quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A Outra Margem - Parte VIII






Naquela manhã de terça-feira, Rayssa estava de bruços sobre a colcha da cama, observando em silêncio enquanto Luciano se arrumava para o trabalho. Enquanto ajeitava a gravata, ele a olhava pelo espelho. Conhecia a esposa suficientemente para saber que ela estava com algum pensamento fixo, talvez alguma coisa que gostaria de contar a ele mas sentia-se apreensiva. Os olhos deles se encontraram através do espelho, e ela sentou-se na cama. Ele terminou o nó da gravata e virou-se para ela, erguendo-a da cama, segurando-a pelas mãos:

-Bem, o que é que está "pegando,"Rayssa? Por que está tão calada?

Ela foi até ele, abraçando-o. Lembrou-se dos conselhos de Cláudia para que ele nunca soubesse que Joana estava tentando separá-los, pois ele ficaria do lado da mãe; mas Rayssa era verdadeira demais para continuar mentindo para Luciano, e aquela história a estava incomodando demasiadamente.

-Nossa, você me lê mesmo, hein?

-E então, vai me contar ou não? Tenho notado que você anda pensativa há algum tempo... e quando você está quietinha assim, é porque essa sua cabecinha anda ocupada, tecendo coisas... (ele moveu os dedos  entre os cabelos dela).

-Na verdade... é, eu tenho que te contar uma coisa. Lembra daquela sua viagem, há mais ou menos um mês? Eu fui visitar a sua mãe, e a Cláudia estava lá...

Rayssa viu uma veia na testa de Luciano mover-se; aquilo sempre acontecia quando ele estava desconfortável.

-Hum-hum. O que aconteceu?

-Bem... naquela tarde, ela me trouxe em casa. Conversamos um pouco, acabamos ficando amigas. Depois daquele dia, estivemos juntas duas vezes, e nos falamos por telefone acho que umas cinco ou seis vezes.

Ele arregalou os olhos, andando até a janela:

-Céus, Rayssa... nunca pensei que você fosse ficar amiga de Cláudia, amiga de uma ex minha.

-Por que? Você tem alguma coisa contra ela?

-Não! Só que... já faz tanto tempo que namoramos, e eu não me sinto confortável com essa situação.

Rayssa foi até ele, abraçando-o:

-Não se preocupe, ela jamais fala mal de você, e nem eu. Também não ficamos falando de sua performance na cama, ou qualquer coisa assim.

-Bem, então do que vocês falam? Sobre o que conversam?

-Ah, várias coisas... carreira, filmes, viagens, roupas... coisas de mulher.

-Hum... acho estranho. Você não é muito de sair com amigos, sempre me disse que não confia muito em outras mulheres, é meio-solitária.

-E você sempre me disse que eu deveria mudar. Pois então, estou mudando.

-Mas logo com minha ex?

-Você tem alguma coisa contra a Cláudia? 

-Não, já disse que não... mas fico preocupado que ela tenha aparecido na casa dos meus pais naquele dia, assim, do nada. Justamente quando você estava lá.

-Eu já disse, quando eu cheguei ela já estava lá. Na verdade, há uma parte da história que você não sabe: Foi Joana quem a convidou. Convidou nós duas ao mesmo tempo.

Luciano mostrou-se irritado:

-Mas por que ela faria isso?

-Faria não: fez! Também fiquei me perguntando, Luciano. Mas ela acabou nos prestando um favor nos apresentando. Descobri que temos muitas coisas em comum, e fiz uma amiga, o que como você sabe, é coisa rara.

-Não posso acreditar que minha mãe a tenha convidado. Mas com certeza, ela não fez por mal... mas... por que você só me contou agora?

-Porque eu queria evitar problemas entre vocês. Mas agora já passou, e as coisas tomaram outro rumo. Não gosto de esconder nada de você, amor. Achei que seria justo que você soubesse que eu e Cláudia ficamos amigas.

Ele sentou-se na cama, passando a mão nos cabelos e deixando uma lufada de impaciência escapar:

-Mas olha só que situação vocês criaram, Rayssa! Imagine só, chegar em casa e encontrar minha esposa sentada na sala, de papo com a minha ex noiva! 

-Bem, há algum tempo eu nem sequer conseguiria sequer considerar esta possibilidade, mas graças à sua mãe...

-Por favor, não coloque  a minha mãe no meio desta conversa, Rayssa.

Ela ficou parada e boquiaberta por algum tempo, tentando entender o que estava acontecendo.

-Espere um pouco: sua mãe convida a sua ex para visitá-la no mesmo dia em que me convida, não sei o motivo, mas até aí está tudo bem, "ela não fez por mal." (ela fez com os dedos da mão o gesto das haspas); mas o fato de nós termos ficado amigas é um absurdo, é isso? Afinal... nós estamos tendo uma briga, Luciano? Só porque teve um relacionamento que não deu certo com a Cláudia, ela tornou-se persona non grata? E se é assim, por que ela foi convidada para a casa de seus pais no mesmo dia em que eu fui?

Ele não respondeu. Rayssa continuou:

-E só pra você saber: a história não termina nisso! Lembra da minha presilha que sumiu? Ela estava no cabelo da Cláudia naquela tarde em que nós fomos lá! Fiquei pensando em como ela poderia ter aparecido no cabelo da sua ex, e fiquei furiosa, pois achei que você e ela estivessem tendo um caso!

Ele ergueu a voz?

-O que?! Mas você está louca?

-O que você queria que eu pensasse? Uma jóia de família, peça única e antiga, que eu tinha perdido há dias, aparece na cabeça da sua ex?!

-E então você achou que eu tinha dado a sua presilha para ela? Mas... que absurdo! Que espécie de pessoa você acha que eu sou, Rayssa? Acha que eu seria tão burro, tão estúpido, tão... cruel, a fim de pegar algo seu e dar de presente a uma amante? E eu não tenho nada com a Cláudia, não nos vemos há anos...

-Eu sei, agora eu sei, porque ela me esperou sair da casa de sua mãe, nós conversamos e ela me explicou a mesma coisa.

-Explicou também por que a sua presilha estava no cabelo dela?

-Explicou sim, e a devolveu. Agora... por que você acha que minha presilha estava no cabelo de Cláudia, Luciano? Como ela pode ter ido parar lá? Eu já sei a resposta, mas quero que você adivinhe.

Ele calou-se, levando as mãos à cabeça em um gesto de desespero. 

Sem dizer palavra, Luciano agarrou seu paletó e passando por Rayssa feito um furacão, saiu de casa, batendo a porta. Ela sentou-se na cama, e as lágrimas que estavam fazendo doer sua garganta finalmente caíram, enquanto ela escutava o motor do carro sendo ligado e o barulho do freio quando Luciano saía às pressas.

Quase cego pelas lágrimas, Luciano tomou o caminho da casa de Joana. Ficava a apenas algumas quadras, e ele logo parou o carro em frente ao portão e tocou a campainha. Joana abriu-lhe  aporta sorridente, mas o sorriso morreu ao ver o estado do filho:

-O que aconteceu, meu filho?

Ele tentou recuperar a voz antes de perguntar:

-Mãe... o que você está tentando fazer?

Joana parecia confusa, e fez sinal para que ele entrasse. Luciano sentou-se no sofá próximo ao pai, que estava assistindo a um jogo e não deu o menor sinal de tê-lo reconhecido, continuando a olhar fixamente para a tela da TV. Ele virou-se para Joana:

-Desde quando ele está assim?

-Acho que são os remédios... mas a doença está avançando rápido.

-Mas eu estive aqui na semana passada e ele estava bem melhor!

-Pois é... ele tem fases. Está numa fase ruim, e daqui para frente, você sabe, vai piorar. Mas tem horas que ele parece despertar de um longo sono, e volta a ser ele mesmo por alguns instantes. MAs o que aconteceu com você, filho? Não deveria estar no escritório? Aconteceu alguma coisa com Rayssa?

Luciano lembrou-se do motivo daquela visita, e negou com a cabeça:

-Ela está ótima. Mas eu quero que você me explique direitinho  o que Cláudia estava fazendo aqui naquela tarde, quando eu estava viajando. No dia em que você convidou Rayssa para vir aqui.

Joana levou a mão à garganta, franzindo as sobrancelhas e fazendo um ar de quem estava tentando lembrar-se de alguma coisa, mas Luciano percebeu a estratégia da mãe.

-Não me diga que não se lembra, mãe. É o papai quem está doente, e não você.

Diante da rudeza dele, Joana gaguejou um pouco, tentando manter-se na defensiva:

-Vo-você já sabe, ela simplesmente apareceu sem ser convidada, e não vi motivos para destratá-la só porque...

-Mãe, por que você está mentindo para mim?

Joana recostou-se, levando a mão ao coração, como se estivesse sentindo a dor de uma punhalada:

-Jamais pensei que chegaria o dia em que meu filho se voltaria contra mim! O que Rayssa disse para que isso acontecesse?

-Deixe ela fora desta conversa, mãe. Quero a verdade. O que a Cláudia estava fazendo aqui, usando a presilha de Rayssa?

Joana ficou muda. Parecia estar tendo alguma espécie de síncope cognitiva. Continuou a fazer uma cara de quem não tinha a menor ideia sobre o quê o filho estava falando, até que Carlos, virando-se de frente para o filho, entregou-lhe a verdade em uma  bandeja:

-Joana deu a presilha de presente para Cláudia antes de Rayssa chegar. Eu vi, eu estava lá, eu disse que deveríamos devolver a ela, mas Joana não concordou.

Joana fuzilou o marido com  o olhar, e erguendo-se do sofá e abandonando a aparência frágil e desentendida que tinha assumido em questão de segundos, começou a gritar:

-Não acredite nele, filho, você sabe que seu pai não está bem! Carlos, você está imaginando coisas, é a doença! Você não sabe o que está dizendo!

Luciano segurou a mãe do pai, que olhou para ele com carinho, mas percebeu que logo em seguida Carlos voltara ao seu estado apático, fitando a TV. Sem dizer palavra, depositou um beijo na testa do pai e saiu, enquanto Joana o seguia desesperada até a porta, pedindo a ele que ficasse para que pudessem conversar, mas Luciano entrou no carro e voltou para casa, deixando a mãe parada à porta.

(continua...)



segunda-feira, 26 de outubro de 2015

A OUTRA MARGEM - PARTE VII






Joana precisava de um novo plano para afastar Luciano e Rayssa. Sua mente maquinava em todas as direções, até que finalmente ela teve uma ideia: precisava pesquisar o passado de Rayssa e econtrar alguma coisa da qual pudesse valer-se. 

Enquanto isso, Georgina pensava na filha. Tinham conversado por telefone naquela manhã, e Rayssa contara-lhe tudo o que vinha acontecendo: os ataques de Joana, a amizade que fizera com Cláudia, o passado de Luciano no qual seus antigos relacionamentos tinham sido minados até o fim por Joana. Rayssa dissera-lhe que não deveria preocupar-se, pois ela sabia cuidar-se sozinha, mas a ideia de ter alguém tentando provocar a infelicidade de Rayssa não a deixava tranquila. Gostaria de conversar com Joana e descobrir a causa daquilo tudo, mas Rayssa a proibira: fizera com que ela promoetesse jamais tocar naquele assunto com Joana, pois ela apenas negaria tudo, e depois ainda iria fazer-se de vítima para Luciano, usando a doença de Carlos e sua "fragilidade." Ela concordara em nunca tocar no assunto das armações de Joana sobre sua filha; porém, nada prometera sobre visitar Joana e conversar com ela sobre outros assuntos, a fim de saber se descobria alguma coisa. Assim, telefonou para Joana:

-Olá, Joana! É Georgina. Estou ligando para saber como você e Carlos estão indo.

Joana modificou o tom da voz, tentando fazê-la parecer tranquila e disfarçar o quanto o telefonema de Georgina a desagradava:

-Olá, Georgina! Aqui estamos na mesma... como você bem sabe, a doença já mostra seus sinais. Carlos anda cada vez mais esquecido. Mas eu já esperava, então não me surpreendo... mas e você, amiga? Como estão os seus doentinhos?

Georgina notou a ironia disfarçada, mas achou melhor ignorar:

-Bem, alguns melhoram e vão para casa, outros não. Mas fico feliz em poder ajudá-los, Joana. Quando a gente ocupa a cabeça, os nossos problemas parecem mais simples. A vida destas pessoas é tão dolorida, os tratamentos são demorados e muito sofridos, mas mesmo assim, eles tentam ser otimistas e agradecem por estarem vivos ao final de cada dia. A vida é imprevisível, e eles me ensinam isso todos os dias.

-Pois é. A vida é essa caixinha de surpresa. 

Houve um momento de silêncio, e Georgina prosseguiu:

-Gostaria que você viesse aqui um dia, conhecer o meu trabalho. Quem sabe, você não se entusiasma e decide ajudar?

-Ah, eu gostaria sim, e um dia eu vou, mas agora eu tenho que cuidar de Carlos... você me entende...

-Claro, Joana. Se precisar de qualquer coisa, pode contar comigo. Caso fique muito difícil para você, nós aqui temos psicólogos que atendem voluntariamente os doentes e suas famílias, e posso indicar um deles a você. 

Joana não respondeu de início: Georgina estava sugerindo que ela precisava de ajuda psicológica, que tinha problemas mentais? Que ousadia! Pensou em responder rispidamente, dizer-lhe exatamente o que pensava de sua oferta! Mas engoliu sua ira e sua indignação, e fingiu estar agradecida:

-Ora, obrigada pela preocupação, mas eu estou lidando bem com isso. Aprendi a ser forte em minha vida. Sabe, já passei por muitas coisas e sou forte.

Naquele momento, Joana percebeu que falara demais, e tentou mudar de assunto:

-E por aí, como está o tempo? Aqui só chove...

Georgina não queria deixar o momento passar, e insistiu:

-Joana... se me permite perguntar, você disse que já passou por momentos difíceis. Eu também tive que lidar com a doença e a  morte de meu marido, e recuperar-me de uma grande dificuldade financeira após a morte dele... gosto de partilhar estas experiências, pois acho que as pessoas aprendem muito umas com as outras. Aqui nesta casa, no Segundo Lar, vejo pessoas que atravessam momentos terríveis e saem inteiras do outro lado, ainda mais fortes, e outras que simplesmente se entregam à autopiedade e passam a odiar a vida e culpam a Deus. Sei que não somos amigas íntimas, mas acho que deveríamos ser, pois nossos filhos formarão uma família um dia.  Se importaria de conversar a respeito comigo algum dia? 

Joana viu-se pega de surpresa; o que Georgina pretendia, falando com ela daquele jeito? Mas aquele pequeno discurso a fizera lembrar-se de que após a morte de Carmen, ela nunca mais tivera uma amiga. Havia as senhoras do clube, que ela encontrava uma ou duas vezes ao mês, mas nenhuma delas era sua amiga de verdade. Nem sequer tinham feito uma visita a ela depois que ficaram sabendo da doença de Carlos. Deixaram de aparecer, e os convites para os jogos de bridge às sextas-feiras rareavam cada vez mais, como se a doença do seu marido pudesse ser passada através dela. Sentiu-se ferida, mas manteve a cabeça erguida. Sabia que aquelas mulheres jogavam um jogo de aparências, no qual ela mesma era uma vencedora talentosa, e que não havia amizades entre elas: somente competição. Considerou rapidamente a proposta de Georgina, e finalmente, respondeu:

-Bem... eu ando muito ocupada...

-Eu sei, eu também tenho muitas coisas a fazer. Mas será que eu poderia vistá-la no final de semana? Ficaria muito feliz se você me recebesse, Joana.

Diante daquele argumento, Joana notou que não tinha como recusar sem parecer rude, e decidiu concordar:

-Sim, eu vou falar com as crianças e...

-Não, vamos deixar nossos filhos de fora, ou não poderemos conversar direito. Só nós duas desta vez, Joana.

-Ok, então... você poderia vir no domingo? Prepararei um almoço para nós.

-OK! Eu levo o vinho e a sobremesa. Farei uma torta de damascos deliciosa.

Quando desligou o telefone, Joana ficou pensativa e desconfiada. Começou a construir sua habitual armadura, a que ela usava toda vez que alguém tentava ultrapassar a barreira do socialmente aceitável, do superficial. Não conseguia entender como tinha "caído naquela conversa mole de Georgina sobre amizade!"

Joana não sabia, mas estava carente, e aquela carência a tinha acompanhado durante toda a sua vida, desde a infância, e era um tipo de carência que ela com a qual não conseguia lidar: ela sentia falta dela mesma! 

Transformara-se em outra pessoa a vida toda, primeiro, tentando agradar ao pai e não despertar a sua fúria a fim de evitar surras, e depois, tentando agradar ao sogro, fazendo de seus dias um constante anular-se para que ele a aprovasse e aceitasse. Mais tarde, após o casamento, desistira de sua carreira a pedido do marido, e as vontades de Carlos foram impondo-se às vontades dela cada vez mais. Até mesmo em coisas banais, como escolher um prato em um restaurante, ele prevalecia. Fazia o pedido por ela.

Determinava quais as cores que ela deveria vestir, o que usar nas muitas festas e reuniões às quais compareciam, e até sobre a decoração da casa a vontade dele prevalecia. 

Quanto a Luciano, ele praticamente tomara para si a responsabilidade de moldar a personalidade do filho, deixando a ela somente a parte prática - levar à escola, ajudar nas tarefas escolares, vestir e alimentar. Ela tinha que encontrar uma forma de fazer com que Luciano a notasse e a amasse, e a melhor forma que encontrara de fazer auquilo, fora entrando no jogo proposto pelo marido, mostrando-se frágil e vulnerável - quando não era.

 Tornara-se uma hipócrita. Passava aos outros a imagem da senhora indefesa, frágil, sempre cordata, submissa e doce, quando sua vontade era gritar, dizer a todos que ela existia e que tinha uma vida própria, que preferia comer carne ao invés de peixe, vestir verde, e não azul, usar um vestido chanel ao invés de um vestido longo. Mas incorporara aquele papel de mulher frágil e submissa com tanta força, e há tanto tempo, que só conseguia ser ela mesma quando atacava outras pessoas - preferencialmente, as namoradas do filho, que não a conheciam bem. Mas Joana também não notava que ela não era aquela pessoa agressiva. Era apenas alguém tentando sobreviver, alguém que tinha medo.

E sempre que Luciano mostrava-se verdadeiramente interessado em alguma mulher, ela pensava que estava diante de uma concorrente, alguém que faria com que ela desaparecesse ainda mais. Porque Joana não sabia colocar-se. Não sabia o que fazer para determinar seu verdadeiro lugar, para os outros e principalmente, para ela mesma. 

Agora, diante da doença progressiva do marido, ela via que o dia de ser ela mesma e fazer as próprias escolhas estava chegando, e ela não sabia como lidar com aquilo. O que ela sempre quisera a vida toda estava por vir: a sua liberdade. Mas o que fazer com ela? Inconscientemente, ela procurava por um substituto, alguém que estivesse por trás dela, balançando as cordinhas para que as coisas se ajeitassem, resolvendo tudo por ela, como sempre tinha sido. Agia como quem deseja mandar na vida do filho, mas na verdade, queria que o filho mandasse nela, tomando o lugar do pai. E naquele arranjo, Rayssa estaria atrapalhando, sobrando.


(continua...)



quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A OUTRA MARGEM - PARTE VI







Na noite de terça-feira, Rayssa e Luciano foram jantar na casa dos pais dele. Joana recebeu-os à porta, toda cheia de sorrisos, mas Rayssa viu seu sorriso morrer no momento em que ela pôs os olhos na presilha de madrepérola que ela ostentava em seu elaborado penteado, feito especialmente para aquela noite. A sogra perdeu a fala enquanto levava os dois para o interior da sala de estar, mas recuperou-se rapidamente. Rayssa podia quase escutar o som  das engrenagens maldosas do cérebro de sua sogra trabalhando. Mas o jantar correu aparentemente leve, as conversas foram amenas e Joana não tocou no assunto da presilha, fingindo ignorá-la.

Após o jantar, após Carlos recolher-se para dormir (ele estava dormindo cada vez mais cedo, e durante períodos cada vez mais longos, segundo Joana), todos foram tomar um licor na sala de estar. Rayssa pensou que a sogra perguntaria alguma coisa, mas Joana permaneceu impassível. Foi então que Rayssa pediu a Luciano que fosse até a cozinha pegar mais um café para ela, criando uma oportunidade de ficar sozinha com Joana. Ela inclinou a cabeça, fingindo olhar uma suposta unha lascada, de modo que a persilha ficou ainda mais evidente para a sogra. mesmo assim, Joana nada disse. Rayssa não aguentou mais, e tentando parecer casual, comentou:

-Ah, Joana, como você pode ver, acabei encontrando a minha presilha de madrepérola! Imagine, estava caída atrás de minha gaveta de roupas íntimas. Uma das peças ficou presa, e precisei tirar a gaveta do lugar, e lá estava ela! Ainda bem que não quebrou.

Joana ficou tão embarassada, que gaguejou ao dizer:

-Que-que bom, não é, Rayssa? Por um momento pensei que você tinha duas presilhas...

Rayssa não deixou aquele deslize escapar:

-Duas? Como assim, Joana? Você sabe que eu a recebi de presente de minha falecida avó, e que é uma peça única, muito antiga e valiosa.

Ela plantou os olhos no rosto de Joana, absorvendo com prazer o seu constrangimento. Joana riu, sem-graça, e tentou mudar de assunto:

-É... parece que o tempo vai melhorar a partir de amanhã... plena primavera, e um frio desses?

Naquele instante, Luciano voltou, trazendo o café. O tom da conversa voltou ao normal, e Rayssa achou melhor não insistir.


. . . . . . . 

No dia seguinte, Rayssa conversou com Cláudia ao telefone, a fim de contar as novidades: 

-Você deveria ter visto a cara dela, Cláudia! Ela nem sabia onde ia enfiar a cabeça...

Do outro lado da linha, Cláudia deu uma gargalhada:

-Sinto-me quase vingada, e fico feliz que as coisas tenham se ajeitado entre você e Luciano, Rayssa. Mas tome cuidado: vem chumbo grosso por aí. Joana não é mulher de recuar quando quer alguma coisa. Você precisa ser cautelosa, e tentar rcolher provas de que ela está tentando jogá-la para escanteio. 

-Mas como? Só se eu gravasse alguma coisa....

Ao dizer aquilo, houve silêncio do outro lado da linha, e ambas descobriram que aquilo poderia dar certo. De repente, Cláudia exclamou:

-Mas que ideia excelente! De agora em diante, sempre que estiver com ela, deixe o celular gravando!

-Sabe que é uma boa ideia? Pode mesmo dar certo.

-Mas cuidado, Rayssa. Ela não é fácil.

. . . . . .

Em sua casa, Joana tentava chegar a alguma conclusão sobre o que acontecera na noite anterior. Com certeza, a única conclusão plausível, é que Cláudia tinha devolvido a presilha a Rayssa. Será que as duas tinham tido uma briga, ou... tornaram-se aliadas? Se aquilo fosse verdade, ela precisava ter cautela. Queria o filho de volta. Precisaria de alguém que tomasse conta dela após a morte do marido. E para ela, a morte de Carlos não significava o momento em que ele deixaria de viver, mas seria quando ele não a reconheceria mais, e ela teria que passar o resto de seus dias junto a alguém que seria apenas um vegetal. A ideia da solidão apavorava Joana, mais do que tudo; mais até do que a própria morte. 

Lá fora, a chuva recomeçara a cair, após um dia quente e ensolarado. Era a primavera dando adeus. Logo seria verão. Joana sentou-se em sua cadeira de balanço, junto à janela, e ficou olhando a chuva cair, lembrando-se de um outro anoitecer como aquele, há muitos anos, antes de Luciano nascer.

Ela e Carlos estavam voltando de uma consulta médica, e ambos estavam muito felizes, pois tinham acabado de descobrir que Joana estava grávida de gêmeos. Eles pensavam se seriam meninas ou meninos, ou quem sabe, um menino e uma menina?

Passaram os dois meses seguintes decorando o quartinho dos bebês. Joana e Carlos estavam muito felizes. Naquela época, viviam com os pais de Carlos, em uma linda mansão. Iam às compras nos finais de semana, e compravam as roupinhas mais lindas que encontravam, não se importando com preços. Ela vivia um momento idílico em sua vida. Seu grande sonho de ser mãe tornar-se ia realidade, e em dose dupla!

Um trovão fez com que Joana fosse adiante naquelas memórias, até o dia em que despertou de madrugada sentindo fortes cólicas e viu o sangue no lençol. Estava grávida há quase quatro meses. Acordou Carlos, e ele a levou ao hospital imediatamente, mas não houve jeito: ela perdeu os bebês. 

Enquanto se lembrava daquele dia fatídico, Joana deixou escorrer uma lágrima. Depois, recordou os dois anos seguintes, durante os quais tentou engravidar novamente sem sucesso. Até que, finalmente, Luciano veio. Planejava ter mais filhos, construir uma família numerosa, de modo que ela nunca ficasse sozinha novamente. Apesar de desejar muito ter uma família grande, a gravidez e o parto de Luciano foram muito difíceis, e Joana teve que passar por uma histerectomia após o parto, no qual ela quase morrera.

Joana Vinha de um lar destruído: tinha sido filha única de um pai alcoólatra que espancava a esposa, até que um dia, ele batera forte demais, e Joana, ainda bem pequena, vira quando sua mãe fora colocada em uma ambulância e levada para longe de casa. Nunca mais tornou a vê-la. O pai desaparecera. Sem parentes que quisessem cuidar dela, Joana foi levada a uma instituição de caridade. Conhecra, bem cedo, o medo e a solidão de não ter ninguém no mundo que se importasse com ela.


Aos dezoito anos, teve que deixar a instituição, sendo encaminhada para trabalhar em uma casa de família, onde conhecera Carlos. Apaixonou-se por ele, mas para ela, o que mais importava, era a vida confortável e segura que ele poderia proporcionar-lhe. A família a tratava com gentileza, mas deixavam bem claro que ela era apenas uma empregada. Mas Carlos começou a olhar para ela de maneira diferente. Joana sabia que era uma jovem bonita.

Com seu primeiro salário, ela foi a um salão de beleza e fez um corte de cabelo; também comprou um vestido novo, e um pouco de maquiagem. Na folga de domingo, ela apareceu na sala de estar da família, enquanto todos estavam reunidos jogando cartas, e ao despedir-se, dizendo que ia ao cinema, ela viu os olhos de Carlos derramaram-se apaixonadamente sobre ela. Ela sorriu para ele. 

Dias depois, eles estavam namorando em segredo. Carlos estava ficando cada vez mais apaixonado por ela, e ao conhecer sua história difícil, passou a admirá-la ainda mais. Ela contou-lhe que queria estudar Direito e tornar-se uma profisisonal de sucesso, e que juntaria dinheiro para aquilo. Ele a incentivou, apesar de na verdade pensar que mulheres deveriam ficar em casa, cuidando de seus filhos, como sua mãe fazia, o que ela só viria a descobrir mais tarde, quando casaram-se.

 Joana não escondeu nada sobre sua história: contou-lhe sobre as surras que o pai bêbado dava em sua mãe, e do quanto ela sofria vendo a mãe machucada. Carlos comovia-se até as lágrimas, e a abraçava forte, enquanto ela mesma tentava contê-las. 

Um dia, o pai de Carlos surpreendeu os dois namorando na cozinha, já de madrugada, e ficou furioso: disse que Joana poderia fazer suas malas e deixar a casa na manhã seguinte. Joana ficou apavorada! Mais uma vez, estaria por sua própria conta, sozinha no mundo. Carlos tentou argumentar, mas quem daria ouvidos a um rapaz de apenas vinte e um anos? Ele ainda disse que, se ela fosse embora, ele iria junto com ela; mas os pais de Carlos foram categóricos, dizendo que lamentariam a escolha do filho, mas que não estavam criando um filho para casar-se com uma empregadinha sem eira nem beira. Se ele quisesse ir atrás de Joana, que fosse, mas estaria sozinho no mundo, sem dinheiro e sem proteção. Não pagariam, sequer, pela conclusão de seus estudos. 

Ao ouvir aquilo, Carlos conteve-se. Será que amava tanto assim aquela jovem, ao ponto de sacrificar sua vida pela dela?

Joana foi embora na manhã seguinte, voltando a viver na pequena e dilapidada casa que fora da mãe. Conseguiu um emprego de datilógrafa, que mal dava para pagar suas despesas, mas pelo menos, ela tinha um canto onde morar e não passaria fome. Chorou amargamente, noites a fio, pensando não apenas em Carlos, mas principalmente no conforto e no luxo da casa onde tinha morado. Comparava as paredes escurecidas e o teto com goteiras com a beleza e a limpeza da enorme mansão da família de Carlos, onde passara algum tempo. Mesmo as acomodações dos empregados, eram bem melhores que as da sua casa. 

Alguns meses depois, surpreendeu-se com batidas à porta. Ela jamais recebia visitas, pois não tinha família ou amigos. Quando abriu, deparou com Carlos. Ele descobrira, afinal, que não conseguiria viver sem ela. Mas também não achava sábio viver sem o dinheiro dos pais, já que ainda estava estudando. Assim, decidiram que a melhor solução, seria que namorassem escondido por algum tempo. Ele terminaria seu curso, e depois, assim que estivesse empregado, caser-se-ia com ela, mesmo contra a vontade dos pais. Enquanto isso, com sua renda pessoal (Carlos recebia uma gorda mesada dos pais, e a renda de alguns imóveis alugados) ele pagaria para ela o curso de Direito que ela sempre sonhara.

Assim, relacionado-se às escondidas, os dois foram levando a vida, até que Carlos formou-se, mas ainda não estava estabilizado no novo trabalho. Preferiu trabalhar em um negócio próprio, no que foi incentivado pelos pais; seu irmão mais velho tomaria conta dos negócios da família. Abriu sua própria firma de advocacia, e os primeiros clientes começaram a chegar. Enquanto isso, Joana aplicou-se com louvor em seu curso de Direito, formando-se dois anos após Carlos. 

Carlos recebeu a ajuda de uma grande amiga de infância, que concordou em fingir que eles eram namorados, para que seu pai não desconfiasse de seu relacionamento com Jona. Carmen, a amiga, acabou tornando-se também grande amiga de Joana. As duas tornaram-se como irmãs: Carmem ajudava Joana nos estudos, e também dava-lhes dicas e aulas sobre etiqueta, como vestir-se, pentear-se, portar-se. Para ela, não fazia diferença que Joana fosse de origem humilde, o que fazia com que Joana gostasse dela ainda mais, e  a amizade entre as duas tornou-se cada vez mais forte. Carmen dizia:

-Você é uma jovem inteligente e muito bonita, Joana. Apenas não teve muitas oportunidades na vida. Mas agora,  que você está estudando e quase formada, e após as nossas alinhas de etiqueta, tenho certeza de que estará pronta para entrar na família de Carlos,e eles a aceitarão.

Quando Carlos tinha um número razoável de clientes, ele decidiu que era hora de contar a verdade aos pais.

Em uma tarde de domingo, pediu uma reunião de família, onde apresentaria sua futura esposa. Imediatamente, os pais ficaram muito felizes, pois tinham certeza de que Carmen seria a moça escolhida. Ao invés disso, Carlos fez entrar na sala uma mulher muito fina e  lindíssima, bem arrumada e muito discreta. De mãos dadas com ela, estava Carmen. Carmen apertava a mão fria e trêmula da amiga, dando-lhe segurança. O pai de Carlos quase  deixou cair sua taça de champanhe ao reconhecer Joana:

-Mas... Joana??? 

O irmão de Carlos, que já sabia de tudo e aprovava a ação do irmão, apenas sorriu. Joana, por sua vez, estendeu ao sogro sua mão de unhas polidas e bem feitas, e sorrindo, apresentou-se:


-Doutora Joana, às suas ordens. 

A mãe de Carlos aproximou-se dela, e segurando sua mão, que ficara estendida diante do rosto do marido, anunciou:

-Seja bem-vinda à nossa família, Joana. Agora, não vejo porque não considerá-la uma de nós. 

Mas o pai de Carlos nunca a ceitou completamente, não perdendo a oportunidade de humilhá-la sempre que possível, diante dos amigos ou da família. Carlos e Joana se casaram, e Joana passou a habitar a mansão, agora como esposa de Carlos, mas nem mesmo assim, ela conseguia sentir-se como eles. Trabalhou durante um ano na firma de advocacia do marido, até que ele a chamou para uma conversa. Disse-lhe que seu pai era um homem conservador, e que talvez, se ela parasse de trabalhar e os dois tivessem um bebê, ele passaria a aceitá-la. Joana conversou com Carmen, perguntando-lhe o que ela achava da ideia, e a amiga respondeu:

-Querida amiga, pense bem: você já conseguiiu o que desejava. O pai de Carlos é realmente conservador, antiquado; se você tiver um bebê, ele vai aceitá-la  melhor, pois dá muito valor à família.

-Eu adoraria ser mãe, mas gosto tanto do meu trabalho! Acho que poderia fazer as duas coisas. 

-Uma mãe que trabalha não é bem a ideia que seu sogro tem em mente, Joana. Além disso, você não pecisa trabalhar.

-Mas... não consigo pensar em ficar aqui nessa casa o tempo todo, vagando por esses cômodos, sentindo-me tão... deslocada!

Carmen aproximou-se, secando as lágrimas de Joana com um lencinho que tirou da bolsa:

-Pare de chorar. Você não tem que se sentir assim, faz parte da família, é esposa de Carlos! Todos a aceitam e a tratam bem, exceto seu sogro, mas isso vai mudar. Você pode mudar isso, amiga. Além disso, eu venho visitá-la todos os dias.

E Joana cocordou em largar seu adorado trabalho como advogada. Mas Carmen só cumpriu sua promessa durante as primeiras semanas, pois morreu em um acidente de carro, deixando Joana se sentindo muito só e entristecida. Até que ela soube da gravidez dos gêmeos, e sua vida voltou a termais cor.

Joana voltou ao presente, olhando em volta e percebendo que a sala tinha escurecido. Levantou-se para acender algumas luzes, e ouviu Carlos chamando-a do quarto de dormir. Quando chegou lá, encontrou-o sentado na cama, olhando em volta, confuso:

-Que casa é essa? Onde estão meus pais? 

E de repente, ele a olhou, exclamando:

-E quem é você?

Joana sabia que aquele momento chegaria, mas não sabia que seria tão rapidamente. Devagar, para não assustá-lo, ela sentou-se ao lado do marido, segurando sua mão:

-Sou Joana, sua esposa. Você está em casa.

Ele pareceu ter um lampejo de reconhecimento, e sorriu. Deitou-se e voltou a dormir.

Enquanto Joana o cobria, lembrou-se de todas as suas perdas: perdera a mãe ainda criança, devido a um pai que sempre estivera perdido; depois, perdeu a segurança de um lar onde se sentira bem. Quando a recuperou, perdera Carmen, sua melhor amiga, uma das  pessoas que mais amara, e anos depois, sua sogra, de quem muito gostava. Perdera seus bebês gêmeos, e agora, estava perdendo seu marido. 

Não perderia Luciano. Não aguentaria!

(continua...)






terça-feira, 20 de outubro de 2015

A OUTRA MARGEM - PARTE V






Cláudia estreitou os olhos maliciosamente, e disse:
-Bem, se me permite uma sugestão, pegue a presilha e use-a normalmente na próxima vez que estiver com Joana, mas não diga nada. Ela certamente vai ficar muito confusa, e caso ela pergunte como a encontrou, sorria e diga que a achou em alguma gaveta em sua casa. |Se existe uma coisa que eu aprendi na vida, querida, é que a fim de lidar com gente maluca e maldosa, a gente tem que aprender a ser um pouco maluca e maldosa também. 

Rayssa riu, jogando a cabeça para trás e relaxando no banco do carro. Olhou para Cláudia, desta vez, sem deixar que um muro defensivo se erguesse entre elas, e notou que a moça na sua frente, além de muito bonita, era espirituosa e inteligente. Agradeceu-a:

-Obrigada, Cláudia, você é uma pessoa muito legal. Agora eu sei exatamente o que o Luciano viu em você.

A outra encolheu os ombros:

-Seja lá o que for, você tem em dobro! E olha, eu e o Luciano não temos mais nada a ver, aliás, acho que na verdade, nunca tivemos muitas coisas a ver... objetivos diferentes, acho que foi só uma paixão, que teria acabado mesmo sem a interferência de Joana. Ele era muito imaturo e ciumento naquela época, e eu também. Mas vocês tem tudo, não deixe que ela estrague! Agora me deixe levá-la em casa.

Quando chegaram em frente à casa de Rayssa, ambas trocaram telefones antes de se despedirem.

Quando Luciano voltou de sua viagem, na segunda-feira pela manhã, encontrou sua esposa trabalhando ao computador, usando a presilha de cabelo. Ele a abraçou por trás, dando-lhe um beijo no pescoço, e Rayssa levantou-se para abraçá-lo melhor:

-Bem vindo de volta, amor. Como foi tudo?

-Bem, graças a Deus. Vejo que encontrou sua presilha!

Ela levou a mão ao cabelo, instintivamente, dando uma risadinha sem-graça. Não gostava da ideia de ter que mentir ao marido, mas compreendeu que era melhor que Luciano não soubesse da verdade.

-Ah, é... ela estava por trás da gaveta, tive que tirá-la do lugar para desprender uma peça de roupa, e achei a presilha. 

-Fico feliz, pois sei o quanto você gosta dela. E como foi  a tarde de sábado?

Rayssa notou uma certa apreensão nos olhos dele ao fazer a pergunta. Sorriu, enquanto encaminhava-se para a cozinha, pois ela não se sentia nada confortável olhando-o de frente enquanto mentia para ele pela segunda vez em menos de cinco minutos. Tentou soar casual:

-Foi tudo bem. Sua mãe fez aquele bolo de chocolate com cenoura maravilhoso... a propósito... conheci sua ex, a Cláudia. Ela estava lá.

-O que?! Mas como...
-Não se preocupe, está tudo bem, Luciano. Ela apareceu para uma visita, com certeza não sabia que eu estaria lá. E achei a Cláudia uma pessoa muito legal. Gostei dela. Sério! Ela até me trouxe em casa de carona.

Luciano, boquiaberto, passou a mão pelo cabelo:

-Você, sempre me surpreendendo!
-Agora vamos tomar o café da manhã antes de você ir para o trabalho.
-Tenho uma surpresa: Como trabalhei no final de semana, terei o dia de folga.
-O dia inteirinho?
-Hum-hum... e quer saber o que planejei fazer o resto do dia, aproveitando o friozinho e a chuva fina?

Rayssa fez um ar malicioso, abraçando o marido:

-Hum... posso imaginar...

Naquele momento, o telefone tocou. Luciano foi atender, e viu o número da mãe no identificador de chamadas:

-É a mamãe. Acho melhor atender.
-Claro!

Joana, do outro lado da linha, esperava desfrutar do resultado de sua pequena intriga, e ficou surpresa ao ouvir a voz animada do filho:

-Olá, mãe. Ia mesmo ligar para a senhora. Está tudo bem?
-Aqui, tudo bem, dentro do possível, é claro... e aí, filho? Está tudo bem? Notei que Rayssa estava um pouco tristinha no sábado.
-Com certeza, ela sentiu minha falta. Aqui está tudo ótimo. Vou tirar o dia de folga, já que trabalhei no final de semana.
-Que ótimo! E o que acha de darmos uma passadinha aí no final da tarde, ou para almoçarmos juntos? Podemos ir a um restaurante!

Luciano olhou para Rayssa, enquanto ela arrumava a mesa para o café, e mais uma vez notou o quanto ela era linda, a blusa de lá macia e larga deixando à mostra um de seus ombros. Suspirou fundo:

-Mãe, podemos deixar isso para outro dia? Planejei ficar em casa... a sós com minha esposa.

Ao ouvir aquilo, Rayssa virou-se e sorriu para ele. Sabia o quanto Joana ficaria furiosa com a resposta do filho, e aquilo fez com que sentisse um sabor de vitória. Do outro lado da linha, Joana tentou conter seu desapontamento, mas não pode deixar de forçar  um tom magoado:

-Hã... está bem então, filho. Eu entendo... eu e seu pai podemos esperar... (e falando bem baixinho): Ele está aqui, e manda um beijo. É bom saber que ele se lembra de você, todos os dias. Acho que você deve aproveitar estes momentos, filho, pois em breve ele não mais se lembrará de você, ou de mim...

Rayssa viu o sorriso de Luciano desfazer-se, e  perguntou a si mesma o que a megera tinha dito a ele. Ela piscou para ele, tentando animá-lo, e ele pigarreou:

-Amanhã eu dou uma passada aí, mãe.

Luciano desligou, respirando fundo. Rayssa notou que ele se sentia culpado por não ir visitar os pais. Caminhou até ele, e abraçou-o:

-Querido, se quiser visitar seus pais, eu vou entender... 

-Não, amor. Amanhã eu vou, após o trabalho, e jantaremos juntos. Se quiser, pode ir também. 

Ela pensou que seria uma oportunidade de usar sua presilha na frente de Joana, e sentiu-se mal por aquele pensamento. Quando foi que ela se tornara uma pessoa vingativa? Entretanto, lembrou-se do que Joana tinha tentado fazer com ela, usando Cláudia sem o menor sinal de escrúpulos, e aquilo a deixou mais forte. 

-Claro, vamos jantar com seus pais amanhã. Mas hoje, eu quero um outro tipo de refeição...

. . . . . . . . 

Mais tarde, quando ambos estavam aconchegados na cama e a chuva escorria na vidraça, Luciano parecia pensativo e distante, enquanto acariciava o braço de Rayssa suavemente. Ela tentava prestar atenção ao filme que começara na TV e que ambos tinham combinado de assistir juntos, mas não conseguia concentrar-se, pensando na noite do dia seguinte. Qual seria a reação de Joana ao vê-la com a presilha?  Enquanto isso, Luciano pensava em Cláudia, a quem não via há alguns anos, e na coincidência de sua visita na casa dos seus pais. Alguma coisa lá dentro da sua cabeça lhe dizia que poderia não ter sido apenas uma coincidência, mas ele tentava socar aquela ideia para o fundo da mente. Sabia que Cláudia não o amava mais, e que ela não era o tipo de pessoa que armava intrigas... ao pensar aquilo, concluiu que se havia algum tipo de intriga naquela história, com certeza, não viria da parte da ex-noiva... ao concluir seu pensamento, varreu-o para longe com um longo suspiro, mas flashes de seu antigo relacionamento continuavam a vir à tona. 

Lembrou-se de uma noite em especial, na qual tiveram uma briga feia, uma discussão que foi o pivô da separação dos dois. Naquela época, tudo pareceu muito claro para ele, mas agora, de cabeça fria, Luciano analisava melhor a situação:

Era véspera de ano-novo. Ele e Cláudia estavam na casa dos pais, antes de irem a uma festa, e o telefone de Cláudia tocou. Ela verificou a chamada, fazendo uma cara intrigada, e desligou. Aquilo aconteceu mais duas vezes, e Luciano viu-se perguntando quem estava ligando, e ela disse que era engano, pois não conhecia o número. Naquele momento, Joana interferiu (ela sempre se metia nas conversas deles) e sugeriu que então ela deveria atender a ligação e esclarecer a pessoa que estava ligando sobre o engano. Naquele momento, o telefone tocou outra vez, e mais uma vez, Cláudia desligou, corando, e então desligou o aparelho de vez. 

Joana olhou para ele significativamente, erguendo uma sobrancelha, mas nada disse. Mais tarde, quando Cláudia retirou-se para ir ao banheiro retocar a maquiagem antes de sairem, Joana insistiu para que o filho verificasse de onde partiram as ligações. Ele se recusou, a princípoio, mas ficou com aquele pensamnto na cabeça durante toda a festa a qual compareceram. Quando chegaram no apartamento dela, onde eles tinham combinado de passar o resto da noite, Luciano esperou que Cláudia fosse tomar banho e então pegou o telefone na mesa de cabeceira. O que ele viu deixou-o estarrecido: as ligações vinham de Nando, um ex-namorado de Cláudia, que de vez em quando ainda tinha o mau gosto de dar em cima dela. Certa vez, Luciano encontrou-os conversando em uma esquina, próximos ao escritório onde Cláudia trabalhava, e após ser confrontado com a petulância do rapaz, ele e Cláudia tiveram uma briga por causa de ciúmes.

Enquanto Luciano lembrava-se de tudo, nem sequer suspeitava que, do outro lado da cidade, Cláudia também pensava naquelas brigas que havia tido com o ex-noivo; a história entre eles acabou da seguinte forma:

Naquela noite da festa de ano novo, Cláudia voltou do banheiro embrulhada em uma toalha, e quando viu Luciano segurando seu celular, estancou no meio do quarto, muda de indignação:

-Mas... quem te deu autorização para bisbilhotar meu celular, Luciano?

Ele não respondeu:

-Engano, hein? Seu queridinho ligou para você cinco vezes hoje, e você teve a cara de pau de me dizer que foi engano, de que não sabia de quem eram as chamadas? Você mentiu para mim, Cláudia! Por que?

-Em primeiro lugar, eu não atendi as ligações, e nem vou atender, porque não tenho mais nada com ele, e nada do que ele tenha a me dizer me interessa. Em segundo lugar, eu não admito ser vigiada! Se menti para você, foi para evitar o que está acontcendo agora. Não queria brigar!

Luciano levantou-se, começando a vestir-se com raiva:

-Pra mim, já deu, Cláudia. Esse cara fica andando atrás de você o tempo todo, e você "Não sabe o motivo!" Já vi vocês juntos duas vezes na última semana, e agora essas ligações. 

-Espere um momento! Você não nos viu "juntos!" Foi uma coincidência!

-Ah, é mesmo? Coincidência ele estar malhando justamente na academia onde você malha, depois de você ter se mudado para não encontrar com ele? Coincidência, de ele aparecer naquele restaurante afastado da cidade, sentar-se na outra mesa e ficar trocando olhares com você o tempo todo, como se eu não estivesse ali? Eu deveria ter quebrado a cara dele! E a sua!

Cláudia sentiu o rosto ficar vermelho:

-Hei, alto lá! Como é que é?! Você acaba de dizer que deveria ter batido em mim? É isso mesmo?!

Luciano não respondeu, e saiu, batendo a porta. Certamente, o que ele dissera apenas saiu de sua boca em um momento de muita raiva e confusão. Ele jamais seria capaz de tocar em Cláudia, e ele sabia que ela sabia disso. 
Depois daquela briga, eles ainda tentaram conversar e reatar, mas o que ele dissera ficava martelando na cabeça de Cláudia, erguendo-se como uma parede entre eles. Para arrematar aquela situação, numa noite em que Luciano foi ao apartamento de Cláudia, deu de cara com Nando quando a porta do elevador abriu. O rapaz olhou-o com sarcasmo, e rindo, dirigiu-se à porta. Luciano seguiu-o. Ambos rolaram no chão em uma feia briga, mas Nando conseguiu fugir, entrando em um táxi. Transtornado, Luciano foi até o apartamento de Cláudia, que estava de camisola assistindo a um filme. Ao ver o noivo com as roupas amarrotadas e o nariz sangrando, ela ficou chocada, e perguntou o que havia acontecido. As lágrimas começaram a rolar no rosto de Luciano, enquanto ele sentia o perfume dos cabelos dela, recém-lavados, e imaginava o que havia acontecido no apartamento. Cláudia fez sinal para que ele entrasse, mas Luciano esquivou-se do abraço dela, o rosto vermelho. Cláudia não entendia o que poderia ter acontecido, até que ele começou a falar, a voz embargada:

-Você desceu ao último degrau da degradação, Cláudia... como foi que eu pude... como foi que... você dorme com esse ... esse CARA, minutos antes de saber que eu estou para chegar?

-Como? Do que você está falando, Luciano? Acho melhor a gente entrar para conversar, e...

Ele gritou:

-Não tem mais conversa!Não tem mais conversa, Cláudia. Eu só vim aqui para olhar nessa sua cara de fingida, para ter certeza do quanto eu fui um idiota! Você me traiu...

-Eu?! Mas... como... o que... Luciano, eu...

-Eu acabo de cruzar com seu amante saindo do elevador... seu Nandinho...

Cláudia arregalou os olhos, e embora tentasse articular as palavras, elas não saiam. Ela não conseguia compreender o que o noivo tinha acabado de dizer. Ele encontrara com Nando em seu prédio? Saindo do elevador? Os dois tinham brigado, e por isso Luciano estava naquele estado? E o que Nando estaria fazendo ali, àquela hora?

Enquanto ela tentava pensar em tudo aquilo, Luciano virou as costas, dizendo-lhe que tudo estava acabado entre eles, e que ela jamais voltasse a procurá-lo. De repente, Cláudia caiu em si, e mesmo de camisola, correu atrás dele, descendo os dois andares pelas escadas, já que ele havia tomado o elevador, e conseguiu chegar junto com ele até a portaria, gritando que não sabia o que nando estivera fazendo no prédio, e que ele precisava acreditar nela. Mas nervoso, Luciano acabou dando-lhe um empurrão, e Cláudia, perdendo o equilíbrio, quase caiu. Imediatamente, ela lembrou-se de quando ele dissera que deveria ter batido em Nando e até mesmo nela, naquela noite no restaurante. Aquilo fez com que ela se recompusesse e voltasse para casa, nunca mais desejando encontrar com ele novamente.

Alguns meses depois, enquanto tomava alguns drinks em um bar, Cláudia conheceu por acaso, Roberta,  a outra ex-namorada de Luciano. As duas tornaram-se amigas quase imediatamente, e após alguns minutos de conversa, saíram do bar e foram dar uma caminhada pela calçada, já que a noite estava fresca e agradável. A semi-escuridão levou-as a fazer confissões uma a outra, e acabaram tocando no assunto 'relacionamentos.' Conforme Roberta contava a ela sobre seu penúltimo namorado, Cláudia ia identificando alguns pontos com o relacionamento que tivera com Luciano. Quando Roberta chegou no assunto da sogra obstinada em separar o casal, sem querer disse o nome da sogra: Joana. Dali em diante, ambas souberam que falavam das mesmas pessoas.

Roberta contou-lhe que tinha namorado Luciano durante quase seis meses, e que desde a primeira vez que visitou os pais dele, notou que Joana era dissimulada, exagerando nos agrados e chamando-a de queridinha o tempo todo, esquecendo-se do seu nome mais do que seria normal. Roberta percebeu que, através daquilo, Joana tentava demonstrar que ela seria apenas mais uma namoradinha de seu filho, mas levou em conta o fato de Luciano ser filho úncio, e não deu importância aos ciúmes da sogra. Até que os ataques começaram a ficar mais efusivos.

Quando Luciano estava presente, Joana a tratava bem, mas bastava ele virar as costas e ela cobria Roberta de insinuações e indiretas ofensivas a qualquer oportunidade. Roberta tentou conversar com Luciano a respeito, mas ele não acreditava nela, dizendo que ela estava exagerando. Um dia, Joana fez insinuações sobre a reputação da mãe de Roberta, que havia sido uma dançarina e atriz de teatro quando jovem, e Roberta empertigou-se:

-Escute aqui, Joana, enquanto você estava ofendendo a mim, eu pude suportar, mas eu não vou admitir que você diga qualquer coisa que possa vir a ofender a memória de minha mãe!

Luciano chegou naquele momento, e Joana começou a chorar imediatamente, dizendo-se muito ofendida, e que fora agredida verbalmente por Roberta. Luciano tomou as dores da mãe, enquanto Roberta saiu, batendo a porta e decidida a não levar mais aquele relacionamento adiante, e dizendo a si mesma que era melhor agora, antes que ele ficasse sério. Não conseguia ver a si mesma passando o resto da vida sendo insultada por Joana, e sem ter o menor apoio de Luciano para defendê-la. Ela tentou explicar a ele o que vinha acontecendo quando ele a procurou no dia seguinte. Luciano desculpou-se pela mãe, e pediu-lhe que tivesse mais paciência.  Mas Roberta era jovem e queria ser feliz. Olhando para trás, vira que não se sentiria feliz fazendo parte daquela família. Luciano foi embora triste, mas nunca mais voltou  a procurá-la.

(continua...)






terça-feira, 13 de outubro de 2015

A OUTRA MARGEM - PARTE IV






Aquele sábado amanheceu nublado e cinzento, assim como o espírito de Rayssa. Mal abriu os olhos, ela lembrou-se de que teria que ir até a casa da sogra naquela tarde, o que fez com que um arrepio de mau pressentimento subisse pela sua espinha. Ela levantou-se da cama, escovou os dentes e foi preparar seu café ainda de camisola, já sentindo os primeiros acordes de uma dor de cabeça fininha que se aproximava. Após comer alguma coisa, engoliu um comprimido. Abriu o computador e tentou trabalhar, mas faltou-lhe a concentração necessária para tal. Ainda conseguiu revisar o artigo do mês para a revista, e mandou-o por e-mail, dando seu dia de trabalho por encerrado às onze da manhã. 

Escutou o celular avisando que tinha mensagem: era Joana: "Não se esqueça de nossa reunião hoje à tarde, amada. Beijos."  Rayssa teve outro calafrio ao ler a mensagem. Amada?! Joana nunca tinha se referido a ela daquela forma. Lembrou-se da mãe, e preferiu acreditar que aquele chá seria uma tentativa de reaproximação. Rayssa saiu e deu uma corrida de meia hora, mas como os primeiros pingos grossos começaram a tamborilar sobre sua cabeça, ela voltou para casa. Encheu a banheira com seus sais prediletos e mergulhou em um longo banho. Ao prender os longos cabelos com um nó sobre a nuca para que não se molhassem, sentiu falta de seu prendedor de cabelos de madrepérola, presente de sua avó, que havia desaparecido no dia da mudança. Por onde ele andaria?

Rayssa ficou bastante tempo no banho, até que notou que a pele de seus dedos começou a ficar marcada pela água. Enrolada no robe, foi até a cozinha e tirou uma salada da geladeira, que ela mesma tinha preparado no dia anterior. Fez torradas com duas fatias de pão de forma e sentou-se para comer. Lá fora, chovia torrencialmente agora, e ela deixou-se entrar em transe com o barulho da chuva caindo sobre o telhado da varanda. Acabou adormecendo no sofá, em frente a TV.

Acordou sobressaltada: Só tinha meia hora para vestir-se e chegar na casa de Joana! Vestiu a calça jeans desbotada de sempre, uma blusa de malha branca, botas de cowboy e uma jaqueta jeans. Olhou-se no espelho, e achou que deveria ter se arrumado melhor, mas não dava mais tempo. passou um batom cor-de-boca, escovou os cabelos com força, deixando-os cairem macios e brilhantes sobre as costas, agarrou a bolsa e saiu.

A chuva já tinha parado, e poças haviam se formado sobre o asfalto. Rayssa achou melhor ir caminhando, pois a tarde estava fresca e agradável, os raios do sol filtrados entre as densas nuvens quase negras, dando a tudo em volta um ar surreal. Chegou dez minutos atrasada, mas achou que não era grande coisa. Antes de tocar a campainha, parou à porta e respirou fundo. Joana veio abrir a porta para ela, abraçando-a calorosamente - embora Rayssa tivesse percebido alguma coisa muito estranha naquele abraço.

Mal entrou, deparou com a moça sentada no sofá, elegantemente vestida, e sentiu seu perfume penetrante. Ela segurava a mão de Carlos, enquanto conversava com ele, dizendo-lhe palavras suaves e encorajadoras sobre sua doença, que Rayssa ainda conseguiu captar:

-...e nos dias de hoje, é possível retardar o avanço da doença, Carlos. Você vai ficar bem. 

Rayssa sentiu que a sogra olhava fixamente para ela, como se estivesse saboreando o impacto do sentimento de Rayssa, ao vê-la de pé em frente a Cláudia. De repente, o olhar de Carlos dirigiu-se a ela, e ele levantou-se, abraçando a nora. Naquele momento, Cláudia também viu Rayssa, e pôs-se de pé, parecendo um tanto constrangida. Rayssa abraçou o sogro, que segurou suas mãos dizendo o quanto ela parecia linda e radiante, e quando ele se despediu, dizendo que deixaria as "meninas" em paz, mas Joana segurou-o pelo braço; Rayssa  olhou para Joana, como a perguntar o que significava aquilo. Joana abriu um sorriso ao explicar-se:

-Querido, veja, esta é a nossa nora querida, Rayssa; aquela moça lindíssima com quem você esteve conversando é Cláudia. Está menos confuso agora?

Carlos olhou de uma para outra, e depois fitou a esposa com mágoa no olhar:

-Eu sei muito bem, Joana, quem é Cláudia e quem é Rayssa. Por enquanto, pelo menos. Bem, agora se me dão licença, há uma partida de futebol que eu gostaria de assistir. -E sorrindo: -Fiquem à vontade, moças lindas.

Dizendo aquilo, Carlos encaminhou-se para seu quarto. As três mulheres ficaram de pé, até que Joana convidou-as a sentarem-se novamente, ocupando ela mesma a poltrona e obrigando Rayssa a sentar-se no sofá, junto com Cláudia, apresentando-as brevemente - mesmo sabendo que as duas já se conheciam por fotografias. As mulheres olharam uma para a outra, acenando friamente. 

Cláudia, que sentia o rosto vermelho,  virou a parte de trás da cabeça para Rayssa, fingindo checar as mensagens do seu celular dentro da bolsa, e naquele instante, Rayssa notou a presilha de madrepérola no cabelo da outra. A sua presilha de madrepérola! Seu coração deu um salto e quase saiu pela boca. Ela tentou falar, mas não sabia o que dizer. Olhou para Joana, que parecia não ter percebido nada. Joana tagarelava alegremente, falando sobre o tempo e prevendo chuva para aquela noite. Depois, como ninguém respondesse, começou a falar sobre a receita do bolo que serviria com o chá. Mas Cláudia começou a levantar-se, ainda muito sem graça, sentindo o clima tenso e a reação negativa que sua presença causava em Rayssa. 

-Sinto muito, mas já fiquei tempo demais, Joana. Ainda tenho um compromisso no comecinho da noite. Tenho que ir agora.

Despediu-se  de Rayssa, com um frio "Até."  Segundo Cláudia notou, a moça tinha os olhos rasos de lágrimas, e sem que houvesse qualquer tipo de protesto vindo da ex-sogra (o que não era natural) para que ficasse mais um pouco, Cláudia foi levada por ela alegremente até a saída. Para Joana, Cláudia já tinha cumprido sua função, e não precisava mais dela.

Rayssa estava tão estarrecida por ter visto sua presilha de madrepérola enfeitando os cabelos da ex de seu marido, que não conseguia falar. Joana saboreava sua vitória em silêncio, na cozinha, enquanto preparava a bandeja de chá. Sabia que tinha se arriscado muito ao convidar Cláudia e Joana para o chá no mesmo dia, e em ter pedido a Cláudia que chegasse uma hora antes para que ela mesma tivesse tempo hábil de presenteá-la com a presilha de cabelo de Rayssa antes que esta chegasse. Mas conhecia um pouco a nora, e sabia que ela não era dada a escândalos, e que por isso não questionaria Cláudia sobre a origem da presilha. 

Rayssa mal conseguiu engolir um gole de chá, apesar do cheiro delicioso das ervas escolhidas por Joana. A fatia apetitosa de bolo permaneceu no prato, intocada. Joana era toda gentilezas. Perguntou se ela não estava gostando do chá, já que não tinha tocado em nada, e Rayssa percebeu um tom de ironia em sua voz. Mas ao olhar a sogra nos olhos, encontrou o olhar mais inocente do mundo, e pensou estar imaginando coisas. Alegando não estar se sentindo bem, Rayssa despediu-se vinte minutos após a saída de Cláudia. Joana mostrou-se preocupada, e convidou-a para passar a noite, mas a ideia de passar uma noite na companhia de Joana só fez com que Rayssa sentisse seu estômago embrulhar de verdade.

Quando chegou na rua, Rayssa respirou profundamente. Já estava escurecendo, e ela foi andando pela calçada, os olhos turvos de lágrimas, tirando suas próprias conclusões sobre aquela tarde: Luciano estava saindo com Cláudia, e tinha dado a ela a sua presilha de cabelo, uma herança de família! Como ele poderia agir daquela forma com ela? Tinha largado tudo por ele, sua cidade, a companhia da mãe e dos amigos, tudo para ajudá-lo a ficar mais perto dos pais durante a doença de Carlos! Abrira mão de coisas que eram convenientes para ela para que ele pudesse estar mais confortável, e era assim que ele retribuía? 

Estava tão envolvida por seus pensamentos, que nem viu um sedan vermelho aproximando-se dela devagar.

Sobressaltou-se, porém, quando o carro buzinou. Ela levou a mão ao peito em um gesto espontâneo, e inclinou-se para ver quem a estava chamando: era Cláudia. Não soube o que fazer, como agir, quando viu a porta do carona se abrindo e a voz de Cláudia, sua rival, chamando-a para entrar. Num impulso, ela viu a si mesma entrando no carro e batendo a porta. Teria que resolver aquela situação de uma vez por todas. Virou-se de frente para Cláudia:

-Eu nem sei por onde começar, o que dizer...

Não queria que sua rival a visse chorando, e respirou fundo a fim de tomar fôlego e conter as lágrimas, mas quando ia abrir a boca para começar seu discurso de mulher traída, Cláudia a interrompeu:

-Não nos conhecemos, Rayssa, mas eu já estive aonde você está várias vezes. Preciso que me escute.

Rayssa ia protestar, mas achou melhor conter-se e escutar o que a outra tinha a dizer. Cláudia colocou uma mecha cabelo atrás da orelha, e seus olhos verdes piscaram repetidamente antes que ela prosseguisse:

-Em primeiro, lugar, não há mais nada entre mim e Luciano. Há muitos e muitos anos. Eu conheço Joana muito bem, e sei o que ela está tentando fazer.

-E o que seria?

-Ora, o que ela já fez muitas vezes antes: separar seu filhinho da namorada malvada. 

Rayssa olhou-a com desconfiança:

-E como você sabe?

-Bem, eu acabei virando melhor amiga da ex de Luciano, a que veio antes de mim. Por mero acaso, eu a conheci em um bar há alguns anos. O nome dela é Roberta. Eu não sabia quem ela era, até que começamos a conversar. Vimos que nossos relacionamentos passados tinham muito em comum, e acabamos chegando à conclusão que tínhamos namorado o mesmo homem: Luciano. E que ambas tínhamos nos separado dele devido a intrigas e armações de Joana. Mas já era tarde demais para mim, pois ele  tinha conhecido você.

Rayssa mal podia crer no que estava escutando! Mas... e a presilha?

-Mas se é verdade, me diga como a minha presilha de cabelo foi parar no alto da sua cabeça, se não foi um presente do próprio Luciano!

Cláudia levou a mão à cabeça instintivamente, removendo a presilha. Daquela vez, Joana tinha ido longe demais:

-Isto?

Rayssa acenou, enquanto a outra colocava a presilha nas mãos dela. 

-Você nem desconfia, Rayssa? Joana me disse para chegar às três da tarde, e deu-a de presente para mim. Ainda alegou que você estava atrasada. Mas agora eu sei que ela fez tudo de propósito.

De repente, tudo fez sentido para Rayssa: é claro! Joana havia pego a presilha em sua casa, quando fora visitá-la pela primeira vez, e Luciano tinha saído para comprar café! Foi exatamente no dia seguinte que ela dera falta do objeto, que ficava sobre a sua penteadeira, em seu quarto.

Com o rosto em brasa, Rayssa escutou a própria voz proferir um palavrão. Cláudia pareceu surpresa, mas riu, descontraindo o ambiente. As duas mulheres se olharam, e riram. Cláudia falou:

-Parece que meu destino é tornar-me amiga das mulheres do meu ex.

Rayssa achou que devia desculpas a ela:

-Sinto muito por ter pensado mal de você, Cláudia...

-Ora, se fosse comigo, eu teria enchido a sua cara de tapas. Sou bem mais impulsiva que você, e agradeço por você ser a pessoa calma que é. Não se preocupe, eu entendo. O que mais você poderia pensar? Sua presilha aparece na cabeça da ex do seu marido. Ora... mas acho que Joana merece uma lição.

-Você está certíssima. Vou contar tudo ao Luciano assim que ele voltar de viagem!

Cláudia arregalou os olhos:

-Não! Ela dirá que tudo não passou de uma coincidência. Vai fazer a maior cara de vítima, vai usar a doença de Carlos (coitado) para se justificar. Vai dizer que foi tudo uma grande confusão, e acredite em mim, ele vai ficar contra você.

Rayssa estava assustada: como aquela mulher conhecia bem Luciano!

-Não, ele precisa acreditar em mim, ou então não vale a pena ficar com ele. Prefiro ir embora a ficar com um homem que duvide de mim.

Mais uma vez, Cláudia foi mais coerente que Rayssa:

-Escute, Rayssa: não nos conhecemos, mas as circunstâncias da vida fizeram com que conhecêssemos muito bem o mesmo homem. Pode ser que Luciano esteja diferente agora, mas se eu fosse você, não me arriscaria. Pense bem: ele está fragilizado com a doença do pai, que adora. Não abandonaria a própria mãe nestas circunstâncias, mesmo amando muito você. E quando a ordem é fazer-se de vítima, Joana é imbatível!

Rayssa pensou que a outra estava certa: lembrou-se de si mesma há alguns minutos, quando os olhos "preocupados" de Joana ofereceram-lhe a casa para passar a noite e ela convenceu-se de que estava sendo injusta com a sogra.

-E o que você faria, se fosse eu?

Cláudia olhou a outra bem fundo nos olhos antes de responder.

(continua...)






sábado, 10 de outubro de 2015

A OUTRA MARGEM - PARTE III






Naquela sexta-feira de manhã, Luciano abraçou a esposa mais uma vez, antes de fechar a mala e levá-la para o hall de entrada da casa. Rayssa pendurou-se em seu pescoço  à porta, e disse, com voz manhosa:

-Você tem mesmo que ir, amor?

Ele a beijou apaixonadamente mais uma vez antes de responder:

-Você sabe que sim. Mas estarei de volta antes que você possa dizer "saudades."

Mais que depressa, Rayssa exclamou:

-Saudades! Pronto, você já voltou!

Ambos riram, e ele se foi, prometendo ligar assim que chegasse no hotel. Ela foi terminar uma tradução que começara no dia anterior, e duas horas depois, deu o dia de trabalho por encerrado; afinal, era sexta-feira! Andou pela casa, dando apenas um jeitinho aqui e ali, já que Andrea, a faxineira, tinha feito a limpeza no dia anterior. Consultou o relógio: quase dez da manhã. Lembrou-se de que ainda estava de camisola, e foi tomar um banho e trocar de roupa enquanto pensava no que faria com o resto do seu dia. Na banheira, teve uma ideia: iria ver a mãe. Era uma viagem de pouco mais de duas horas. Chegaria lá por volta das uma da tarde, e poderia voltar às cinco, chegando em casa entre sete e trinta e oito da noite, dependendo do trânsito.

A manhã estava linda, e Rayssa colocou uma música suave no carro. Queria fazer uma surpresa para Georgina, por isso não avisou que estava indo. A viagem foi tranquila, e ela não parou no caminho, economizando alguns minutos. Sabia que Georgina estaria no Segundo Lar àquela hora, e foi direto para lá.

Rayssa percebeu as mudanças na velha casa de campo, agora toda pintada de branco, as janelas azuis. Havia bancos espalhados pelo jardim, onde pessoas conversavam. Pela aparência, ela sabia que eram pacientes de câncer. Admirou-se com a expressão tranquila deles, e com os sorrisos que lhe dirigiam enquanto ela passava, cumprimentando-os. Pensou na importância que o trabalho da mãe tinha sobre a vida daquelas pessoas, e sentiu-se grata por poder ter nascido filha de uma pessoa como Georgina. Passou pela nova ala, construída no mesmo estilo vitoriano da casa principal. Na verdade, quase uma réplica da mesma. Calculou que as duas casas poderiam bem abrigar mais de vinte pessoas, mas Georgina já planejava novas ampliações, ou quem sabe, alugaria um prédio próximo ao hospital para facilitar a locomoção dos doentes mais graves. 

Finalmente, avistou a mãe. A luz do sol sobre os cabelos dela criavam uma espécie de aura de luz. Georgina estava mais linda do que nunca, usando um vestido azul-claro justo na cintura, que fazia com que parecesse alguns anos mais jovem. Rayssa ficou um tempo admirando a mãe, que conversava com uma das acompanhantes na entrada da casa. 

Quando a mãe a viu caminhando em sua direção, seu rosto abriu-se em um sorriso. Mãe e filha abraçaram-se, e depois Georgina conduziu-a em uma vsita pela nova área. havia mais quartos do que Rayssa pensara, pois apesar de manter a fachada igual a da casa original, Georgina transformara o interior em um espaço prático e bem dividido, com um grande hall com TV e sofás, uma cozinha média, dois banheiros, cinco quartos no andar inferior e dez no andar superior. Cada quarto abrigava quatro pessoas e tinha seu próprio banheiro. Uma estrutura grande, Rayssa pensou. Sabia que Georgina trabalhava muito a fim de manter tudo aquilo e conseguir ajuda de pessoas físicas e jurídicas. Descobriu que a mãe também conseguira algum suporte do govderno local, o que não a admirou, pois sabia o quanto Georgina era empenhada em conseguir o que desejava.

As duas saíram para almoçar na cidade, e Rayssa pode rever alguns vizinhos, amigos e conhecidos  no caminho, parando para conversar rapidamente com eles. Após o almoço, georgina  achou que era hora de perguntar à filha sobre aquela ruga de preocupação em sua testa, que tinha notado desde que Rayssa chegara:

-E então, como vão as coisas? Como está Carlos?

-Ah, infelizmente as notícis sobre ele não são nada boas... a doença está avançando bem rápido. Há alguns dias, ele se esqueceu do nome de Luciano, e vive me chamando de Cláudia, que é o nome da ex-noiva do filho. Mas eu compreendo, e não me importo. Sinto muito por ele, por Luciano e até mesmo por Joana, mas não vejo uma boa perspectiva pela frente... bem, é uma doença degenerativa, e todos sabemos o que vai acontecer.

Georgina suspirou profundamente, dizendo:

-Acho que é ainda pior do que o câncer. Eu posso ver esperança no rosto daquelas pessoas no Segundo Lar. Certa vez, alguém me perguntou se eu não ficava desesperada ou deprimida ao lidar com tanto sofrimento, e ao responder, eu vi que na verdade, o que eu sinto, é esperança. Eles me passam muita fé. Mesmo quando não conseguem resultados nos tratamentos.

-E alguém já morreu lá?

-Não. É apenas uma casa de passagem. Quando em fase terminal, ou eles voltam para suas casas ou então vão para um hospital. Não temos médicos ou enfermeiros que possam cuidar deles, e nem autorização para tal. 

Ambas tomaram os últimos goles do vinho. Georgina continuou:

-E como estão as coisas entre você e Joana? Melhores, espero.

-Bem, parece que ela está mais calma, digamos assim. Convidou-me para um chá amanhã à tarde. 

-Mas você parece apreensiva, filha.

-Sim. Como você se sentiria se alguém abertamente hostil a você te convidasse para um chá, ainda mais quando Luciano não estará lá?

-Bem, eu pensaria que talvez aquela fosse uma tentativa de reconciliação.

-Mamãe, você é sempre tão generosa!

Georgina sorriu brandamente, segurando a mão da filha:

-Tente dar um crédito a ela. Vá de boa vontade. Quem sabe, as coisas não estejam se encaminhando para um bom final?

Rayssa sorriu:

-Eu vou tentar.

Após deixarem o restaurante, Rayssa despediu-se da mãe com um beijo e um abraço apertado, e antes de voltar para casa, deu uma passada no escritório para rever os colegas e acertar algumas trabalhos pendentes. Depois, pegou a estrada de volta, com o sol se pondo em lindas cores. 





A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...