nosso casamento por alguns meses, afinal de contas, estávamos todos muito chocados e não convinha fazer comemorações em meio ao sofrimento de nossos melhores amigos.

Após aquele dia fatídico, quase não fizemos mais amor, e as poucas vezes em que ficamos juntos foram secas, vazias e distantes. Como se o sumo da paixão que nos unia tivesse secado. Pelo menos quanto à ele. Eu me agarrava ao corpo dele em desespero, tentando dar-lhe prazer, desfrutando do corpo dele que apenas se submetia às minhas carícias, sem paixão, automaticamente. Quando tudo acabava, eu me deitava no peito dele, obrigando-o a passar seu braço à minha volta, evitando olhá-lo nos olhos para não ver a distância estampada neles.

Eu percebia que ele perdera peso e que passava muitas horas pensativo, olhando para o nada, quando estávamos juntos. Eu sabia que ele estava pensando nela, e me revoltava, mas ao mesmo tempo, não podia dizer nada. Quando eu tocava no assunto do nosso casamento, ele sorria tristemente, concordava com o que eu dizia, mas sem acrescentar nenhum comentário.

Nunca mais ele falara sobre trazer seus pais para nos apresentar a eles. Dizia que seus pais estavam em Los Angeles e que não poderiam vir ao Brasil tão cedo.

Março chegou... a situação não mudava. Mamãe achava que eu deveria me preparar para o pior. Foi durante uma de nossas conversas que ela me contou uma coisa que guardara consigo durante muito tempo; eu lhe dizia que Sean andava muito distante ultimamente, desde a morte de Clara.

- Ana, eu não sei se você deve ter muitas esperanças quanto a Sean. 

-Como assim? O que você quer dizer?

- Bem... eu detesto ter que lhe contar isso, mas acho que está na hora.

Ela respirou fundo, e eu sentia minhas mãos ficando geladas de expectativa. Meu estômago dava voltas. Ela continuou:

- Você se lembra da festa de aniversário de Johnny, não? Um dia antes do acidente que matou Clara.

-Claro. Por que?

- Eu fui ao banheiro retocar a maquiagem. Quando saí, ouvi sussurros femininos vindos do banheiro dos homens, e achei estranho. Coloquei a cabeça para dentro, mas não vi ninguém perto da pia. Mas ouvi os tais sussurros novamente dentro de um dos toaletes. Depois ouvi o nome de Sean sendo dito por uma voz de mulher. Bem, eu entrei para ouvir melhor. Ouvi gemidos. Eram Clara e Sean. Ela estava... quero dizer, ela e Sean estavam...

- Não precisa dizer mais nada. Eu sei exatamente o que eles estavam fazendo.

-Você sabia?

-Eu desconfiava. Mas tive certeza naquela noite.

- Eu ia te contar, mas então aconteceu aquilo tudo. Achei que não havia mais necessidade, afinal, ela estava morta, não ficaria mais entre vocês. Me desculpe, filha.

- Tudo bem, mãe. Você não está me contando nada de novo.

Senti uma grande vontade de desabafar com ela, contar toda a verdade. Queria aliviar o peso que eu sentia em meu coração. Mas achei melhor que aquele segredo ficasse guardado comigo. Suspirei fundo.

Resolvi sair para dar uma caminhada. Eu me sentia sufocada. Precisava de espaço.

Minha cabeça estava à mil, sabia que Sean ia me deixar, só não sabia como me dizer isso, e que talvez, na cabeça dele, fosse melhor deixar que eu me “recuperasse” da morte de Clara.

Achei melhor acabar eu mesma com aquilo tudo. Eu não ia ficar esperando que ele me deixasse. Seria eu a dizer-lhe adeus. Deixaria que Clara vencesse mais uma vez, pois nem mesmo morta, ela deixou de estar entre nós um só segundo.


Continua...

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

MALDADES - PARTE V





À noitinha, Sean apareceu. Estava mais carinhoso. Parecia mais relaxado. Eu tentei parecer natural, mas havia uma barreira crescendo entre nós que me deixava cada vez mais desesperada. Eu o estava perdendo. E, presa àquela cama, isso aconteceria sem que eu pudesse ao menos lutar por ele.

Depois que me recuperei, Sean não voltou a falar em apresentar-me à sua família. Já estávamos em janeiro, e nosso casamento estava marcado para Abril, mas ele parecia nem sequer perceber aquilo. Eu estava cada vez mais desiludida. Pensei até em terminar tudo com ele, antes que me ferisse mais seriamente, mas mamãe protestou, achando que eu precisava aprender  a ser forte e lutar pelo que eu queria, e não entregar minha felicidade de bandeja às circunstâncias, só porque elas não se mostravam muito favoráveis. Ela achava que eu deveria tentar uma reaproximação, conversar com Sean. Se ele nem tinha terminado comigo ou falado em anular ou adiar o casamento, é porque, fosse lá o que estivesse acontecendo com ele, ele ainda não tinha certeza do que realmente queria, e que eu tinha que ajudá-lo a decidir. Ao meu favor.

Meu relacionamento com Clara continuava frio e distante, a cada dia.  Paramos de nos visitarmos, ou de sair juntas. Apenas quando havia alguma ocasião em que nossas famílias se juntavam, procurávamos fingir que estava tudo bem e que nada havia mudado. Mas todos perceberam que nossa amizade já não era mais a mesma. Eu não sei o que ela dizia, mas eu afirmava que tanto tempo separadas tinha mudado muito a nós duas, mas que eu continuava gostando dela. Mentia.

Numa dessas ocasiões de família – o aniversário de Johnny – algo aconteceu que me obrigou a desistir de fingir.

Fomos todos comemorar no Johnny’s, é claro. Eu estava até feliz, e Sean parecia ter voltado a ser o mesmo homem carinhoso e atencioso de sempre. Dançamos, bebemos, comemos e rimos. Ele cantou algumas canções, e até cantei uma junto com Clara no karaokê.

A festa estava animadíssima, e parecia que a cidade em peso tinha comparecido. Eu me sentia mais segura, depois de tanto tempo com medo. Tinha me vestido muito bem para a ocasião, estava realmente muito bonita e segura de mim e de meu poder de sedução, pois vários homens tinham me olhado mais prolongadamente do que o normal. Acho que Sean percebeu, e sentiu ciúmes, pois passou o braço à volta de minha cintura e não me deixou mais sozinha. Clara percebeu o que ele tinha feito, e uma sombra passou pelo rosto dela, mas ela sorriu e continuou a se divertir. Acho que só eu percebi.

Já quase no final da festa, quando algumas pessoas começaram a se retirar, eu estava me sentindo totalmente exausta e abafada após ter dançado três músicas seguidas. Johnny pediu que Sean cantasse mais uma, para “a saideira”, e como todo mundo formou um coro com direito á palmas e gritaria quando Sean recusou, ele não teve outra saída senão atender ao pedido do aniversariante.

Enquanto ele cantava e todos estavam distraídos, de repente senti uma grande vontade de tomar ar fresco. Achei que não faria mal se eu saísse para dar uma volta. Minha mãe, Clara, Nina e Márcio estava sentados à mesa com mais dois casais amigos ouvindo Sean cantar. Esgueirei-me salão afora.

A noite, como eu esperava, estava fresca e convidativa. Respirei fundo e logo senti-me recuperada. Não queria voltar para dentro, queria ficar ali, ouvindo a música que tocava lá dentro e olhando o luar, que estava simplesmente fantástico. Sentei-me num banco de madeira que ficava na calçada, logo na frente da  varanda do bar. A varanda estava vazia, pois todos estavam lá dentro, ouvindo Sean. Mas  se alguém chegasse  na varanda não conseguiria me ver, pois havia um muro baixo de tijolos  entre a varanda do bar e a calçada que impedia que, quem quer que estivesse sentado, fosse visto por quem estava à varanda. O banco onde eu estava sentada ficava escondido pelo muro.

Nem sei exatamente quanto tempo fiquei ali, pois a canção terminou e ele emendou uma outra, mais romântica, com gosto de fim de festa. Então, a música eletrônica começou a tocar novamente . Ouvi passos na varanda atrás de mim. Um casal passou por mim, saindo do bar, e nem sequer me viu, pois viraram à direita, e eu estava sentada à esquerda da saída.

De repente, ouvi vozes conhecidas. Eram Clara e Sean! Fiquei paralisada, com medo até de respirar. Ela disse:

-O que está fazendo aqui? Veio atrás de sua noivinha?

-Por favor, Clara, não fale assim da Ana. Acho melhor você voltar lá para dentro antes que ela perceba que você saiu atrás de mim.

-A gente tem que resolver esta situação, Sean. Daqui a pouco chega Abril e vai ser pior.

-Me deixa ficar sozinho, tá? Eu preciso pensar.

-Você está pensando há mais de um mês.

-Eu nem sei direito o que eu quero, tudo foi rápido demais, eu preciso de tempo...

- Você me ama, Sean?

Meu coração praticamente parou de bater. Eu estava ali, engolindo em seco, as lágrimas descendo involuntariamente de meus olhos, a mão na boca para segurar os soluços. Eu precisava ouvir a resposta para aquela pergunta.

- Sim. Mas eu amo a Ana. Eu amo as duas, acho. Ou talvez eu esteja apenas apaixonado por você.

-Apenas apaixonado? Como pode? Aquilo tudo que aconteceu entre nós quando ela estava doente não significou nada pra você?

-Se não tivesse mexido muito comigo, eu teria falado com meus pais sobre ela. Mas eu simplesmente não consegui. Como dizer a eles que eu ia me casar com outra quando eles batem à porta de meu apartamento e você atende só de roupão?

-Você estava no banho!

-E você fez de propósito! Sabia muito bem que eles estavam para chegar. Disse que ia embora, eu pensei que você tinha ido, mas você vestiu meu roupão e ficou ali esperando por eles, para abrir a porta de propósito.

-Eu te salvei, Sean. Se você amasse a Ana, não teria ficado comigo.

-Mas você tem que confessar que você foi bastante... persuasiva!

-E você gostou. Tanto que repetiu depois. Várias vezes.

Eu mal podia acreditar no que estava ouvindo! Era muita humilhação. Eu estava totalmente arrasada, mas não tinha forças para me levantar e acabar com a farsa. Eles continuaram:

- Amanhã vence o prazo que eu te dei para se livrar dela.

-Não fale assim. Ela não é alguma coisa que se joga fora, é a mulher que eu amo!

-E que você trai  comigo!

-Eu não queria que nada disso tivesse acontecido. Se você não tivesse dado em cima de mim, eu...

-Bem, você não me deixa outra saída: eu mesma vou ter que falar com a Ana. É melhor falar de uma vez do que continuar fazendo ela de boba.

-Você sabe muito bem que eu não gosto que você fale assim dela! E eu te proíbo de falar qualquer coisa a esse respeito com a Ana! Você provocou esta situação, e agora quer me separar dela...

-Se você a ama tanto assim, como é que continua dormindo comigo? Eu vou falar com ela! Ou você pretende se casar com ela e me manter como sua amante?

- Clara, por favor, não me pressione! Prometa que você vai me deixar decidir. Só mais alguns dias! Afinal, se eu ficar com você, você não quer que eu tenha certeza, ao invés de ficar porque fui pressionado?

Ela não respondeu.

-Tudo bem, mas só mais dois dias. É tudo o que eu vou te dar. E se depois disso você não me der nenhuma resposta, eu conto tudo para ela!

-Mas... e seu eu decidir que é a Ana que eu quero?

- Eu saio de cena. Volto para Paris e não perturbo mais vocês. Mas eu preciso de uma resposta, e ela também. Acha que ela é boba e não percebeu nada? Acha que vai conseguir ficar com as duas por muito mais tempo?

- Você tem razão. Agora vamos lá para dentro, está na hora de irmos embora.

Fiquei ali, esperando que minha mente assimilasse tudo o que eu tinha acabado de ouvir. Mas eu sabia que o jogo ainda não estava perdido. Se fosse um outro homem qualquer eu teria me levantado e acabado com aquilo, mas Sean era diferente; eu tinha certeza de que ele era o homem de minha vida, e que eu tinha ainda chances de recuperar o amor dele que, afinal de contas, ele  mesmo disse que ainda sentia por mim. Eu tinha que pensar. Tinha que fazer o que minha mãe dissera: ir à luta e recuperar minha vida. Eu não ia deixar tudo para Clara: meus sonhos, meu homem, meu casamento.

Na adolescência, ela havia me roubado alguns namorados, mas eu nunca dera importância, pois não tinha sido realmente apaixonada por nenhum deles. E ela logo terminava com eles , assim que conseguia tirá-los de mim. Era uma espécie de jogo para ela. Mas ela sabia que não era nada sério, que eu não estava apaixonada por nenhum deles. Depois, ficávamos as duas rindo deles. Eu mesma já havia roubado algumas de suas paqueras. Mas agora não era um jogo entre adolescentes, e ela sabia disso.

Respirei fundo, voltei lá para dentro pelos fundos do bar e fingi que estivera todo aquele tempo no banheiro, me sentindo meio-tonta por causa do vinho. Na curta viagem para casa, pedi a ele que fosse direto para o sítio; eu iria com Marcio e minha mãe. Sean estava cansado, e acabou concordando. Nos despedimos na porta do bar. Fiz questão de dar-lhe um beijo bem demorado, pois percebi que Clara estava nos olhando de dentro do carro.

Nem sei como tive sangue frio para fazer aquilo depois do que ouvira. Acho que estava mesmo meio-bêbada.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

MALDADES - PARTE IV




Em Janeiro, peguei uma forte gripe depois de ficarmos um dia inteiro fazendo piquenique  na beira do rio, no sítio de Sean. Acho que fiquei ao sol tempo demais, tomando bebidas geladas, e depois, passei grande parte do tempo dentro d´água . No dia seguinte sentia-me terrível. Tive febre e precisei ficar alguns dias de cama. Clara esteve sempre presente, checando minha temperatura, trazendo chá com biscoitos e batendo papo. Ela ia ver-me todas as manhãs, mas ia embora antes do almoço, pois dizia que eu precisava descansar.

Sean vinha sempre ver-me no final do dia, trazendo frutas e pequenos presentes, me enchendo de mimos. Mas no final da semana, ele me telefonou, dizendo que não poderia ir me ver. Seus pais tinham chegado de Denver, e ele teria que fazer uma viagem de dois ou três dias para vê-los. Aproveitaria para convidá-los para conhecer-me e à minha família.

Fiquei desapontada, pois era a primeira vez, desde que nos conhecêramos, que ficaríamos separados.

Em seguida, Clara telefonou-me, dizendo que também precisaria ir até a capital a fim de resolver uns problemas a respeito de seu passaporte – problemas que ela realmente não me explicou direito do que se tratava, mas eu estava me sentindo tão sonolenta e enjoada por causa dos remédios que nem dei muita atenção. Perguntou-me se eu me importaria se ela fosse de carona com Sean, já que seu carro estava com problemas. Eu disse que não, e ela agradeceu alegremente.

Afinal, que mal havia? Eu confiava em Sean e em Clara. Ela era minha melhor amiga.

Mas fiquei muito surpresa quando Nina apareceu para me visitar no dia seguinte, dirigindo o carro de Clara. Perguntei:

-Resolveu o problema?

-Que problema?

- Do carro! Clara me disse que o carro dela estava com problemas.

- Problemas? Não, está ótimo! Afinal, é um carro praticamente novo!

Naquele momento, a ficha caiu. Ela tinha dito aquilo porque queria ficar sozinha com Sean! Só havia esta explicação!

Passei um final de semana terrível. Tive pesadelos, onde Clara subia uma escadaria e virava as costas para mim quando eu a chamava. No alto da escadaria, Sean esperava por ela. Ele me telefonou no sábado à tarde. Perguntei por Clara, e ele disse que não sabia dela. Tinha apenas dado uma carona, mas que eles logo tinham seguido caminhos separados.

Mas de repente eu ouvi uma musiquinha ao fundo. Estava tocando muito longe e muito baixinho, mas consegui ouvir. Eu fiquei tentando me lembrar de onde eu tinha ouvido aquela musiquinha antes, mas não falei nada com Sean. Quando ele desligou, eu me lembrei: aquela música era o toque do celular de Clara!

Chamei minha mãe e contei a ela sobre minhas desconfianças.

- Mãe, eu acho que... não sei, na verdade posso estar errada, espero que eu esteja, mas acho que a Clara está dando em cima de Sean.

-Ora, Ana, que bobagem! Ela é sua melhor amiga e ele é louco por você!

Contei a ela da noite no Johnny’s; também contei-lhe sobre o carro, e sobre a musiquinha. Minha mãe começou a protestar, mas sem tanta firmeza. Finalmente, ela disse:

-Bem, abra os olhos. Mas não saia acusando ninguém, pois corre o risco de ser injusta.

Aquele final de semana parecia interminável. Eu tinha febre, e meu corpo todo estava dolorido. Minha mente também não tinha paz. Sentia-me horrível em todos os aspectos. Quando ia ao banheiro e me olhava no espelho, via uma figura com olheiras profundas, macilenta, descabelada e muito pálida. No final da noite de domingo, comecei a tossir.

Piorei muito durante a noite, e Márcio achou melhor levar-me até o hospital. Constataram que eu estava com pneumonia, e que seria melhor eu ficar internada por alguns dias.

Sob protestos, acabei acatando a decisão do médico. Minha vida estava suspensa por tempo indeterminado. Ao mesmo tempo, Sean não tinha telefonado no domingo, e nem Clara. Tentei chamá-los pelo celular, mas ambas as ligações caíram na secretária eletrônica da primeira vez que liguei, e depois, recebia uma mensagem de “desligado ou fora de área.”

Finalmente, Sean apareceu no hospital, na segunda feira pela manhã. Parecia um tanto arredio, apesar da tentativa de demonstrar despreocupação e naturalidade. Quanto à Clara, ligou-me, dizendo que ia ficar mais um dia na capital e desejando-me melhoras. Mas a voz dela estava quase metálica ao telefone, realmente formal.

Acordei com Sean olhando para mim, sentado na poltrona do quarto. Mamãe e Márcio tinham ido para casa descansar.

-Bom, dia, Ana. Como se sente?

-Péssima.

Eu queria encontrar uma forma de falar com ele, explicar-lhe meus medos e minhas inseguranças, mas ao mesmo tempo, tinha que ser cuidadosa. E se tudo não passasse de fantasias de minha cabeça? Talvez alguém com um telefone cujo toque fosse igual ao de Clara estivesse por perto quando nos falamos, talvez ele estivesse dizendo a verdade. Ou o carro estivesse fazendo algum barulho estranho que Nina não tivesse percebido. Minha cabeça dava voltas.

Ele se aproximou da cama e segurou minha mão.

- E seus pais? Não ia trazê-los para nos conhecerem?

-Sim, mas quando soube, hoje pela manhã, que você estava no hospital, achei que talvez não fosse uma ocasião propícia. Mas assim que você melhorar. Prometo.

-Sean... por que você não retornou minhas ligações? Deixei mensagem na secretária e você nem me ligou de volta!

Ele passou a mão pelo cabelo. Parecia cansado.

-É que fiquei sem bateria. Nem consegui ouvir sua mensagem até o final.

-E não tinha nenhum telefone fixo por perto?

- Já era madrugada quando você me ligou, dizendo que estava no hospital. Não achei adequado perturbar vocês tão tarde. Ana, qual o problema, eu estou aqui, não estou?

-Não sei. Está?

Ele suspirou fundo, olhando para o chão e debruçando-se sobre a beirada da cama. Depois, olhou-me nos olhos.

- Eu não sei o que deu em você. Nunca discutimos, Ana. Algum problema?

-O que você acha? Olhe bem para mim.

Naquele momento, comecei a chorar. Tentei conter as lágrimas de tristeza e humilhação, mas quanto mais tentava me conter, mais forte eu chorava.

-Você está mal por causa da doença, mas logo estará boa. Cuide-se bem. Eu volto amanhã para te ver, Ok?

Fez uma carícia meio-sem jeito em meu rosto, beijou-me na testa e se foi.

Minha recuperação foi lenta. Precisei ficar no hospital por uma semana, e depois, de repouso em casa por mais cinco dias. Ele ia me ver religiosamente todos os dias, mas sempre ficava pouco tempo – menos do que eu esperava – e Clara só foi me ver no hospital uma única vez. Todos achamos estranho, mas não fizemos maiores comentários. Nina contou-nos que Clara andava um tanto calada ultimamente.

Em casa, ela passou uma manhã inteira comigo, ou melhor, apenas fisicamente, pois agarrou uma revista de moda e ficou lendo a manhã toda. De vez em quando, comentava comigo algum assunto da revista. Olhava o relógio a toda hora. Às vezes, caminhava até a janela e ficava olhando para fora, parecendo ansiosa.

Eu queria que ela fosse embora. Mas aproveitei o tempo em que estava comigo para estudar seu rosto, seus gestos e seus olhares. Realmente, aquela mulher não era muito parecida com a Clara que eu conheci desde criança. A começar pelas roupas; parecia saída de um figurino de moda. O cabelo cortado curto, alourado (diferente do cabelo castanho-claro natural que sempre usara) com mechas espetadas e fixadas com gel ou alguma outra substância que o deixava artificialmente “fashion”, os saltos altos, a bolsa de couro de marca, caríssima... tudo destoava da pessoa despojada que eu conhecera.

Lembrei-me de um dia, quando ouvíamos música, e ela me disse que um dia viajaria pelo mundo – e que seu pai financiaria tudo, que ela “jogaria na cara dele” ter sido abandonada, caso ele se recusasse; então, ela voltaria ‘uma outra pessoa’, uma mulher de verdade. Tínhamos – eu,doze e ela, treze anos quando tivemos esta conversa, e na época, achei graça. No fundo, eu pensei que ela estivesse brincando. De vez em quando, ela brincava assim, fingindo ser uma mulher sofisticada, exagerando nos trejeitos, o que arrancava gargalhadas de todos. Mas levávamos na brincadeira, nunca pensando que ela realmente fosse se tornar assim. Clara mudara muito.

Talvez ela tivesse adquirido características peculiares por ter morado tanto tempo fora do Brasil, ou talvez estas características sempre estivessem presentes, só que latentes, e nunca percebêramos por estarmos o tempo todo perto demais dela. Como se para enxergar realmente uma paisagem, precisássemos tomar uma certa distância. E eu não gostava do que via. Aquela mulher parecia dissimulada, de uma maneira que não sei explicar como, mas eu percebia. Quando ela me olhava, os olhos dela pareciam rasos, sem profundidade de sentimentos. Mesmo seu piedoso sorriso, quando ajeitava as cobertas em volta de mim, parecia deslocado. O tom de voz, extremamente doce, de repente, frio e metálico. Algo estava fora do lugar. Ela evitava me encarar.

Finalmente, às onze em ponto, ela se levantou da cadeira quase num pulo, e disse alegremente:

- Preciso ir. Volto assim que puder. Cuide-se!

Caminhou até a porta e fechou-a atrás de si, sem nem mesmo olhar para trás. Fiquei ali, deitada, olhando para o teto.


Continua...

domingo, 16 de fevereiro de 2014

MALDADES - PARTE III




Ela chegou durante a festa. Quando vi a moça de cabelos curtinhos no portão, com mechas alouradas e levemente espetadas , roupas totalmente ‘fashion’, demorei a reconhecer minha amiga; ela estava abraçada com Nina, Márcio e mamãe à volta dela, repetindo o quanto ela tinha mudado, o quanto ela estava linda. Paris realmente tinha tido um grande efeito sobre ela! Eu estava parada, olhando para Clara – sem saber que era Clara, e só a reconheci quando ela escancarou-me os braços e veio correndo na minha direção. Tínhamos tanto para contar uma para a outra! Ela me disse que estava realmente muito cansada da viagem, e que só tinha passado para conhecer o figurão que tinha roubado meu coração.

- Ana, estou morrendo de curiosidade. Mamãe me contou tudo por telefone há alguns dias atrás. Quero saber quem é o Don Juan que te arrebatou, já que você sempre disse que nunca iria se apaixonar por ninguém.

-É, você está certa, e eu estava errada. Foi amor à primeira vista, foi... tão incrível que ... bem, venha comigo que eu vou te apresentar o Sean.

Puxei-a pela mão e fomos para a varanda, onde ele, cercado por uma pequena multidão, tocava violão e cantava, sentado em sua cadeira predileta. Apaixonei-me novamente. Ele tinha o poder de me arrebatar. As pessoas estavam totalmente dopadas pela voz dele, algumas mulheres não conseguiam esconder seu fascínio nem mesmo diante dos maridos.  Quando ele acabou, fez-se silêncio por alguns segundos e de repente, os aplausos explodiram. Olhei para minha amiga, e ela estava passada. Perguntei:

-Você me entende agora?

Mas Clara não respondeu.

Apresentei os dois. Eles se olharam por alguns segundos , e finalmente Sean estendeu a mão, segurando a dela. Sorriu, e disse-lhe que eu já tinha lhe falado dela muitas vezes. Ela gaguejou ao responder:

- Bem, espero que ela tenha falado... bem de mim.

-Mas claro! Disse que vocês são amigas de infância. Só que ela me tinha dito que você era meio-feinha, mas agora vejo que ela mentiu.

Clara corou, virando-se para mim:

-Ora, Ana! Você não disse isso de mim!

Eu ri. Todos rimos.

A noite transcorreu da forma mais agradável possível. Clara acabou não indo para casa cedo, esquecendo totalmente o cansaço. Quando o dia amanheceu, ainda havia algumas pessoas sentadas à volta de uma fogueira, contando casos e cantando ao som do violão de Sean. Já bem de manhãzinha, quando apenas minha família e a família de Clara estavam presentes, ele anunciou que estávamos noivos, colocando um lindo anel de diamantes em meu dedo. Quase morri de felicidade. Comemoramos à mesa do café da manhã, que fora servido por nós por Rita, a  moça que ele contratara para os serviços de casa.

Marcamos a data para  Abril, o mês de meu aniversário. Sean disse que convidaria a família dele para nos conhecermos. Estávamos cheios de planos. Acho que aquela foi uma das épocas mais felizes de minha vida.

Eu achava que Clara e eu voltaríamos a ser grandes amigas. Tinha grandes expectativas quanto a isso também, e nada mais natural, agora que ela ficaria conosco por muitos meses, e que talvez nem voltasse à Paris; (estava pensando seriamente em terminar seus estudos no Brasil, pois sentia muita falta da mãe). Mas ela se mostrava cada vez mais arredia, parecia-me que quando estávamos juntas, ela estava forçando um comportamento que não era nada natural. Toquei no assunto com ela, e ela imediatamente me abraçou forte, desculpando-se.

- Não, Ana, é que... eu não te contei, mas deixei alguém em Paris.

-Mesmo? Como assim?

- O nome dele é Jean. Jean Marcus. Íamos nos casar também, tínhamos muitos planos, mas não deu certo. Ele me disse que jamais moraria no Brasil, e eu também não queria ficar a vida toda morando em Paris. No começo, não demos muita importância, mas conforme o relacionamento foi ficando mais sério, isso se tornou um ponto crucial sobre o qual não conseguimos chegar a um acordo.

-E?...

Ela suspirou.

-Bem, resolvemos dar um tempo. Resolvemos ficar um tempo separados para ver como as coisas ficam. E quando eu penso nele, e vejo você e Sean tão felizes, eu confesso que eu não me sinto muito bem. Não por vocês, mas é que eu sinto tanta falta dele! E vocês me lembram ele, entende? Vocês me lembram de nós dois, quando tudo ia tão bem...

Ela começou a chorar. Eu a abracei, tentando consolá-la.

-Por que você não o convida para vir aqui?

-Eu já tentei. Mas ele disse que , se eu quiser ficar com ele, terei que deixar o Brasil. Ele diz que não suporta calor, detesta o clima daqui, e que toda a sua vida está lá, seus negócios, sua família.

-Mas ele tem que entender que é o mesmo com você! Sua família, seus amigos estão aqui!

-Ele sabe disso. Ontem à noite falamos por telefone, e acho que vamos acabar terminando o namoro. Ele parecia tão frio... na verdade, eu não vejo muitas opções para nós dois. Não posso exigir que ele largue sua vida inteira por mim, e ele também já me disse que não pode exigir isso de mim. Resolvemos dar um tempo para ver se nesse ínterim, um dos dois muda de idéia.

-Mas, pelo que eu conheço de você, você não vai mudar de idéia.

-Não sei. Acho que não.

Depois daquela conversa, eu e Sean fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para alegrar minha amiga. Nós a convidamos para jantar fora, fomos dançar, nos divertimos no karaokê do Johnny.

Um dia, estávamos no Johnny’s quando o celular dela tocou. Ela pediu licença e foi até o banheiro para atender. Ficamos na mesa com um grupo de amigos conversando. Passaram-se alguns minutos, e Sean pediu licença, encaminhando-se para o banheiro masculino. Eu estava preocupada com minha amiga, pois já fazia mais de dez minutos que Clara tinha se retirado da mesa. Resolvi ir atrás dela para ver se estava tudo bem.

Quando me encaminhava para o banheiro feminino- que ficava em frente ao masculino, num pequeno hall  – meu coração quase parou: Clara e Sean estavam abraçados. Ele passava a mão pelo cabelo dela, e ela agarrava-se a ele. Quando eles me viram, imediatamente se soltaram. Ela veio em minha direção, e vi que estava chorando muito. Eu fiquei meio-sem saber o que fazer ou como agir. Será que eu tinha sentido alguma coisa no ar ou era impressão?

Ela estendeu os braços para mim, procurando consolo.

- Ana, Ah, Ana... era Jean ao telefone. Ele terminou tudo comigo.

Imediatamente senti-me a pior das criaturas por estar com ciúmes de minha amiga. E principalmente, por desconfiar de Sean. Fiz de tudo para fazer com que Clara se sentisse melhor. Como ela não tinha condições de dirigir, nós a levamos em casa. Ela foi no carro de Sean e eu conduzi o carro dela. Contamos tudo à Nina, que deu-lhe um chá calmante e a colocou na cama.

Depois, ficamos sentados na sala, conversando. Nina estranhou:

-Eu não sabia que ela estava tão apaixonada por esse tal Jean. Nunca falou muito dele  nas nossas conversas, e sempre que se referia a ele, era como se falasse de um namoradinho qualquer. Essa me pegou de surpresa.

-Estranho, Nina, pois ela estava totalmente transtornada no Johnny’s.

Eu e Sean nos entreolhamos, mas não dissemos nada.

Os dias se passaram, e Clara foi melhorando aos poucos. Na noite de Natal ela parecia totalmente recuperada. Dois dias antes do natal, saímos juntas para fazer compras, e Sean nos pegou na porta do shopping. Levamos as compras para casa e fomos para o orfanato de Santo Onofre, onde Sean tinha preparado uma linda festa para  as crianças.

Realmente, a cada dia que se passava, eu sentia que tinha tirado a sorte grande na vida.

Clara estava bem melhor, mas às vezes eu a pegava meio pensativa. Durante a festa de Natal das crianças, parecia que eu não conhecia  mais certas expressões que eu notava em seu rosto, principalmente quando ela não percebia que eu estava olhando para ela.



Continua...

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

MALDADES - PARTE II




Durante o sexto período de faculdade, algo especial aconteceu; algo que mudaria minha vida e minhas convicções para sempre. Algo que me fez desafiar convenções, duvidar de mim mesma, por à prova tudo no que eu acreditava: eu me apaixonei. Não, não estou falando de um namorico inconsequente, mas de uma paixão arrebatadora, daquelas que tiram a gente do sério, que fazem com que percamos a fome, o sono, a concentração.

Eu tinha então vinte e dois anos. Minhas amigas diziam que eu era bonita. Sim, eu era bonita. Puxei os cabelos negros e sedosos e a forma esguia de minha mãe, os olhos castanho-esverdeados e o queixo quadrado de meu pai. Além de bela, sabia me vestir, tinha uma certa classe, era totalmente segura de mim e de minha aparência.

A primeira vez que eu me senti insegura quanto à minha aparência e quanto às minhas roupas, foi quando vi Sean.

Uma noite de terça-feira na cidade, tomando cerveja com os amigos da faculdade. Eu vestia calças jeans desbotadas, camiseta e uma jaqueta de couro. Não tinha feito as unhas, e meu cabelo estava preso em um rabo-de-cavalo. Calçava o par de botas mais velho que eu tinha. Acabáramos de sair de uma aula, e estávamos discutindo as teorias de Freud. Isso é tudo o que me lembro daquela noite, pois depois que olhei para Sean, sentado em uma outra mesa, conversando com um outro grupo de pessoas, tudo à minha volta deixou de existir.

Ele não era realmente bonito, não bonito da maneira convencional. Tinha cabelos castanhos, fartos e ondulados, penteados para trás, e estava um tanto desarrumado: barba por fazer, jaqueta jeans ultra-desbotada, camiseta com a gola gasta, calças jeans  muito velhas e até um pouco sujas. Mas o fascínio estava nos olhos; não: no jeito de olhar. Na fala, na voz, talvez na maneira com que ele fazia com que todos se calassem assim que começava a falar, e como os olhos de todos que estavam com ele pareciam reverenciar cada coisa que ele dizia. Tinha boas maneiras, apesar das roupas velhas e da aparência muito jovem – talvez vinte e cinco anos. Via-se que tinha berço. Mas não foi isso o que me atraiu. Senti um forte apelo sexual quando ele olhou para mim, notando-me, afinal, quase no final da noite.

Desde então, nossos olhos não se desgrudaram mais, nem mesmo quando não estávamos olhando um para o outro. Posso dizer que foi paixão à primeira vista. Nunca na vida eu tinha percebido de maneira tão efusiva que eu tinha um coração, e que ele poderia bater tão forte a ponto de me fazer tossir.

Eu, que a princípio nem o achara muito bonito, fui aos poucos achando-o cada vez mais bonito, quanto mais eu olhava para ele, como se ele exercesse algum tipo de fascínio ou magia sobre mim.

A noite foi chegando ao fim, o bar esvaziando, e meu desespero aumentava. Temia que talvez nunca mais fosse vê-lo. As pessoas que estavam na mesa com ele começaram a se levantar para ir embora. Alguns já se despediam e dirigiam-se, meio-tontos, para a porta. O mesmo começou a acontecer na minha mesa, já que o pobre garçon parecia que não ia agüentar mais muito tempo de pé. Fomos nos dirigindo para a saída, e quando passei por ele, agora sentado sozinho, ele agarrou meu pulso. Sim, literalmente. Um de meus amigos olhou-me , como a perguntar se eu precisava de ajuda, mas eu fiz sinal para que ele fosse embora. Fiquei parada ali, de pé, o bar vazio, o garçom começando a varrer o salão, enquanto um outro fechava as portas. Então, ele se levantou e saiu comigo de mãos dadas para a calçada, como se já nos conhecêssemos há muito tempo. A lua estava alta no céu. O relógio da torre da faculdade marcava duas e trinta e cinco da manhã. As calçadas estavam vazias e silenciosas, e só ouvíamos o vento e o som de nossos próprios passos. 

Ele sorriu para mim, e foi como se a própria vida estivesse sorrindo para mim pela primeira vez. As cores tornaram-se mais fortes, o vento, mais perfumado, e eu, leve como uma pluma. A mão dele apertava a minha, e parecia que toda a minha concentração estava naquele toque, que apertava sem machucar, e que aquecia minha pele , enviando arrepios por todo o meu corpo. Nem sei por quanto tempo andamos assim, de mãos dadas, sem nada dizer. Eu pensava: “Se ele me beijar, eu morro, mas se ele não me beijar, eu me mato!”

Mas ao invés disso, começamos a conversar. Ele me contou que se chamava Sean, que era filho de pai Americano e mãe Francesa. Estava estudando  Direito, mas detestava o curso. Seu grande sonho era viver numa pequena cidade do interior, em algum lugar onde se pudesse respirar ar puro, criar bichos , plantar, tomar banho de rio. Disse-me, mas sem ostentação, que era rico o suficiente para nunca precisar trabalhar, se assim o desejasse, mas que gostaria de ser dono de seu próprio negócio, embora ainda não tivesse muita certeza de qual seria esse tal negócio. Enquanto ele falava, um leque de oportunidades se estendia diante de meus olhos. Eu tinha tudo o que ele sonhara: morava em uma cidade pequena, fazia faculdade apenas para agradar minha mãe – como ele, para agradar seus pais- e tinha meu próprio negócio. E Santo Onofre tinha muitos sítios e fazendas por onde passavam rios, e  onde se podia criar bichos e plantar flores.

Amanhecemos em uma mesa do Herald’s, um café  que abria às seis da manhã. Diante de cada um, uma grande xícara de capuccino e dois brioches de queijo e presunto. Ambos tínhamos olheiras profundas e estávamos muito cansados, mas era como se já soubéssemos tudo um sobre o outro. Falamos de nossas vidas, famílias e cidades. Ele demonstrou grande interesse em conhecer Santo Onofre, então convidei-o para passar alguns dias conosco nas férias, e ele aceitou imediatamente sem nenhuma cerimônia.

Resolvemos passar o dia juntos – tínhamos decidido trancar nossas matrículas na faculdade. E fomos para o apartamento dele, onde tomamos banho, fizemos amor e dormimos o resto da tarde. Eu estava total e irremediavelmente apaixonada.

Quando acordei, ele estava deitado de lado, olhando para mim. A força e a magia do olhar dele me excitaram, e fizemos amor novamente. Cada vez era intensa, inigualável, terna.

Depois daquele dia, tudo o que aconteceu foi conseqüência. Liguei para mamãe e Marcio no dia seguinte, dizendo que estava – estávamos indo para casa. Apesar dos protestos de Dona Eugênia, eu estava decidida e nada me faria mudar. Finalmente, ela teve que concordar comigo.

Os dias que se seguiram foram paradisíacos. Marcio e Sean se deram bem imediatamente, e mamãe se apaixonou por ele- graças à Deus. Fizemos muitos programas: fomos ao teatro, ao cinema, mostramos a cidade a ele, viajamos para a praia no final de semana, preparamos jantares magníficos na cozinha de nossa casa, e em pouco tempo Sean conhecia mais pessoas na cidade do que eu mesma. Meses depois, ele comprou uma pequena propriedade, um sítio caindo aos pedaços, e imediatamente começou a reformá-lo. Também comprou um ponto comercial na cidade e abriu uma pet shop de sociedade com Marcio. Tornou-se grande amigo de Johnny e de Nina ,e frequentador assíduo do Johnny’s. Nós nos divertíamos  pra valer nos concursos de karaokê,  e Sean tocava piano e violão tão maravilhosamente e cantava tão bem que Johnny pediu-lhe que cantasse sempre nas noites de quinta-feira.

Eu notava que as mulheres da cidade se derretiam para ele, mas Sean era sempre polido e só tinha olhos para mim. Eu sentia que não tinha nenhum motivo para sentir-me insegura, principalmente quando fazíamos amor. Ele era totalmente dedicado nesses momentos, fazendo-me sentir a única mulher do mundo.

Quase um ano depois, a reforma do sítio ficou pronta. Tudo estava lindo, e Sean decidiu dar uma grande festa para comemorar, convidando a cidade inteira. E me pediu em casamento. Disse que tinha feito tudo aquilo pensando em mim, e que se eu não aceitasse me casar com ele, ele iria embora imediatamente. Ele realmente parecia inseguro quanto à minha resposta, e quando eu disse ‘sim’ entre lágrimas, ele deu um grande suspiro de alívio. Eu estava totalmente realizada, e ele também.

Mais ainda porque era início de dezembro, e Nina contou-nos que Clara estava vindo para casa, e que ficaria alguns meses.



A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...