segunda-feira, 2 de março de 2020

MADRE - Capítulo 6







MADRE - Capítulo 6

Após ler a carta, primeiro me senti completamente anestesiada, como se lesse sobre a vida de outra pessoa. A minha vida parecia uma novela mexicana, um dramalhão de romances de segunda categoria,  uma série brega de TV. Minha mãe não era minha mãe, e meu pai não era o meu pai. Nem mesmo a minha avó era de verdade! Cresci entre estranhos, roubada da minha verdadeira origem. Após mais ou menos uma  hora pensando sobre isso e tentando digerir tudo, tive uma crise de choro. Quem era eu? Qual seria o meu nome verdadeiro – aquele que minha mãe verdadeira sonhara para mim? 

Até mesmo Tina sabia de tudo sobre a minha vida. Menos eu! Todos me enganaram. Eis então o porquê de eu jamais poder colocar minhas fotos e meu nome verdadeiro em redes sociais: não tinha nada a ver com a minha segurança, mas com a segurança dos meus falsos pais! Passei a minha infância e a minha adolescência fugindo de fantasmas que não eram meus. Perdi amigos, o convívio com pessoas que eu gostava e que gostavam de mim, cidades que adorei viver, enfim, tudo para que eu jamais descobrisse quem eu realmente era e também para que minha verdadeira mãe nunca me achasse. 

Eu tinha sido roubada. Poderia perdoar alguma coisa assim? Será que alguém poderia?

Mayara: este era o nome verdadeiro da minha mãe, da minha mãe de verdade. Pensei no quão jovem ela era: apenas quinze anos a mais que eu. Uma menina quando me teve. E eu tivera uma irmã gêmea. Com certeza, um pai, avós, tios e tias, primos e primas. Coisas que nunca tive direito na minha família falsa. É claro que eu tive minha avó Beatriz, mas até mesmo ela não era de verdade, e ajudara meus pais a esconderem tudo de mim e de todos. Não podia confiar nela. Talvez tentasse me impedir de conhecer a minha mãe.  Pensei em ir à polícia e contar tudo, mas o que seria de mim? Talvez me mandassem para um orfanato. Quem sabe achassem que minha mãe verdadeira não poderia tomar conta de mim... ou que minha avó era louca ou algo assim.

Eu estava livre agora: meus pais estavam mortos. Eu precisava pensar, e foi o que eu fiz durante horas, durante a noite toda no hospital. Na manhã seguinte, minha avó estaria ali para me levar de volta para casa e para a minha antiga vida. Mas eu não queria mais ela. Eu queria tomar a s minhas próprias decisões. 
Eram quase três da manhã quando eu me levantei da cama e abri a porta do armário, pegando uma calça e jaqueta jeans, camiseta branca e botas de couro que estavam lá. Também encontrei meu celular e o carregador, e havia uma nota de cem no bolso da jaqueta que Tina tinha me dado de presente de aniversário. Felizmente, ninguém a tinha encontrado. Rabisquei em um bilhete: “Vó, eu estou bem. Não me procure. Assim que eu sentir que eu devo, mando notícias.”  Deixei o bilhete sobre o meu travesseiro.
Sorrateiramente, entreabri a porta do quarto e olhei o corredor vazio, silencioso e semi-escurecido do hospital. De vez em quando uma enfermeira passava e entrava em um dos quartos. Entre uma enfermeira e outra, eu fugi. Ainda sentia algumas dores ao caminhar, mas nada que me impedisse de ir em frente. Quanto às sessões de fisioterapia, elas poderiam continuar depois, ou não. 

Na rua, a noite estava fria. As ruas desertas eram entrecortadas por alguns raros faróis de carros que passavam por mime por pessoas que cruzavam comigo na calçada. Algumas delas paravam e me olhavam, me seguindo com os olhos quando eu passava. Eram ameaçadoras, mas eu apertava o passo e ignorava o que elas diziam. Com as mãos nos bolsos da jaqueta, eu tentava não tremer  - de frio ou de medo? Entrei em um bar cuja porta estava aberta para tentar me recuperar, retomando meu fôlego. Ao olhar para dentro, percebi que era um bar gay, e apesar do adiantado da hora, havia quatro casais sentados às mesas. Eles me fitavam, e pensei no quão estranha era a minha presença por ali. 

O barman, um homem bonito que usava barba e batom vermelho e aparentava alguma coisa entre trinta e quarenta anos (nunca fui boa em calcular a idade das pessoas) se aproximou, dizendo: 

-Perdida por aqui, meu bem?

Tentei aparentar segurança, dizendo:

-Só quero um café quente. 

Ele virou-se de costas e começou a preparar o café, indo aqui e ali. Fez também um sanduíche de queijo, alface, tomate e presunto e me entregou tudo:

-É por conta da casa.
Hesitei, olhando para o sanduíche e depois para ele várias vezes. Ele me encorajou:

-Vamos lá, pode comer, é por conta da casa. Significa que você não precisa pagar.

Franzi a testa:

-EU SEI! Não nasci ontem. (E depois, mais calma, acrescentei): Obrigada. 

Abocanhei o sanduíche e tomei o café. Os casais gays voltaram a cuidar das próprias vidas. Minhas mãos tremiam, e eu senti que ia chorar. As coisas em volta foram ficando cada vez mais embaçadas, e quando percebi, meu rosto queimava enquanto as lágrimas desciam sem parar, mesmo que eu tentasse impedi-las.  Continuei mastigando o sanduíche. O barman se aproximou:

-Como é seu nome? Posso ajudar em alguma coisa?

Eu pensei que eu não tinha nada a perder, e respondi com sinceridade:

-Meu nome é Aisha. 

-Nome bonito! Então, Aisha... está sozinha aqui a essa hora, o que aconteceu? Bem, se não quiser me contar, não tem problema, eu só quero ajudar, mas não me meto na vida de ninguém. 

-Minha história é longa e complicada... seria preciso mais do que alguns minutos para contar ela para você. Mas... posso fazer uma pergunta?

Ele me olhava com atenção e preocupação:

-Vá em frente!

-Se você descobrisse que... se alguém lhe dissesse que sua vida toda era uma mentira, que você na verdade era outra pessoa... o que você faria? Continuaria vivendo como se nada tivesse acontecido ou então... iria atrás de quem você realmente é?

Ele pareceu triste por um instante, e então sorriu levemente, dizendo:

-Bem-vinda ao clube, querida. Na verdade, isso já me aconteceu. E eu decidi correr atrás da minha vida de verdade e descobrir quem eu realmente sou, vivendo isso na maior plenitude possível. E aqui estou eu, dono desse  bar, ganhando minha vida com dificuldades, mas feliz... longe de algumas pessoas que eu pensava que me amavam, mas por outro lado, perto de pessoas que eu nem imaginava que me amassem tanto. Se eu me arrependo? Não.

Pensei por instantes naquilo que ele acabara de me dizer. Comi o último pedaço de sanduíche e bebi o resto do café. Perguntei:

-Foi... muito difícil?

-Sim... às vezes, ainda é. Mas se eu não tivesse feito isso, não poderia me olhar no espelho sentindo respeito pelo que eu visse. Vale um conselhinho: procure a sua verdade, e enfrente o mundo, se for preciso, para que você possa vive-la! E lembre-se: não é preciso matar um leão por dia. Basta domá-los! E se não for possível, dê um chute no traseiro deles e siga em frente!

Eu ri. Pela primeira vez, alguém adulto me dizia algo com toda sinceridade do mundo, e eu me sentia grata. 

-Aliás – disse ele – meu nome é Mateus. 

Senti vergonha por não ter perguntado, e me desculpei, mas ele fez um sinal com a mão, dizendo:

-Deixa pra lá! Nomes nem importam tanto. Sabe, eu já estive em um lugar muito parecido com o seu e alguém me estendeu a mão no momento que eu mais precisava. Isso me ensinou a ser solidário e a ajudar as pessoas que precisam. Se precisar de um lugar para ficar, não hesite em contar comigo! Você não está sozinha! E não precisa me contar nada que não quiser. 

Me lembrei imediatamente de uma história sobre anjos da guarda que Nina tinha me contado, que dizia que eles |às vezes se disfarçam de pessoas para nos ajudar. Mateus estava sendo meu anjo da guarda naquele momento, e eu agradeci a ele mais uma vez, decidindo aceitar a sua oferta. Ele me levou para trás do bar por uma porta vermelha, onde encontrei um apartamento pequeno, mas aconchegante. Havia um quartinho de hóspedes, e ele me entregou lençóis limpos e um cobertor felpudo. Me mostrou onde era o banheiro, embora não tivesse sido nada difícil de encontrar em um apartamento tão pequeno, e a cozinha também. Depois, me desejou uma boa noite e voltou para o bar. 

(continua...)




5 comentários:

  1. Tão interessante! Gostei
    -
    Em sonho de amor primeiro
    -
    Visitem o meu novo blogue de "desafios", sigam e linkem. Obrigada
    A cor do amor... [Desafio do blogue - Com Amor]

    Beijos e uma excelente semana!

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  2. Acompanhando. Gostei muito de ler

    Cumprimentos

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  3. I have just been catching up with your fabulous story...oh wow...it just gets better and better!!😊😊

    Have a super day!

    Hugs xxx

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  4. Bom dia Ana,
    Eu que fui filha adotiva e fui roubada da minha mãe por uma tia, me senti inserida em vários parágrafos do texto. É horrível viver essa mentira e depois descobrir a verdade, eu também corri atrás de saber a verdade. Parabéns por sua habilidade de narrar com tanta maestria ea capacidade de envolver o leitor. Fantástico!! Gostei.

    Bjss

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