terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 1






Esta é a história de uma adolescente que precisa seguir com sua vida após a morte do pai, que a emancipou antes de morrer. Porém, antes, ela precisa descobrir a verdadeira história de sua família, aquela que ninguém lhe contou.


SOZINHA

Parte 1

Quando alguém está muito doente, quem o acompanha é quem mais sofre, e é visitado por sentimentos inconfessáveis. Estar diante da dor de quem se ama em uma posição totalmente impotente é, talvez, uma das piores dores. Chega um momento em que não aguentamos mais. Passamos a desejar que alguma coisa – qualquer coisa – possa acontecer e mudar aquela situação. Porém, não se pode dizer isso aos outros, pois eles não estão prontos. Eles não sabem como é. Eles têm suas crenças e opiniões sobre tudo, e gostam de acreditar que as outras pessoas pensam e sentem da mesma forma. Eles passam por aquele quarto, e da porta, lamentam e dizem palavras que consideram como sendo motivadoras: “Ele vai melhorar.” “Confie em Deus.” “Você precisa ter fé.” Depois, caminham pelo corredor, se afastando cada vez mais, tentando esquecer o que viram e voltar para suas vidas e seus problemas, dando graças a Deus por não estarem no nosso lugar.
Mas eu não os culpo. Não há muito mais que se possa fazer.
Certa vez, achei absurda a fala de alguém que há muitos anos me disse; “Só quero que tudo isso acabe.” 
Mas hoje, sou eu quem digo a ele: “Só quero que tudo isso acabe.” E peço aos céus que seja logo. Eu me sinto presa aqui, eu me sinto impotente, fraca, vulnerável, imensamente triste, e com aquela sensação de que ainda temos um longo caminho pela frente, um caminho cheio de dor, noites sem dormir, crises de desespero (que preciso viver o mais silenciosamente possível, trancada no banheiro do quarto de hospital para que ele não me escute).
E a comida esfria na mesa, me embrulhando o estômago. E a cada dia, um pouco mais dos meus ossos se tornam visíveis sob a blusa de malha. Às vezes, chego a pensar que eu vou primeiro, e que não seria nada mal. Assim, não teria que lidar com o que vem depois que tudo acabar.
Os amigos e familiares telefonam para saber como ele está. Mas na verdade, eles não querem ouvir. Raramente, me perguntam como eu estou. E nas raras vezes em que eu respondo – estou um caco, não sei mais como eu estou, já passei do desespero – eles só me dizem para ter fé e continuar acreditando. Daí eu olho para ele, deitado naquela cama, cercado por aparelhos e tubos, e me pergunto se essas pessoas sabem, realmente, com o que eu estou lidando.
Ontem, após três dias, ele acordou e me olhou. Abriu os olhos lentamente. Não sei se me reconheceu (eu ando irreconhecível até para mim mesma). Depois, fechou os olhos novamente, como quem não deseja mais ficar. Falei com o médico, e ele me disse que isso pode acontecer nessa fase, mas ele me disse que isso é normal, e não significa que o paciente está melhorando. É apenas um reflexo. O médico me olhou com aquela cara de pena e me disse para ir para casa. Que se houvesse alguma mudança, eles me avisariam.
Pela primeira vez em dias, eu concordei com ele.
A visão da minha cama me trouxe sentimentos controversos: eu só queria me jogar nela e dormir para sempre. Ao mesmo tempo, como eu podia estar pensando em dormir quando meu pai estava naquele estado? Achei melhor comer alguma coisa, forçando cada gole de café e cada pedacinho de pão garganta abaixo. Depois, tomei meio iogurte. O resto eu joguei fora. Simplesmente não desceu. 
Fico feliz que meu pai tenha antecipado a minha maioridade. Aos dezessete anos, por lei eu teria que ser acolhida por algum parente ou então ir para uma instituição. Mas assim que ele soube do quão grave era a sua doença, ele fez questão de me antecipar: “Não quero que ninguém estrague o trabalho que eu e sua mãe fizemos em você.” Ele também cuidou de toda a parte legal da coisa, para que eu não tivesse que me preocupar com nada. Pelo menos, não com nada material.
Meu pai só tem cinquenta e seis anos. Poderia viver muito, ainda, poderia ver eu me formar, casar, e quem sabe, me transformar naquilo que ele mais temia: uma pessoa comum. Ele vivia me dizendo o quanto eu sou extraordinária, o quanto eu tenho talento, e que eu jamais deveria me deixar levar pelas pressões alheias para ser isso ou aquilo. 
Minha mãe morreu quando eu tinha apenas sete anos e meio, e meu pai fez questão de terminar de me criar. Ele me ensinou a ser seletiva quanto às minhas amizades, e só desejar a companhia de pessoas que me acrescentassem alguma coisa. No começo, eu não entendi bem, mas depois, quando cheguei ao ginásio, eu compreendi o que ele quis dizer: a superficialidade das outras meninas me enjoava. Elas só queriam saber de garotos, vestidos, roupas, maquiagem. Falavam mal umas das outras sempre que podiam, competiam entre si, mesmo sendo “amigas” e viviam contando vantagem, como se estivessem em algum tipo de concurso de popularidade.
Os meninos, ah, os meninos... eles só queriam uma coisa. Só uma coisa. E achavam que tinham o direito de ter o que queriam, o que era concedido sem muito esforço da parte deles pela maioria das meninas. E foi no ginásio que eu comecei a me afastar cada vez mais de tudo. Achava que eu e meu pai nos bastaríamos. E passamos muitos bons momentos juntos. Ele lia para mim, ele me indicava livros e músicas. Mas às vezes, ele sumia nos finais de semana, ou chegava tarde em casa à noite. Minha tia Atena costumava tomar conta de mim naquelas ocasiões, ou então ele contratava uma baby sitter.
Quando minha mãe morreu, ele vendeu a nossa casa de condomínio em Teresópolis e comprou uma outra bem menor, junto a uma floresta que ficava em Lumiar, em uma rua afastada do centro da cidade. Eu não me lembro muito da outra casa, mas todos diziam que ela era muito bonita e bem maior do que esta, e que tinha sido um presente dos meus avós quando minha mãe se casou com meu pai. Meus avós eram muito ricos, e aquela casa era apenas uma das muitas propriedades que eles tinham. Eles não eram muito próximos da gente, pois não gostavam muito do meu pai, como fiquei sabendo mais tarde. Depois que minha mãe morreu, eles se afastaram ainda mais, embora me mandassem presentes de Natal e aniversário, cartões e convites para passar férias com eles, mas meu pai sempre arranjava outras coisas para fazermos nas férias, então eu nunca cheguei a visitá-los.
 A nossa casa é rústica, feita com largas toras de madeira. É aconchegante. Mas a Grota do Retiro não é exatamente um bairro residencial, é mais uma estrada, uma passagem. Os vizinhos mais próximos ficam a quinze minutos de carro, e não há muitos deles. A nossa água vem de uma mina, que meu pai me ensinou a limpar e a cuidar, e a nossa eletricidade vem de painéis fotovoltaicos e também de um gerador de emergência que fica no celeiro. Plantamos muitas coisas: tomates, verduras, frutas, para consumo próprio. Meu pai me ensinou a cuidar de tudo e a ser o mais independente possível. Mesmo assim, temos um senhor que vem duas ou três vezes na semana para fazer algum serviço de manutenção e dar uma olhada nas minas e nas hortas. 
Meu pai trabalhava como marceneiro, e ganhava o suficiente para termos uma boa vida. Minha mãe deixou para mim sua parte na herança da avó dela, mas meu pai jamais usou o dinheiro, dizendo que ele ficaria para eu usar como eu quisesse. Tive acesso às contas, através do advogado do meu pai, e é uma boa quantia de dinheiro que vai me permitir fazer muitas coisas e ficar anos sem ter que trabalhar. Se eu poupar bastante, pode ser que eu nunca precise, pois as nossas despesas são muito baixas, já que nossa casa é totalmente sustentável e nosso estilo de vida, bem simples.
Nossa casa, em si,  não é muito grande; temos cerca de 80 metros de área construída e um terreno de aproximadamente quatrocentos metros, por onde corre um riacho que nasce no alto da montanha e cruza toda a floresta até chegar ao nosso quintal. Usamos a água para regar as hortas e abastecer a cozinha e o banheiro. Estamos próximos a uma área de preservação, então eu acho que não vou ter problemas quanto a isso.
Nosso estilo de vida fez com que eu fosse vista na escola como a ermitã esquisita. Mas na maior parte do tempo, meus colegas me deixavam em paz, pois percebiam que seus ataques não surtiam nenhum efeito em mim. Além disso, hoje eu tenho nos fundos da casa uma pequena plantação de algo que eles adoram, e sendo eu uma boa fornecedora, eles me deixam em paz.
Temos muito pouco contato com alguns dos nossos poucos parentes – Tia Agnes, irmã de mamãe, que mora na Europa com meus dois primos; Tio Heitor, irmão de meu pai e sua mulher, Atena, que moram por perto, e com eles, temos contato regularmente; e meus avós por parte de mãe moram em outro estado. A última vez que vi Tia Agnes, meus avós e meus primos, foi no velório de minha mãe. Tio Heitor e tia Atena costumam vir nos finais de semana para jogar cartas com meu pai, e passamos alguns momentos divertidos, isso é, quando Tia Atena não resolve cozinhar, pois a comida dela é péssima. Mas depois que meu pai piorou, eles só o visitam no hospital e não vem mais aqui quando sabem que eu estou sozinha em casa. Acho que é porque não sabem o que me dizer, ou o que fazer comigo quando meu pai se for. Acredito que não querem a responsabilidade de assumir uma garota de dezessete anos, já que nunca tiveram filhos por opção. Mas eles não sabem que meu pai me emancipou.
Estou sentada no sofá da sala, enrolada em uma toalha de banho. Tenho na minha frente, sobre a mesinha, os documentos que me conferem a minha liberdade, e também os números das contas bancárias e os dados e documentos de um pequeno apartamento que meu pai aluga para uma família no centro da cidade. Estou ciente de tudo. Eu ficarei bem, financeiramente. Meu pai me ensinou a ser forte e independente. Segundo ele, eu ficarei bem. 
Mas eu não sei se posso. É muita coisa. É assustador. Minha vida é um grande ponto de interrogação. Mas quando ainda estava bem, meu pai me disse um dia que a vida de todos era um grande ponto de interrogação, mas as pessoas gostavam de fingir que tinham tudo sob controle. 
Ele também me ensinou a aceitar a morte, e eu fingi que aprendi. Meu pai me explicou que morrer faz parte da vida, que todos morreremos um dia, que o que importa não é com quantos anos, e sim viver de forma intensa, etc., etc., e mais um monte de clichês. Meu pai nunca foi um homem religioso, mas ele me confessou que acredita que a vida continue em algum lugar, e me falou sobre umas coisas que aconteceram com ele após a morte de minha mãe. Ele me disse que a viu em vários sonhos, e que uma noite, enquanto ele estava tomando café na cozinha, ela apareceu para ele. Acho que ele me disse a verdade – ou pelo menos, o que ele acha ter sido verdade. Porque meu pai jamais mentiu. E eu acho que por achar que minha mãe continua viva em algum lugar, ele nunca se casou, embora ainda fosse jovem, bonitão e muito assediado pelas mulheres. Saiu com algumas delas – ok, muitas delas – mas jamais trouxe nenhuma para a nossa casa.
De vez em quando, no hospital, uma delas aparece com flores, derrama algumas lágrimas, olha para o meu pai com saudades. Elas se apresentam como “amigas” de meu pai.  Depois, elas me abraçam talvez pensando que poderiam ter se tornado minhas mães, e vão embora, dizendo que se eu precisar de alguma coisa, é só chamar. Mas elas nunca se lembram de deixar um telefone ou um endereço. Todas são sempre muito bonitas, e vi que algumas tinham alianças de compromisso na mão esquerda. Meu pai gostava de viver perigosamente, pelo jeito.
Às vezes, ele viajava por alguns dias, geralmente, um final de semana, e eu ficava com o Tio Heitor e Tia Atena, ou seja, eles vinham ficar comigo. Mas meu pai sempre voltava na segunda-feira. Sempre sozinho, e às vezes, calado e cabisbaixo. Uma vez perguntei por que ele não se casava de novo, e ele me disse: “Quem teve uma mulher como a sua mãe, jamais encontrará outra à altura.” Pensei que aquilo soou como uma maldição.
Me deito para dormir entre os lençóis e cobertores macios e aconchegantes da minha cama. Meu último pensamento é para o quarto impessoal e frio onde meu pai dorme.
(continua...)




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...