sexta-feira, 28 de outubro de 2022

A VISITA DO AVÔ - conto curto


A tarde tinha sido quente, e o sol se punha entre as cores fortes do horizonte, o canto insistente das cigarras  e os piados dos sabiás se recolhendo para dormir. Georgia brincava nos degraus que de sua casa que davam para a cozinha, alheia ao canto modorrento das cigarras e a tudo o mais que acontecia em volta dela. Sua mãe estava no banho.

Rapidamente, a noite tomava o espaço. Georgia ergueu a cabeça ao ouvir ruídos de passos vindos da lateral da casa, e ao ver o avô, que parou junto à parede e abriu os braços, ela correu na direção dele, largando sua boneca nova sobre o degrau. O avô enfiou a mão no bolso do paletó, e retirou-a cheia de balas que a menina recolheu na saia do vestido, indo depositá-las na mesa da cozinha enquanto o avô a seguia. 

No fogão, a panela de pressão chiava no fogo baixo. O avô depositou sobre a mesa um pacote, onde havia um doce de leite que era metade de chocolate, geleia marmorizada e algumas maçãs perfumadas. Georgia estava feliz ao ver o avô, que não aparecia muito, pois morava longe. Ao mesmo tempo, ela sabia que alguma coisa estava errada, embora não soubesse dizer o quê.

O avô e a menina conversaram durante algum tempo. Ele perguntou sobre as coisas da escola, e ela mostrou a ele a sua boneca nova, sentando nos joelhos do avô. A conversa ia bem, enquanto  lá fora o canto dos sabiás e cigarras tinha sido substituído pelo cricrilar dos grilos. Dentro da  casa só havia luz, mas a porta da cozinha que dava para o quintal dos fundos estava aberta, mostrando a escuridão intensa e aveludada que se acumulara. 

Georgia percebeu que, aos poucos, a escuridão se aproximava dos degraus, subindo um a um. Ela se sentia segura na presença do avô, entretanto. Mas de repente, ele ficou sério, dizendo:

-Georgia, minha querida, eu não posso ficar muito tempo. 

Ela não entendeu nada, pois a mãe sequer tinha terminado o banho, e ele nunca ia embora tão rápido. 

- O avô não vai dormir aqui hoje?

Ele sorriu tristemente, dizendo que não, e acrescentou:

- Só vim para me despedir de vez. Estive esse tempo todo olhando por vocês, mas agora eu preciso ir embora. 

Georgia sentiu que estava crescendo aos poucos no colo do avô, e foi sentar-se em uma cadeira que arrastou para ficar bem em frente a dele, de onde ela podia olhá-lo melhor. Ela só então notou que ele não parecia mais tão velho. O avô segurou as duas mãos da agora moça, dizendo:

-Antes de ir, preciso alertar a você: algo muito ruim está para acontecer no mundo. 

Georgia ficou confusa:

-Mas... eu e a mamãe ficaremos bem?

O avô olhou-a profundamente antes de responder:

- Não se preocupe, sua mãe já está comigo há alguns anos. Você não se lembra, Georgia?

E ela se lembrou. Não havia ninguém tomando banho, e nem poderia haver, pois sua mãe já estava morta há treze anos. 

Ao olhar novamente para o avô, percebeu que ele estava um pouco transparente em algumas partes, o que a deixou bastante desconfortável, pois lembrou-se que o avô morrera quando ela tinha oito anos de idade, há mais de vinte anos. Ele ainda pôde dizer:

- Pegue todo o dinheiro que você tiver, e compre comida e água. Compre enlatados, coisas que duram, pois estão chegando tempos em que será muito difícil comprar certas coisas. Compre velas, querosene, remédios, e consiga uma arma para se proteger. Avise ao seu marido. Considere plantar alguma coisa, você tem um quintal grande. 

E então Georgia se lembrou que era casada. 

Havia muitas perguntas que ela gostaria de fazer ao avô, mas não havia mais tempo.

A escuridão começou a entrar pela porta da cozinha cada vez mais rápido. Ela pensou em fechar a porta, mas estava paralisada. Fechou os olhos por um curto espaço de tempo, e ao abri-los novamente, o avô tinha desaparecido e ela estava completamente cercada pela escuridão, que acariciava sua pele de maneira mórbida e com dedos extremamente gelados e ásperos. 

Georgia despertou no sofá da sala de seu apartamento, o coração disparado. Lá fora, os sabiás e cigarras cantavam. 

Sobre a mesa, havia algumas balas iguais às que seu avô costumava levar para ela quando a visitava.







quinta-feira, 11 de agosto de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - parte 12 FINAL


 



PARTE 12


Joana – a essa altura não consigo mais chamá-la de minha avó – está à porta quando a abro. Ela parece constrangida, carregando uma bandeja com café e croissants como se fosse a empregada da casa. Saio do caminho, e ela deposita a bandeja sobre a cama, mas eu não estou com fome, e me sento à penteadeira, fingindo observar alguma coisa invisível na minha pele. Tenho consciência dos meus pijamas surrados, humilhados diante da roupa impecável que ela está usando às quase dez horas da manhã: blusa de seda rosa- pálida e saias plissadas cor de creme, que caem sem nenhuma protuberância sobre suas pernas, a barra da saia criando uma roda esvoaçante em volta dela quando ela se mexe. Ela diz:

- Quero que você saiba que para mim não mudou nada. Você continua sendo minha neta. E quero manter esse laço com você, agora que nada mais nos impede.

Eu respiro fundo, me virando para ela:

- Para mim mudou tudo, Joana. Descobri que minha mãe nunca foi minha mãe, e que todo mundo mentiu para mim desde a primeira vez que colocaram os olhos sobre a minha cara. E quem poderia ter desfeito essa mentira, apenas a sustentou. Imagine só descobrir que você não é você!

-Não é assim, Valentina. É certo que algumas verdades importantes foram escondidas, e eu jamais compactuei com isso. Paguei o preço por querer dizer a verdade, e o preço foi não poder estar mais próxima a você. Porém, sua mãe... ela fez o que pensou ser melhor para você. E seu pai... bem, não creio que ele tinha realmente muita consciência do que fazia. Sempre foi um egoísta... 

Ela percebe que está indo longe demais:

-Me desculpe, eu não queria falar mal dele.

-Pode falar, já não faz mais diferença nenhuma para mim.

Eu estou quebrada, magoada e  me sentindo um peixe fora d’água dentro da minha própria vida. Meu futuro é uma incógnita. Digo isso em voz alta.

-Meu futuro é uma incógnita, e não vejo nenhuma possibilidade de...

Não consigo completar a frase, pois um nó se forma na minha garganta. E ele dói com força. Ela então me diz algo que me faz despertar de uma forma que eu nunca tinha despertado antes.

-Valentina, não saber o que fazer do futuro tem um lado bom: você pode fazer qualquer coisa, você tem toda a sua vida para escolher o que fazer. Você tem todas – absolutamente todas – as possibilidades diante e você, e se você deixar, eu vou estar por perto para garantir que você possa fazer o que quiser. Terá todo o meu suporte financeiro, apoio emocional, amizade e... amor.

Uma luz se acende em mim. Ela tem toda razão, e percebo que tenho duas escolhas diante de mim: viver sendo amarga o resto da vida, presa ao passado e ao que as pessoas me fizeram, ou então me abrir para a vida, aceitando o apoio e o amor que ela me oferecia. Olho para aquela mulher bela e estranha que tem os olhos marejados e de repente sinto uma fome enorme, e me sento diante da bandeja do café da manhã de pernas cruzadas:

-Em primeiro lugar, vou começar comendo tudo isso aqui. Depois, se você puder, gostaria de conhecer Paris.

Ela sorri, e concordando com a  cabeça, me deixa sozinha.

E nós duas passamos o dia todo juntas, após nos despedirmos de meu avô, que fica muito feliz ao nos ver tão unidas. Ele parece melhor naquela manhã, e passamos algum tempo juntos, conversando e rindo. Descubro que meu avô é uma pessoa doce, acessível e também bondoso. Nada do que meu pai costumava dizer que ele era. Eu sei que o tempo de vida dele está terminando, e me sinto com sorte por conhecê-lo antes disso.

Eu e minha avó entramos em todas as lojinhas e butiques da Monstparnasse, e nos sentamos para almoçar na mesinha de um restaurante que fica na calçada. O motorista coloca as nossas compras no carro. Minha avó me diz que meus primos estão vindo para me conhecer. Logo estaremos todos juntos.

No final da tarde, ao chegar em casa cansada e feliz, verdadeiramente feliz pela primeira vez na vida, resolvo checar as mensagens do meu celular, que andou tocando o dia todo.  

Há duas mensagens de meus tios, as quais decido ignorar. Visualizo e não respondo, pois quero que eles saibam o quanto estou furiosa com eles. Percebo que, na verdade, eu sequer gosto muito deles. Sempre tive aquela tolerância velada em relação à minha tia, e uma certa indiferença beirando à antipatia em relação ao meu tio. E também sentia a mesma coisa vindo deles, talvez uma certa obrigação de tomar conta de mim. Existem pessoas nas nossas vidas que, apesar de as amarmos, não gostamos delas. 

E há uma mensagem gravada  de Jonathan.

“Oi, Valentina, espero que esteja tudo bem por aí. Então... a Pri infelizmente teve um aborto espontâneo, mas ela está bem. No fundo, achou que foi melhor assim, e eu... também... Desculpa estar te contando isso assim, mas... achei que você deveria saber. A gente vai sair do apartamento assim que conseguirmos um outro lugar. (aqui há uma longa pausa). Eu queria que você soubesse que eu sinto sua falta. Não amo mais a Pri. E nem quero ficar com ela. Nós dois concordamos nisso, o lance entre a gente acabou. E eu queria muito recomeçar a nossa história. (outra pausa). Ela está te mandando lembranças e agradecendo por tudo. Mas sabemos que não tem nada a ver ficarmos morando aqui. Bem, a gente ainda vai morar junto, mas só para dividir as despesas. Eu estou com saudades da gente, Valentina. Por favor, responda essa mensagem.”

Escuto a mensagem mais algumas vezes. Também sinto saudades de Jonathan, mas percebo de repente que alguma coisa importante que estava para nascer entre nós também foi abortada pela notícia da gravidez de Pri, e agora tinha sido enterrada. Ainda gosto dele, mas não da forma que eu pensava que poderia vir a gostar. Me sinto indecisa. Fico pensando se deveria voltar ao Brasil e nos dar uma nova chance. Mas acho que não. Como disse Joana – minha avó – eu tinha muita vida pela frente, e os caminhos todos abertos para tomar as decisões que eu quisesse, na hora que eu quisesse. Sem pressa, sem mentiras, sem pressões.

Meus primos chegam hoje à noite. Vou conhecer os filhos de minha prima. Vou saber, pela primeira vez, o que é ter uma família de verdade. Sem mentiras, sem subterfúgios. Acho que eu mereço essa chance de ser feliz e de mudar a minha vida.



FIM










segunda-feira, 1 de agosto de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 11


 PARTE 11


Estou diante da cama onde meu avô descansa. Ele se ajeita ao me ver, estendendo os braços para mim. Caminho hesitante na direção dele, e me sento na cama, deixando que ele segure as minhas mãos. Vejo bondade no seu rosto macilento e consumido pela doença. Olho os vidros de remédios na mesa de cabeceira, e a enfermeira que deixa o quarto discretamente a um sinal de Joanna. As duas cochicham no corredor, e quando minha avó entra no quarto, ela parece ter envelhecido alguns anos. 

Ele não fala nada sobre o meu passado, só me trata e me recebe como sua neta verdadeira. Não fala nada sobre meus pais, não me pergunta sobre nada, a não ser sobre o futuro, se eu preciso de alguma coisa, se eu sou feliz, se eu já decidi o que vou estudar, se eu vou continuar em Paris, morando com eles, ou se eu gostaria de ter meu próprio  apartamento. Tantas perguntas me deixam zonza, e prefiro tentar sorrir e me esgueirar delas. Dez minutos após a minha chegada, a enfermeira entra no quarto, administra mais medicamentos e ele adormece. Este é o contato face a face que tenho com aquele que pensei ser o  meu avô, após muitos anos. 

Na sala de estar, Joanna me deixa sozinha alguns momentos. Eu estou sentada em um sofá confortável, estilo bem antigo. O apartamento nem é tão grande quanto eu imaginava, mas é elegante e muito aconchegante. Há muitos objetos que parecem ser valiosos espalhados sobre os móveis. No centro de uma mesa de jacarandá, um vaso em estilo indiano que parece ser antigo muito caro. As sanefas sobre a s janelas são de  brocado e as cortinas têm tecidos esvoaçantes cor de creme. Há flores, flores naturais espalhadas pelo cômodo. De vez em quando, a enfermeira passa atrás de mim sem fazer barulho, a não ser pelas solas emborrachadas dos seus sapatos rangendo de leve. Existem três sacadas que dão para a rua na sala. Fico curiosa para ver a vista, mas não consigo me mover, de tão pouco à vontade que eu me sinto. Estou com fome. Uma senhora começa a por a mesa para o almoço. Mesa para dois. A enfermeira passa atrás de mim novamente e eu me viro para vê-la carregando um carrinho com um prato de sopa e um pouco de água em um copo alto. 

Joanna entra na sala, e murmura algo em francês. Depois me convida para ir até a mesa e me sentar, enquanto a criada nos serve fatias de pão, água, uma salada verde e vinho. Fico pensando se aquele seria o almoço. Comemos em silêncio, e assim que terminamos, nossos pratos são retirados e substituídos por outros, onde há um pequeno pedaço de carne assada perfumada, arroz e batatas cozidas. Eles comem muito pouco por aqui. Minha enorme fome, antes da doença de meu pai,  estava acostumada a pratos imensos de massas. Faço um esforço para não devorar tudo com apenas duas garfadas. Finalmente, somos servidas de frutas cortadas, queijo e um pudim que mais parece um mini pudim de casa de boneca. Meu estômago ronca alto, esperando pelo prato principal quando já estamos na sobremesa. Entendo o porquê de eles serem tão magros, mas me lembro que eu também sou. Também me lembro que no meu caso, a magreza não é hereditária, que desde a morte de meu pai, eu tinha perdido vários quilos. Joanna me observa, e sinto carinho no seu olhar. Ela às vezes me sorri, e falamos um pouco sobre a comida.

- Gostou da refeição? Está satisfeita?

Minto. Ainda poderia comer aquilo mais três vezes. Não comia nada desde que entrara no avião, na noite anterior, e já passavam de duas da tarde. Mesmo assim, eu sorrio e respondo:

-Sim. Obrigada.

Joanna sugere que eu vá para o “meu quarto” descansar um pouco após o almoço. Sinto que ela quer um pouco de privacidade, então me deixo conduzir até um pequeno e agradável  quarto, todo pitado de azul claro, onde as roupas de cama e as cortinas são cor de creme. Ao lado da cama, sobre o chão de madeira fosca, um criado mudo antigo onde descansa um pequeno abajur também antigo de cúpula de vidro. Sobre a colcha creme, algumas almofadas em tons pastel. Ao lado da cama, vejo a minha mala. Bem na frente do estreito corredor que divide a cama e a penteadeira, por cima desta, um espelho no qual me assusto com minhas olheiras cinzentas. De repente, todo o cansaço do mundo se abate sobre meus ombros, e eu sinto um enorme sono. Há um pequeno banheiro no quarto, com uma ducha. Tomo uma chuveirada quente e rápida antes de me deitar sob as cobertas e apagar completamente.

Não se foi devido ao efeito dos comprimidos que engoli para segurar a ansiedade (tomei mais um antes de deitar), só volto a despertar na manhã seguinte, com batidas à minha porta. 


(continua...)



Em breve, a parte 12. Estou sem tempo...














quarta-feira, 6 de julho de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 10


SEGUIR PARA TRÁS Parte 10


A viagem foi mais longa e mais solitária do que eu pensava que seria. Tomei remédio para ansiedade antes de embarcar, já que aquela seria minha primeira viagem internacional e sozinha. Meus tios me levaram ao aeroporto. Nos despedimos com abraços desajeitados, e eles me fizeram prometer que eu voltaria. Mas todos sabíamos que aquilo ainda não estava definido.

A tripulação foi muito gentil comigo quando repararam no quanto eu estava insegura. Uma das comissárias até conversou um pouco comigo, e quando pousamos, ela me deu algumas informações sobre como resgatar minha bagagem. Foi muito paciente e carinhosa. 

Segui os outros passageiros e esperei, como ela tinha me indicado, até que minhas malas passaram na esteira. Coloquei-as no carrinho, caminhei até a porta e lá estava minha avó me esperando.

Aquela mulher alta, de cabelos muito brancos elegantemente presos em um coque, é a minha avó. Ela me olha com seus olhos azuis (que nem são tão frios como sempre me diziam ser) e sorri. Vejo que ela está usando calças jeans estilo ‘flair’ e uma blusa branca de mangas longas muito chique, o tecido com caimento perfeito, um laço mole e branco escorregando do pescoço até o meio dos seios. Ela é tão bonita! Imediatamente, eu me lembro de minha mãe e do quanto ela era comum, sem atrativos especiais. Mas logo percebo alguns traços dela no rosto de minha avó. Aquilo me traz lágrimas aos olhos inesperadamente, e eu praguejo baixinho. Seco-as com as costas da mão enquanto caminho na direção dela, tentando parecer segura. Reparo no homem alto e forte, aparentando uns cinquenta anos ao lado dela; o motorista, suponho.

Já não nos vemos há muitos anos. Só conseguia me lembrar do rosto dela ao olhar as fotos. Ela agora parece bem mais velha, mas igualmente bela. Quando chego mais perto, ela me segura pelas mãos e me olha da cabeça aos pés; nos abraçamos, e sinto que o abraço dela é caloroso. Ela diz: “Seja bem-vinda!” enquanto faz sinal ao homem, que pega o carrinho com as minhas malas. Nós o seguimos até o carro, um sedan cuja marca desconheço, mas que é de um azul profundo e parece luxuoso. 

Paris nem é tão bonita assim. Parece uma cidade que já teve seus tempos áureos, mas que agora está um pouco suja. Vejo muita gente pelas ruas – imigrantes, conforme minha avó explica. Mas a Torre Eiffel é implacável, e não consigo segurar um “Uau” de admiração ao vê-la pela janela do carro. Minha avó comenta:

- Paris já foi bem melhor. Se quiser, podemos visitar a torre, mas hoje em dia está até um pouco perigoso, por causa de assaltos. Mas com certeza sua prima ficará muito feliz em levar você. 

-Olho para ela:

-Minha prima? A filha de Tia Agnes, irmã de mamãe?

Ela sorri:

-Claro! Quem mais? 

-Ela está aqui?

- Sim. Vai ficar algumas semanas. Quer conhecer você. 

- Mas... eu não falo francês!

-Não se preocupe. Georgette fala português fluentemente. Já morou e estudou em Portugal durante seis anos. Fez amigos por lá, e de vez em quando, passa algum tempo em Cintra. 

-E meu primo? Ele está aqui também?

- Rodolpho? Não, está morando em Londres. Estuda e trabalha por lá. Mora em uma república, imagine! Poderia ter seu próprio apartamento, mas acha mais divertido assim.

- E quanto ao Tio Charles?

Minha avó balança a cabeça levemente:

-Ele e sua tia se separaram há mais ou menos um ano. Ele vive longe daqui. Tem outra família. A mulher dele tem quase a metade da idade de Agnes, e eles tiveram um bebê recentemente.

Meu estômago dá voltas; ela estava me falando sobre a minha família, e eu teria que conhecê-los um dia. Sei que Tia Agnes é muito sofisticada (conforme meu pai vivia repetindo, ele a chamava de “Aquela metida da sua tia”, embora só tivessem se encontrado duas ou três vezes). E quanto a Georgette, eu não sei nada sobre ela. Só tinha visto uma foto que encontrei entre as coisas dele, depois que ele morreu. Na foto, ela é só uma criança, uma menina bonitinha de cabelos ruivos cacheados. Pergunto sobre meu avô, e ela diz:

- Ele está melhor, por enquanto, mas não sabemos como estará amanhã. A doença dele (o rosto dela se entristece) é um pouco grave, e com a idade...

- Olho para sua pele bem cuidada; sei que minha avó tem algo entre setenta e setenta e cinco anos, embora não aparente, mas que meu avô é bem mais velho que ela. Ela me sorri:

-Mas vamos falar de coisas boas. Como você tem se saído, agora que está vivendo sozinha?

Eu me espanto com a pergunta, pois sei que ela não deseja realmente escutar a história de minha vida desde que meu pai morreu. Por isso, demoro a responder, procurando as palavras certas. Mas acabo dizendo a pior coisa que eu poderia ter dito:

- Escute, vovó...

Ela me interrompe, rindo:

- Me chame de Joana, por favor. Meus netos não me chamam de vovó.

- Ok, Joana. Sei que você e meu avô não gostavam de meu pai. Vim aqui em busca de respostas. 

Ela arregala os olhos, erguendo as sobrancelhas tingidas. Vejo seus lábios se trasformando em uma letra ‘o’, e depois voltando lentamente ao lugar. Surge na minha mente a ideia de que a minha vida não anda para frente, só pra trás. Quanto mais eu me lanço em direção ao futuro, mais a vida me puxa para o passado. Mas compreendo que para seguir em frente, a gente precisa resolver as pendengas do passado. Minha avó põe os óculos escuros, que a deixam com aparência fria e impessoal. Ela diz alguma coisa em francês ao motorista, que começa a retornar, mudando de direção – sei, pois coisas que já tinham aparecidao à janela voltam a aparecer. Penso se ela não vai me levar de volta ao aeroporto, quando ela diz:

-Que respostas você está buscando, Valentina?

Aquilo me pega de surpresa, e hesito ao responder:

-Por exemplo... hã... por que vocês odeiam meu pai? Por que minha mãe praticamente cortou laços com vocês? 

-Você tem certeza de quer mexer nesse ninho de abelhas? Não acha que a vida é bem melhor quando aceitamos as coisas como elas são? Você tem a sua história, e mesmo que seus pais estejam mortos,  você tem uma vida inteira pela frente, para escolher viver como quiser. Talvez muitas coisas mudem, e essa mudança não vai ser para melhor.

Agora eu estou realmente curiosa. Ela parece estar me provocando. O rosto dela é totalmente inexpressivo por trás dos óculos escuros. Ela fecha o vidro que separa os assentos da frente do carro e o nosso. Acho isso chique. Penso, ao mesmo tempo, que talvez meus tios tenham razão, e que ela me convidou apenas para destruir a imagem que eu guardo do meu pai – um tipo de vingança póstuma? Mas isso não faz sentido.

A Torre Eiffel enfeita novamente a paisagem. Olho para ela, e penso que seria muito fácil subir até o topo e me jogar lá de cima, acabando com todos os meus problemas. Enfio a mão no bolso do meu casaco, e tateio meus comprimidos para ansiedade. Eles me trazem algum tipo de segurança. Eu me sinto pequena perto de minha avó... de Joanna. Ela me olha longamente, as mãos no colo, apertando os próprios dedos nervosamente, mas tentando aparentar frieza. Sinto que ela faz um esforço grande para não desmoronar emocionalmente. Joanna diz:

- Antes de qualquer coisa, quero que você saiba que não ter tido muito contato com você enquanto você crescia não tem nada a ver com falta de... amor da nossa parte. Fizemos de tudo, fizemos o possível para que você fosse parte da família, mas seus pais... minha filha... sua mãe, principalmente, não permitiu. No fim, acabamos desistindo de vez. 

-Por que foi assim? Por que minha mãe não ia querer que eu tivesse contato com vocês? Com os meus avós, tios e primos?

-Exatamente porque ela não queria que você descobrisse a verdade sobre ... 

Ela faz um gesto de negação com a cabeça. Retira os óculos escuros, me olha nos olhos, e eu vejo que eles estão úmidos. Ela os aperta com as pontas dos dedos. Eu espero. Pacientemente, em silêncio. Sinto que a minha vida vai mudar radicalmente, mais uma vez, a partir dali. Tenho vontade de pedir que ela pare o carro, e sair correndo de volta ao Brasil. Mas eu me seguro. E ela se solta, as palavras saindo de dentro de sua boca como uma forte enxurrada de águas há muito tempo represadas.

-Você... não é filha de minha filha Bia. Sua mãe se chamava... Fernanda.

Minha cabeça dá um nó. Fernanda, a primeira esposa de meu pai, era minha verdadeira mãe? Mas como? Tento manter a calma, Meus dedos abrem o envelope do remédio, dentro do bolso, e rapidamente levo um comprimido à boca, engolindo-o sem água, como já estou tão acostumada a fazer. Joanna (não posso mais chamá-la de minha avó) acompanha meu gesto, mas não diz nada. Ela continua:

-Você já escutou esse nome antes?

A percepção de que eu estou em um país estrangeiro, com uma pessoa que não é nada minha, me atinge como uma bala de revólver, e me sinto extremamente só. Sem querer, caio em um choro convulsivo. De pena de mim mesma. De ter sido tão enganada a  minha vida inteira, pelos meus pais, tios, pessoas que eu pensava serem a minha família...

Minha vó me passa uma caixa de  lenços de papel, mas antes, tira um para si mesma. Ficamos as duas chorando, sem nos olharmos, durante alguns minutos. Consigo dizer:

- E sei quem é Fernanda. Minha tia Atena, ela me contou que... Fernanda tinha sido a primeira esposa de meu pai.

Ela concorda com a  cabeça. Diz:

- Ela foi a primeira esposa de seu pai, e estava casada com ele quando ele e Bia se conheceram. Ela engravidou, morreu no seu parto, e seu pai e minha filha... tomaram você como filha natural deles. Seu pai tinha um amigo no cartório que fez a papelada toda. No início, eu e meu marido não concordamos, mas quando a vimos... tão pequena, inocente... nós a amamos no primeiro momento, e estávamos dispostos a fazer tudo por você, Valentina, mas queríamos que você soubesse da verdade. Não queríamos que você crescesse sem conhecer sua verdadeira história. Mas Bia foi contra. E seu pai também. Queriam que você acreditasse que era realmente filha de sua mãe. Por eles, você nem ficaria sabendo que Fernanda um dia existira. 

Minha cabeça começa a doer, mas eu sei que assim que o remédio surtir efeito, a dor passará e eu mergulharei em um confortável estado de semi-torpor. Eu não sei o que fazer com toda essa informação. Joanna continua, escolhendo as palavras agora com cuidado:

- Para nós, você é da nossa família, é a criança que Bia amou e cuidou, e que nós aprendemos a amar também, apesar da distância. 

Me lembro das poucas vezes que eles tinham me visitado, e do quanto tinham sido carinhosos comigo. Também das raras vezes em que nos falamos ao telefone ou através de aplicativo, e do quanto minha mãe sempre permanecia ao lado, monitorando a nossa conversa o tempo todo e decidindo quando ela terminaria. Depois, com meu pai, foi ainda mais difícil manter contato com eles. Ele dizia coisas terríveis sobre a família de minha mãe. Algumas daquelas coisas tinham influenciado a minha opinião sobre eles, de forma que não fiz mais questão de manter contato. 

Me lembro também de que ao arrumar o armário de meu pai, depois de sua morte, eu tinha queimado a única fotografia que eu poderia ter de minha mãe. E se a família dela perseguiu meu pai durante tanto tempo após a morte dela, por que haviam desistido de repente?

Pergunto aquilo à minha avó:

-Onde estão meus verdadeiros avós?

Vejo que ela se sente ferida com o que acabo de dizer, mas não saberia perguntar de outra forma. Ela responde:

- Sinto muito, Valentina, mas ambos já são falecidos. 

-E quanto aos meus tios, primos?...

-Fernanda era filha única. – Ela coloca uma mão sobre as minhas, que estão no meu colo: - Sinto muito.

Eu sinto aquele contato me incomodando, e retiro as minhas mãos de sob as dela. Não entendo o motivo, já que ela foi a única pessoa que me contou a verdade. Peço a  ela que me leve de volta ao aeroporto, mas ela me rebate:

-Por favor, Valentina, você está aqui, passe alguns dias conosco ao menos... nos dê uma chance de nos fazermos conhecer por você. Para nós, você é a nossa neta! Amamos você tanto quanto amamos nossa outra neta. Muitas vezes, a família da gente pode ser definida por outros laços que não os de sangue.

Odeio o que meu pai me fez, e esse ódio começa a ser algo pessoal. Ele mentiu sobre mim, sobre a minha identidade e a minha história; traiu  minha mãe verdadeira, e depois, a mãe que me criou. Envolveu a todos nessa mentira horrorosa e fez o que podia para que eu jamais soubesse da verdade, mesmo após a sua morte. Com a anuência e ajuda dos meus tios. Sinto que a vida que vivi até agora nunca foi minha.


(CONTINUA...)






segunda-feira, 27 de junho de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 9





 Parte 9

Minha conversa com Jonathan não foi nada fácil. Eu descobri que estava mais apaixonada por ele do que eu pensava, e deixá-lo para que se case com outra não estava nos meus planos. Mas a gente não pode planejar tudo. Eu realmente acreditava que tinha resolvido as coisas, mas dois dias depois que a Priscila me visitou, ele socou minha porta de manhã.

Estou tomando café da manhã na cozinha, ainda de pijamas, meio descabelada, e sei que é ele à porta. Respiro fundo antes de abrir, tentando controlar a minha ansiedade que de repente sobe dos meus pés até o topo da cabeça, me deixando trêmula. Os olhos dele estão rodeados por um par de olheiras escuras, e também estão bem vermelhos. Olho para ele à porta, os cabelos úmidos da chuva fina que cai naquela manhã de domingo. Faço sinal para ele entrar.

Ele me segura pelos ombros:

-Eu não posso deixar você, Valentina, eu estou completamente apaixonado! Não faça isso com a gente...

- Minha voz sai tão embargada quanto a dele:

- Não tem jeito, o que a gente pode fazer? Ela tá grávida, Jonathan! 

- Isso é terrível... eu não estou pronto para ser pai de ninguém... eu sequer tenho onde cair morto, ou onde morar com ela... ela não é a mulher que eu amo. Eu não quero isso para a minha vida, Valentina. Não quero ficar ligado a ela dessa maneira. Você não pode me obrigar a isso.

- Mas o que você quer fazer? Se você é o pai dessa criança... não vejo como... 

Eu me jogo no sofá, totalmente esgotada. Minhas mãos tremem. Ele se joga do meu lado, e segura a minha mão com a mão gelada dele. Ambos estamos chorando. No fundo, somos duas crianças perdidas. Chego à conclusão de que a gente precisa de ajuda. Digo aquilo a ele bem devagar.

-Acho que a gente precisa de ajuda, Jonathan. E se vocês contassem para o pessoal da Instituição?

Ele nega com a cabeça:

- É uma saída... mas a Priscila não quer. Sabe que eles vão fazer de tudo para colocar a criança para adoção, ou então vão movê-la para outro tipo de instituição onde ela vai poder ficar com o bebê. Bem, ela cresceu lá, não queria sair. Sem contar com o fato de que eles vão me demitir, pois já sou de maior, e eu vou perder o emprego e o quarto. 

- Mas nem tudo o que se quer, se pode. Vocês precisam achar uma solução então, já que você não quer casar com ela. Ela tem que ceder de algum lado. Ou então... eu posso falar com meus tios. Eles poderiam ter uma solução.

Ele levanta do sofá, as mãos na cabeça:

-O que? Não! Eu nem conheço eles. São dois estranhos para mim. E eu vi a maneira como seu tio me olhou naquele dia que passou de carro e viu a gente na varanda.

Ele se acalma, sentando-se ao meu lado de novo:

-E tem mais, Valentina: eu jamais aceitaria que você abrisse mão do seu aluguel para ceder o apartamento para a gente. Isso é absurdo. 

-Mas... e se fosse só para ela, então? Eu não cobro nada pelo aluguel, ela pode ficar enquanto precisar.

Ele tentou sorrir:

-Você é uma pessoa muito incrível. Mas olha... a gente se conhece há pouco tempo, nossas realidades são diferentes. A gente começou a vida de maneira diferente. Você não tem nada a ver com os nossos problemas, na verdade. Valentina, eu juro que jamais queria ser um problema pra você... mais uma tristeza na sua vida.

Ignoro a última frase dele.

- Mas eu posso ajudar. A única maneira que eu sei ajudar é essa. Vocês se mudam para o apartamento, você arranja um emprego, sustenta seu filho.

Ele tem um sobressalto:

-“Meu filho...” Isso é tão ... estranho.

Sinto vontade de abraçá-lo, mas isso só vai complicar as coisas. Na verdade, eu não queria estar na pele dele. Ou na dela. Eu continuo, com a frieza e praticidade que adquiri de meu pai:

- Você não precisa se casar com ela. Com o tempo, as coisas se ajeitam... vocês podem morar juntos no começo. Depois, você trabalha e pode pagar um lugar pra você ficar.

Ele não responde.

-As coisas às vezes parecem horríveis no início, mas com o tempo, tudo se ajeita – eu digo. Sei que você está desesperado agora, mas... um filho é um filho... não se joga fora.

Ele me olha de um jeito que eu sei exatamente o que ele está pensando, mas tento ignorar meus próprios instintos: por ele, Priscila faria um aborto e acabaria com todo esse problema. E todos viveriam felizes para sempre? Eu duvido. Não viveríamos felizes. 

Ele me olha, e seu olhar vai se modificando, e de repente, sinto que tudo o que mais o preocupa somos nós dois. Este é o problema. É isso que está impedindo que ele faça o que é certo. Eu me levanto e vou até a gaveta da cabeceira, onde pego as chaves do apartamento na gaveta da cômoda. Hesito, sem saber se estou fazendo a coisa certa. Cada passo que eu dou é dolorido, pois eu sei que estou me despedindo dele. Mas eu sou jovem. Ainda amarei outra pessoa. 

Chego na sala, onde o encontro sentado no mesmo lugar, olhando para o chão. Estico as chaves para ele. Ele as olha. Digo:

-Essas são as chaves do apartamento. Não renovarei o contrato, já avisei aos locatários. Ele está mobiliado. Acredito que estará livre daqui a um ou dois meses. Tudo o que vocês precisam fazer, é esconder que a Priscila está grávida até lá. Ele é pequeno, mas dá para começar. O aluguel nem é minha principal renda. Acredite, não preciso dele. Minha mãe me deixou uma boa grana, meu pai me deixou esta casa e um pouco de dinheiro; tenho outras formas de renda.

Ele começa a chorar muito. Balanço as chaves diante dele, minha voz se eleva:

-Pega logo, Jonathan! Não torne tudo ainda mais difícil. E olha... neste envelope tem grana. Leve a Priscila ao médico. É meu ginecologista pessoal, ele vai indicar um bom obstetra.

-Eu me sinto... humilhado.

-Não é hora para ter orgulho. Uma criança depende de vocês.

- Mas e nós, Valentina?

-Não tem mais “nós.”

Tento fazer a minha voz soar dura, mas ela se quebra no meio da frase. Ele me abraça forte de repente, e eu me deixo ficar de olhos fechados nos braços dele. 

E então estão acabadas as tardes passeando com ele. As tardes sob as cobertas assistindo filmes, as voltas no caminhão da Instituição. Fim das tentativas tão árduas de controlarmos a nossa libido, os nossos instintos. Não mais carinhos, não mais o cheiro dele, a batida na porta que me elevava o espírito. Solidão de novo. A mais pura, intensa, imensa solidão. Eu estou voltando. Estou seguindo para trás.

Dezesseis dias depois, estou sentada diante dos meus tios. Sei que perdi peso de novo. Meus tios me olham, mas não fazem comentários sobre as roupas mais largas que o normal, embora me olhem com preocupação.

- E então, Tia Atena, é isso. Resolvi aceitar o convite da minha avó.

Meus tios estão me olhando, incrédulos. Estamos sentados na cozinha da casa deles, tomando uma xícara de chocolate quente. Tio Heitor parece indignado, mas quando ele vai abrir a boca, Tia Atena dá um chute nele por baixo da mesa. Eu sei, pois ela erra o chute e acaba me acertando.  Deixo escapar um “ai”, mas todo mundo entende tudo. Ele respira fundo e não diz nada, mas vejo o rosto dele ficando vermelho e sei que ele vai explodir a qualquer momento. Tia Atena diz:

-Mas... o que fez você mudar de ideia tão rápido? Você me disse que estava começando a namorar...

-É, mas não deu certo. E eu quero passar um tempo com meus avós, pois eles também são a minha família. 

Eu não quero contar a verdade toda porque sei que Tia Atena e Tio Heitor vão ser contra eu deixar o Jonathan e a Priscila morando lá. Mas o apartamento é meu, e eu faço o que quiser. O inquilino acabou vagando o apartamento mais cedo, e Priscila e Jonathan se mudaram para lá. Falei com eles por telefone. Nenhum dos dois pareciam estar felizes, mas pelo menos, estavam aliviados. Jonathan conseguiu um emprego de barman em um bar badalado da cidade, enquanto Priscila conseguiu um emprego online trabalhando de casa. A vida continuaria para todos nós. 

Mas estou diante dos meus tios agora, decidindo a minha vida; continuo:

-Não vou me mudar para lá, vou ficar apenas alguns dias ou semanas.

Tio Heitor explode finalmente:

-O suficiente para aquela ... aquela senhora encher sua cabeça contra o seu pai! Ela vai inventar uma porção de histórias horríveis sobre ele – ele berra.

Eu perco a compostura:

-E por que ela faria isso? Meu pai está morto, e minha mãe também. Ela não teria motivos. Eu não tenho nada a ver com essa história deles.

Tia Atena tenta acalmar os ânimos:

-Parem de gritar, ou então os vizinhos vão chamar a polícia... Heitor, ela tem direito a visitar os avós. 

Ele a fuzila com o olhar. Eu alinhavo tudo:

-Ela tem razão. Tenho o direito, e vou. De primeira classe. No próximo mês.

-Mas você ainda estará em período de aulas! – ele diz.

-Mas eu já passei de ano, tenho nota sobrando. Posso ir um mês mais cedo.

Tio Heitor bufa de indignação:

- Acho que seu pai cometeu um erro enorme emancipando você! Deveria tê-la deixado sob a nossa guarda!

Arregalo os olhos:

-Sério? Por que? Eu sei muito bem cuidar de mim! Meu pai fez um ótimo trabalho comigo, tio. Não precisam se preocupar. Não estou aqui pedindo permissão, tio, apenas comunicando minha decisão. Afinal, devo muito a vocês. (Abrando o tom de voz).

Tia Atena está coma cabeça apoiada na mão, cotovelo sobre a mesa, enquanto desenha círculos com o dedo no tampo de madeira. Sei que eu os estou decepcionando. Mas é a minha vida.

Mais tarde, nós jantamos juntos a macarronada quase fria e sem sabor da minha tia, que naquela noite estava ainda pior, e então, após ajudá-la a lavar os pratos, eu me despeço deles e vou embora para casa. 


(continua...)





segunda-feira, 13 de junho de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - PARTE 8


 Parte 8


Eu e Jonathan temos passeado muito por aí, à pé. Ele deixa o carro da instituição aqui em casa no meio da tarde e nós vamos andar. Não tem muitas casas onde moro, mas tem uma estrada linda, um parque que ninguém frequenta que fica a mais ou menos meia hora à pé daqui de casa (nem sei por que alguém construiu um parque onde não tem ninguém) e a gente gosta de sentar no banquinho velho de madeira, ou de nos balançarmos nos balanços enferrujados. Quando começa a escurecer, o céu fica lindo, em tons de laranja, e nós voltamos para casa. E quando chegamos em frente ao meu portão, já é noite. Ele entra no caminhão e vai embora. 

Eu entro em casa e vou fazer os deveres da escola, ou assistir a um filme. Raramente convido Jonathan para entrar durante a noite, pois tenho medo do que possa acontecer, da gente não conseguir resistir. Quando o convido, nós comemos alguma coisa e nos sentamos um pouco na varanda. Mas ele nunca demora muito, pois se descobrirem na instituição, que ele anda usando o carro para vir namorar, não vão mais deixá-lo usá-lo. A gente se vê duas ou três vezes na semana, e ficamos juntos por umas três horas, um pouco mais, um pouco menos.

Tio Heitor passou aqui ontem à noite de carro, justamente no momento em que eu e o Jonathan estávamos sentados de mãos dadas na varanda. Ele diminuiu a marcha, baixou a cabeça para me olhar, buzinou e acenou. Acenei de volta. Pensei que cedo ou tarde, tia Atena ia aparecer por aqui para indagar sobre o Jonathan. Mas o que eles tem com a minha vida? Sou emancipada. Dona do meu nariz. 

Bem, ela me liga na mesma noite:

- Oi, Valentina. Tudo bem? Só estou ligando porque fiquei preocupada... Heitor me disse que viu um rapaz na sua varanda.

Ela sempre vai direto ao assunto. Respondo:

- Ah, é o Jonathan. Um amigo. Na verdade, estamos namorando.

Escuto a respiração dela acelerar:

- Mesmo? Ahn... que bom, fico feliz que você ... mas...

- Pode ficar tranquila, Tia Atena, eu sei me cuidar. Por isso meu pai me emancipou antes de morrer. Porque ele sabia a filha que tinha.

Achei que dizendo aquilo, ela entenderia o recado, mas minha tia continua a falar:

- Claro, claro, mas... é seu primeiro namorado, e se quiser conversar sobre isso, é só me chamar. Você sabe, precisa ter cuidado.

- Ainda não transamos, se é o que você quer saber. Mas eu sei me cuidar, tenho aulas sobre isso na escola. E meu pai me deu muitos livros sobre o assunto. Não se preocupe, tia.

Silêncio por alguns segundos.

- Valentina... eu sinto como se você estivesse nos expulsando da sua vida. Cada vez nos vemos menos. E sempre que eu ligo, você se mostra tão escorregadia... quase hostil. Por que? Fiz alguma coisa errada?

Sinto pena dela, mas penso que eu também sento a mesma coisa a respeito deles. Eram casados há tanto tempo, e  como viviam sem filhos desde sempre,  acho que me afastar seria melhor para todos.

-Não, tia. É que eu tenho sentido vontade de ficar mais sozinha, seguir, aprender a viver. Mas eu sei que posso sempre contar com vocês. Amo vocês dois.

-Nós também a amamos, Valentina. E por favor, vê se aparece por aqui. Traga seu namorado.

-Ok. A gente liga para marcar alguma coisa. Beijos, tia.

Mas até hoje, tal visita não aconteceu. Porque outras coisas aconteceram.

Estou em casa, mais ou menos cinco dias após minha conversa com tia Atena. É bem cedo ainda, manhã de sexta-feira, e estou pronta para ir à escola. Estou terminando de tomar café quando a campainha toca. Vou atender a porta, achando que é Tia Atena, mas para minha surpresa, deparo com alguém que eu jamais esperaria ver na minha porta algum dia.

Priscila.

Ela me olha. Eu a olho. Ela realmente me olha, da cabeça aos pés, talvez fazendo as mesmas comparações que eu fiz ao ver a foto dela. Ela parece triste, pois com certeza, chegou às mesmas conclusões que eu. Sinto vergonha por ela estar se sentindo tão humilhada. Vejo que lágrimas chegam até a beirada dos olhos dela. Mas ela as segura firme. Sinto que ela está arrependida de ter vindo. Ela abre a boca, como se fosse dizer alguma coisa, mas de repente os lábios dela se curvam para baixo e ela vira as costas, começando a se afastar da casa. Sem pensar, bato a porta atrás de mim e saio atrás dela.

Ela chega ao ponto de ônibus, e se senta no banquinho de madeira, sem me olhar. Eu me sento ao lado dela, e de repente, pego em sua mão. Nós nos encaramos. Digo:

- Vamos lá para dentro conversar?

Ela concorda com a cabeça, e sei que ela está com aquele nó horrível na garganta, que vai fzer com que ela transborde se tentar falar. Mas eu a conduzo de volta até minha casa. Abro a porta, ela entra e para para olhar em volta. Acho que ela nunca entrou em uma casa de verdade. Ela diz:

-É bonito aqui...

Eu a puxo, fazendo-a sentar-se no sofá. Ela se senta, e percebo que ela dá uma mexidinha nos quadris, tentando adaptar-se à maciez do sofá. Percebo que eu gosto dela. E isso não é bom. Ela me olha, aceitando o copo de suco que eu estendo para ela. Bebe um gole, depois mais dois, depositando o copo sobre a mesinha de centro. Priscila é uma menina tímida, percebo que ela não sabe como começar a falar comigo. Vejo os olhos dela furtivamente pousando sobre quase tudo na casa. Coisas que ela nunca teve. Ela demora-se sobre a lareira. A TV de 50 polegadas. A estante cheia de livros. Minha casa é um pouco bagunçada, mas aconchegante. Noto que se eu não disser nada, poderemos ficar ali durante muito tempo, então eu arrisco:

- Meu nome é Valentina. Mas acho que você já sabe. Como encontrou minha casa?

Ela gagueja:

- Eu me escondi no caminhão um dia. Queria saber aonde o Jonathan estava indo. Quando terminamos, ele não me disse nada sobre outra garota, mas eu sabia. Queria saber quem ela era... quem você é. Mas ele só me disse que nosso namoro estava morno demais, e eu achava melhor ficarmos apenas amigos. Jurou para mim que você nem existia.

Ela riu, eu continuei muito séria. Respondi:

- Ele veio aqui um dia buscar as roupas do meu pai... ele morreu há alguns meses, sabe.

-Sinto muito por você.

Senti sinceridade nas palavras dela.

- Então... nós começamos a conversar, ele um dia me disse que tinha namorada. Eu disse que não me envolveria em um triângulo amoroso. Então ele saiu daqui feito uma bala, nem se despediu. Depois ele voltou, dizendo que tinha terminado tudo com a namorada. Eu não sabia nada sobre você... quero dizer, antes de eu... antes de eu me apaixonar por ele.

A cada palavra que eu dizia, embora tentasse ser cuidadosa, eu sabia que a fazia sofrer. Mas ela precisava saber. Ela estava ali para isso. Não queria mentiras, nem seria justo.

Ela respirou profundamente:

- Sua casa é linda. Deve ser legal morar aqui.

-É. Quero dizer, acho eu já me acostumei, mas penso em vendê-la um dia. É muito grande só para mim.

-Como você consegue ficar aqui sozinha? Não tem medo?

Essa foi a primeira vez que pensei que morar sozinha em uma casa afastada poderia ser perigoso. Encolhi os ombros:

-Não sei... simplesmente nunca pensei nisso. Mas talvez eu devesse, sei lá.

Ela concordou com a cabeça.

-Mas acredito que você não está aqui para falar da minha casa, né?

- Não. Na verdade... fiquei surpresa quando você me reconheceu. Não esperava por isso.

- Jonathan me mostrou uma foto sua uma vez. Eu pedi a ele. Queria saber como você é.

Ela olha para si mesma, instintivamente levando a mão ao rabo de cavalo para ajeitá-lo. Algumas mechas de cachos escapam do elástico.  Ela alisa as calças jeans. Ergue as duas mãos deixando as palmas para cima, em um gesto de impotência:

-Bem, eu sou assim, como você está vendo. Não sou bonita, não sou glamourosa, não me visto bem. Cada peça que você vê em meu corpo foi doada por outras pessoas. Todas as minhas roupas são de segunda mão. Até mesmo esse anel no meu dedo. Mas eu tinha Jonathan, então tudo fazia sentido para mim. Até você chegar na vida dele e virar tudo de cabeça para baixo.

Ela ergueu a voz um pouco na última frase, me fitando.

-Escute, se você veio aqui para fazer eu ficar com pena de você, isso não vai funcionar.  Pensei que você fosse melhor que isso. Afinal, ele falou muito bem de você. 

Ela riu, erguendo-se do sofá e caminhando até o outro lado da sala:

-Pena de mim? Não preciso da sua piedade, Valentina. Só queria que você me entendesse. E eu vim porque eu estava curiosa sobre você. E sabe, você é bem mais bonita do que eu, enfim, eu perdi pra você.

- Que eu saiba, não estamos em uma competição, Priscila. Eu não tirei o Jonathan de você, eu não teria entrado nessa história se...

-“Se” o que? Quando ele te disse que tinha namorada, você poderia ter dado um pé nele.

-Mas como, se ainda nem estávamos namorando? E eu disse para ele que não seria um terceiro elemento na vida de ninguém!

Ela dá uma gargalhada maldosa, e eu me sinto tão oprimida, que deixo a sala.

Estamos ambas gritando. Vou até a cozinha e pego um copo de água, bebendo tudo. Ela vai atrás de mim. Recosta-se no alpendre, de braços cruzados, me olhando. Diz:

-Desculpa, eu não queria parecer grosseira.

Concordo com a cabeça:

-Nem eu.

-Sabe, minha vida não é nada fácil, e agora então... eu vim aqui porque não tinha outra saída! Eu estou grávida, e não quero abandonar meu bebê como a minha mãe fez comigo! Eu só tenho 17 anos, porra! Se eles descobrirem que eu estou grávida, vão tomar meu bebê e dar para adoção! É isso que eles fazem lá na Instituição.

Meu coração parece inchar, obstruindo a minha fala. Sinto meu rosto enrubescer: então ela está grávida do Jonathan! Cada palavra dela é como um punhal na minha garganta. Porque eu estou irremediavelmente apaixonada por Jonathan.

Eu me apoio na parede para não desabar. Olho para ela, que tem os olhos vermelhos, e vejo as lágrimas rolando no rosto dela. Digo a primeira coisa imbecil que me passa pela cabeça:

-Há quanto tempo você está grávida?

- Quatro meses.

Instintivamente, olho para a barriga dela, disfarçada pelo blusão de lã bem largo, cujas mangas cobrem as mãos.

-Ele sabe?

- Não. Ainda não. 

- E por que você não contou ainda?

-Porque eu ... porque ele terminou comigo. Na verdade, eu não sei o que eu vou fazer da minha vida. Mas achei que eu precisava vir aqui e contar a você.

Pronuncio as palavras mais árduas que eu preciso pronunciar:

- Você quer que eu termine com ele?

Ela demora a responder.

-Eu não sei... não sei se adiantaria alguma coisa. Isso não faria o Jonathan se apaixonar por mim de novo. Mas acho que  se ele resolvesse assumir o filho até eu fazer 18 anos, pelo menos ele poderia me ajudar. Já tem 21 anos. É maior de idade. Pelo menos isso já me deixaria mais tranquila. Ao mesmo tempo, o Jonathan não tem nada, nem um lugar para morar com meu bebê. 

Ela se senta na cadeira, colocando os cotovelos sobre a mesa e a cabeça entre as mãos. Priscila é o retrato do desamparo, do puro desespero. Ela precisava de um rumo, de um apoio. A única coisa que eu não deveria ter dito sai da minha boca, em palavras desajeitadas:

-Já pensou em tirar?

Ela me encara:

-O que? Matar meu filho? Nunca! Seria prático para você, não?

Percebo a tolice do que eu acabo de dizer:

-Me desculpe, isso foi... estúpido da minha parte. Desculpe. Eu quero ajudar. Como posso ajudar?

Ela diz, enxugando o rosto com a manga da blusa:

-Eu vou contar ao Jonathan hoje mesmo. Daqui a pouco, a barriga vai aparecer. A gente precisa tomar uma decisão. Depois a gente volta a conversar, quero antes ver a reação dele.

- Você acha que eu devo terminar tudo com ele, não é? Isso facilitaria as coisas?

-Não vim aqui pedir isso. Só vim porque estava curiosa sobre você.

-Mas você não está sozinha, Priscila, eu quero ajudar. Olha... eu... meu pai me deixou um apartamento que está alugado. Não é grande, mas... o contrato vence daqui a dois meses. Eu posso deixar você morando lá.

Ela balança a cabeça:

-Mas eu sou de menor, não posso morar sozinha. A não ser que eu me casasse.

Eu entendo logo a lógica daquele drama. Eu tenho que abrir mão do Jonathan. Eu tenho que cortar pela raiz uma linda plantinha que já estava crescendo e se tornando uma linda planta tão verde e tão bonita.

-Eu sei que não.

Ela se aproxima de mim, mas eu me recuso a encará-la. Ambas estamos cheias de sentimentos confusos. Ela me diz:

- Vocês não precisam terminar. A gente se casa de mentirinha. 

-Mas você gosta dele.

- É verdade, eu gosto dele, mas do que adianta se ele não gosta mais de mim? Olha...  tudo isso que aconteceu não é culpa de ninguém, mas quem tem menos culpa disso tudo, é esse bebê que eu estou esperando.

Coisas práticas surgem em minha cabeça:

-Você já foi a um médico?

-Ainda não. Não tenho como ir sem que o pessoal da Instituição fique sabendo de tudo. 

-Ok, eu vou te levar no meu médico.

Vejo o pânico nos olhos dela.

-Não se preocupe, eu pago a consulta e os exames. E eu posso pagar. Vou ligar hoje mesmo para marcar uma consulta.

Ela hesita, e me olha desconfiada:

-Por que você faria tudo isso por mim?

Rebato:

-Por que não faria? Você está aqui, e precisa de ajuda. Ou é orgulhosa demais para colocar a vida do seu bebê em risco? Olha, Priscila, eu sou a única pessoa que pode te ajudar agora. Sejamos realistas, o Jonathan não tem um centavo no bolso. Ele me disse que o salário que ele recebe na instituição é bem baixo.

-Mas não é obrigação sua me ajudar.

Meus sentimentos estão misturados dentro de mim. Eu tenho pena dela, e a odeio ao mesmo tempo. Também odeio o Jonathan. Eu não queria estar envolvida em uma história como essa. Mas eu estou. Ela está aqui, na minha frente. Eu sou a única pessoa no mundo que pode ajudá-la. Na minha cabeça (meu pai sempre me ensinou a ser prática e a pensar rápido) eu já tenho tudo resolvido: eu vou pedir o apartamento quando o aluguel vencer, e o Jonathan se casará com ela, e os dois se mudarão para lá, e eu... eu vou para Paris. 



segunda-feira, 30 de maio de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 7





 Parte 7


Jonathan passa algumas horas na minha casa. Depois que termina o trabalho na instituição, por volta das quatro da tarde, pelo menos duas vezes por semana ele vem para cá. Estamos juntos há quase dois meses, e apesar disso, ainda não fizemos sexo, apesar dos carinhos e da vontade quando estamos juntos. Eu digo a ele que ainda não me sinto totalmente pronta, e ele respeita minha decisão. Ele sabe que eu ainda sou virgem.

Minha avó me telefonou, convidando-me para passar as próximas férias lá – garantiu a passagem na primeira classe, e me disse que a estadia seria em seu apartamento. Meu avô melhorou, segundo ela, mas a saúde dele ainda inspira cuidados. Ela soou um pouco triste ao telefone, e me disse que meu avô estava falando muito de mim ultimamente, e dizendo que gostaria de me ver de novo antes de morrer. Não sei se aquilo foi uma pequena chantagem emocional para me convencer a ir até lá. Mas depois que desligamos o telefone, fiquei pensando neles e nas poucas lembranças que tenho deles. Eram sempre atenciosos e muito legais comigo. Talvez eu aceite o convite, quem sabe. Mas ao mesmo tempo, eu não gostaria de me afastar agora, que Johnatan e eu começamos a nos relacionar. Bem, ainda faltam meses até as férias.

Tia Atena acha que eu não deveria ir, pois para ela, meus avós e eu somos praticamente estranhos, e ela teme que meus avós possam tentar destruir a imagem que tenho de meu pai. A imagem que tenho de meu pai... e que imagem seria essa?

Sinto a falta dele. Todos os dias, quando acordo, ainda preciso repetir para mim mesma que ele morreu, que eu estou sozinha. A realidade vai aos poucos se assentando conforme a manhã avança, enquanto me dirijo à escola, assisto aulas, converso com meus colegas. Aliás, existe um grupinho que gostaria de organizar uma festa aqui em casa (sem pais para atrapalhar, segundo eles). Mas eu não quero. Não vou deixar que me usem desse jeito. Sempre me trataram como se eu fosse Carrie, a Estranha, e agora precisam de um local para dar suas festinhas? Sou melhor que isso, e nem gosto de festas. Nunca gostei. Imagino meu pai, lá do outro lado, me vendo dar uma festa nesta casa! Com certeza, pensaria que eu estou sucumbindo a tudo contra o qual ele me ensinou a lutar toda a minha vida: a superficialidade, os amigos interesseiros supérfluos e sem conteúdo, a vida sem objetivos.

E eu passo meus dias dividida entre a escola, Johnatan, os cuidados com a casa, e livros e mais livros que Johnatan traz para mim. Será que arranjei um outro tutor?

Não sei nada sobre a vida dele fora daqui, a não ser o que ele me contou nos primeiros dias. Não faço perguntas. Nós conversamos sobre livros, filmes, filosofia, e às vezes, arriscamos falar sobre o futuro – mas tais momentos são breves e entrecortados de silêncio. Eu tenho um certo medo do futuro. Porque eu já senti o que ele pode estar preparando para nos surpreender ali na esquina da vida. Assim, tento viver a minha vida sem pensar muito. Johnatan acha a minha atitude um tanto pessimista e melancólica. Vive me dizendo que tive muita sorte em ter tido um pai e uma mãe, em ter avós que se preoupam comigo, e meus tios Atena e Heitor. Ele me faz ver que eu não sou tão sozinha assim. Me diz sempre que cresceu sem ter ideia sobre o que é ter uma família, pais que se preocupam, tios, avós, casa, lar. Desde bebê ele foi criado na instituição, ocupando o quarto com uma porção de outras crianças, fazendo suas refeições em refeitórios, sem ter roupas que fosse realmente suas, ou brinquedos que pertencessem apenas a ele (tudo é compartilhado entre todos) ou momentos de privacidade, pois até os banheiros são coletivos. Quando precisa ficar sozinho, ele vai para um banco de praça e se senta lá por algum tempo, ou então acorda bem cedo e vai dar uma volta à pé, ou então se levanta de madrugada e vai se sentar no pátio para ouvir música (ele coneguiu juntar dinheiro e comprar um celular). Fora isso, ele precisa trabalhar na instituição se quiser continuar tendo um lugar para viver. E obedecer ordens o tempo todo. Um dia, eu perguntei a ele:

- Quando a gente se conheceu, você me disse que era livre. Isso é ser livre?

Logo me arrependi do que disse, pois vi uma sombra passando sobre o rosto dele, enquanto seu olhar caiu no chão, bem junto aos próprios pés. Percebi que aquela história de “Não tenho nada, mas sou livre” era apenas alguma coisa que ele criou para tornar as coisas mais fáceis. Andei até ele e o abracei forte. Ele não respondeu, apenas me beijou.

Às vezes eu percebo uma tristeza dentro dele maior ainda que a minha, mas Jonathan nunca foi uma pessoa de reclamar das coisas. Ele se mostra sempre grato, se contentando com pouco. Uma vez perguntei se ele sentia falta da Pri. Ele me respondeu o seguinte:

- Eu a vejo todos os dias. Continuamos amigos. Mas embora eu a ame, o que eu sinto por ela mudou, virou alguma coisa de irmão para irmão. Acho que já estava assim há muito tempo, mas a gente não percebia. Precisou que você aparecesse na minha vida para eu perceber.

-E quanto a ela? Acha que ela está bem com isso tudo?

Ele encolheu os ombros:

-Não sei... penso que não, ainda não. Ela está tão acostumada com a gente, que de repente se sentiu sem chão. Pensa que ainda precisa de mim, do que a gente achava que tinha.

-Então ela está mal?

-Está. Mas vai superar. A Pri é jovem, bonita... logo vai aparecer outra pessoa.

Pensei que encontrar alguém legal vivendo em uma instituição para crianças e jovens abandonados ou sem lar não deveria ser muito fácil. Sinto pena dela. É como seu eu tivesse roubado alguma coisa muito preciosa de alguém que só tinha aquilo.

Uma vez pedi que Jonathan me mostrasse uma foto dela. Ele abriu uma no celular uma foto onde ela aparecia ao lado dele e de alguns outros jovens. Vi uma menina de estatura baixa, magrinha, olhos bondosos, sorriso tímido. Não uma linda garota, mas delicada, bonitinha. Priscila tem cabelos cacheados na altura dos ombros, castanho-claros, sem um corte moderno. Suas roupas simples e parecendo muito usadas não ajudam na sua aparência. Mentalmente, me vi fazendo comparações entre nós duas, e em todos os quesitos, eu venci: sou mais bonita, mais alta, me visto bem, tenho um corte de cabelo channel moderno e bonito, estudo em uma ótima escola, tenho dinheiro, tenho casa, tenho família, tenho todos os sonhos na palma da minha mão. E tenho Jonathan. 

Até hoje, embora só tenha visto a foto uma vez, me lembro muito de todos os detalhes. E me sinto mal quando penso nela. Ter conhecido o Jonathan me fez perceber o quanto eu tenho sorte, apesar de tudo. Não trocaria a minha vida com a deles de jeito nenhum. Eu tive e perdi meus pais, mas pelo menos, eu os tive. A maioria das crianças e adolescentes daquele lugar não fazem ideia do porquê estão lá, por que foram abandonados, quem são seus pais, onde estão suas famílias. 

Olho meus colegas da escola – todos pertencem a famílias senão ricas, pelo menos bem de vida. Todos têm os celulares da moda, usam roupas de marca, têm pais ou mães que os levam de carro para a escola, comem bem, não precisam se preocupar com o futuro. E vivem reclamando de tudo. Alguns tomam remédios para depressão (eu mesma já tomei) e não se dão bem com a família. Outros se drogam, bebem, são promíscuos, vão a festas e ficam com uma porção de gente em uma só noite. Suas mentes são completamente fodidas.

Jonathan me contou que na instituição também tem muitos jovens assim, que tomam remédios para depressão e ansiedade, que são agressivos, inacessíveis emocionalmente, e que reclamam de tudo. Alguns se drogam, mas se forem descobertos, sabem que serão imediatamente levados para uma unidade correcional. Não vão para nenhuma clínica de reabilitação luxuosa. 

Penso que de qualquer forma, a vida é a vida. A vida não poupa ninguém de nada.

 (Continua...)





quarta-feira, 18 de maio de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - PARTE 6


 



Parte 6


Nem sei como, mas eu me apaixonei pelo Jonathan. Ele acaba de sair da minha casa após ficar conversando comigo na varanda durante quinze minutos, e todo o meu corpo está formigando. Ele não sabe nada de mim, e eu não sei nada dele. Ele só sabe que meu pai morreu, mas sequer sabe que eu estou totalmente só, que não tenho mãe, que fui emancipada. Só falamos de coisas banais, como o quanto está frio, que ele não gosta de futebol, como a maioria dos meninos, mas que adora livros e filmes (a minha TV ainda estava ligada quando ele entrou na sala, e passava um filme) e eu disse a ele que meu autora favorita é Ali Shaw, e ele me responde que nunca tinha ouvido falar dela, então eu entro e pego o livro “A Garota dos Pés de Vidro” na estante e dou para ele. 

Quinze minutos depois, ele vai embora, levando as caixas cheias de roupas, sapatos e livros do meu pai. Promete voltar para me devolver o livro assim que terminar de ler. Penso: tomara que ele leia bem rápido. Ficamos tão envolvidos, que sequer nos lembramos de trocar nossos telefones.

Meus tios me ligam para saber como eu estou, e minha tia percebe que minha voz está melhor, como ela mesma diz. Me convidam para jantar, mas eu não quero, nem mesmo depois que ela diz que meu tio pode passar para me buscar de carro. Quero apenas ficar em casa, pensando em Jonathan. 

Mas os dias passam, um, dois, três, quatro... dez, vinte. Ele não volta. Minhas aulas recomeçam na escola, e chegar na escola e ter os olhos de todos os meus colegas voltados para mim, é constrangedor. Eles todos querem saber como é ser órfã de pai e mãe. A essa altura, descobriram que fui emancipada, e alguns deles me dizem que sentem inveja. Respondo que daria tudo para não ser emancipada e ainda ter meu pai sendo responsável por mim. Eles baixam a cabeça, constrangidos. Penso no quanto as pessoas dizem coisas idiotas tentado ser gentis. 

Penso também que aquele seria meu último ano na escola, e fico feliz. Porque com certeza, eu não sei como lidar com os outros jovens, sou a esquisita, a “misfit”, a “weirdo.” Alguns me olham como se quisessem me conhecer melhor. Os meninos me olham com olhos famintos, mas jamais tentam se aproximar, pois meus cortes são impiedosos. Nenhum deles me interessa, e também não quero saber sobre vestidos, sapatos, maquiagem, times de futebol e bandas de hip-hop. Parece que ninguém lê, ninguém sabe quem são Ali Shaw, Richard Bach, Fernanda Young. Inútil tentar conversar com eles.

Tia Atena e tio Heitor vêm aqui às vezes, mas suas visitas são cada vez mais raras e curtas, porque não temos assuntos a conversar. Eu não sinto falta deles, e nem eles de mim. Após um mês e meio da morte de meu pai, as visitas deles praticamente terminam, e eu dou graças a Deus por isso. De vez em quando, mandamos mensagens que respondemos com emoticons. Mas sei que elas logo também vão parar, pois já usamos quase todos eles. 

Minha rotina: acordar, tomar café, ir à escola, fazer os deveres de casa, preparar minhas refeições, limpar a mina d’água de vez em quando, cuidar da hortinha, pagar as contas da casa, ir ao banco, fazer algumas compras pela internet (detesto ir ao mercado), assistir filmes, limpar a casa uma vez por semana. O jardineiro vem três vezes ao mês. Mal conversamos, ele entra, faz seu trabalho, eu o pago e ele vai embora. Nem sei se ele sabe que meu pai morreu. Também assisto muitos filmes e leio, leio, leio. Sinto falta do meu pai, mas como ele mesmo previu, estou superando. Já não dói mais. De vez em quando, converso com ele. Conto sobre algum filme ou livro, ou sobre alguma idiotice dos colegas de escola. Quando estou na mina é quando me sinto mais perto dele. Parece que sinto ele me ensinando a cuidar dela. Mergulho minhas mãos na água gelada de olhos fechados, e escuto o riso dele.

Quase três meses após a primeira vez que nos vimos, Jonathan reaparece. É uma manhã de sábado, e ainda estou sonolenta quando a campainha toca, sem que eu sequer imagine que poderia ser ele. Tento ignorar, mas ele insiste. Quando finalmente abro a porta, ainda de pijama, e deparo com aqueles olhos intensos, desperto completamente. Ele me estende o livro. Eu mando ele entrar, e vou vestir alguma coisa melhor; escolho um par de jeans e uma camiseta preta novos. 

Nos sentamos diante um do outro, ele na poltrona, eu no sofá, as pernas cruzadas. 

-E então? Gostou do livro?

Ele demora um pouco a responder:

-É muito legal. Sabe, imaginei o que poderia estar transformando as pessoas em gelo... e pensei muito em você, Valentina. Você e a personagem principal parecem ter muito em comum.

Me surpreendo, interessada. Finalmente, alguém para realmente conversar! Me mexo na almofada, pronta para assumir uma posição confortável para que eu possa ficar sentada por horas.

-Mesmo? O que?

- Então... quando eu a vi pela primeira vez... não fique chateada, com isso, mas... pensei que você era uma pessoa fria. Até mesmo seu choro era contido, como se chorar fosse um sinal de fraqueza. Senti raiva no seu choro. Acho que você deveria ter cuidado com esse gelo nos seus pés.

Me sinto corar, e não respondo. Olho para a ponta dos meus pés descalços, me concentrando no esmalte vermelho das unhas. Ele está certo. Aprendi que chorar é sinal de fraqueza. Raramente choro. Olho para ele:

-Ok, ponto pra você. Agora me fale um pouco de você.

Ele parece confuso por um momento, como se estivesse escolhendo que tipo de informação quer me passar. Foi devagar:

- Hum... eu tenho vinte e um anos, trabalho e moro na instituição – fui criado lá – sou órfão, nunca conheci meus pais. Não fui para a faculdade porque não tenho grana. Aliás, eu não tenho nada. E mesmo assim, tenho tudo. Porque eu sou livre. Materialmente, tudo o que eu tenho, está em um quarto que mede 3 X 3. 

Fico chocada com a sinceridade dele. 

-Uau! 

-Uau! – ele repetiu. 

Nós rimos. Ele continua:

-Eu... namoro uma garota. O nome dela é Priscila, e ela também foi criada na instituição. Quando ela chegou lá, eu tinha cinco anos, e praticamente crescemos juntos.

Meu coração murcha, e eu engulo em seco. Tento não demonstrar a minha decepção, mas sinto que ele a percebe. Suspiro e dou um sorriso nada espontâneo:

-Bem, esta é a sua vida. Ela... a Priscila... você gosta muito dela?

Ele concorda com a cabeça:

-Muito. Mas... ah, deixa pra lá.

- Não, fala! Mas...?

Os olhos dele são tão bonitos, e se derramam tanto em cima de mim, que antes que ele diga alguma coisa, eu sei o que estava na cabeça dele: ele gosta de mim.

-Eu não consigo parar de pensar em você. 

-Ah, então foi por isso que demorou tanto a aparecer?

Falo aquilo em tom de brincadeira, mas ele concorda:

-Foi sim. Eu nunca questionei o que eu sinto pela Pri. Até ver você. Tive a impressão de que já nos conhecíamos antes. Sei lá. Foi.... esquisito.

- Uau... isso é muito estimulante. Saber que me conhecer foi esquisito pra você.

Ele ri, e eu também. Comento:

- Mas você tem uma namorada.

-Eu tenho uma namorada. E não costumo ser infiel, aliás, eu jamais fui infiel com ela.

Mudo o tom da conversa:

-Sabe... depois que meu pai morreu, descobri que ele e minha mãe se conheceram quando ele ainda era casado com outra mulher. Ela era meio-surtada, e quando ela descobriu sobre os dois, cometeu suicídio. Quando minha mãe ficou doente, ele teve um caso com outra mulher, bem durante a doença dela, quando ela mais precisou dele. O suicídio da primeira mulher de meu pai, de alguma forma, impediu que meus pais fossem realmente felizes. Eles brigavam muito, e embora se amassem, o que aconteceu sempre pairou sobre a vida deles.

Ele me ouve em silêncio, os olhos presos nos meus. Depois que eu falo, ele permanece quieto, mas os lábios dele se entreabrem, e ele fica vermelho. Está chocado com a minha história. Como ele é lindo! Eu continuo:

-Jamais serei como a minha mãe. Nunca vou construir a minha vida em cima da ruína de alguém. 

Naquele instante, ele se ergue feito uma bala e sai pela porta, batendo-a atrás de si. Eu não me levanto para segui-lo. 

Horas depois, enquanto eu termino de lavar a louça de um almoço que eu não consigo comer, a campainha toca de novo. Abro a porta, já sabendo que é ele, mas sem saber o que ele me diria:

- Eu terminei com a Pri. 

Dizendo aquilo, ele me beija. E quando ele me beija, todas as pontas da minha vida se ligam. Tenho uma sensação de força, alegria, uma certeza de que dali em diante, as coisas vão melhorar muito para mim, e que eu finalmente saberei o que realmente significa ser feliz.

E esse foi o dia em que Jonathan me beijou pela primeira vez.

(CONTINUA)





terça-feira, 3 de maio de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - PARTE 5



Parte 5


Aqui estou eu, sentada em minha sala de estar limpa e cheirosa sem saber o que fazer do resto do meu dia – ou da minha vida. Silêncio de uma manhã de sexta-feira. Meu pai foi enterrado ontem. Minha mãe morreu quando eu tinha sete anos. Nunca vejo meus avós. Minha mãe tinha sido amante de meu pai antes de se casar com ele. Fernanda, a ex-mulher de meu pai, se matou ao saber que minha mãe estava grávida de mim, o que, de certa forma, significa que eu tive alguma culpa nisso. Meu pai mentiu para mim a vida toda, dizendo que ele e mamãe eram um casal perfeito cujo amor transcendental superava a morte, enquanto escondia o fato de ter tido uma amante durante dois anos enquanto minha mãe estava doente.

Tenho 17 anos, e acho que é tarde demais para reconstruir minha relação com meus avós, pois eles já são bem idosos e não estão interessados em novidades em suas vidas. E se quisessem saber de mim, teriam tentado me visitar, teriam enfrentado meu pai. Mas quem sabe, a minha visão pudesse despertar neles algumas memórias de coisas que eles preferiam não lembrar? Eles tinham perdido uma filha. Perderam a filha duas vezes: quando ela saiu de casa para se casar com meu pai e depois que ela morreu. Lembro de meus avós me visitando quando eu era pequena, e são lembranças vagas, mas eu também me lembro que depois daquelas visitas sempre tão raras e breves, meu pai e minha mãe sempre brigavam, e meu pai nunca estava presente quando meus avós vinham. Minha mãe se afastou dos próprios pais por causa de meu pai. E se hoje meus avós e eu não temos nenhuma intimidade, é por causa dele.

Mas lá vou eu estabelecendo culpas de novo. Minha tia me pediu para não julgar o meu pai. Ela disse que ele cometeu erros, mas que me amava, e eu sinto que era verdade. É estranho que crescer signifique desconstruir a imagem que temos dos nossos pais. Eles são apenas pessoas comuns, que erram e falham, e dizem coisas absurdas, e fazem coisas bizarras. Não são os heróis que às vezes imaginamos.

Mas eu sinto falta do meu pai. Eu sinto falta dele, e me arrependo das vezes em que olhei ele desacordado na cama de hospital e desejei que ele morresse. Eu só estava cansada, exausta, para ser mais precisa, e os médicos diziam que ele não ia melhorar, só ia piorar cada vez mais, exatamente como a minha mãe. 

Eu tenho lembranças muito vagas da minha mãe. Nenhuma memória inteira, só pedaços enevoados de momentos. Temos alguns vídeos que meu pai fez de nós três juntos. Bia – minha mãe – era uma mulher um pouco acima do peso, de cabelos pretos e lisos cortados na altura dos ombros, grandes olhos castanho-claros, enfim, uma pessoa comum, diferente da imagem que minha tia Atena fizera de Fernanda. Mas quando ela sorri, seu riso se espalha em luz na tela do computador. Os olhos dela são expressivos e cheios de vida, principalmente quando ela me olha. Não me lembro da maioria daquelas cenas que ficaram gravadas, é como ver o vídeo sobre a vida de outra pessoa a maior parte do tempo, mas eu digo a mim mesma que se trata de mim, aquela criança sou eu, é a minha vida, a minha família. 

Minha mãe não era nenhuma beldade. As roupas dela eram comuns, jeans e camisetas lisas e vestidos estilo boho. Meus pais pareciam um casal de hippies. Mas minha tia Atena me disse que minha mãe era de família muito rica. Meu pai me dizia a mesma coisa. Talvez ela fosse bonita quando conheceu meu pai. 

Vou até o quarto dele, abro o armário dele a procura de mais memórias. É muito estranho mexer nas coisas de alguém que já morreu. A todo momento, penso que estou invadindo a privacidade dele. Eu nunca abri o armário do meu pai, a não ser para pegar roupas para levar para o hospital. Esta é a primeira vez que eu abro o armário do meu pai a procura de segredos ou memórias. Sim, isso configura uma invasão de privacidade, então, para me sentir melhor, vou até a garagem e trago algumas caixas de papelão; assim, posso fingir que estou separando as roupas e sapatos dele para doar – e não há muita coisa, na verdade. Coloco tudo em três caixas de tamanho médio. Tem coisas aqui que eu nunca o vi usar. Elas cheiram a mofo.

Mas logo encontro o que eu estava procurando: uma caixa de papelão na prateleira de cima, bem no fundo. Ali, encontro documentos – a certidão de nascimento de minha mãe, a escritura da casa, algumas contas antigas pagas. E debaixo de tudo, uma fotografia colorida grande, meio-desbotada e um pouco amassada. Meu pai bem jovem e bonitão está ao lado de uma mulher lindíssima, loira, alta, parece uma modelo de revista. Ela é séria, e tem olhos tristes. Só pode ser a Fernanda. Talvez esta seja a única lembrança que meu pai tinha daquela fase de sua vida, e me pergunto se minha mãe sabia sobre essa foto. Fico muito tempo olhando a foto. Chego à janela, tentando reter a imagem na minha cabeça, caso um dia a foto desapareça, e depois volto a olhar para confirmar se consegui.

Após arrumar as coisas em caixas, ligo para uma instituição de caridade que vai buscar tudo horas depois. Enquanto espero, assisto filmes na TV. Como cookies de chocolate. Durmo no sofá da sala. Me arrasto até a varanda, onde me sento embrulhada em uma manta, olhando a rua vazia. De vez em quando, um carro passa. Às vezes as pessoas nos carros me olham, e fico pensando no que elas pensam ao me verem. Não sabem nada de mim, da minha vida, do que eu estou enfrentando. É assim com todo mundo: ninguém sabe o que a pessoa que está sentada ao lado dela no ônibus está passando. Não sabem que aquele menininho no consultório médico, esperando sua vez enquanto brinca com um carrinho, tem uma doença incurável. Muitas vezes, eles mesmos tem doenças incuráveis e não sabem, nem desconfiam. Estão a ponto de descobrir, o que mudará todas as suas perspectivas, expectativas e sonhos.

Uma vez eu vi um filme em que o marido saía de casa ao descobrir que sua mulher estava doente; não conseguia lidar com o problema. A vida da gente pode mudar a qualquer momento, de forma radical, e tudo o que sempre foi certo pode se mostrar bem diferente. 

A caminhonete da casa de caridade encosta junto ao meu portão. O motorista sai, e ao olhar para ele, percebo que não deve ter mais que vinte anos de idade, e que ele é lindo. Ele sorri ao me ver, e eu me levanto (ainda embrulhada na manta) e sem retribuir o sorriso, vou até o portão e o abro para que ele entre. Ele me diz boa tarde, e eu respondo entre os dentes. Não quero ser mal-educada, mas falar dói. Ele me segue casa adentro, e aponto as caixas para ele no chão da sala. Ele me pergunta:

- Isso é tudo?

Concordo com a cabeça. Ele me olha longamente, e sinto meu coração acelerar. Ele me pergunta:

-Você está bem?

E eu não sei mais quem eu sou, ou o que acontece, ou porque acontece: de repente, estou me debulhando em lágrimas bem na frente dele. Não é um choro doce, mas um choro quase raivoso, de revolta mesmo. Ele fica estupefato, sem saber como agir, mas de repente ele caminha até mim e me envolve em seus braços com manta e tudo.

Eu me deixo abraçar por ele, o rosto em seu pescoço, sentindo o cheiro de malva dos seus cabelos curtos e pretos cortados em camadas. Sinto o formato do seu queixo quadrado contra a minha testa. Sinto as mãos dele, fortes, me amparando. Ele é mais alto do que eu, mais forte, e me sinto segura aninhada contra ele. Raramente, alguém me abraça. Nem mesmo meu pai me abraçava muito. Ele não diz nada, apenas me deixa chorar. E eu choro. 

Quando finalmente eu pareço ter esgotado todas as minhas lágrimas (pelo menos, naquele momento), ele me encara com seus olhos castanhos, emoldurados por sobrancelhas negras arqueadas. Ele é realmente lindo, penso. Eu poderia me apaixonar por ele, se... mas eu nunca me apaixonei, nem sei o que é paixão. E talvez nem seja a hora apropriada, então eu o empurro, devagar e docemente, para cada vez mais longe de mim. Ele se deixa levar pelas minhas palmas, cumprindo a distância que eu ponho entre nós. Murmuro um “desculpe” cheio de vergonha. Ele diz que está tudo bem, e me pergunta se tem alguma coisa que ele poderia fazer por mim. Sacudo a cabeça, dizendo um “não”. Ele me olha, e os olhos dele parecem lavas quentes escorrendo pelo meu rosto, ombros, corpo. 

Largo a manta sobre uma poltrona, porque de repente, eu começo a sentir calor. Logo me arrependo, pois me lembro de que estou vestindo calças de moletom rasgadas nos joelhos e uma blusa de lã velha e cheia de bolinhas. Tarde demais: ele me olha da cabeça aos pés, muito sério. De repente, a boca dele se abre, e espontaneamente, ele diz:

- Você é tão linda!

Fico surpresa. Nunca ninguém me disse aquilo antes. Dou um meio sorriso (porque acho que uma garota que acaba de perder o pai não tem o direito de sorrir tão cedo). Ele corresponde, e me estende a mão:

- Meu nome é Jonathan. 

E assim termina meu primeiro dia como órfã.


(CONTINUA...)





A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...