segunda-feira, 16 de agosto de 2021

AS ESTRELAS QUE EU CONTEI - CAPÍTULO 10


 Capítulo 10


A morte de Tia Samira foi um dos eventos mais chocantes para todos nós, depois da morte de papai. Minha mãe andava sempre triste e cabisbaixa, calada e distante. Eu pensava demais nela, e em tudo o que as nossas vidas poderiam ter sido se ela não tivesse se apaixonado pelo nosso pai. Mas ninguém manda no coração, e Tia Samira, assim como mamãe, tinha sido uma mulher forte e apaixonada, que se jogava com força naquilo que acreditava. Era uma característica das mulheres daquela família, eu perceberia mais tarde.

Um mês se passou da morte de tia Samira, e aos poucos, fomos aprendendo a conviver com a realidade daquela perda; porque uma coisa, é a gente brigar com alguém que a gente ama muito, mas saber que a pessoa está viva em algum lugar, e que ainda pode ser feliz e quem sabe, a gente possa até mesmo fazer as pazes um dia. Outra coisa bem diferente, é saber que aquela pessoa se foi, e que nada que fizermos poderá trazê-la de volta para que a gente possa consertar os erros do passado.

Nós falávamos com nossos primos por telefone de vez em quando, e eles nos contavam sobre a nova vida que tinham. Não pareciam muito felizes, mas procuravam seguir em frente. Nós trocávamos ideias sobre nossos estudos e cursos no estrangeiro. Joana dissera ao pai que pretendia morar fora quando terminasse a escola, e ele não apenas aprovou a ideia como considerava mudarem-se todos juntos para algum lugar na Europa, onde poderiam continuar com suas vidas longe de todas aquelas lembranças tristes. Mais uma vez, ficaríamos longe uns dos outros durante bastante tempo – quem sabe, para sempre.

Afonso diminuíra o ritmo de trabalho, mas ainda pretendia diminuir mais. Eu e Sara sentíamos o quanto nós significávamos para ele. Era como se fôssemos suas filhas de verdade, e sabíamos que ele faria tudo o que pudesse para nos ver felizes. Era tranquilizador saber que poderíamos escolher qualquer coisa que quiséssemos fazer de nossas vidas, pois teríamos tudo o que precisássemos para alcançar nossos sonhos e metas. 

Afonso sempre me dizia que eu deveria entrar em um concurso literário, mas eu ainda não me sentia pronta. Ele procurava sempre me animar e encorajar, lendo meus manuscritos e sugerindo alguns detalhes. Era um tanto agradável ter alguém como ele ao meu lado, uma figura masculina forte e protetora. Sentia um pouco de culpa, pois eu tinha certeza que meu pai jamais teria conseguido ser como ele para nós. Papai tinha um coração meio-nômade, aventureiro e louco. Era um sonhador. Mantinha um dos pés no chão, mas o outro, estava sempre junto com a cabeça, nas nuvens. Este tinha sido um dos maiores motivos das brigas entre meus pais. 

Mamãe ficou bem mais triste do que Sara e eu. Andava perdida pela casa, falava pouco. Tentava se animar quando estávamos por perto, mas era como um arremedo de alegria. Todos estávamos tristes. Nossa família tinha perdido dois membros importantes e queridos – papai e tia Samira. Duas estrelas no meu céu de lembranças. Pensei em mamãe: ela perdera os pais também. Quanta gente já tinha ido embora de sua vida! Os pais, a irmã, o marido. Se não fosse por nós, ela estaria praticamente sozinha no mundo. Mas mamãe ainda era uma mulher jovem – tinha apenas quarenta e três anos.

Tínhamos Afonso conosco, e ele estava sendo mais do que um simples pai, mas um verdadeiro amigo, sempre presente. 

As pessoas que trabalhavam na casa, ao nos conhecerem melhor, também se tornaram um pouco mais doces e menos formais. Um dia, distraída, Sara entrou pela cozinha de manhã e deu um beijo no rosto de Elga, que estava lavando as xícaras. Ela corou, e sorriu. Eu achava que tínhamos formado um novo tipo de família, e me sentia novamente segura outra vez. Minha amiga Fernanda tinha passe livre na casa, e vivia por lá. Era uma casa feliz – a não ser pela nossa última perda.

Um mês após a morte de tia Samira, Afonso e mamãe nos deram uma boa notícia, logo após o jantar. Foi mamãe quem anunciou:

- Temos uma novidade: vamos viajar em lua de mel. Nós nos casamos, mas não tivemos uma.

Eu e Sara os entreolhamos, surpresas. Minha irmã perguntou:

- Para onde vamos? Quanto tempo vamos ficar longe? 

Eu a interrompi:

-Sara, é uma viagem de lua de mel. Isso significa que nós duas não estamos incluídas, sua enxerida.

Ela levou a mão à boca, dando uma risadinha. Afonso disse:

- Mas nós temos uma surpresa para vocês duas: as férias de dezembro estão chegando, e antes de viajarmos em lua de mel, vamos todos passar uns dias na fazenda. Depois do Natal, viajamos para a Inglaterra.

Batemos palmas de alegria. Mamãe disse:

-Acho que todos precisamos de uma mudança de ares.

Sara reclamou:

-Meu sonho é conhecer a Inglaterra...

Afonso prometeu que um dia, iríamos todos juntos. Ainda disse que conheceríamos o mundo todo. Ele ia promover uma pessoa junto com ele na companhia a fim de ajudá-lo, para que pudéssemos ter mais tempo para ficarmos todos juntos. Minha mãe corou de satisfação. Para ela, era muito importante o fato de que Afonso sempre nos incluía em seus planos. Ela ouvira falar de uma amiga de escola viúva que se casara de novo, e o marido não aceitava as crianças do primeiro casamento, colocando-as em colégios internos. Afonso jamais pensaria numa coisa dessas. Ele nos chamava de filhas – embora jamais tivesse exigido que o chamássemos de pai. Mas Um dia, pela manhã, Sara entrou correndo na cozinha (estava atrasada para o café) e disse “Bom dia, mãe, bom dia, pai.” Todos nós ficamos paralisados, nos entreolhando, enquanto ela se sentou à mesa e começou a tomar seu café da manhã normalmente, tagarelando sobre a prova que teria na escola. Vi que Afonso deixou escapar um leve sorriso de satisfação, ao responder: “Bom dia, filha.”

É, a vida sempre continua.

E assim, chegou dezembro.

A escola terminou, e começamos a planejar uma festa de Natal, que tinha sido tradicional na família de Afonso, e que ele gostaria de retomar. Assim, dizia ele, poderia apresentar sua família aos amigos. A festa não seria no dia de Natal, mas no dia 20 de dezembro. Mamãe estava muito nervosa em conhecer os amigos de Afonso – todos tão ou mais ricos do que ele. Ela sabia que não fazia parte daquele mundo. Eu e Sara nos sentíamos da mesma forma, e uma noite enquanto estávamos todos acomodados na sala, conversando sobre os preparatórios para a festa, quando sem querer, Sara deixou escapar a seguinte frase:

-Ai, meu Deus do céu, fico nervosa só de pensar em estar cercada por todas essas pessoas ‘bacanas...’ 

Mamãe a fuzilou com os olhos, embora se sentisse da mesma forma, mas antes que ela pudesse repreendê-la, Afonso disse:

- Meninas, eu sei que vocês estão preocupadas em conhecer meus amigos, mas quero que saibam que nenhum deles é mais importante do que vocês. Se vocês acham que não estão à altura deles, eu preciso concordar: vocês estão em um patamar muito mais alto. Sabem por quê? Porque vocês fazem parte da minha vida e moram no meu coração. E não se preocupem, eles não mordem. Tenho certeza de que ficarão muito felizes em conhecerem minha nova família. E isso vale para você também, Vanessa.

Todas ficamos felizes, mas constrangidas, e mamãe tentou se desculpar, mas ele disse a ela que ficasse em paz, segurando a mão dela:

- Eu tenho certeza de que você vai ser muito admirada, Vanessa. Afinal, será a mulher mais bonita da festa. Além disso, é inteligente, espirituosa e muito forte. Se eu pude ver em você essas qualidades, meus amigos também as verão. Vai dar tudo certo! Estarei sempre ao seu lado, não se esqueça. E Geraldo está acostumado a esses eventos, ele vai tomar conta de todos os detalhes. 

-Mas eu quero que tudo fique perfeito para você, Afonso – mamãe respondeu.

- Já está tudo perfeito. 

Ele a olhou tão apaixonadamente, que eu senti pena dele, pois eu sabia que mamãe jamais o amaria daquela forma. Mas sabia também que ela era sim, uma  mulher forte e leal, e que faria tudo o que pudesse para fazer de Afonso um homem feliz. Até pensei que a vida deles seria bem mais fácil justamente por ela não estar apaixonada por ele, e assim poder controlar melhor seu gênio forte. Há tempos mamãe não tinha um de seus ataques de fúria. Afonso a deixava tranquila em todos os sentidos. Ela gostava dele profundamente e o amava como a um grande amigo, e talvez para ela, naquela altura da vida, aquilo fosse o suficiente. Mas conhecendo minha mãe como eu a conhecia, e tendo visto o relacionamento que ela e meu pai desfrutavam, eu simplesmente sabia, apesar de ser apenas uma criança.

Finalmente, o dia da festa chegou. Nós, crianças, ficaríamos no salão apenas até as dez da noite, e após jantarmos na copa, iríamos para os nossos quartos. 

Quando as pessoas começaram a chegar, notei que Afonso segurava a mão de mamãe com muito orgulho, apresentando-a a todos os convidados. Achei que mamãe estava se saindo muito bem, e conseguindo conquistar a simpatia das pessoas. Os adultos cumprimentavam a mim e Sara com gentileza e depois nos esqueciam completamente. Não havia outras crianças na festa, então Sara e eu ficamos em um canto do salão, observando tudo. Havia cerca de cinquenta pessoas na casa, e nós não conhecíamos ninguém, o que era um tanto estranho para duas meninas que não estavam acostumadas com aquela situação. Foi um jantar à americana, descontraído, mas ao mesmo tempo, luxuoso. 

Geraldo e Helga tratavam de manter os convidados sempre bem servidos, entrando e saindo a todo momento com bandejas cheias de comidas e bebidas, enquanto Helena trabalhava na cozinha. Havia também mais dois garçons que tinham sido contratados para ajudar. 

Não me lembro de nada mais especial que tenha acontecido naquela festa. Às nove  e quarenta e cinco mamãe nos chamou para jantarmos na copa, na companhia de Carlos, o motorista, e então fomos dormir. Lembro-me de ter acordado por volta das três da manhã e a casa já estava em silêncio. E foi isso.

No dia 26 de dezembro, logo após o Natal, viajamos todos para a fazenda de Afonso, que ficava em uma cidade afastada no interior de Minas. Passaríamos o ano novo por lá e então voltaríamos para casa, e mamãe e Afonso partiriam em sua viagem de lua de mel. Geraldo nos levou até lá de carro e ficou de nos buscar no dia 3 de janeiro.

A fazenda era ainda maior que a casa onde morávamos, e o casarão antigo e bem conservado era branco de janelas azuis. Uma grande varanda circundava a casa. Amei as enormes janelas e portas, o chão de tábuas corridas, a cozinha enorme com piso de azulejos hidráulicos em tons de azul pastel (o mesmo piso da varanda). Tudo era grandioso, lindo, mas muito mais rústico e simples que a casa, e eu adoraria poder ficar morando lá para sempre. Havia na casa muitas pessoas trabalhando: os que cuidavam das hortas e dos animais, as cozinheiras, arrumadeiras e  lavadeiras, os que tratavam dos cavalos (Afonso tinha alguns puro-sangue) e o capataz, que comandava tudo. Nós, crianças, conhecemos algumas daquelas pessoas bem superficialmente, mas gostamos especialmente de Tamara, a governanta, uma senhora alta, robusta e enérgica que aparentava ter sessenta e tantos anos. Seus cabelos negros e grisalhos estavam sempre presos em um coque no alto da nuca, e seu sorriso largo e franco nos conquistou a todas prontamente. Ela andava pela casa cuidando de dar ordens aos empregados, tratando para que tudo estivesse ao gosto de Afonso e de mamãe. Era enérgica e incisiva, mas educada. O belo rosto de Tamara revelava que ela tinha sido uma linda mulher na sua juventude, e ela e minha mãe ficaram amigas quase imediatamente, apesar da diferença de idade. 

Mas quando conhecemos Rosália, a filha de Tamara, a impressão não foi das melhores. Ela nos olhou como se examinasse algumas espécies de ameba, os lábios curvados para baixo, e cumprimentou-nos com um leve aceno de cabeça. Notei que ela fuzilava minha mãe com os olhos. Ela era uma mulher bonita, talvez alguns poucos anos mais jovem do que mamãe, mas havia alguma coisa nela que me desagradava profundamente. Ela só era simpática com Afonso, que a tratava com respeito, mas sem intimidades. Ele parecia visivelmente constrangido quando ela entrava em um cômodo onde todos nós estávamos sentados, comendo u conversando. Rosália atravessava a sala, nos olhando com o canto do olho, carregando pilhas de roupas passadas, ou uma bandeja com café que depositava sobre a mesinha, e quando fazia isso, eu sempre a via desviar o olhar na direção de mamãe. Achei que aquilo acabaria sendo problemático, e acertei. Mas vou contar essa história mais tarde, no seu devido tempo. 


(CONTINUA...)







quinta-feira, 5 de agosto de 2021

AS ESTRELAS QUE EU CONTEI - Capítulo 9


 Capítulo 9


Nossa nova casa era enorme e silenciosa. Havia quatro empregados fixos – Elga, a cozinheira, Helena, a faxineira e Geraldo, o mordomo, e Carlos, o motorista. A cada semana uma empresa ia fazer a limpeza pesada e cuidar do jardim. Todos eram frios, eficientes, silenciosos e distantes, e permaneciam imunes a qualquer tipo de aproximação de nossa parte. Eram polidamente corteses, educados, eficientes e sempre prontos a satisfazer nossos menores desejos e a atender as nossas ordens, mas mantinham sempre uma distância enorme e impenetrável entre nós. Dirigiam-se à minha mãe chamando-a de Madame Vanessa, e a nós, crianças, como senhorita Chiara e senhorita Sara, embora já tivéssemos dito mil vezes que não queríamos que nos chamassem daquele jeito. Acabamos desistindo e nos acostumando. Afonso nos explicou que eram ótimas pessoas, e que estavam na família há muitos anos – as mulheres, há mais de vinte, e o mordomo, há pelo menos trinta e cinco anos – e era melhor que mantivessem uma atitude formal em relação aos seus patrões, pois isso assegurava serviços bem prestados. Tinham sido treinados por seus pais, que faziam absoluta questão daquela distância. 

Mas nós tínhamos permissão para chamá-los pelos seus primeiros nomes.

Afonso era realmente um homem muito rico. Além de possuir duas fábricas, um escritório e vários apartamentos alugados, ele sempre falava de uma fazenda que herdara dos pais, e que estava na família há mais de sessenta anos. No entanto, quando Sara perguntou sobre os pais dele, vimos uma sombra atravessar seu rosto antes de ele mudar de assunto, dizendo apenas que tinham morrido quando ele ainda era um adolescente. Ele tinha sido criado pelos avós, também falecidos. Afonso também não gostava de falar sobre sua ex-esposa, com quem vivera por apenas cinco anos, bem antes de conhecer minha mãe. O casal se divorciou e ela foi embora do país, e isso foi tudo o que ele comentou sobre ela. Afonso não tinha irmãos ou parentes próximos. Pensei no quanto sua vida deve ter sido solitária antes de nós, mas Afonso não era alguém triste – pelo contrário. Fazia de tudo para nos alegrar e quase sempre que voltava para casa do trabalho, nos trazia um mimo – um doce, uma pulseirinha, um livro, canetas coloridas. Eu e Sara o adorávamos. Mamãe parecia gostar muito dele, e eles viviam muito bem, mas eu nunca consegui ver nos olhos dela a mesma coisa que eu via quando ela olhava para papai, embora eu não saiba descrever exatamente o que tinha sido; talvez um misto de ansiedade, amor, paixão, desespero, ressentimento, mais amor, mais paixão, mais loucura, raiva e tranquilidade, e paz de espírito – tudo muito misturado, subindo e descendo em ondas o tempo todo. Quando ela olhava para Afonso, havia carinho, tranquilidade, paz, um pouco de amor, sim, amizade..., mas nada de turbilhão de emoções, e eu acho que era exatamente o que ela desejava: paz. Uma vida horizontal. 

Segurança.

Nossa casa tinha um jardim bem diferente do que tínhamos antes: as sebes eram milimetricamente aparadas pelos jardineiros contratados que vinham a cada sete dias para cuidar das plantas e fazer a limpeza. Nenhum fio de grama era maior que outro. Os arbustos eram recortados em formas precisas, alguns imitando animais. As flores eram plantadas separadamente conforme suas espécies, e não misturadas, como na nossa antiga casa. 

As árvores tinham sido plantadas em pontos estratégicos, a distâncias cuidadosas da casa e umas das outras. Havia uma fonte no meio do jardim, de onde a água jorrava de um vaso que estava nas mãos de uma dama antiga toda feita de mármore branco. Tudo era perfeito. Havia nos fundos da casa uma piscina de água muito azul e límpida. Nos quatro cantos, anjos de mármore silenciosos estendiam as mãos sobre quem se banhava nela. Por trás da piscina, um prédio espelhado levava a uma sauna, uma piscina interna de água quente e uma área de lazer, com cadeiras, mesas e um sofá forrado com tecido impermeável. Havia também uma TV em um dos cantos, alguns livros e revistas (as revistas eram trocadas a cada semana, substituídas pelos exemplares mais novos) e alguns tabuleiros de jogos que ninguém nunca jogava.

Meu quarto era ao lado do quarto de Sara, no segundo andar. As cores do meu ficavam entre as tonalidades verdes, conforme eu escolhera, e Sara preferia os tons de rosa e branco. Assim que nos levantávamos e descíamos para o café da manhã, Helena, a arrumadeira silenciosa e invisível, entrava nos quartos e arrumava as camas, aspirava os tapetes e tirava o pó inexistente, e antes de sair, borrifava alguma coisa suavemente perfumada nos banheiros, trocando as toalhas que usáramos no banho. Quando o café terminava e nós subíamos para nos prepararmos para a escola já encontrávamos tudo limpo, cheiroso e arrumado. Nunca aconteceu de encontrarmos com a arrumadeira no corredor. Ela parecia ser realmente invisível. Parecia que estávamos em um hotel, e não em uma casa.

Quando comentamos com mamãe àquele respeito, ela nos disse que Helena acordava bem cedo, por volta das cinco da manhã, a fim de arrumar o restante da casa sem incomodar a ninguém, e que tinham sido treinados para serem os mais invisíveis que pudessem. 

Era muito estranho, para mim, ser tão rica. Sentia saudades da bagunça aconchegante da nossa antiga casa, das folhas secas sobre o gramado, das margaridas, rosas, cravos e demais flores todas crescendo juntas e misturadas nos canteiros, das árvores que cresceram onde tinham escolhido e que estavam lá há anos sem que ninguém as incomodasse. Eu sentia saudades de poder andar descalça dentro de casa, usar pijama o dia todo no final de semana, escutar música alta e ter os gatos dormindo comigo na cama (Afonso mandou preparar um quarto lindo e confortável para eles do lado de fora da casa, na ala dos empregados, e embora fosse cheio de almofadas macias e eles recebessem a melhor comida, eu frequentemente acordava durante a noite escutando seus miados de saudades). 

Tínhamos absolutamente tudo o que precisávamos, e muito, mas muito mais que apenas isso. Nada de economizar para comprar aquele tênis da moda, ou ir para casa da escola a pé, economizando o dinheiro da passagem para comprar sorvete no caminho. Nós íamos para a escola de carro, conduzidas pelo silencioso Carlos. Nossos amigos da escola olhavam e comentavam, o que nos deixava um pouco incomodadas. Notei que algumas de minhas amigas se afastaram de mim e passaram a me evitar na hora do recreio, e eu tinha dificuldades para entrar em um grupo quando a professora passava algum trabalho. Elas me tratavam bem, mas friamente.

Voltando a falar da casa, ela era linda, mas faltava uma coisa importante nela: vida. E os criados formais me irritavam. Eu sentia que de alguma forma, me desaprovavam. Suas pupilas cínicas, sob as sobrancelhas arqueadas, me olhavam da cabeça aos pés, demorando-se nas minhas pantalonas jeans quase sempre com os joelhos encardidos, e certa vez, Helena me perguntou polidamente se eu desejava que ela penteasse meus cabelos. No rosto, um leve toque de ironia disfarçada de servilismo. Não respondi, apenas balancei a cabeça, negando e olhando para ela da mesma forma que ela tinha me olhado.

Certa vez, levei um dos gatos para me fazer companhia na sala de TV. Geraldo entrou logo quando ele afiava as unhas na almofada, e quase teve um surto. Saiu apressado sem falar comigo, e minutos depois, minha mãe entrou, pegando o gato e dizendo que eles não podiam ficar dentro da casa. Fui atrás dela furiosa:

- Foi aquele almofadinha que te contou, não é?

Ela levou os dedos aos lábios, olhos arregalados, pedindo silêncio:

- Chiara, aqui não é a mesma casa de antes, não temos a mesma vida. Precisamos nos adaptar!

Desabafei:

- Eu estou tão cansada, mamãe! Não gosto dessa casa, não gosto dessas pessoas que trabalham aqui! 

- Mas eles são ótimos funcionários, e estão há anos na família! Afonso os considera muito, e ficaria muito chateado se ouvisse você falar assim deles, e de tudo o mais.

- Eu adoro o Afonso, mas mãe... não me sinto em casa!

Joguei-me em uma cadeira almofadada em dourado:

- Isso aqui... não tem nada a ver comigo! A Sara também não gostou (menti).

-Hum... ela parece muito bem adaptada.

- Mas eu não estou. Nem sequer posso trazer meus colegas da escola aqui! E eles estão se afastando cada vez mais de mim.

- Ninguém nunca disse que não poderia, Chiara! Se quer trazer seus amigos, tenho certeza de que Afonso não vai se importar. Será uma boa ideia, pois assim vocês poderão se aproximar novamente. Vamos fazer o seguinte: organizaremos uma festinha no final de semana!

Ao ouvir aquilo, me senti melhor. Comecei a preparar convites para o final de semana, após a total aprovação de Afonso, é claro, e ele me ajudou a escolher a comida para que tudo ficasse perfeito. Ele era muito atencioso. Ficamos elaborando o menu até tarde da noite de quinta-feira. Na sexta, distribuí os convites entre meus colegas de escola, e quase todos apareceram no sábado de manhã.

Foi um dia muito bom, até que inadvertidamente, no final da tarde acabei escutando uma conversa entre algumas meninas. Eu estava indo ao banheiro da piscina, quando as ouvi conversando dentro da sala da piscina coberta. Me escondi atrás de um biombo; eu queria apenas saber o que estavam achando da festa. Fernanda, minha melhor amiga, estava entre elas e escutava passivamente, enquanto uma das meninas dizia:

- A Chiara mudou, agora que a mãe se casou com um milionário. Só anda com aquelas roupas de menina rica e de carro com motorista. Nunca mais foi lá em casa.

Magoada, tive que admitir que era verdade: eu não visitava mais meus amigos, pois a minha nova casa ficava mais longe das casas deles. Ela continuou:

- Eu gostava tanto dela..., mas não sei se ainda gosto.

Uma das meninas respondeu:

-Acho que elas estão muito “metidas.” Olha só essa casa! Gente do céu... que ostentação! Minha mãe vive dizendo que a gente deve andar com quem é igual a gente.

Uma outra arrematou:

-Gente rica é diferente. Eu não queria morar em um museu desses. Os móveis são todos antigos, vocês viram? O chão brilha feito um espelho, dá até medo de andar sobre ele. E aqueles empregados de nariz em pé, circulando pela casa, olhando a gente como se fôssemos... ratos! Deus me livre.

Naquele instante, notei que meu estômago começou a revirar-se, e saí correndo, indo vomitar atrás de uma das moitas perfeitas do jardim. Cruzei a piscina e senti os olhares presos em mim, mas passei direto, descabelada, a camisa suja de vômito. Corri para o meu quarto e fechei a porta. Ao me olhar no espelho do meu banheiro privativo, vi que meu rosto estava vermelho. Minha respiração estava ofegante. Abri a torneira, enchendo a mão de água gelada, e lavei o rosto. O que mais me feriu, foi ver minha melhor amiga no meio daquela conversa sem nada dizer.

Alguns minutos depois, bateram à porta. Fingi não escutar, mas a pessoa do lado de fora insistiu, e então eu berrei:

-Vá embora, me deixe em paz!

Ao invés de passos se afastando, ouvi a maçaneta girar, e minha amiga Fernanda entrou, olhando em volta.

-Me disseram que você estava aqui.

Eu não respondi. Estava de bruços, atravessa da na cama, e estremeci ao ouvir a voz dela. Ela se sentou devagar na beirada da cama, ao meu lado.

-Me desculpe... vi quando você correu. Não era para você ter escutado.

-Mas eu escutei, e o que isso muda? É isso que pensam de mim, agora... vocês estão  roxas de inveja. Me admiro ter visto você lá, no meio daquela fofoca toda.

Ela não respondeu imediatamente. Respirou fundo antes de dizer:

-É, pode ser... talvez eu esteja morrendo de inveja de ter uma sargenta igual aquela cozinheira atrás de mim. Ou aquele mordomo Frankenstein de pé atrás de mim enquanto eu estou almoçando e jantando. Juro que eu adoro ter pesadelos à noite. Ou então estou com inveja de levar um escorregão naquele assoalho encerado e quebrar o pescoço.

Não pude deixar de dar uma risada leve, mas ela não percebeu. 

-Chiara, eu sinto falta da gente, de como a gente era... de ir à sua casa depois da escola, me sentar naquela mesa de madeira enorme e almoçar com você, só nós duas, enquanto sua mãe está no trabalho e Sara está brincando no quarto. Eu sinto falta de quando a gente se sentava em frente à TV para assistir à Sessão da Tarde juntas. Sinto falta das festinhas na sexta à noite. O que aconteceu com a nossa amizade? Você nunca mais me visitou!

Eu me virei para encará-la:

-Talvez porque você passou a me ignorar na escola! Você e todo mundo.

Ela concordou com a cabeça:

-Ok, você tem razão. É que a gente ficou assustado... de repente, nossa amiga virou milionária, tão diferente da gente. Me desculpe. E... você está certa, dá uma certa invejinha sim...

Nós rimos, e nos abraçamos. Voltei com ela para a festa, totalmente à vontade agora, e ela me ajudou a reentrar nos grupos. Depois daquilo, minha vida na escola e na casa ficou mais fácil. Passei a aceitar que minha vida tinha mudado, mas que eu podia continuar sendo eu mesma. E Afonso jamais me condenava por isso, aceitando meus jeans surrados, minhas músicas barulhentas, meus suéteres remendados quando eu estava em casa, meus chinelos de pano e até mesmo um gato ou outro dentro de casa. Acho que ele deu algumas ordens aos empregados também, pois eles passaram a ser mais tolerantes conosco, crianças, e pararam de nos perseguir e querer pentear nossos cabelos. Na verdade, depois que me acostumei com eles, percebi que não eram ruins – estavam apenas preocupados com o nosso bem-estar. Fernanda me ajudou a perceber isso, pois ela passou a ser frequentadora assídua da casa, e eu voltei a dormir na casa dela alguns finais de semana.

Tudo ia bem. Mas quando tudo vai bem, é porque geralmente há um período de preparação para algo muito ruim. Eu sabia disso, e estava muito apreensiva. Foi quando tive um novo sonho com minha avó, anos depois do último.

Ela me olhava com os olhos muito tristes, e me dizia que em breve perderíamos tia Samira. Eu já sabia daquilo, mas ouvir assim, tão diretamente, me assustou. E logo depois, o telefone tocou tarde da noite em uma sexta-feira. Estávamos todos na sala, assistindo a um filme. Geraldo atendeu, e depois falou alguma coisa baixinho no ouvido de Afonso, que segurando a mão de nossa mãe, levou-a até o aparelho. Eu e Sara nos entreolhamos, já sabendo do que estava acontecendo. Minha irmã segurou minha mão e começou a chorar baixinho.

No funeral de Tia Samira, pudemos rever nossos primos. Eles estavam  pálidos e calados, abraçados uns aos outros e sendo consolados pelo pai. Nós os abraçamos, desejando os pêsames, e fomos ver tia Samira pela última vez, na companhia de Afonso. 

Minha mãe pousou os olhos sobre o rosto branco, e disse baixinho, colocando uma mão sobre as mãos de nossa tia:

-Eu te perdoo, irmã. Por tudo.

Ver tia Samira morta foi muito chocante para Sara, que nunca tinha comparecido a um velório antes. Acho que a morte de papai também voltou com força total para ela naquele momento, pois voltou para mim. Nós pensamos que estamos preparados para certas coisas, mas nunca estamos. 

Abraçamos nossos primos novamente. Ficamos os quatro juntos lá fora, aguardando o momento de fecharem o caixão. Eles não queriam estar presentes quando acontecesse. Havia um bonito jardim na casa funerária, e ao olhar para cima, vi uma pequena fadinha sentada em um galho de árvore, e fiquei surpresa, pois pensei que nunca mais as avistaria depois que nos mudáramos. A fada parecia triste. Nos olhava curiosa, as sobrancelhinhas caídas, abraçando os joelhos. Sorri para ela discretamente, ela me sorriu de volta, desaparecendo.

Eu não sabia o que dizer para meus primos, então não disse nada, apenas os escutei quando eles falaram sobre a mãe, trazendo de volta velhas lembranças. Em certo momento, Joana disse:

-Depois que nossa mãe e a de vocês brigaram, nossa mãe ficou extremamente triste, deprimida mesmo. Passou vários dias quase sem comer ou dormir, e papai precisou interná-la em uma clínica durante algum tempo.

-Nós nunca ficamos sabendo disso, Joana! Sinto muito – eu disse. Ela concordou com a cabeça.

-Nós sabemos. Ela pediu que não dissesse nada a vocês. Mas ela nunca mais foi a mesma, parece que... – ela parecia procurar as palavras, mas Décio completou a frase:

-Parecia que a alma dela tinha ido embora. Estava sempre apática, indiferente. Nunca mais tivemos nossa mãe de volta. A não ser no final. 

Gabriela apenas chorava, em silêncio.

Lamentei muito pelos meus primos, por todos nós. Quantas coisas deixáramos de partilhar devido a um erro que tia Samira cometera! Talvez, se ela não tivesse feito o que fez, não teria adoecido. Enquanto eu pensava naquilo, Sara colocou minhas exatas palavras na conversa:

-Uma pena que tudo aconteceu desse jeito, não é? Se ela não tivesse feito o que fez, talvez nem tivesse adoecido e morrido.

Meus olhos se arregalaram:

-Sara, pelo amor de Deus... (e me virando para meus primos): não liguem, ela não sabe o que está dizendo.

Décio nos acalmou:

-Deixa, prima... ela tem razão. Nossa mãe errou muito. Ela nos contou toda a verdade quando começou a adoecer. Sabemos de tudo. Sabemos que ela foi apaixonada pelo tio Pedro. Ela nos contou tudo.

Balancei a cabeça:

-Nem sei o que dizer... eu só sinto muito.

Joana começou a chorar, e eu a abracei. Ficamos ali, naquele lindo jardim, sentados naquele banquinho de madeira até a hora do funeral, quando nos levantamos e seguimos o cortejo a pé. Afonso foi sempre muito presente e compreensivo. Acho que se não fosse pelo total apoio dele, as coisas teriam sido muito mais difíceis para a nossa mãe. Achei que tivéramos muita sorte em encontrá-lo.

Quando tudo acabou, ele chegou junto aos meus primos e tio, e cumprimentou-os mais uma vez, dizendo:

-Sinto tê-los conhecido nessas circunstâncias. Vocês são sempre bem-vindos à nossa casa, a qualquer momento.  Gostaríamos muito que voltassem a participar da família, na qual eu agora me incluo. Seria um grande prazer recebê-los. 

Meus primos agradeceram polidamente, e tio Helvécio apertou a mão de Afonso. Antes de ir embora, ele disse, se dirigindo a todos nós – principalmente à mamãe:

-Nós estamos de mudança. As crianças estão morando com minha irmã, e eu aluguei uma casa para nós lá. Acho melhor, até que as crianças se formem. Ficar naquela casa seria muito difícil para todos nós.

Sara concluiu:

-Então... pode ser que fiquemos novamente muito tempo sem nos encontrarmos, não é?

Tio Helvécio concordou com a cabeça.

-Mas vocês todos serão também sempre bem-vindos por lá. Eu telefono para mandar o endereço. 

Porém, apesar de tantas promessas, passaram-se muitos anos antes que nós pudéssemos nos reencontrar.


(Continua...)






A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...