terça-feira, 26 de março de 2019

INOCÊNCIA - PARTE 1 - CAPÍTULO XIII




Naquele dia de domingo, acordei com mamãe me sacudindo com força. Assustada, abri os olhos e deparei com o rosto dela me olhando, preocupada e irritada. Murmurei “hum” e comecei a fechar os olhos de novo, pois tinha planejado dormir até mais tarde naquele domingo, já que o dia anterior estivera frio chuvoso, mas mamãe me sacudiu de novo, me chamando pelo nome. Sentei-me na cama, e encarei-a. Ela estava pálida, e me perguntou: 

- É verdade? 

Sem compreender o que ela estava me perguntando, olhei o relógio digital sobre a mesinha de cabeceira (eram ainda seis e trinta da manhã) e esfreguei os olhos, murmurando, sonolenta: 

- Verdade o que, mãe?

 Ela segurou meu rosto, me forçando a encará-la: 

-O que você contou para Joana!

 Acordei totalmente naquele minuto: Joana me traíra!

Faziam exatos cinco dias que eu contara a ela o meu segredo sobre  Cristina e Marcelo, e já acreditava que ela não contaria a ninguém, o que fez com que eu me sentisse mais relaxada a respeito. De repente, minha mãe me acordava e jogava aquela bomba enorme no meu colo no domingo de manhã. Eu tentei ganhar tempo, dizendo que não sabia do que ela estava falando, mas mamãe se irritou e passou a gritar comigo: 

-Eu quero saber a verdade!

Os gritos dela atraíram Berta e papai. Ele entrou no quarto, tentando segurá-la pelos ombros, mas ela o ignorou, repetindo a pergunta. Prendi a respiração. Berta e papai me olhavam, espantados, como a me perguntar do que mamãe estava falando. Achei que mentir poderia ser a melhor saída. E então, ao abrir a boca, a palavra trancou-se: eu não sabia mentir. Tentei de novo, mas minha voz simplesmente não saía. Rendida, concordei com a cabeça. Minha mãe fechou os olhos, levando a mão à testa. Papai perguntou o que estava acontecendo ali. Novamente, ela o ignorou: 

-Yara, você tem consciência de que o que você está dizendo que viu é muito grave, não é? Você não inventou isso?

Neguei com a cabeça, as lágrimas quentes agora rolando profusamente pelo meu rosto. Berta sentou-se ao meu lado, me abraçando: 

O que aconteceu, Yara? Você está me assustando!

 Mamãe puxou papai para fora do quarto, e enquanto eles conversavam na sala, contei tudo à Berta. Via o rosto dela se modificando à medida que ouvia; primeiro, incredulidade; depois, raiva, e finalmente, tristeza. Berta não sabia o que dizer. Não sabia o que pensar. Tentei argumentar com ela:

-Se eles estiverem apaixonados, que mal tem? E já faz tanto tempo!

Ela segurou minha mão: 

-Você ainda é muito inocente para entender, mana. Há vários obstáculos. Primeiro, ela é negra, e ele, branco; ela é pobre, filha da empregada, enquanto ele é rico. Ela não tem uma educação muito boa, enquanto ele está fazendo faculdade para assumir os negócios do pai. E além disso tudo, não se fazem essas coisas antes de casar.

 Olhei para ela: 

-Quer dizer então que você e Sebastian nunca?...

 Ela corou: 

-Até o fim, ainda não. A gente brinca, mas eu sei me preservar! Nunca fomos até o final.

Fiquei imaginando como minha irmã pudesse ter tido aqueles pensamentos por tanto tempo sem que eu nunca tivesse notado. Ela, sempre tão  moderna, cheia de amigos, publicamente adepta de alguns dos preceitos 'hippies' vigentes na época, na verdade era uma conservadora? Havia muita coisa que eu não sabia sobre as pessoas...

Logo depois do café da manhã, que se deu em um clima tenso e em meio a silêncios quebrados apenas pelo ruído dos talheres, algumas pigarreadas e frases curtas como “Me passe o leite, por favor”, notei que as coisas começariam a ficar tensas. Mamãe contou-nos, antes de nos sentarmos à mesa, que recebera um telefonema indignado de Tia Aurora – que por sua vez, recebera um telefonema anônimo – perguntando se era verdade o que andavam dizendo sobre o seu “Marcelinho” e a filha da empregada da nossa casa. Pelo menos, pensei aliviada, Joana não havia me traído. Mais tarde ela confessou que contara tudo à mãe ao escutar uma conversa entre o irmão e Cristina ao telefone, na qual ele dizia a ela que a mãe teria que entender quando eles se casassem. Aquilo deixou-a em pânico – ter na família uma mulher negra e pobre, filha da empregada. Tia Aurora apenas inventara o telefonema anônimo a fim de evitar desentendimentos entre Joana e eu.

Após o café, mamãe mandou que eu e Berta fôssemos lá para cima, ou lá para fora. Houve um entendimento silencioso entre Berta e eu, pois achamos que ficando dentro da casa, haveria mais chances de escutarmos a conversa que se daria entre nossos pais e os pais de Cristina. Assim, subimos as escadas em silêncio e batemos a porta do quarto de Berta, de onde saímos pé ante pé minutos depois, indo nos sentar no corredor, junto à escada, de onde não poderiam nos ver.

E a conversa que se deu em seguida foi mais ou menos esta:

Mamãe: Flora, Eugênio... sabemos da dedicação de vocês durante todo este tempo em que estão conosco, mas algumas coisas andam acontecendo... e... precisamos conversar a respeito delas.

Flora: É alguma coisa sobre Cristina, não é? Sobre ela e o 'seu' Marcelo... (a voz chorosa) eu sabia que isso ia acabar vindo à tona! Fiz de tudo para colocar juízo na cabeça dessa menina!

Eugênio: (zangado) Como assim? Parece que eu sou o único que não tem a menor ideia sobre o que está acontecendo aqui! O que há entre nossa filha e o 'seu' Marcelo?

Mamãe: Bem, os dois são jovens, e estão namorando. Mas Aurora não está nada feliz, nada mesmo. E hoje ela me telefonou bem cedo para falar sobre isso e pedir a vocês que conversem com Cristina a respeito. Aurora é minha irmã, e ameaçou romper o relacionamento conosco caso não tomemos uma providência. Sinto muito, Flora. Você sabe o quanto gostamos da menina... mas ela foi longe demais.

Eugênio: ( furioso) Mas com certeza ela foi longe demais! Vou falar com ela agora mesmo! Quero saber até aonde essa coisa já foi.

Papai: Calma, Eugênio. Não vá meter os pés pelas mãos. É preciso conversar com ela. Cristina é uma moça sensata, e...

Flora: Sensata é o que ela não é, 'seu' Nelson. Há algum tempo eu venho percebendo os olhares que ela troca com o rapaz, e ele com ela. Já avisei a ela mil vezes para se colocar em seu lugar, mas Cristina é impetuosa... mas ela vai nos ouvir agora, pode ter certeza.

Mamãe: Espero sinceramente que sim, Flora. Não gostaria de pedir a vocês que fossem embora desta casa. Não mesmo.

Silêncio. Flora sai da sala chorando, acompanhada de Eugênio.

A possibilidade de vê-los sendo expulsos como simples empregados demitidos me atingiu tão profundamente, que sem pensar duas vezes desci as escadas correndo e entrei na sala de supetão: 
-Mãe, pai, vocês não podem fazer isso! Eles são da família! Eu... eu... eu os amo!”

Mamãe me repreendeu por não perder a mania de escutar atrás das portas, mas foi uma repreensão leve. Ela me chamou para sentar-se ao lado dela, e levantando um pouco a voz, disse: 

-Pode vir também, Berta.

 Berta desceu as escadas devagar, e sentou-se na poltrona em frente. Mamãe começou:

-Existem histórias sobre Eugênio e Flora que vocês não conhecem, e nem Cristina.

 Ela olhou para papai com ar cansado, e ele  começou a contar:

-Eugênio é de uma família muito, muito rica. Fazendeiros locais, família muito tradicional. E Flora trabalhava na casa deles, ou seja, os pais dela. Exatamente como Cristina aqui, eles se apaixonaram. Começaram a se ver às escondidas. Flora engravidou, solteira. Os pais a expulsaram de casa, e nunca mais falaram com ela. O mesmo aconteceu a Eugênio: ele foi deserdado e expulso da fazenda. Quando os conhecemos, eles não tinham mais dinheiro, e estavam para ser despejados do pequeno apartamento onde moravam. Sua mãe estava grávida. As duas passaram a gravidez juntas. Ficaram amigas. A única coisa que eu poderia ter feito, é oferecer um emprego a eles e um lugar para morar. Foi o que eu fiz.

 Berta deu um longo suspiro, mas nada disse. Eu tentei argumentar:

-E Cristina nunca conheceu os avós, não é? Ela também pensava que eles estavam mortos. Foi o que disseram para ela.

 Mamãe concordou com a cabeça: 

-Foi melhor assim, filha. Eles mentiram porque não queriam que ela sofresse.

 Pensei durante algum tempo, e disse:

-Mas pai, o senhor não poderia ter oferecido um emprego melhor a ele? Alguma coisa no escritório? Aliás, se você fizesse isso hoje, eles melhorariam de vida e Cristina não seria mais a filha da empregada. Poderia casar-se com Marcelo!

 Meu pai acariciou minha cabeça de leve, e disse: 

-Não é tão simples assim. A cidade toda estava contra os dois. Eugênio tentou arranjar emprego como advogado em várias firmas, mas quando a família dele descobria, davam alguns telefonemas e as firmas o dispensavam. Ninguém naquela época queria ter um advogado que fosse casado com uma mulher negra. Se eu tivesse oferecido um emprego para ele no escritório, teria perdido muitos clientes. Filha, o mundo é como é, não como nós queremos que ele seja.

Eu não me contive: 

-Mas sendo assim, não podemos fazer nada para mudá-lo?

Papai e mamãe se entreolharam. Berta brincava com os dedos das mãos, olhando para baixo. No fundo, ela concordava com eles. Ela era como aquela cidade, preconceituosa, cruel e julgadora. Mas era a minha irmã.

Ouvimos vozes alteradas vindo da cozinha; era Eugênio que gritava com Cristina:

-Menina, agora você vai me ouvir! Já é uma moça feita! Vai morar com sua tia porque eu estou mandando!

Barulhos de copos sendo quebrados. O ruído de um tapa, e mais choro e gritos. A porta batendo com força, e os passos de Cristina correndo na calçada junto à casa. Ignorei as vozes de meus pais que me mandaram ficar aonde estava, e saí correndo atrás dela. Tive que correr bastante para conseguir alcançá-la, e eu gritava seu nome, até que ela parou no meio da rua, o corpo curvado, as mãos nos joelhos. Eu a alcancei, passando um braço em volta dela. Cristina estava descalça, pois tinha perdido as sandálias no caminho. Voltei e peguei-as para ela. Ela as jogou longe.

Depois que chorou bastante, ela se acalmou finalmente, e aceitou o meu abraço. Me olhou com ternura, e me chamou de 

-Minha Pequena Amiga.

 Respondi que eu já não era mais tão pequena assim, e que ela poderia conversar comigo como conversaria com uma de suas amigas mais velhas. Cristina sorriu.

Nós caminhávamos em direção ao rio, onde nos sentamos na nossa pedra favorita. O tempo estava escuro e nublado, e o céu, cinzento. Cristina me perguntou se eu estava com frio, mas eu estava bem agasalhada, enquanto ela mesma estava descalça, com um vestido fino e apenas o xale de lã para aquecê-la. Ela se enrolou nele, apertando-o em volta do corpo. Perguntei a ela o que ia fazer agora, e ela me encarou por alguns instantes antes de responder:

-Meus pais querem que eu vá morar com uma tia de minha mãe. Ela mora no subúrbio, em uma região muito pobre da cidade. Eu não quero ir para lá, nem a conheço! Os parentes de minha mãe nunca nos procuraram, e agora eu descubro que tenho uma avó viva, por parte de pai... e uma tia por parte de mãe. Eles mentiram para mim o tempo tudo, sobre tudo, Minha Pequena Amiga.

Tentei reconfortá-la:

-Eles te contaram a verdade que acharam que a faria mais feliz.

 Ela concordou com a cabeça. Perguntei:

-E Marcelo? Ele já sabe que Tia Aurora descobriu tudo?

-Sim, nós nos falamos hoje de manhã. Liguei para ele de um telefone público para marcarmos um encontro, mas ele me disse que não poderia ir e me contou tudo. Disse que seria melhor não nos vermos por algum tempo.

-Você está decepcionada com ele, não é?

Ela começou a chorar de novo:

-Sim, eu estou. Achei que ficaria ao meu lado. Pensei que ele estaria comigo, que enfrentaria a mãe, os seus pais... e os meus pais. Achei que Marcelo seria uma fortaleza ao meu lado, mas parece que o amor dele não é tão forte assim.

Depois de chorar mais um pouco, ela fungou e secou as lágrimas na saia do vestido. Respirou fundo, ajeitando os cabelos. Voltou atrás no caminho e pegando as sandálias, calçou-as. Disse que sabia o que ia fazer: procuraria sua avó, a mãe de seu pai. Ela se apresentaria a ela e pediria ajuda. Quem sabe, ela a acolhesse? Tentei dissuadi-la, pois achei que sua avó já tinha feito mal demais àquela família. Não queria que ela sofresse. Mas Cristina estava decidida:

-Ela pelo menos vai ter que me ouvir. É minha avó. Sou a neta dela. Não vai poder me colocar para fora de sua vida sem ao menos me escutar. Meu pai me disse que ela agora está velha e doente. Vou me oferecer para cuidar dela.

Dizendo aquilo, Cristina se ergueu, e me puxando pela mão, começamos a voltar para casa.

Durante alguns dias, ninguém mais escutou falar no assunto. Cristina não mais sentou-se à mesa conosco. A casa estava silenciosa, e o ar, pesado. Mamãe estava sempre de mau humor, e papai fechava-se no escritório durante horas. Às vezes, mamãe saía e ficava fora por muito tempo também. Eugênio e Flora não mais deixavam que Cristina frequentasse a casa, obrigando-a a ficar sempre no apartamento que ocupavam sobre a garagem, sozinha, ou então mandavam-na às compras no mercado, mas eu não tinha mais permissão para acompanhá-la, e ela tinha que estar de volta em menos de uma hora, ou Eugênio iria atrás dela.

Um dia, Cristina desapareceu.

Ela tinha ido ao mercado, mas após duas horas e meia, ainda não tinha voltado. Mamãe ligou para Tia Aurora, que disse que Marcelo também não estava em casa, e nem no escritório. Todos ficamos pensando que os dois tinham fugido juntos. Tia Aurora foi até a nossa casa, e estava furiosa! Andava de um lado ao outro, bradando: 

-Se você tivesse expulsado essa garota daqui como eu pedi, nada disso estaria acontecendo!

Ela ignorava a presença de Flora, que chorava na cozinha, enquanto Eugênio tinha saído para procurar a filha. Mamãe tentava acalmá-la, até que as duas começaram a gritar uma com a outra.

Mamãe estava muito envergonhada pelo escândalo de Tia Aurora. Pedia desculpas a Sebastian a todo momento, mas Sebastian dizia que ela não deveria desculpar-se por nada. Papai ligou para o escritório, avisando a Duílio que tomasse conta de tudo, pois um problema doméstico exigiria sua presença em casa.

Eu nunca tinha visto, em toda a minha vida, Tia Aurora perder a compostura; nem mesmo diante da presença da amante de Tio Antônio, no velório. De repente, o lago tranquilo de águas doces transformou-se em um caudaloso rio de águas turbulentas e correntezas perigosas. Ela berrava: 

-Eu quero meu filho de volta!

E enquanto todos gritavam uns com os outros fazendo acusações das quais se arrependeriam mais tarde, Marcelo entrou na sala devagar, e ficou boquiaberto com o que via. Estavam todos tão entretidos em discutir, que só o notaram minutos depois de sua chegada, quando ele passou no meio deles e sentou-se no sofá, a cabeça entre as mãos. Todos pararam de falar de repente, e olharam para ele, que perguntou: 

-Posso saber o que está acontecendo aqui?

 Tia Aurora correu até ele, perguntando onde ele estivera, e ele se surpreendeu: 

-Não se lembra que eu disse que tinha um almoço importante com um cliente, e que ia demorar, porque depois do almoço eu passaria na empresa?

 Tia Aurora levou a mão à cabeça, num gesto de impotência e arrependimento, enquanto se levantava e pedia desculpas à mamãe e papai: 

-Oh, Nelson, Mirtes... que vergonha! Me perdoem o destempero.

E dizendo aquilo, Tia Aurora já ia pegando o filho pelo braço e saindo, quando papai interviu: 

-Mas... e quanto a Cristina?

 Ela disse: 

Bem essa menina é problema de vocês.

Mas Marcelo queria saber o que tinha acontecido com Cristina, e novo alvoroço começou, com Tia Aurora tentando empurrá-lo porta afora e todo mundo perguntando se ele sabia alguma coisa sobre o que poderia ter acontecido a ela, e ele jurando que não, mas muito preocupado, querendo ajudar a procurá-la.

Finalmente, ele acabou perdendo a paciência com a mãe, desvencilhando-se dos braços dela, e declarando: 

-Eu quero saber o que aconteceu com ela, e não vou sossegar até encontrá-la!

 Tia Aurora revirou os olhos com impaciência, e novamente acusou mamãe de ser a culpada de tudo aquilo. Saiu da casa batendo a porta atrás de si, deixando todos nós atônitos. Tia Aurora realmente estava fora de si.

Flora adentrou a sala carregando uma grande bandeja com um bule de café e xícaras, e uma lata de biscoitos, dizendo que todo mundo ali precisava se acalmar, e nada melhor do que um café bem forte. As pessoas começaram a se servirem, e enquanto tomavam o café e comiam os biscoitos com voracidade, a casa permaneceu silenciosa. Depois, todos estavam mais calmos. Marcelo declarou que ia tentar dar uma volta pela cidade para ver se encontrava Cristina, mas naquele momento, Eugênio entrou na casa, o chapéu nas mãos e o olhar triste. Explicou que a filha estava na fazenda coma  avó, que resolvera deixá-la ficar.

Todos sabíamos que Eugênio já não falava com a família há muitos anos, desde que se casara com Flora, e que estava emocionalmente muito abalado por rever a mãe, já velha e doente. Marcelo perguntou onde a avó de Cristina morava, mas ele disse que não daria aquela informação, e pediu a Marcelo que deixasse sua filha em paz e não causasse mais problemas. Dizendo isso, ele se retirou da sala, pedindo licença.

Sebastian e Berta fizeram de tudo para consolar Marcelo, que só dizia que deveria ter sido mais valente e ter ficado ao lado de Cristina, enfrentando a tudo e a todos. Felizmente, Berta teve a sensibilidade de não dizer a ele o que ela realmente pensava. Todos diziam que ele logo esqueceria Cristina, e encontraria uma moça por quem se apaixonaria de verdade.

Eu me retirei para o meu quarto, emocionalmente arrasada por não saber se eu voltaria a ver minha amiga um dia.

Não mais escutamos falar sobre Cristina durante muito tempo. Anos se passariam antes que voltássemos a ter notícias dela. Eugênio e Flora também não a procuraram, e depois daquilo, Flora foi se tornando uma pessoa cada vez mais calada e ausente, limitando-se a fazer o seu serviço na casa e comportar-se de forma austera e distante. Como se fosse apenas uma empregada. Um dia eu fui falar com ela. Entrei na cozinha e ela estava de pé na pia, descascando legumes para o jantar. Cheguei por trás e abracei-a pela cintura, como sempre fazia, e senti o corpo dela enrijecer contra o meu.

Me afastei, sentando-me à mesa, mas ela não olhou para mim. Apenas me disse que fosse tomar banho, pois o jantar logo seria servido. Ao invés de obedecê-la, retruquei: 

-Sinto falta de Cristina...

 Ela continuou fazendo seu serviço: 

-Ela fez a escolha dela.

Pensei na dureza daquelas palavras, e respondi: 

-Também sinto falta dos tempos em que éramos todos como se fossemos uma grande família.

Ela demorou um pouco a responder, mas depois largou a faca, e abrindo a torneira sobre os legumes, me olhou e disse: 

Éramos como se fossemos. Como se fôssemos. Mas nunca fomos uma família de verdade.

As palavras dela e a dureza em seu olhar, me fizeram sair correndo da cozinha. Flora nunca nos perdoou pela maneira como deixamos que Tia Aurora tratasse Cristina, e mais ainda, pela omissão de meus pais em defendê-la. Também tornou-se amarga em relação ao marido, que deixou a filha ficar na fazenda da avó sem nem mesmo tentar trazê-la de volta.


(CONTINUA...)




segunda-feira, 18 de março de 2019

INOCÊNCIA - PARTE 1 - CAPÍTULO XII







O SEGREDO

Então nós tivemos “a conversa.” Passamos pelas abelhas e flores. Ela me explicou à grosso modo de onde vinham os bebês, e eu me lembrei da cena que eu presenciara na cozinha entre Marcelo e Cristina. Aliás, quando eu estava sozinha, aquela cena me vinha sempre à cabeça, me causando sensações estranhas. Eu comecei a perceber que quando eu me tocava exatamente no local onde eu vira Marcelo acariciando Cristina, aquilo me dava alívio. Aprendi a me masturbar, mas sem saber exatamente o porquê daquilo, mas depois que mamãe e eu tivemos “a conversa,” passei a compreender tudo bem melhor. Ela me explicou que estar com um homem era prazeroso, mas que eu deveria resguardar-me para aquele momento quando fosse madura o suficiente e tivesse um marido.

Meus momentos solitários na banheira ou em meu quarto passaram a contar com um segundo personagem, embora imaginário: um menino que eu gostava em sala de aula, na nova escola onde eu estudava em Rio da Prata. Eu imaginava que nós estávamos na cozinha da nossa casa em uma noite de tempestade, fazendo exatamente o que eu vira Cristina e Marcelo fazerem.

Notei que meus seios começavam a apontar sob a blusa de malha, e mamãe me levou à cidade para comprar sutiãs. Meu primeiro sutiã era de renda azul clara, de alças finas e delicadas. Eu mesma o escolhera. Além dele, mamãe ainda comprou-me mais alguns, e também uma anágua para usar debaixo dos vestidos mais transparentes; 

-Agora você está ficando mocinha, ela disse, - E precisa se cuidar.

O curioso, é que naquela mesma semana eu tive a minha primeira menstruação. Mamãe me explicou como usar o absorvente, prendendo-o na calcinha com alguns pontinhos de agulha, e trocando-o a cada quatro ou cinco horas. Eram três ou quatro dias muito incômodos.

Bem, eu estava usando um sutiã e um absorvente; tinha seios e alguns pelos pubianos, e já precisava depilar as axilas e as canelas. Tinha permissão de mamãe para usar esmalte cor-de-rosa transparente quando desejasse, e também um batom incolor. Corri para contar à Joana a novidade.

Nós estávamos sentadas no gramado da casa dela após a escola, perto da piscina. Ainda usávamos os nossos uniformes. Tia Aurora não estava em casa, pois ela e Marcelo tinham ido ao restaurante cuidar dos negócios. Contei a ela sobre o que estava me acontecendo. Ela arregalou os olhos, dizendo que aquilo já estava acontecendo a ela há algum tempo, mas que tinha vergonha de contar. Ficamos horas discutindo, trocando nossos “conhecimentos” sobre reprodução, sexo, garotos, menstruação e outras coisas afins. Ela me passou as informações que obtivera de sua mãe, e eu, as que obtivera da minha. Joana sempre tentava soar mais bem informada do que eu, e comecei a pensar que eu estava em desvantagem de alguma forma.

Novamente eu me lembrei sobre o dia em que vi Marcelo e Cristina na cozinha; já se passara quase um ano desde aquela cena, mas ela continuava viva em minha memória. De repente, encarei Joana. Ela logo percebeu que eu queria dizer alguma coisa, mas que estava em dúvida sobre se eu deveria ou não. E ela estava certa. Eu não sabia se poderia partilhar com ela o que vira, mas ao mesmo tempo, sentia a necessidade de mostrar-lhe que sabia mais do que ela, que vira coisas que ela jamais tinha visto. Ela me encorajou, dizendo que podia confiar nela, agora que éramos amigas íntimas.

E eu comecei dizendo que vira uma coisa na cozinha da minha casa, descrevendo a cena toda em detalhes. A cada detalhe, ela punha  a mão sobre a boca, como se estivesse escandalizada, mas os olhos dela brilhavam de curiosidade, e ela me incentivava a contar mais sempre que eu me calava. Finalmente, ela me perguntou quem eram os protagonistas da tal cena. Achei que ela estivesse duvidando de mim e de minha história, mas Joana me garantiu que não, e que se eu tinha contado a ela tudo aquilo, teria que confiar nela e contar a história toda, pois não seria justo deixá-la tão curiosa.

Hesitei; afinal, não queria colocar Cristina e Marcelo em maus lençóis. Mas a insistência de Joana fez com que, em um impulso zangado, eu dissesse: 

-Está bem, eu conto! Foram Cristina e seu irmão!

Ela se levantou do pedacinho de grama aonde estávamos sentadas com um salto:

-Meu Deus! Meu irmão e a … Cristina??? Mas ela é filha da empregada! E além de tudo, tem pele escura! Ele a beijou na boca, e... e... naquele lugar???

Fiquei zangada por ela se referir à Cristina daquela forma, mas me lembrei do dia em que minha própria irmã tinha feito um comentário semelhante. Implorei à Joana que não contasse aquela história a ninguém. Seria o nosso segredo. Ela concordou com a cabeça, mas baixou os olhos. Ficou calada e pensativa enquanto íamos para minha casa, onde almoçaríamos. Mal sabia eu que aquela pequena fofoca modificaria a vida de Cristina para sempre, e a de todos nós também. 

Ainda do lado de fora, peguei-a pelo braço, dizendo: 

-Lembre-se que você prometeu não contar nada a ninguém! Joana, eu confiei em você! Além do mais, já faz muito tempo que isso aconteceu.

Ela concordou com a cabeça, mas não disse nada.

Nós estávamos muito caladas durante o almoço, e mamãe percebeu. Mais tarde, veio me perguntar se estávamos brigadas uma com a outra, mas eu assegurei que não; disse que estava me sentindo indisposta por causa da menstruação, e ela acreditou.

Enquanto Cristina colocava as travessas de comida diante de nós, percebi os olhos de Joana presos nela, escrutinando cada movimento. E não era um olhar amigável. Joana parecia querer desintegrar Cristina com os olhos! Quando Cristina sentou-se à mesa conosco, como sempre fazia, Joana parecia que ia explodir de indignação, mesmo sendo aquele o mesmo procedimento de anos. Eu a cutuquei com um pé por debaixo da mesa, e ela me olhou, assustada, deixando de encarar Cristina, que sem saber de nada, às vezes interrompia o almoço para ir e voltar da cozinha com outra jarra de suco, mais salada ou arroz, tendo o habitual sorriso no belo rosto. Joana sempre gostara de Cristina antes daquilo. As duas andavam de mãos dadas, e se abraçavam. Cristina segurava as nossas mãos, e brincávamos de roda no quintal. Fiquei com medo de que aquelas cenas jamais se repetissem.

Eu só queria que meu mundo continuasse a ser perfeito. Já não tínhamos Tio Antônio conosco, o que me deixava triste e causava um arranhão no verniz, e apesar da descoberta de que ele enganara Tia Aurora por anos a fio, se ela podia negar o fato, eu não via motivos para que alguém interferisse, caso ele estivesse vivo. E acreditava que, caso a tal mulher não tivesse aparecido, Tia Aurora continuaria sendo a mulher doce que sempre fora. Não teria se transformado naquela mulher de negócios totalmente inadequada ao que se esperava de uma mulher nos anos setenta. Talvez tivesse aceito a oferta de ajuda de papai; talvez tivesse continuado a nos receber à porta de casa com um sorriso fabricado no rosto, avental sobre os vestidos caseiros rodados, mesas arrumadas para o chá da tarde como se fossem arranjadas para uma foto de capa de revista.

Eu não queria que as pessoas mudassem. Mas eu não sabia que elas não estavam mudando, apenas revelando o que realmente eram, e que eu estava ficando madura o suficiente para perceber aquilo. E quando descobri isso, a dor foi muito maior.

Joana era minha prima querida, que se transformara em minha melhor amiga, a amiga de infância com quem cresci e que sabia absolutamente tudo sobre mim. Jamais precisara enxergar seu lado preconceituoso e moralista. Jamais precisara escutar, de verdade, os comentários maldosos que ela fazia sobre algumas das meninas que como Cristina, eram bolsistas na escola, filhas de pessoas humildes: “Ela deveria estudar em uma escola para pessoas da classe dela, e não aqui. Acho que ela até se sentiria mais à vontade.” No começo, achei que tais comentários fossem apenas provocados pelo fato de ela estar zangada com Cristina, mas com o tempo, percebi que eles retratavam exatamente o que ela pensava – herança do que mais tarde descobri serem os pensamentos de Tia Aurora. A minha linda, elegante, admirável Tia Aurora. A mulher que, depois de viúva, superou todas as expectativas da sua época, e ao invés de choramingar, tomou a frente dos negócios e da família – mesmo que eu só a tenha admirado por isso após muitos anos. Ambas tinham a marca do preconceito sobre a pele e nas retinas com que olhavam para o mundo e para as pessoas. Apesar de serem pessoas admiráveis em outros aspectos, eram mesquinhas em um dos aspectos que eu considerava o mais importante.

Papai vivia dizendo que eu só olhava o lado negativo das pessoas, e ele tinha razão, e que por causa disso, caso eu não mudasse, poderia amargar uma vida de solidão. Novamente, ele estava certo. E eu nem percebia que o meu 'preconceito contra o preconceito' era nada mais, nada menos, do que uma outra forma de intolerância. Durante uma discussão, quando eu já era adulta, papai me acusou de ser uma “arrogante que achava que sabia mais do que todo mundo sobre todas as coisas”.  Chorei lágrimas amargas depois daquela afirmação, pois ela caiu sobre mim como uma pedra enorme, demolindo as convicções que eu tinha sobre mim mesma de uma pessoa justa, limpa, aberta e confiável. Enquanto eu tentava me recuperar do impacto da primeira frase, meu pai soltou uma outra: 

-Você é tão ou mais obtusa do que as pessoas que tanto critica! -  ele vociferou. Ficamos alguns dias sem nos falarmos depois daquilo.



(CONTINUA...)









terça-feira, 12 de março de 2019

INOCÊNCIA - PARTE 1, CAPÍTULO XI







VIDA QUE SEGUE


A transformação de Tia Aurora após o velório foi chocante: a dona de casa perfeita deu lugar a uma mulher de negócios dedicada e feroz. Nunca mais a vimos abrir a porta para nós usando um de seus aventais estampados, e ela mudou o corte de cabelo, cortando-o curto e tingindo-o de loiro escuro. As roupas também mudaram, dando lugar a uma nova Aurora: os vestidos esvoaçantes, as saias plissadas e românticas e as blusas com estampas florais delicadas de mangas três-quartos deram lugar a terninhos arrojados, calças de alfaiataria, blusas de seda lisas, saltos médios e confortáveis e cores neutras.

Papai saiu do hospital, contrariando as mulheres cuja conversa escutei no banheiro do velório. Ele  chegou em casa numa tarde de quinta-feira, magro e abatido. Seus cabelos tinham caído totalmente, e ele ainda ficou em casa, de repouso, durante alguns meses, mas os médicos diziam que ele estava curado e que só precisava se fortalecer. Assim, nós nos mudamos de vez para a casa de campo e vendemos o apartamento da cidade, e papai contratou um sócio para ajudá-lo a cuidar dos negócios. Ele dizia que seria bom ficarmos perto de Tia Aurora, pois ela, sendo apenas uma mulher, não poderia gerir os negócios do marido sozinha, mas ela já tinha o controle de tudo, e estava preparando Marcelo para assumir os negócios em alguns anos. Ele, que queria estudar odontologia, viu-se forçado a desistir e optar pelo curso de administração de empresas, a contragosto, pois Tia Aurora deixou claro que não admitiria lidar com caprichos e teimosias; o que tinha que ser feito seria feito, segundo ela mesma.

O sócio de meu pai chamava-se Duílio. Era um belo homem aparentando estar se encaminhando para a casa dos quarenta. Era alto, moreno e tinha olhos negros inescrutáveis, segundo escutei mamãe dizer a papai após um jantar de apresentação. Tio Duílio, como acostumei-me a chamá-lo já na primeira vez em que nos conhecemos, era viúvo e não tinha filhos. Morava com os pais idosos desde que a esposa falecera, pois assim, dizia ele, poderia olhá-los mais de perto. Enquanto papai estava em recuperação, ele nos visitava nos finais de semana para deixá-lo a par do que acontecia no escritório, e naquelas ocasiões, passava as noites de sexta-feira lá em casa, e às vezes, ficava para o almoço de sábado. Após o almoço, papai ia descansar e mamãe ficava fazendo sala para ele. Às vezes eu passava pelo corredor e escutava os dois conversando na varanda ou na sala de estar. Sentia o cheiro do cachimbo que, como papai, ele fumava: perfumado e másculo. Eu me sentia segura com ele ali, tomando conta dos negócios de papai e fazendo com que mamãe se distraísse um pouco. Às vezes, eles iam dar uma volta à pé pelas redondezas.

Eu simplesmente o adorava, assim como as demais mulheres da família, que diziam que ele era “um pão” - gíria usada naquela época para definir os homens bonitos. Porém, depois que papai se recuperou totalmente, as visitas de Tio Duílio rarearam bastante, limitando-se às vezes em que papai o convidava para o fim de semana, o que era raro. Nós nos reuníamos em volta dele, que trazia presentes para mim, Berta, Cristina, Marcelo. Um dia, ele trouxe flores para minha mãe, e uma caixa de chocolates para Flora. O cheiro do fumo que ele usava invadia os cômodos da casa, e Eugênio dizia que o cheiro o deixava enjoado. Eugênio e Flora o tratavam muito bem, mas eu os conhecia e sabia que os dois não gostavam de Duílio. Eu não conseguia entender como alguém poderia não gostar dele!

Mamãe andava abatida; Flora dizia que era por ter passado tantas noites em claro cuidando de papai, sem admitir que alguém a ajudasse, pois fazia questão, ela mesma, de cuidar dele. Assim, passou a fazer gemadas e tônicos caseiros, obrigando mamãe a tomá-los, o que ela fazia entre caretas. Porém, nada parecia deixar mamãe contente. Ela andava pelos cantos da casa, taciturna e calada, e perdia a paciência conosco à toa, o que fazia com que andássemos como se estivéssemos pisando em ovos. E Flora, após as crises de mamãe, levava-a para o quarto, despindo-a e fazendo com que se deitasse para descansar. Eu comecei a ficar muito preocupada com ela, mas Berta me disse que era coisa de mulher: mamãe estava passando pela menopausa.

Fiquei mais confusa ainda. Será que eu também passaria pela menopausa? Perguntei à mamãe , um dia em que ela estava mais calma, o que aquela palavra significava. Estávamos no quarto de meus pais, e ela estava deitada na cama descansando. Eu tinha passado por lá para desejar-lhe boa noite. Eu tinha então doze anos de idade. Papai ainda estava no escritório, o que facilitou para que eu perguntasse a ela o que era menopausa, já que eu intuía que era algo que não se discutia na frente dos homens. Ela me encarou durante algum tempo, e respirando profundamente, fez sinal para que eu me sentasse na cama ao lado dela. 

(CONTINUA...)





A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...