quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Minhas Tias - Parte XII - FINAL






Entre os lábios quase fechados, murmurei:

-Vocês acabam de dizer-me que tia Rosana faleceu em um acidente de avião quando voava de Paris para o Brasil... é verdade? Você confirmaram isso? Não há a possibilidade de que a morte dela tenha sido um engano? Porque todo mundo sabe que é muito difícil identificar os corpos após a morte por carbonização...

Meu pai e tia Olga se entreolharam, e foi Nana quem respondeu à minha pergunta:

-Querida, nós temos certeza... foi feita a identificação do corpo através da arcada dentária... e foi encontrado um colar de pequenas esmeraldas junto ao corpo, colar que ela sempre usava. E o corpo não estava totalmente carbonizado. Era possível reconhecer parte das roupas, algumas jóias... e é claro, o DNA. Sua tia Rosana realmente faleceu naquele acidente de avião. Estas identificações são feitas muito cuidadosamente!

Minha cabeça deu um nó cego naquele momento. Levantei-me do sofá, apoiada em meu pai, pois ainda estava um pouco tonta. Já melhor, decidi:

-Sigam-me! Vou mostrar-lhes onde consegui esta manta. Fica a poucos quarteirões daqui. Quem sabe, fui enganada por uma impostora...

Mais uma vez, vi que todos se entreolharam, demonstrando alarme e confusão ao mesmo tempo. Apesar das muitas perguntas, mantive-me calada durante o caminho, e finalmente, chegamos ao portão daquela que eu acreditava ser a casa onde Tia Rosana morava. 

Apontando para a casa, mas sem olhar para ela, eu disse: "Foi aqui que eu e tia Rosana nos encontramos durante as últimas semanas. Nós nos conhecemos quando voltamos de viagem, pai. Naquele dia em que fui levar algumas flores à minha mãe no cemitério. Ela veio caminhando em minha direção... nós nos reconhecemos imediatamente, e ela me trouxe até esta casa..."

Mas quando olhei para dentro do portão, vi apenas uma ruína;  a mesma casa que antes tinha sido belíssima, mas que agora tinha as janelas lacradas por tábuas, e a pintura descascada. O caminho que conduzia à porta, ao invés das flores e do belo jardim, não passava de um matagal confuso. A porta da frente estava encostada. Sem falar com ninguém, e tendo o coração aos pulos, tentando compreender o que acontecia naquele momento e o que acontecera desde o momento em que conhecera tia Rosana, empurrei o portão e entrei. Atrás de mim, meu pai chamou por meu nome várias vezes, mas quando viu que eu não responderia ou voltaria, ele me seguiu, e Nana e tia Olga também.

Entrei na sala, e olhei em volta: apenas uma velha casa vazia. A não ser por um objeto que estava junto à lareira: um cavalete coberto por um pano de cor parda. Caminhei até ele, e lá estava o retrato que minha tia Rosana pintara, onde eu e Diana, minha verdadeira mãe, nos olhávamos à janela daquela mesma casa em algum tempo que ninguém compreendia. A luz difusa da manhã estava sobre nós, dando um ar surreal à cena. Os outros chegaram por trás de mim, e escutei suas exclamações de espanto. Tia Olga estava lívida, e meu pai, branco feito cera, apoiava-se em uma Nana petrificada.

Tia Olga gaguejou:

-Quem... quem pintou este retrato?

Virei-me para eles, dizendo:

-A mesma pessoa que vocês dizem ter morrido naquele acidente: tia Rosana! Ela mesma pintou este retrato durante nossos encontros. 

Meu pai murmurou:

-Não pode ser... isto é impossível!

De repente, algo ocorreu-me:

-Pai... você sabe a quem pertence esta casa?

Ele murmurou:

-Esta casa está fechada há muitos anos... era aqui que eu e sua mãe... digo, sua tia Sarah nos encontrávamos às escondidas. Ela mudou-se para cá a fim de facilitar as coisas para nós. Depois que ficamos juntos, e que tudo aconteceu, nós nos mudamos para a casa onde hoje vivemos, que pertencera à família delas. E esta casa permaneceu trancada, totalmente abandonada... nunca mais conseguimos vir aqui ou fazer qualquer coisa a respeito dela. Ela permaneceu assim durante todos estes anos, trancada, como se guardasse nossos segredos.

Tia Olga deixou escorrer uma lágrima. Nana suspirou. Ninguém tinha uma explicação plausível para o que tinha acontecido. Será que eu tivera uma alucinação?... Mas... e o quadro? Chegando mais perto, tia Olga examinou a pintura:

-Sem dúvida, o estilo é o de Rosana! E a assinatura, inconfundível... foi Rosana quem o pintou! Mas... pode ser que o tenha feito há muitos anos, e que tudo tenha sido simulado!

Nana resolveu a questão. Aproximou-se, cheirando a pintura:

-Não pode ser, pois cheira à tinta fresca. A tela é nova também. Este quadro foi pintado recentemente, e isto é óbvio!

Meu pai assentiu:

-Sim... e eu reconheceria este estilo em qualquer lugar, mesmo sem a assinatura! Será que... ela está viva?!

Enquanto eles discutiam, deixei-me guiar pelo impulso repentino me afastar e de entrar sozinha na cozinha; e foi lá que eu a vi novamente, mas desta vez, como uma aparição transparente. Ela me olhou, enquanto cada fio de pelo de meu corpo arrepiava-se, e sorriu para mim. Ao seu lado, havia uma outra mulher - Diana, minha verdadeira mãe -, que também me sorria, e jogou-me um beijo: imediatamente, eu compreendi (suas palavras vieram à minha cabeça) que ela estivera presa durante muito tempo devido ao seu suicídio, mas que agora estava finalmente livre. Junto a elas, outra forma apareceu: minha outra mãe - na verdade, tia - Sarah. Ela parecia mais jovem, e sua aparência era tão saudável como nunca fora. Ela pediu-me perdão por tudo, e disse que sempre me amou como se eu fosse sua filha verdadeira. Mentalmente, respondi-lhes que eu era uma menina de sorte, pois tinha quatro mães maravilhosas. Então eu me lembrei das mesmas palavras que tia Rosana havia dito quando nos víramos ali pela última vez há apenas algumas horas:

 "A morte não determina o fim da vida, é apenas uma passagem para uma nova verdade. Pode ser que não acredite em mim agora, mas mais tarde, você vai lembrar-se deste momento, e saberá que é verdade. Você vai chorar agora, mas depois voltará a sorrir."

Um ano depois, estávamos em Paris, hospedados em casa de Tia Olga, após o casamento de Nana com papai. Lembrei-me novamente daquela frase, principalmente da última parte: "Você vai voltar a sorrir!", e foi quando, em uma noite em que estávamos todos reunidos - eu, papai, Nana, Tia Olga e meu tio, minha prima Luiza e seu noivo Jean -, em volta da mesa do restaurante de Tia Olga em Paris. Era antevéspera de natal, e todos estávamos comemorando e brindando à família, que reunira-se novamente. Nós ríamos muito, envolvidos pelas bolhas do champanhe que tomávamos, pela atmosfera alegre daquela época, a beleza da cidade e a excelente comida.

De repente, eu escuto, em uma mesa ao lado, uma voz masculina, entre outras tantas vozes que estavam naquele restaurante. Uma voz que tinha algo especial, e que eu escutaria mesmo se estivesse no meio de uma explosão barulhenta de fogos de artifício! Alguém fazia um pedido:

-Camarão com aspargos à moda italiana, por favor.

Olhei para trás, e dei com os olhos dele, o homem da minha vida, que se prenderam aos meus. Ele ergueu sua taça, e eu ergui a minha...


FIM





segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Minhas Tias - Parte XI




Acordei com o rosto preocupado de meu pai debruçando-se sobre mim, e Tia Olga me estendia um copo d'água com açúcar enquanto Nana, alarmada, abanava-me com uma revista. Quando me sentei, garantindo a todos que estava bem, meu pai repetiu a pergunta que havia feito antes de meu desmaio: "Onde você encontrou este pacote, filha?

Encarei-os, com ar desafiador:

-Você sabe muito bem o que ele contém, não é mesmo? Assim como vocês duas também! Ele contém uma linda manta confeccionada pelas mãos da minha verdadeira mãe!

Tia Olga levou a mão à boca, e Nana baixou os olhos. Meu pai, alarmado, deixou escorrer uma lágrima:

-Mas como você soube?
-E vocês pensaram que poderiam esconder a verdade sobre minha verdadeira história a vida toda?

Tia Olga gaguejou:

-Não, querida... nós só queríamos protegê-la desta história... mas... mas quem contou-lhe a verdade?

-Ainda não sei de toda a verdade, e só direi quem me contou o que sei quando vocês me disserem qual é a minha verdadeira história.

Tia Olga e Nana sentaram-se, e depositei o copo com água e açúcar sobre a mesa, após tomar um gole. Elas olharam para meu pai, e ele entendeu que cabia a ele aquela narrativa. Respirando fundo, meu pai cruzou as mãos em frente aos joelhos e começou a sua - a nossa - história. Ouvi tudo, sem interrompê-lo, e tia Olga assentia com a cabeça, enquanto Nana enxugava algumas lágrimas furtivas de vez em quando.

-Bem, Alana... o que eu contei sobre como conheci sua mãe, a história de nosso amor, é verdadeira. Eu falava de Diana, sua verdadeira mãe. Nós nos conhecemos quando eu ainda namorava sua tia Olga, e terminei tudo com Olga para ficar com ela. Nos casamos como você já sabe... mas eu estive dividido o tempo todo entre ela e aquela que a criou, que você acreditou ser a sua verdadeira mãe, na verdade, sua tia Sarah. Eu amava as duas. Não tinha culpa, o sentimento que eu tinha por elas era forte demais e eu não consegui fugir dele, e nem elas. Fiz o possível para ser fiel à Diana, mas Sarah não desistiu de mim, e não me deixou desistir dela. Como você, ela acreditava que não se desistia de um amor verdadeiro, e que deveríamos lutar por ele até o final, doesse a quem doesse. Este pensamento parece ser partilhado por todas as mulheres da família...

Tia Olga enrubesceu, ao dizer:

-É... dividimos não só este pensamento, como também você, meu caro Rodrigo...

Meu pai olhou-a com carinho. O tempo todo, eu notava os olhares apaixonados de nana. Apaixonados e desesperançosos, de uma mulher que aguardou pelo impossível a vida toda, sem qualquer esperança. 

Meu pai continuou sua história:

-Bem, neste entremeio, dividido do jeito que eu estava, ainda chegou-me sua bela Tia Rosana... conheci-a quando já estava casado com sua mãe, pois ela estivera estudando artes em paris, e apaixonamo-nos de imediato. Vivemos um romance tórrido e breve. Foi quando sua mãe descobriu toda a verdade sobre nós.

-Tia Diana... digo, minha mãe descobriu seu relacionamento com todas as outras irmãs?

-Não; no início, ela ficou sabendo de Rosana, mas depois que desmanchamos e ela voltou à Paris, ainda mantive o relacionamento com aquela a quem eu verdadeiramente amava: Sarah. Mas nós fazíamos tudo com muito cuidado, pois não queríamos magoar Diana. Até que um dia, não resistimos mais nos encontrar às escondidas como dois criminosos, e nós dois chamamos Diana para uma conversa e confessamos tudo. Naquele momento, que foi um dos mais difíceis de minha vida, eu estava cheio de arrependimento e culpa... mas se quiséssemos ser honestos com todos, era preciso confessar a verdade!

Só não contávamos com o que Diana tinha a nos dizer: ela estava grávida. De você. Foi um momento desesperador! Mas Sarah foi muito firme, e as duas tiveram uma enorme briga...Sarah disse que não desistiria de mim, e fiquei ao lado dela. Achávamos que um bebê não deveria ser empecilho à nossa felicidade. 

Mudamo-nos para nossa própria casa, e a gravidez de Diana foi adiante. Acompanhei-a em tudo, nunca deixei que faltasse nada a ela... ela recusava-se a ver-me. mesmo assim, eu sempre escrevia-lhe cartas, pensando que um dia pudéssemos ser amigos e que ela me perdoaria... triste ilusão de juventude... Como alguém poderia perdoar o que nós tínhamos feito? Eu a traíra com suas irmãs! Com todas elas...

Naquele momento, meu pai parou. As lembranças e a culpa do que tinha feito ainda queimavam-lhe a alma. Senti muita pena dele. Afinal, a vida pode dar voltas inesperadas, e levar-nos a caminhos estreitos e decisões difíceis. Ele continuou:

-Bem... quando você nasceu, ela impediu-me de visitá-la no hospital. Plantou seguranças à porta para que eu não entrasse. Acho que ela enlouqueceu, pois era vista andando descalça na rua. Tentei ficar com sua guarda, arranjando um bom advogado - e logo consegui, pois aleguei a insanidade da mãe. E eu estava certo, pois logo depois, ela precisou ser internada em uma clínica, e sua tia Rosana levou-a a Paris para cuidar melhor dela. Ela parecia estar melhorando, mas um dia, o inesperado aconteceu: quando estava de viagem marcada de volta ao Brasil, juntamente com sua tia Rosana para ver você, Diana matou-se. Deixou uma carta à irmã e esta manta, pedindo que a entregasse a você - mas algo ainda mais terrível aconteceu...

O impacto daquela história chocou-me profundamente. Comecei a chorar de pena de minha verdadeira mãe... agora eu finalmente entendia o porquê da depressão profunda daquela que acreditei ser minha mãe! O sentimento de culpa, o pânico, o pavor de carregar sempre uma história com um final medonho como aquele: o suicídio da própria irmã, cujo amor ela roubara! Meu pai olhou-me tristemente. Nana e tia Olga choravam. Ele continuou:

-Depois de tudo, resolvemos que seria adequado criar você como se fosse filha legítima de Sarah. 

-Então foi por isso que ela não saía de casa... vergonha!

-Exatamente... embora as pessoas não soubessem de toda a verdade. Todos acreditam que  Diana morreu no mesmo acidente de avião que matou sua tia Rosana... fizemos tudo para que a história fosse abafada, e conseguimos.

Algo estava errado... minha mente dava saltos... devagarinho, percebi o que estava errado, o que não se encaixava naquela história toda: meu pai acabara de dizer que Tia Rosana - aquela, que pintou meu retrato e entregou-me a manta que minha mãe confeccionara para mim, tinha morrido em um acidente de avião há anos! Como em um filme de terror, ainda ouvi tia Olga perguntar-me:

-Agora, querida, conte-nos como você conseguiu esta manta, já que quando sua tia Rosana a enviou para o Brasil antes de embarcar em sua última viagem, nós a recebemos e escondemos em um cofre de banco sem que Sarah soubesse.

(continua...)






quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Minhas Tias - Parte X





A notícia da viagem antecipada de Tia Olga causou uma mudança nos planos de tia Rosana. Ao saber da viagem, ela permaneceu calada por algum tempo, como se estivesse determinando o que fazer. Após pensar, andando de um lado ao outro de sua sala, iluminada pelos raios fracos do sol da manhã, ela anunciou:

-Alana, será preciso antecipar meus planos, ou eles terão que ser adiados indefinidamente, e eu não tenho mais tempo.

Fiquei feliz. Finalmente, eu ia saber de toda a verdade! Perguntei-lhe:

-Você vai me contar tudo agora, tia Rosana?

-Vou mostrar uma coisa a você, Alana.

Pensei que ela fosse finalmente mostrar-me o retrato que pintara de mim e minha mãe, mas ao invés disso, ela desapareceu pelo corredor e voltou trazendo uma caixa pequena. Sentou-se no sofá e convidando-me para sentar ao lado dela, abriu-a. Havia fotos e alguns documentos na caixa. Notei que algumas delas eram iguais as que eu tinha em casa, no antigo álbum de família que costumava olhar quando criança, e outras eram diferentes. Ela remexia as fotografias, até que encontrou um pequeno rolo de papel amarelado, que me entregou. Abri-o; era uma certidão de nascimento. Comecei a ler, e vi que se tratava da minha certidão de nascimento, mas o nome de minha mãe era diferente do que constava na certidão que eu tinha em casa! Naquele papel, o nome de minha mãe não era Sarah; era Diana!

Senti meu coração bater em minha garganta. Como poderia ser verdade? Minha mãe era Sarah, pelo menos, foi a mãe que eu conheci! Diana era minha tia, a que eu nunca vira! Olhei para tia Rosana. Achei-lhe muito pálida naquele momento. Corri para o retrato que ela pintara, descobrindo-o, e lá estávamos eu e a estranha que ela dizia ser minha mãe, ambas pintadas de frente uma para a outra à janela daquela casa, a luz diáfana da manhã iluminando nossos perfis. No rosto de Diana - aquela que tia Rosana dizia ser a minha mãe - li uma angústia indizível... Realmente, constatei, minha tia era excelente pintora, e conseguiu captar um omento que ainda não acontecera- e seria quando eu e minha verdadeira mãe estivéssemos frente a frente pela primeira vez.

Tia Rosana deixou que eu absorvesse os últimos acontecimentos, enquanto servia-me uma xícara de chá em silêncio. Tomei um pequeno gole da bebida esverdeada e límpida que ela me oferecera, e um sabor refrescante desceu pela minha garganta. Imediatamente, senti-me melhor, como se a dureza da angústia que petrificara-se em meu peito começasse a dissolver-se de repente. E foi então que as perguntas começaram a surgir, uma a uma, dançando em volta de minha cabeça. Entre elas, uma destacou-se:

-Então... minha verdadeira mãe está viva?!

Tia Rosana pareceu imensamente triste e cansada. Como em um sonho, vi quando ela lentamente negou com um gesto de cabeça. Depois, segurando minha mão entre suas mãos brancas e frias, ela disse:

-Não da maneira como você gostaria, querida sobrinha...

-Não entendo...

-Sua mãe... Diana morreu um mês após você nascer. Mas acredite em mim: ela ainda vive, assim como ainda vivem todos aqueles que se foram antes. A morte não determina o fim da vida, é apenas uma passagem para uma nova verdade. Pode ser que não acredite em mim agora, mas mais tarde, você vai lembrar-se deste momento, e saberá que é verdade. Você vai chorar agora, mas depois voltará a sorrir.

Eu não acreditava em nada daquilo. Sempre fora materialista. Meus pais não me ensinaram nada sobre religião, e como estudasse em uma escola laica, nunca tinha parado para pensar naquelas coisas. para mim, a morte era o fecho que trancava alguém longe dos que o amavam para sempre. alguém que deixara de existir, simplesmente. O que eu aprendera, convivendo com Sarah - a mulher que eu acreditara ser minha mãe - é que a vida pode ser muito triste, na maior parte do tempo. Aprendi que os pequenos momentos de alegria, por mais fugidios que fossem, deveriam ser intensamente vividos, pois duravam muito pouco. Aprendi que as pessoas eram cheias de segredos, pois temiam ser julgadas pelas outras. Aprendi que a morte chegava sempre inesperadamente, mas que na verdade, todos a carregávamos no bolso desde o nascimento.

Muitas coisas passavam pela minha cabeça naquele momento. Depositei a xícara sobre a mesinha. Tia Rosana estava de pé perto de mim, e estendeu-me um embrulho:

-Sua mãe deixou isto para você.

Peguei o pacote, e comecei a desembrulhá-lo devagar. Era uma colcha muito colorida, maravilhosamente trabalhada por mãos que só poderiam ser de alguém muito especial. As tramas e cores pareciam ter nascido juntas, de tão perfeitas que eram. Pareciam uma fotografia! Bem no meio, havia um sol, e em volta, uma paisagem que logo reconheci: a casa onde eu morava! Ali estavam o jardim, e o banco sob as roseiras brancas... a fonte... o gramado, as sombras das árvores em vários tons de verde. Ali do outro lado, as frésias. Sempre as frésias...

Estendendo a colcha no chão, segui a trama do desenho com os dedos. Logo ali, quatro meninas brincavam, e reconheci minhas tias e minha mãe. Meu pai estava ao portão, como se chegasse. E eu entendi que quando ele abrisse o portão e entrasse, as vidas daquelas meninas seriam modificadas para sempre, e toda aquela alegria e inocência teriam fim. Eu lia a história daquelas meninas nos desenhos que minha mãe fizera. Nas beiradas da colcha, em azul profundo, a noite chegava em degradé. Uma noite onde a lua, em todas as suas fases, passeava pelas bordas. Olhei para cima, e entre as lágrimas, avistei minha tia me olhando ternamente. Ela ajoelhou-se ao meu lado, passando a mão devagar sobre a colcha. as fibras moveram-se ao seu toque, revelando um fundo com as cores de um arco-íris. Então percebi que havia um desenho sob o desenho principal, e eram as cores de um lindo arco-íris, cobrindo toda a extensão da colcha! Como era possível que alguém tivesse feito algo tão belo?

 Tia Rosana disse:

-Sei que ainda há perguntas a serem respondidas, querida. Mas é dever de seu pai respondê-las. E de Olga, já que ela também fez parte desta trama. Mas quero que saiba que a intenção de ambos foi a melhor possível. Queriam realmente protegê-la desta história dolorida. Como se fosse possível inventar novas verdades e plantá-las pelo jardim da vida como se fossem simples flores... não; a verdade sempre brotará, e prevalecerá sobre as flores plantadas de maneira artificial, sufocando-as. Não importa quanto tempo leve. Agora enxugue suas lágrimas, e vá para casa. Peça ao seu pai e a Olga que terminem esta história. Isso mesmo... e leve esta colcha, guardando-a com carinho. Sua mãe a teceu para você enquanto estava grávida.

Eu carregava a colcha pela rua com medo de que se desmanchasse, abraçada ao pacote. Carregava a minha história. De alguma maneira, eu sentia que tudo estava chegando a uma conclusão, e eu não sabia ainda se deveria estar alegre ou triste. Eu suspeitava que não mais iria rever minha tia Rosana, e de repente lembrei-me de que deixara o retrato lá... quando saí, esqueci-me totalmente dele. Mas algo me dizia para não voltar, e seguir para casa. 

Quando abri a porta da frente, deparei com Tia Olga e papai sentados no sofá da sala, conversando animadamente, enquanto Nana servia-lhes um café. Ambos olharam para mim quando entrei, e vi que seus sorrisos foram morrendo conforme notavam minha expressão e as lágrimas em meu rosto. Percebi que papai engoliu em seco ao ver o pacote que eu carregava, e logo entendi que aquela não era a primeira vez que ele o via. Nana correu em minha direção, preocupada, ao me ver chorando. Soube naquele instante que ela também conhecia a origem daquele pacote. Vi, como se fosse em câmera lenta, a xícara cair da mão de Tia Olga e espatifar-se no chão, enquanto meu pai se levantava e sua voz distorcida chegava até mim:

-Onde você achou isso, filha?

Depois, senti que tudo escurecia, e acho que fui amparada pelos braços de Nana.


(continua...)



segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Minhas Tias - Parte IX








Fui buscar minha prima Luiza no aeroporto, com tia Olga e meu pai. Fiquei feliz ao saber que papai estava mostrando-se bem mais receptivo à presença de Tia Olga em nossas vidas. Eu agora faria questão de participar daquela família de verdade, pela primeira vez, e não via a hora em que teria a permissão de tia Rosana para comunicar a todos que nós estávamos nos vendo.

Eu e Luiza nos damos bem logo no início, e levei-a a passear por todos os lugares bonitos e interessantes que eu conhecia em minha cidade, o que levou apenas dois dias, pois minha cidade não era muito grande e não tinha muitas atrações turísticas, a não ser por alguns museus. 

Luiza era uma adolescente inquieta, simpática e com a exuberância polida da mãe na maneira de falar e colocar suas opiniões. Falava bem o português, mas com um forte sotaque francês, pois não vinha muito ao Brasil. Era alta, muito magra, tinha cabelos castanhos e escuros cortados à altura do ombro, com sofisticada franja Chanel que emoldurava seu rosto de boneca e seus belos olhos castanho-esverdeados (que, segundo ela mesma, puxara do pai). Meu tio não pode acompanhá-la, pois estava muitíssimo ocupado, mas mandou dizer-me que seria um prazer receber-me na casa da família em Paris a qualquer momento. Meses mais tarde, quando tudo passou, tive o prazer de conhecê-lo e constatar que era um homem muito gentil, educadíssimo e sofisticado.

Tive que faltar às muitas das visitas à tia Rosana naqueles dias, mas ela foi compreensiva. Disse que eu aproveitasse bem a presença da minha prima, e não me preocupasse. Perguntei pelo retrato que ela estava pintando, e ela disse que assim que tudo ficasse mais calmo, ela me deixaria vê-lo. 

Nana tratava muito bem à minha tia e prima, mas eu sabia que ela resignadamente recolhia-se ao que ela mesma chamava de ‘seu papel’ naquela casa quando as visitas estavam presentes, e nunca aceitava os convites insistentes de papai para que se sentasse conosco à mesa, como sempre fazia. “Sei meu lugar,” ela repetia, “E não quero parecer uma intrusa aonde eu sei que minha presença não é adequada. Não passo de uma empregada.” Papai não entendia o seu tom magoado, já que Nana sempre fizera parte daquela família, e exasperava-se com ela. Certa vez, ao comentar o quanto achava estranha a atitude dela, eu soltei:

-Não percebe que Nana está enciumada? 

Meu pai pigarreou, corando:

-Não diga tolices, Alana!

-Não é nenhuma tolice, pai. Abra os olhos! Nana sempre foi apaixonada por você. Desde sempre!

Ele riu:

-De onde você tirou isso?

-Ela mesma me confessou, há alguns dias. 

Vi, no rosto dele, a surpresa; meu pai corou novamente:

-Ora... se isso é verdade, como foi que eu nunca percebi?

-Você sempre teve olhos apenas para minha mãe. Nunca percebeu os olhares das outras mulheres para você, pai? Impossível!...

-Bem, sim, mas elas não me interessavam!

-Ah, não interessavam, o que quer dizer que a partir de agora...

El deu uma gargalhada:

-Não, não vá tirando conclusões precipitadas, filha. Ainda é cedo....

-Não, pai, não é! Você tem idade suficiente para não desperdiçar nenhum minuto de sua vida.

-Está me chamando de velho?!

Rimos, e eu me corrigi:

-Não, apenas acho que apesar do amor que unia você e minha mãe, ela se foi, e agora você está livre. E com todo respeito, pai, não os estou julgando, mas todo mundo via que o amor de vocês era doentio, estranho... minha mãe tinha muitos problemas...era uma pessoa muito doente.

Uma sombra tomou conta do seu rosto, e ele ficou muito sério, olhando as próprias mãos que descansavam cruzadas sobre a mesa do escritório:

-Alana, eu gostaria que jamais voltasse a falar de sua mãe desse jeito... vamos deixar com que sua memória descanse em paz, como ela merece.

-Desculpe, pai... é que...

-E pare de ficar tentando arranjar-me relacionamentos. Se isto acontecer, a decisão e a escolha serão minhas.

Ele foi categórico, e só restou-me assentir com a cabeça, engolindo em seco.

A cozinha da casa de tia Olga era um mundo à parte! Havia de tudo o que alguém poderia pensar, tecnologicamente falando, mas eu percebia que ela preferia usar os instrumentos mais tradicionais; moía os temperos e carnes usando um velho moedor manual, ao invés dos modernos processadores automáticos, e justificava-se dizendo que a boa comida precisava do contato artesanal do cozinheiro, pois só assim ele conseguiria colocar nela o sabor de sua alma.

-Mas então por que você tem todos estes acessórios?

-São presentes de fornecedores e clientes amigos. Eu os recebo, agradeço e aposento-os nas caixas. Célia é quem os espalha por aí, e os usa quando deseja. 

Célia era sua ajudante e governanta no Brasil, e tomava conta da casa em seus longos períodos de ausência. Era uma senhora aparentando sessenta e poucos anos, calada, simpática e discreta, com quem tive pouco contato, pois ela não aparecia muito quando havia visitas na casa. 

Tia Olga mexia em seus acessórios, separando o que seria necessário para seu próximo prato (eu e meu pai tínhamos sido seus convidados várias vezes desde que eu a conhecera, e realmente, comer o que ela preparava era um privilégio). Naquela noite, ela me disse que me ensinaria a preparar um prato especial; camarão com aspargos à moda italiana.

Eu prestava atenção enquanto ela separava os ingredientes: aspargos, camarões graúdos, azeite, mostarda, suco de limão, alcaparras, tomates cereja, sal e pimenta. Ela manuseava tudo com maestria, e eu seguia seus movimentos, hipnotizada. 

Quando pudemos, finalmente, nos sentar para saborear aquela delícia, meu pai, que trouxera um vinho maravilhoso, e Luiza, que chegara mais tarde pois era avessa à cozinha, nos acompanharam. Todos adoramos o prato!

Após o jantar, ainda sob o efeito do vinho, eu me sentia feliz, tranquila e leve, como há muito tempo não me sentia. Descobri que adorava minha tia Olga e minha prima Luiza. Ela perguntou-me:

-Prestou atenção à preparação do prato, Alana?

-Sim, tia, lembro-me bem dos ingredientes... mas não estou certa quanto às quantidades.

-Isto é algo que cada um deve descobrir por si, e é assim que damos personalidade aos pratos que preparamos. Um chef jamais é igual ao outro, mesmo quando preparam o mesmo prato! Você precisa ir descobrindo, testando as quantidades, e acima de tudo, deve acrescentar um ingrediente extra que fará parte do prato – o seu camarão com aspargos! O “Camarão à Alana!”

Todos rimos, mas eu levei tudo muito à sério. Ela acrescentou:

-E não se esqueça nunca de colocar toda a sua alma e atenção ao prato que estiver preparando. Não o faça com pressa, ou quando estiver de mau humor ou triste, pois estas coisas passam para o sabor da comida. Deixe lá fora qualquer aborrecimento, e assim, garantirá o sucesso do seu prato. Lembre-se que precisará, dentro em breve, saber preparar o Camarão à Alana muito bem!

Entendi imediatamente o que ela quis dizer; dissera, quando nos conhecemos, que o homem que viria a ser meu marido pediria aquele mesmo prato em um restaurante, e que através disto, eu ficaria sabendo quem ele é.

Meu pai, limpando a boca com o guardanapo branquíssimo de minha tia, finalizou:

-E amanhã mesmo você pode começar a praticar lá em casa.

Enquanto comíamos a sobremesa – um maravilhoso sorbet de cerejas – tia Olga anunciou que precisaria viajar dentro de dois dias, pois tinha que visitar seus restaurantes. Protestei:

-Mas você disse que ainda ficaria por um ou dois meses!

-É verdade, mas houve um imprevisto. Estamos construindo um novo restaurante no México, e minha presença é necessária para os retoques finais e a inauguração. Houve alguns imprevistos – na verdade, muitos -, e minhas férias terminarão mais cedo, como quase sempre acontece... 

Luiza sorriu tristemente:

-Eu vou voltar para Paris também, Alana. Ainda estou em período de aulas, só vim mesmo para conhecê-los.

Senti meu coração murchar, mas as duas me convenceram a passar alguns dias com elas em Paris, dentro de alguns poucos meses. Minha tia me disse que eu precisaria daquelas férias, e quando o fez, acho que só eu notei a seriedade de sua expressão.

Encerramos a noite às duas da manhã, muito alegres e levemente sonolentos.



(continua...)








sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Minhas Tias - Parte VIII





MINHAS TIAS – PARTE VIII

Na manhã seguinte, após o café, saí de casa e dirigi-me para a casa de Tia Rosana, pois queria muito contar-lhe as novidades. Lá chegando, fui recebida com o mesmo carinho e atenção dos outros dias, e ela comentou que já terminara o esboço do retrato e tinha começado os acabamentos. Achei que ela trabalhava rápido, pois eu só posara para ela durante dois dias.

Era estranho, mas toda vez que eu entrava na casa de Tia Rosana, tinha a impressão de que o mundo todo ficava lá fora, isolado, em algum canto, e que nós duas estávamos completamente sós. Reparei que não passavam carros na rua; assim que eu entrava, a única coisa que eu escutava era o canto dos passarinhos no jardim. As flores eram todas muito bonitas e de cores suaves, mas a não ser pelas roseiras de uma pálida cor creme, eu não conhecia as outras espécies de flores.

Estávamos ambas à janela, apreciando as flores, e eu comentei que não conhecia  maioria delas. Ela sorriu de leve, dizendo que eram de outros países distantes,  e que um dia talvez eu viesse a visitá-los. Eu ficava sempre surpreendida com a beleza de tia Rosana, e o quanto ela parecia jovem, bem mais jovem que mamãe e tia Olga, embora ela fosse a mais velha das irmãs. Após conversarmos por alguns minutos, decidi contar-lhe as novidades:

-Tia Rosana, adivinhe quem nos visitou ontem? Cheguei em casa e ela estava lá, passou o dia todo conosco.
Ela me olhou por alguns segundos, intrigada; de repente, vi que seu sorriso murchou. Ao perguntar-me quem tinha nos visitados, eu notei que ela já sabia da resposta; mesmo assim, eu respondi.
Tia Rosana deixou-me à janela, e foi sentar-se no sofá, muito pálida. Fiquei preocupada, e sentei-me ao seu lado. Lá fora, nuvens escuras encobriram a luz vívida do sol, e trovões soaram ao longe. Comentei, olhando o movimento das nuvens no céu, que parecia que ia chover a qualquer momento. Ela pareceu despertar de um curto transe, e balançando negativamente a cabeça, fez um rápido gesto com a mão. Por incrível que pareça, as nuvens se dissiparam rapidamente após aquilo. Perguntou-me, parecendo mais calma:
-Sobre o que conversaram?

-Ela contou-me a verdade, tia Rosana. Sobre meu pai e vocês... contou-me que foi a primeira namorada de papai, e que depois disso, quando ele conheceu minha mãe, deixou-a para ficar com ela; mas papai teve uma rápida aventura com tia Diana, o que deixou mamãe furiosa. Mesmo assim, eles se casaram. Mas papai manteve um caso com... você.

Ela ergueu-se do sofá, parecendo furiosa. As nuvens voltaram a encobrir o céu antes claro.
-Mentiras! É tudo o que eles contam sempre, sobre tudo! É tudo o que sabem fazer... contar mentiras!
Um trovão cortou o silêncio da tarde. Os pássaros calaram-se, e começou a chover muito forte. As gotas de chuva batiam no parapeito da janela, resvalando para o chão de linóleo. Levantei-me para fechar a janela, e intrigada, perguntei-lhe o que ela queria dizer.
Ela cruzou a sala, e num gesto rápido e zangado, retirou o pano que cobria o retrato que ela estava pintando. Tentei aproximar-me para ver melhor, mas ela me impediu, dizendo:

-Alana, está na hora de deixar seu pai saber que você e eu nos conhecemos, e que é aqui que tem passado as últimas manhãs...
Ela hesitou. Respirou profundamente, e sentou-se, cobrindo o rosto com as mãos. Aproximei-me dela, abraçando-a para que se acalmasse.

-Não... ainda não. Haja como se estivesse tudo bem, Alana. 

Ela ergueu o rosto para olhar para mim, e o azul de seus olhos estava cinzento. A chuva lá fora diminuíra, e as nuvens dissipavam-se mais uma vez.

-Mas tia Rosana, eu não entendo... então a história que me contaram é mentira?!

Ela assentiu com a cabeça. Mas segurando-me as mãos, suplicou-me:
-Mas deixe que eles pensem que você acredita neles por enquanto, Alana. Logo – prometo – terão uma bela surpresa. E olhe, não fique contra eles, pois eu sei – tenho certeza – que se mentiram para você novamente, é porque tentam protegê-la. Não o fazem por maldade.

Notei que os passarinhos voltaram a cantar lá fora. O sol já brilhava, seus raios entravam pela janela e partiam-se em um belo arco-íris ao passar pela vidraça de cristal. Ela suplicou-me:

-Por favor, confie em mim.
-Mas tia...
-Preciso que você confie em mim. Por favor...

Concordei com ela. Naquele dia, ela não trabalhou no retrato. Disse que não seria necessário, e que ele logo estaria pronto. Talvez no dia seguinte. Quando saí, a chuva havia terminado. Conforme eu me afastava da casa, via que o chão sob meus pés ia ficando seco, e que parecia que chovera apenas naquela parte da rua.
Cheguei em casa, e sentei-me à mesa da cozinha enquanto Nana trabalhava no fogão. Ela andava pela cozinha totalmente senhora de si, e ás vezes, cantarolava. 

Observando-a melhor, vi que Nana ainda era uma bela mulher, apesar de já estar passando dos cinquenta anos, e que dedicar todos os anos de sua vida à minha família daquela maneira deveria significar que ela amava muito meu pai. Pensei: cinco mulheres absolutamente fascinadas por um homem, ao ponto de se afastarem umas das outras por causa dele, e de criarem uma mentira que destruiu-lhes as vidas.  Uma destas mulheres, tão dedicada e amorosa que abriu mão de sua vida a fim de cuidar de sua esposa e filha! Naquele momento, amei Nana ainda mais.

Ela me olhou:

-Por que está me olhando assim, menina?

Suspirei:

-Porque eu a amo muito, Nana. Você sabe disto, não?

Ela corou de satisfação, e vindo até minha cadeira, abraçou-me, acariciando meus cabelos:
-Eu sei sim, minha menina. Você nem imagina o quanto... seria capaz de qualquer coisa para vê-la feliz. É como se fosse a minha própria filha.
-Posso fazer-lhe uma pergunta?
-É claro, meu bem...
-Você é apaixonada pelo meu pai também, não é? Quero dizer, todos esses anos...

Ela hesitou antes de responder, a sua mão ficando parada sobre minha cabeça. Senti que ela respirava fundo. 

-Bem, você já tem dezessete anos, e percebe muito bem as coisas, Alana. Como eu poderia dizer que não? Sim, é verdade. Eu amo seu pai. Mas amo você e amei sua mãe. Eu jamais faria qualquer coisa para tentar ficar entre os dois.

Levantei-me, e segurei seu queixo, obrigando-a a olhar para mim:
-Mas minha mãe está morta agora, Nana.

Ela sorriu tristemente:

-Seu pai jamais me olhou como olhava para ela. Ele não sente, nunca sentiu ou sentirá nada por mim.

Uma ideia louca passou-me pela cabeça:

-Mas você e ele também... quero dizer...vocês dois já?...

Ela riu alto:

-Oh, não, não... sou sete anos mais velha que ele. Acho que ele sempre me viu como uma matrona envelhecida, a empregada da casa, só isso. 

-Não! Está enganada, ele tem muita consideração e carinho por você, Nana.
-Sim, eu sei... mas é só o que ele tem por mim. Mas minha menina, quando a gente ama alguém de verdade, pouco importa se esta pessoa nos ama de volta. O que realmente tem importância, é ficar o mais perto desta pessoa, e vê-la feliz, mesmo que seja nos braços de outro alguém.

Discordei veementemente:

-Ah, eu não penso assim. Se eu amasse alguém investiria fundo nele. Faria de tudo para que ele ficasse comigo, e talvez por este motivo eu entenda o que aconteceu entre meu pai e minhas tias: elas investiram no amor que sentiam.
-E para quê? Apenas uma delas ficou com ele, e a família se dissolveu! Tanta dor, tanta solidão... será que valeu a pena? A isto, eu chamo de egoísmo! Não se deve nunca disputar o amor de alguém. Ele tem que ser espontâneo, pois só assim será verdadeiro. A paixão causa sempre muitas desgraças. A disputa por um coração apenas separa as pessoas e causa infelicidade.

Olhei pela janela da cozinha, e vi que a manhã já avançava, e logo seria hora do almoço.

 Naquela época, não consegui perceber a sabedoria nas palavras de Nana. Pensei que seria inútil discutir com ela um assunto sobre o qual eu já tinha a minha opinião formada: se um dia me apaixonasse por alguém, lutaria por ele, fossem quais fossem as condições! Mudando de assunto, perguntei:

-Nana... onde está meu pai?
-Ele deu uma saída, mas disse que não demora. Por que?
-Nada não... é que já está quase na hora do almoço, e ele sempre está em casa a esta hora.
-Hum... mas ele costuma sair quase todas as manhãs também. Vamos lá, desembuche: por que perguntou por ele?

Eu tentei disfarçar meus pensamentos, mas Nana conhecia-me bem demais. Acabei confessando, apesar de temer magoá-la:

-Sei lá, eu pensei que talvez... ele pudesse estar com tia Olga. Porque ontem, depois da nossa conversa, os dois pareceram ficar amigos de novo. Ele foi tão hostil quando ela chegou!
-Seu pai estava apenas com medo, Alana. Temia sua reação. Só isso. E ele não tem nada com sua tia Olga, tire isso da cabeça. Conheço seu pai muito bem, e conheço Olga, que hoje está casada, tem uma filha e mora fora do Brasil há muitos anos. E como ela mesma disse, tiveram apenas um namoro passageiro, nem chegaram a se apaixonar um pelo outro.
-Isso é o que ela diz...

Ela evitou olhar-me de frente, apesar de eu procurar os olhos dela. Ficou picando alguns legumes que estavam sobre a tábua, na pia. Respirei fundo:

-Nana, eu sei que eles mentiram, mas não conte a ele.

Ela largou a faca, me olhando de repente:

-Do que você está falando, menina?

-Eu sei que a história que me contaram é mentira. Ou pelo menos, não é totalmente verdadeira...
-Tire estas bobagens da cabeça, Alana. Por que mentiriam para você?
-E por que mentiram todos esses anos? Para me protegerem? Não; para protegerem a eles mesmos, Nana!

Ela caminhou até a geladeira e abriu a porta, fingindo procurar alguma coisa lá dentro, mas eu sabia que estava apenas evitando me encarar.

-Você não sabe o que está falando.

-Sei sim, e você também sabe, Nana. Você sabe tudo o que acontece nessa casa.

-Olha, eu vim para cá depois que você nasceu. Não sei de tudo, como você está dizendo.

Andei até ela, e fechei a porta da geladeira, obrigando-a a me olhar:

-Mas as coisas aconteceram depois que eu nasci, e você sabe muito bem disso.

-Não! Elas aconteceram antes de você nascer...

Fez-se silêncio na cozinha, e Nana caiu em si, notando que falara mais do que devia. Ela sabia que eu não a deixaria em paz até que me contasse tudo. Mas naquele instante, eu me lembrei do pedido de Tia Rosana: fingir que estava tudo bem, e confiar nela. Escutei a porta da frente sendo aberta. Meu pai chegava em casa. Olhei para Nana, e abraçando-a, pedi-lhe desculpas. Sabia que a colocara em uma situação difícil e incômoda.

Meu pai adentrou a cozinha assoviando. Parecia mais moço, desde a visita de Tia Olga. Foi logo anunciando:

-Tenho boas notícias para você, filha. Estive com sua tia Olga, e ela disse que sua prima chega amanhã para passar uns dias com você.

(continua...)



terça-feira, 9 de setembro de 2014

Minhas Tias - Parte VII





Houve um acordo silencioso entre Tia Olga e meu pai, que fez com que ela começasse seu relato, contando a sua versão da história. Enquanto ela falava, eu sentia que a tensão no rosto de meu pai ia magicamente dissolvendo-se aos poucos, e até mesmo seus ombros relaxaram de repente. A antipatia com a qual recebera minha tia também transformou-se em uma expressão aliviada e cooperativa, conforme a história se desenrolava. Achei que talvez a verdade estivesse trazendo-lhe algum alívio, afinal. Ela falava, e ele assentia quando eu olhava para ele. Minha tia falava baixo e pausadamente, para que eu tivesse tempo de absorver toda a história:

-Cara sobrinha, se alguma coisa foi escondida de você durante todos estes anos, foi apenas porque quisemos protegê-la de nossos erros. Tenho uma filha, e acho que faria qualquer coisa para que ela fosse feliz. Portanto, compreendo seu pai e sua... mãe. Bem, me diga o que você sabe para que eu não repita coisas desnecessárias.

Respirei fundo, tentando lembrar-me das histórias que meu pai contara. As memórias vinham caminhando devagar, e as cenas desdobravam-se diante dos meus olhos.

-Bem, seu sei que meu pai e minha mãe conheceram-se em um teatro, durante uma ópera, e se apaixonaram perdidamente. E sei que minha mãe sofreu muito, a vida toda, por causa de algum segredo de família que  todos escondem. Sei também que as irmãs - vocês e minha mãe - não se falam há muitos anos, que você adora cozinhar, que possui restaurantes no mundo todo, que Tia Rosana é uma grande pintora de fama internacional... e tem dons mediúnicos, segundo papai...e que minha mãe escrevia poemas que eu nunca li. E nunca quis ler, desde que ela morreu, pois acho que ficaria muito triste. Sei que meus pais se amavam profundamente. Sei que  Tia Diana era a mais rebelde das irmãs, teve muitos namorados, e sabia tecer. Dela, nada mais sei. E isso é tudo o que eu sei...

Ela ergueu as sobrancelhas, e meu pai e ela se entreolharam. 

-Pois bem, querida. Acontece que todas nós... todas as irmãs ... 

Ela lutava para encontrar as palavras certas.

-Bem, a verdade é que seu pai namorou todas nós. Por isso houve tantos desentendimentos. Por isso sua mãe rompeu conosco. Por esta razão passamos anos sem nos ver ou nos falar. Seu pai não queria que você soubesse por motivos óbvios, ele se sente culpado, pois sua mãe ficou muito deprimida quando descobriu tudo.

-Mas... foi isso?

Então era aquilo? Amores de juventude?

-Sim! E não. Seu pai teve um caso com uma de nós quando já estava casado com sua mãe. Bem, eu fui a primeira namorada dele, a primeira que ele conheceu, e com quem ficou durante apenas um mês, até que ele conheceu as outras. Nós não estávamos tão apaixonados assim, mas nunca é confortável perder um namorado para uma de suas irmãs! Imagine, fiquei muito aborrecida.

-E para qual delas você perdeu papai?

Ela e papai se entreolharam novamente, e ela corou:

-Para... sua mãe.

Tentei pensar um pouco sobre a história. Não era tão grave quanto eu pensava. Pessoas muito jovens apaixonam-se e desapaixonam-se. Ainda mais quando se trata de mulheres lindas como as irmãs, e de um homem tão desejável quanto meu pai. Triângulos amorosos podem acontecer.

-Mas então... meus pais se casaram, e ele namorou minhas duas outras tias?
-Bem, uma delas ele não namorou. Apenas ficaram uma noite juntos.
-Com qual delas, pai?

Ele gaguejou:

-Com... com sua tia Diana. Pa... passamos uma noite juntos. É isso. Depois de casar-me com sua mãe, e depois mantive um relacionamento paralelo com sua outra tia.
-Por quanto tempo?
-Alguns meses...

O rosto dele tornou-se melancólico, e lágrimas brotaram de seus olhos. Logo, estávamos os três chorando.

Abracei-o, penalizada pelo seu embaraço. Tia Olga continuou:

-Isto é tudo. O resto, as consequências, você já sabe. 
-Mas... por que minha mãe sentia-se tão culpada ao ponto de ter sido infeliz a vida toda, se quem foi traída foi ela?

Tia Olga pareceu levemente embaraçada:
-Bem, ela praticamente roubou seu pai de mim...sem o menor escrúpulo. Fui a primeira a deixar de falar com ela.
-Mas... e Tia Rosana? Ela também sentiu-e culpada?

Mais uma vez, os dois se entreolharam, e tia Olga respondeu:

-Sim... todas nós nos sentimos mal, no fim das contas.

Meu pai murmurou:

-Perdoe-me filha, mas sinto-me muito envergonhado por tudo isso...
-Não há o que perdoar, pai... e já faz tanto tempo...

Nana acenou-nos da varanda, chamando a todos novamente para o café da tarde. Tia Olga olhou seu relógio de pulso, dizendo:

-Fica para uma outra vez. 

E virando-se para mim:

-Gostaria de conhecer sua prima?
-Mas é claro!
-Então venha passar algum tempo comigo. Vou ensiná-la a cozinhar um prato muito especial.
-Mas acabo de voltar de uma viagem! Acho que não poderei viajar por enquanto. Preciso voltar aos meus estudos, decidir sobre a faculdade...
-Bem, então telefonarei à minha filha Luiza e pedirei que ela venha ao Brasil. Ainda vou ficar aqui por um ou dois meses. Gostaria que ela viesse?
-Sim, muito! E adoraria aprender a fazer este prato que você deseja tanto que eu aprenda! mas por que ele é tão especial?
-Ela segurou meu braço, e fomos caminhando para o portão juntas, meu pai um pouco mais afastado:

-Porque é através dele que você conhecerá o homem de sua vida. Um dia, você estará em um restaurante, e ele pedirá este prato. Quando isto acontecer, fique bem atenta!

Eu ri bem alto:

-Ora, pensei que Tia Rosana fizesse as profecias na família!

-É verdade - ela riu. -Mas eu também. Cozinhar torna-me bem mais sensível. O ato de mexer a comida às vezes me deixa em transe... 

Achei aquilo estranho, mas lembrei-me de que tratando-se de minhas tias, nada poderia ser considerado muito estranho.

Todos rimos. Ao portão, meu pai apertou-lhe a mão e agradeceu-a, olhando-a profundamente nos olhos. Desculpou-se por ter sido grosseiro, e tia Olga sorriu-lhe de volta, pedindo a ele que deixasse para lá. 

O sol já tinha se escondido por trás das montanhas quando tia Olga se foi. Fiquei algum tempo ainda olhando a poeira do seu carro, que se afastava, e feliz por saber que ela voltaria.

(continua...)


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Minhas Tias - Parte VI




Eu lutava para controlar meu impulso de mencionar Tia Rosana, pois gostaria muito de saber qual seria a reação de meu pai e tia Olga quando eles soubessem que estivera com ela. Mas só me contive porque havia prometido não mencionar nada enquanto ela não me autorizasse.

Eu me perdia no relatos de tia Olga sobre seus restaurantes, suas comidas, seus pratos preferidos pelos clientes. Ganhara muitos prêmios e fora entrevistada em vários programas fora do país. Eu via que ela se orgulhava muito de sua profissão, e percebia, entre as linhas de suas histórias, uma pessoa doce mas ao mesmo tempo, muito firme. Ela parecia ser a mais forte entre as três irmãs que eu já conhecia(eu ainda não conhecia a última delas). Mas apesar da conversa interessante, eu percebia que papai e Nana estavam muito desconfortáveis. 

A certa altura, ao notar que tia Olga não tinha a menor intenção de retirar-se antes que o almoço fosse servido, Nana, a contragosto (só eu consegui ver seu mau humor por trás do gentil sorriso, pois a conhecia bem) chamou-nos todos para a mesa de almoço. Ela tinha preparado salada verde e  macarronada com um molho grosso de tomates, vinho tinto e queijo gorgonzola, uma receita simples para o almoço de um dia de semana.

Tia Olga serviu-se, comendo devagar, e apreciando a massa muito bem feita de Nana. Elogiou-a, e vi que as maçãs do rosto de nana coraram de satisfação - afinal, sua comida  estava sendo elogiada por uma das maiores "chef de cuisine" do mundo! 

Após o almoço, nos dirigimos para a varanda - estava calor, e papai achou que seria confortável sentarmo-nos à sombra. Mesmo tentando ser gentil, sua calma artificial era óbvia, e ele começou a olhar seu relógio de pulso várias vezes. Eu nunca tinha visto meu pai tão tenso, a não ser durante a doença de minha mãe!

As sombras da tarde avançavam sobre nós. Eu e tia Olga tínhamos muito a conversar, a tal ponto, que eu achava a presença de meu pai dispensável, mas por algum motivo que só eles conheciam, eu sabia que ele não queria que nós duas ficássemos a sós. Achei estranho que, mesmo após tantos anos sem termos notícias dela, tia Olga não mencionou minha mãe - sua irmã- nenhuma vez. Não quis saber do que ela morrera, ou como tinha sido a sua vida. Aquilo deixou-me um tanto intrigada, mas achei melhor não dizer nada; afinal, eu nem sequer a conhecia, e não sabia dos motivos que ela tinha para tal. Uma luta silenciosa estava sendo travada naquela varanda. parecia-me que tia Olga tinha algo muito importante que ela queria me dizer, mas meu pai estava ali para garantir que ela não o fizesse. Os dois fuzilavam um ao outro com o olhar, por cima dos sorrisos educados. Talvez pensassem que eu não percebia nada.

Após o almoço, Nana retirou-se para a cozinha e não voltou. Eu escutava o som dos pratos e talheres sendo manuseados, e mais tarde, senti o perfume de um de seus bolos perfeitos saindo do forno. 

De repente, minha tia Olga, em tom saudoso, perguntou:

-Rodrigo... aquele banquinho de pedra sob o qual costumávamos nos sentar, sob as roseiras... ele ainda existe?

Vi que meu pai estava à beira do pânico. Abriu a boca para responder, mas sua voz não saiu. Achei que precisava ajudá-lo:

-Existe sim, tia Olga, sei do banquinho que você menciona porque vi muitas fotos onde ele aparece. Além disso, eu e meu pai adoramos nos sentar nele, até hoje.

Ela pareceu muito emocionada, e assentiu com a cabeça. Nana chegou, limpando as mãos em um avental, e nos chamando para um café com bolo. Tia Olga ignorou-a solenemente, e pegando a minha mão, pediu:

-Você me leva até lá?

Nós nos levantamos, e vi que papai ia nos seguir, mas tia Olga o deteve:

-Se você não se importa, Rodrigo, eu gostaria de ficar sozinha com minha sobrinha um pouco.
-Mas Olga, Nana está chamando para o café...

-Eu sei, e não vamos nos demorar muito. 

O tom de voz de minha tia era imperativo, e vi meu pai literalmente murchar de tanta impotência. O pavor nos olhos dele era gritante. Certamente, ele temia que ela me contasse alguma coisa. 

Nós descemos os degraus da varanda, e fomos caminhando de braços dados pelo jardim até a lateral da casa, onde estava o banquinho coberto pelas roseiras brancas, que estavam muito floridas naquele dia. Sentamo-nos sob ele, e tia Olga deu um longo suspiro. Seu rosto parecia melancólico, mas não chegava a estar triste. Acho que as lembranças que chegavam até ela naquele instante eram coisas muito alegres, pois ela às vezes sorria discretamente.

Após um tempo de silêncio, ela me olhou:

-Sarah foi uma boa mãe para você?

Achei a pergunta muito estranha, mas respondi:

-Minha mãe era excelente pessoa. Só não foi boa consigo mesma. Levou uma vida triste e solitária. Eu gostaria que ela tivesse participado mais de minha vida, mas eu sei que ela não podia... sofria de depressão profunda!

Tia Olga não pareceu nada surpresa. 

-Uma pena que vocês não se falavam, tia...

Ela encolheu os ombros:

-Também acho. Mas o isolamento não partiu de mim, Alana. Ela quis assim. Sua mãe carregava muita culpa dentro de si... por isso ela era tão triste, e decidiu isolar-se do mundo...

Ela viu, pela minha expressão de surpresa, que eu não sabia da história delas. Eu mal conseguia segurar a minha ansiedade.

-Mas por que vocês se afastaram? O que aconteceu?

Ao invés de responder à minha pergunta, tia Olga disse:

-Gostaria de ensiná-la a cozinhar um prato muito especial, Alana. 

-Não mude de assunto, por favor! Pensei que tivesse vindo aqui para contar-me a verdade.

Meu tom de voz foi rude. Ela pareceu magoada:

-E eu pensei que você soubesse da verdade. Ninguém contou pra você, não é? Que direito tenho eu de vir aqui hoje, após todos estes anos e jogar uma pedra no lago tranquilo que é sua vida?

-Lago tranquilo?! Você não faz ideia! Nunca pude trazer um amigo em casa, e andava nas pontas dos pés por causa de minha mãe. Ela nunca compareceu a uma reunião da escola, ou foi me ver dançar. Tive sonhos estranhos a minha vida toda! Minhas colegas de escola me achavam esquisita e muitas me evitavam... e você me fala em lago tranquilo? Minha vida só será tranquila quando alguém me contar a história da minha vida! Pois eu sinto que a nossa história está entrelaçada!

De repente, eu estava chorando e falando alto. Minha voz atraiu papai e nana, que vinham em nossa direção. Minha tia levantou-se quando meu pai chegou, puxando-me para junto dele de uma forma possessiva:

-O que você está fazendo, Olga? Por que veio aqui, e o que disse a ela?

Afastei-me de meu pai, e tia Olga disse, entre lágrimas:

-Você um dia vai ter que contar a verdade à sua filha, Rodrigo! Pretende enganá-la a vida inteira? Sara está morta! O passado acabou agora. Não há nenhum motivo para que vocês continuem...

Meu pai gritou:

-Chega! Vá embora daqui agora, e jamais volte!

Em toda a minha vida, eu nunca escutara meu pai erguer a voz com ninguém. Tia Olga ficou calada, olhando para ele de olhos arregalados. Quando ela se virou para ir embora, após acariciar meu rosto de leve, eu a impedi, segurando-lhe o braço:

-Não, tia. Eu quero saber a verdade, e quero saber agora! pai, eu não vou admitir que minha tia saia desta casa sem que vocês me contem o que aconteceu entre vocês.

Nana estava boquiaberta. Nada dizia. Com apenas um olhar, meu pai pediu a ela que se retirasse. Depois, fez sinal para que eu e minha tia nos sentássemos. Uma roseira desfolhou-se e as pétalas moles caíram sobre o colo de tia Olga, manchas brancas sobre seu vestido escuro. Achei que era um presságio. Nós nos entreolhamos.

(continua...)







A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...