quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O ÚLTIMO FINAL DE SEMANA - PARTE IV

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O Último Final de Semana – Parte IV

Valéria leu o e-mail pela centésima vez: “Querida irmã (posso chama-la assim? Fomos criados juntos, e é assim que eu sempre quero lembrar-me de você). Por favor, venha até a casa de praia, pois preciso urgentemente falar com você. Quero desculpar-me por tudo o que aconteceu entre nós. Estou muito doente, e não quero deixar este mundo sem antes ter certeza de que me reconciliei com todas as pessoas que feri, e que amei. Que amo. Lembre-se que quando tudo aconteceu, eu era só um menino. Não tinha noção sobre o que era certo ou errado, e tinha acabado de perder meus pais, estava confuso e sentia-me totalmente só. Quando tia Cleide disse que ficaria comigo, senti um enorme alívio! Sou-lhe muito grato, apesar de tudo... e você foi uma das melhores coisas que me aconteceram na vida, nesses vinte e nove anos em que eu existo. Por favor, venha... preciso muito de você.”
Valéria deu um longo e profundo suspiro, e deixou que suas memórias, mais uma vez, tomassem conta do espaço ao seu redor.

Quando viu Rodrigo pela primeira vez, sabia apenas que ele tinha perdido os pais recentemente, e não tendo mais nenhum parente vivo, fora convidado por sua mãe para morar em sua casa. Cleide, sua mãe, dissera-lhe que fosse gentil com ele, pois ele estava muito ferido. E foi exatamente assim que ela o encontrou quando chegou na sala e o viu, segurando uma mala, tímido, meio-descabelado e tremendamente bonito. Os olhos tristes que pousaram sobre ela abriram uma fenda em seu peito e chegaram até o seu coração. Ele tinha apenas treze anos, e ela, quinze. 

Cleide era uma jovem viúva de trinta e três anos, milionária e solitária, que procurava um sentido maior para a vida, e achou que levando Rodrigo para junto dela, ganharia pontos com Deus ou seja lá com quem fosse. Nara, sua falecida prima e mãe de Rodrigo, há muito tempo afastara-se dela devido a uma briga, e nunca mais se encontraram, portanto, Cleide não conhecia Rodrigo. Apesar de serem primos distantes, ela o ensinou a chama-la de tia. Tia Cleide. Sentia que assim teria mais autoridade sobre ele. Melhor do que se ele a considerasse apenas uma prima mais velha de segundo grau. 

Ela não sabia que o rapazinho de treze anos que ela aguardava no aeroporto seria tão bonito pessoalmente, muito mais do que na fotografia que recebera dele por e-mail. Quando se encontraram, ele já estava com a mala. Ela parou diante dele, cujos olhos feridos e despedaçados em mil caquinhos verde-brilhantes pousaram suavemente nos dela. Ela deixou escorrer uma lágrima, mas logo a secou. Lembrou-se da prima, mãe daquele menino, e pensou que a vida era mesmo uma coisa muito louca e imprevisível... estendeu os braços para ele, que acomodou-se entre eles desajeitadamente por um breve momento. Em silêncio, dirigiram-se para o carro, e foi quando Cleide começou a tagarelar sobre tudo: a filha que os esperava em casa (você vai a-do-rar a Valéria! Ela é muito responsável. Sabe que com apenas quinze anos já está quase terminando o segundo grau? E além disso, ela é linda, e inteligente!),  a casa (você vai amar viver em uma casa de praia! É claro, quando as férias terminarem, iremos todos para o meu apartamento na cidade, onde já matriculei você em uma escola ótima!), a vida que eles teriam juntos (Sou uma pessoa muito divertida! Adoro festas, dinheiro não é problema para mim, pois meu falecido marido deixou-me muito bem, e nós vamos nos divertir muito juntos). Rodrigo permanecia em silêncio, e quando ela olhou pelo retrovisor e viu que ele estava chorando, sentiu-se a mais insensível das criaturas. 

Desculpou-se, e fez o restante do trajeto calada. 
Valéria achava que apaixonara-se por Rodrigo no momento em que pôs os olhos nele pela primeira vez, apesar da diferença de idade, pois Valéria era uma menina pequena e frágil que aparentava menos idade do que tinha. Os amigos diziam que ela parecia uma fadinha, ruiva e pequena, com sardas no nariz e olhos azuis. Já Rodrigo, tinha compleição forte, era alto para sua idade e parecia ter dezesseis anos. Valéria analisou-o, pensando no belo homem que ele seria um dia. Sentiu que estava sendo analisada, e que por trás daquela fragilidade que ele emanava, havia também um interesse especial por ela, o que a envaideceu. 

Em alguns dias, Rodrigo parecia estar perfeitamente adaptado à sua nova família. Iam à praia juntos todos os dias – ela, Rodrigo e sua mãe, sempre presente e atenta. Ele já as tratava como se as conhecesse há mais tempo, e elas estavam absolutamente encantadas com a presença dele. Após a praia, onde passavam o tempo brincando na água (atiravam água uns nos outros, jogavam bola ou simplesmente boiavam em silêncio, olhando o céu), eles tomavam banho, almoçavam e iam até a cidade, onde passeavam, tomavam sorvete e iam ao cinema ou ao shopping. Cleide comprou muitas roupas novas para Rodrigo, pois descobriu, através de seus advogados, que a única coisa que seus pais deixaram para ele foram algumas roupas velhas e um aluguel vencido. Ela tratou de encher o menino de presentes caros e roupas de marca, que ele aceitava sem questionar, e pelas quais sempre agradecia. E Cleide adorava aquilo, pois não gostava de falsa modéstia. Sentia-se bem quando via 

Rodrigo, bronzeado e tão bonito, usando seus presentes como se tivesse direito a eles. 

À noite, Cleide geralmente convidava alguns amigos ou era convidada, e eles davam alegres festas regadas a muito champanhe, embora ela não permitisse que Rodrigo tomasse mais que uma taça. Havia sempre muita música, risos e danças. Pessoas ricas, bonvivants que sabiam muito bem como aproveitar a vida sem precisarem preocupar-se com dinheiro. E Rodrigo parecia estar adorando tudo aquilo!

As pessoas já tratavam Rodrigo como um deles, e adoravam sua esperteza, o seu bom-humor ácido e a capacidade que ele tinha de fazer rir. As mulheres o apreciavam por ser um excelente dançarino, e os homens, porque ele aprendia rápido e logo tornava-se um excelente parceiro para jogos. E é claro, todos sentiam-se seduzidos pela sua beleza e magnetismo. Certa vez, Márcia, uma das amigas de Cleide, declarou, após dançar uma música lenta com Rodrigo onde o vinho e o champanhe fizeram com que ela se agarrasse ao menino mais do o bom senso aconselhava, mas Rodrigo nada fez para desvencilhar-se: “Cleide, esse menino é uma das suas maiores descobertas! Simplesmente maravilhoso! Que sorte a sua, tê-lo sempre por perto.” Cleide sorriu, mas sentiu um gosto amargo por dentro; já Valéria, queimando de ciúmes, foi caminhar sozinha pela praia. Rodrigo a seguiu.
Os ruídos da festa já estavam distantes quando ele finalmente a alcançou:

“Hey, o que deu em você, Valéria? Não está se divertindo?”

Ela parou de caminhar, apertando a echarpe de seda em volta dos ombros, olhando o mar:

“Estou bem... pode voltar para lá e continuar a sua dancinha obscena.”

Rodrigo logo percebeu a razão do destempero dela, e riu, o que fez com que ela se enfurecesse ainda mais:

“Valéria, você está com ciúmes de mim?!” 

Ela saiu correndo, e ele ficou parado na praia, tentando tomar uma decisão. Logo, correu atrás dela, e a alcançou novamente. Puxou-a para si, embora ela tentasse desvencilhar-se, e abraçou-a, prendendo-a em com força. Ela parou de lutar. Percebeu que apesar da idade, ele era um menino forte e decidido:

“Eu estou feliz que você se sinta assim, Valéria. Vamos voltar para lá e deixar aquelas amigas de sua mãe morrendo de inveja!”

Dizendo aquilo, ele a beijou. E a Terra inteira pareceu girar em volta deles. E eles voltaram para a festa, onde dançaram juntos a noite toda, sob os olhares ciumentos (mas conformados) das mulheres da festa, principalmente, de Cleide.

Quando as férias terminaram, eles foram morar no apartamento da cidade, que era quase tão bonito quanto a casa de praia, mas não tinha tanto charme, pensou Rodrigo. Seu quarto era o maior de todos, pois Valéria cedeu o dela para ele, já que ela iria embora para voltar a viver na escola interna americana tradicionalíssima onde ela estudava desde criança. A última noite entre eles foi muito significativa para ela, pois entregou a Rodrigo a sua virgindade.  Ficou comovida quando ele confessou que também era virgem, e interpretou que a aparente experiência dele (parecia um daqueles amantes adultos que ela via nos filmes) era devida a perfeita comunhão entre ambos; ou, quem sabe, ele também assistisse àquele tipo de filmes? Bem, tudo o que importava para ela, é que ele fora maravilhoso, e ela não via a hora das férias chegarem para que ela pudesse experimentar mais. 

Mal sabia Valéria que a experiência dele vinha das muitas noites em que, sorrateiramente, ele fora dormir com Cleide. E Cleide não desconfiava que ele fazia o mesmo com a maioria de suas amigas, que davam-lhe muitos presentes – joias e relógios caros que ele dizia a elas que guardaria para que Cleide não desconfiasse de nada, mas ele os vendia, escondendo o dinheiro em uma caixa, sob suas roupas. 

Um ano se passou, e Valéria não pode voltar para casa nas férias de julho, pois Cleide tratou de inscrevê-la em um programa de férias, um curso chatérrimo que sua mãe dissera que seria importantíssimo para a formação dela. Assim, contentava-se em matar as saudades de Rodrigo pelo computador, em e-mails e chats onde ambos se desmanchavam em confissões de amor e saudade.
Quando ela finalmente conseguiu voltar para casa, ao final do curso, encontrou um Rodrigo muito mais alto e amadurecido. Seu rosto tomara um contorno mais acentuado, os pelos dos braços e pernas haviam crescido, e sua voz engrossara.

(continua...)

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O ÚLTIMO FINAL DE SEMANA - PARTE III


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O Último Final de Semana – Parte III

Ronaldo estava sentado na varanda de seu apartamento, enquanto observava os carros com seus faróis e lanternas acesas iluminando o comecinho da noite. Sempre gostou de observar o movimento do trânsito, pois tinha a impressão de que, enquanto aquela bagunça estivesse acontecendo, tudo estaria normal, e o mundo seria um lugar habitável. Olhar o trânsito dava-lhe mais realidade à percepção: aquelas pessoas dentro dos carros não tinham a menor ideia sobre quem realmente eram, para onde estavam indo ou o que queriam, exatamente como ele. Era bom guardar a ilusão de que ter um emprego, nome e sobrenome, pertencer a uma família e ter um endereço fixo trouxessem a alguém uma identidade, ou seja, segurança. E ele sempre tivera aquela ilusão, e fora através dela que cometera o maior erro de sua vida. Porém, aprendera muito através daquele erro, compreendendo finalmente que segurança é ilusão, e tentar controlar o curso dos acontecimentos, uma falácia. A qualquer momento pode chegar em nossas vidas um acontecimento (ou pessoa) que desafiará o que acreditamos ser a normalidade da vida, virando tudo de pernas para o ar e nos deixando com aquela sensação de termos pulado em um abismo. A qualquer momento, tudo o que conhecemos como seguro pode mostrar-se uma grande armadilha.

A primeira vez em que viu Rodrigo, estava almoçando em um restaurante self-service. Trabalhava em uma multinacional, tinha um salário razoável, usava um terno, morava em um pequeno apartamento pintado de cinza-gelo, com móveis de formato quadrados cinza-escuros, persianas cinzas e alguns adornos em cerâmica preta e branca que encontrara em uma loja de decoração e que podiam, à primeira vista, serem confundidos com obras de arte.  Também namorava uma moça de boa família, com quem pretendia casar-se e ter um ou dois filhos. Para ele, sua vida estava perfeita, e alcançara, aos vinte e nove anos de idade, uma estabilidade que seu pai só conseguira após os cinquenta. O restaurante estava cheio. Ele viu quando um jovem bem vestido com rosto e físico de Adônis olhava em volta segurando um prato de comida, procurando por uma mesa ou um lugar para sentar-se. Querendo ser gentil, Ronaldo ergueu o braço e ofereceu-lhe a cadeira vaga em sua mesa. 

A simpatia de Rodrigo contagiou-o. Ele não sabia que aquela simpatia e magnetismo pessoal eram como um visco no qual Rodrigo prendia suas vítimas! Ambos logo ficaram amigos. Começaram a frequentar o apartamento um do outro. Rodrigo dizia ter trabalhado em uma grande multinacional, emprego que deixara recentemente porque não via ali nenhum futuro, e não gostaria de passar o resto da vida trabalhando para os outros. Em poucas palavras, descreveu como desprezível a vida que Ronaldo sempre almejara: crescer na empresa, casar-se cedo, criar filhos e conseguir uma boa promoção, permanecendo na companhia até aposentar-se. Aquilo fez com que Ronaldo pensasse muito, e reavaliasse seus valores e objetivos.  Rodrigo também disse que seu falecido pai deixara-lhe uma pequena fortuna, e que ele estava procurando um sócio para abrir um negócio. Em nenhum momento, convidou Ronaldo a participar. Apenas descreveu, com enormes adjetivos, tudo o que tinha em mente: a empresa de importação e exportação que estaria dando lucros imensos em apenas dois anos, as ideias para expansão, enfim, um quadro maravilhoso que teria seduzido qualquer um. 

Ronaldo ouviu-o com atenção, avaliando mentalmente as ideias do seu novo amigo e vendo que eram perfeitamente viáveis. Como ele não pensara naquilo antes? Mas... de que adiantaria ter pensado, se ele não tinha todo o capital disponível? Aliás, não tinha sequer a metade. É claro que economizara bastante, mas não o suficiente.

Rodrigo convidou-o para um final de semana em sua casa de praia. Ronaldo inventou uma viagem de negócios para sua noiva Jane, e aceitou o convite. Descobriu que não a amava, pois ela fazia parte de um contexto de vida que de repente parecia-lhe muito monótono, e na volta, terminaria o noivado com ela. Surpreso e confuso, viu-se com o pensamento totalmente fixo em Rodrigo. Acordava respirando Rodrigo e assim permanecia o dia todo. Não estava acostumado a pensar em homens daquela forma. Na casa de praia, sentiu-se desconcertado ao ver Rodrigo enxugando-se após o banho através da fresta da porta entreaberta. Com o coração e a mente à mil, trancou-se em seu quarto, debaixo do chuveiro frio. Não conseguia entender aqueles pensamentos! Jamais sentira-se assim em relação a outros homens... a não ser na escola, quando ainda era um menino... e mais tarde, na faculdade, mas conseguira dispersar aquelas ideias esquisitas quando conheceu Jane. O sexo entre eles era morno, e ele percebia que ela às vezes fingia orgasmos, mas embora o prazer que sentisse não fosse lá grande coisa, ela mostrava-lhe que ele era ‘normal.’ Se fosse gay, não conseguiria ir para cama com uma mulher, e nem ter um orgasmo com ela. 

Quando saiu do quarto já vestido para almoçar, deparou com Rodrigo de pé na sala usando uma sunga de banho pequena e apertada! Ele estava de costas, olhando o mar na sacada da frente da casa, e quando Rodrigo percebeu que ele estava ali, deu-lhe um sorriso iluminado, comentando:
“Nossa, está tão quente hoje que eu não consegui vestir nada. Você se importa se eu almoçar assim? Pedi comida japonesa por telefone, vai chegar em alguns instantes.”

Naquela noite, Ronaldo teve sua primeira experiência homossexual. Foi reveladora para ele! De repente, todos os pedaços de sua vida se encaixaram, e ele entendeu quem ele realmente era. As coisas tomaram novo rumo, e a vida ganhou um outro sentido. Tudo era mais colorido, vívido e intenso! Ao lado de Rodrigo, Ronaldo descobriu-se o homem mais feliz do mundo. Rodrigo era tudo o que ele jamais sonhara: alegre, sempre de bom humor, impactante e intensamente bonito, inteligente, criativo, engraçado, gentil, cativante... enfim, o ser humano perfeito!

Os dois meses que seguiram ao encontro deles foi tórrido, cheio de paixão. Passavam os finais de semana na casa de praia, ou viajavam de carro para cidades próximas onde alugavam quartos de hotel nos quais permaneciam juntos a noite e o dia todo. Quando ele perguntou a Rodrigo se a vida seria sempre assim, maravilhosa, ele olhou-o intensamente e respondeu, após alguns segundos:
“Saia daquele empreguinho que te sufoca, e venha morar comigo em meu apartamento. Seja meu sócio. Só assim a vida será sempre uma festa para você, para nós...” 

Naquele instante, Ronaldo pulou no abismo. 

Logo no dia seguinte após pedir demissão do emprego seguro que tinha e passar para a conta de Rodrigo todas as suas economias, fez as malas, entrou no carro e rumou para a casa do namorado. Era um lindo dia de sol de abril, e a cidade parecia envolta por uma névoa de magia. Telefonara a Rodrigo dizendo que o dinheiro já estava na conta dele, e que estava indo para lá; Rodrigo mostrou-se muito feliz com sua decisão, e disse que o aguardava com uma garrafa de champanhe para comemorarem juntos. Prometeu-lhe uma noite inesquecível, na qual jantariam juntos (já tinha feito reservas para eles no melhor restaurante da cidade) e depois esqueceriam do mundo nos braços um do outro, e então... trabalho sério para abrirem seu novo negócio de importação e exportação!

Ronaldo chegou à porta do apartamento e tocou a campainha, dizendo para si mesmo que em breve não seria necessário, pois teria a sua própria chave, para o apartamento e a vida de Rodrigo. Esperou alguns instantes, encostando o ouvido à porta. Tocou a campainha novamente. E novamente. E mais uma vez. Depois de cinco minutos, ainda achou que Rodrigo deveria ter ido comprar o champanhe, e sentou-se à porta do apartamento para aguardá-lo. Quando finalmente compreendeu (ou aceitou) que tinha sido enganado pelo seu grande amor, já era noite. Ele ergueu-se do chão do corredor, pegou suas malas e voltou ao apartamento. Ia pedir seu emprego de volta no dia seguinte, ou quem sabe, ainda poderia descobrir que tudo não passara de um engano, e que Rodrigo estava apenas preparando-lhe uma surpresa?...

Não conseguiu seu emprego de volta. Em breve, não tinha mais dinheiro para o aluguel, e voltou a morar com os pais. Ao saber da história, seu pai colocou detetives atrás de Rodrigo, mas jamais conseguiram encontra-lo. O dano emocional que sofrera fez com que Ronaldo fosse internado em uma clínica para curar a depressão que, desde então, jamais o deixara; tinha apenas momentos de remissão, que conseguia à base de medicamentos. Finalmente, após um ano, Ronaldo conseguiu um outro emprego, retornando à segurança que agora sabia ser ilusória  e começou a reestruturar sua vida. Voltou a viver no apartamento cinzento no qual se encontrava naquele momento, logo após ler o e-mail de Rodrigo. 

Um caminhão buzinou com força, trazendo-o de volta à realidade.

Decidiu que apesar de tudo, iria até ele.



quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O ÚLTIMO FINAL DE SEMANA - PARTE II




O Último Final de Semana – Parte II


Fernando pensava nas vezes em que percorrera aquela mesma estrada, há anos. Em sua mente, imagens alegres de um grupo de jovens brincando na praia ou fazendo luaus durante as noites mornas de verão. “Bons tempos aqueles,” pensou. Sua única preocupação era passar nas provas da faculdade. Até que se apaixonou por Carol. Manteve aquela paixão tão bem escondida dentro dele, que ninguém jamais desconfiou que ela existisse. Na verdade, ainda a carregava bem viva dentro de si, apesar dos muitos anos e das muitas mulheres que passaram por sua vida (mas jamais ficaram).

Lembrava-se do quanto gostara, sinceramente, de Rodrigo, e de como a amizade entre os dois cresceu naturalmente. Rodrigo era uma das pessoas mais encantadoras e divertidas que ele jamais conhecera. Inteligente, bem disposto, alegre, simpático. O tipo de pessoa que sabia divertir-se, e sempre conseguia tudo o que queria das pessoas através do seu magnetismo pessoal e poder de persuasão – coisa pela qual Fernando sentia-se muito atraído e curioso, mas que algum tempo depois pareceu-lhe, cada vez mais, um ardil. 

Antes mesmo de conhecer Rodrigo, ele já era apaixonado por Carol, embora nunca tivesse tido coragem de declarar-se, pois achava que havia poucas chances de que sua nova amiga se apaixonasse por ele. Era uma intuição que tinha. Até que um dia Rodrigo (naquela época, eles dividiam um apartamento) chegou em casa dizendo que conhecera uma menina muito linda chamada Carol.  Ao ouvir aquilo, Fernando compreendeu que nunca mais teria qualquer chance com Carol! Conformado, pensou que Rodrigo e Carol eram perfeitos um para o outro: ambos lindos, alegres, maravilhosos... se antes tinha poucas esperanças, naquele momento não tinha mais nenhuma. Mesmo assim, continuou a amizade com ambos, sem ressentimentos, pois e admirava adorava os dois. E cada vez mais, apaixonava-se por Carol. 

Viver com Rodrigo não era muito fácil, pois ele frequentemente dizia que teria que contribuir com menos dinheiro para as despesas, embora aparecesse sempre com roupas novas e caras. Às vezes pedia algum dinheiro emprestado. Muitas vezes, esquecia-se de devolver, e quando Fernando o cobrava, sempre prometia que pagaria tudo assim que seus pais mandassem sua pensão. Fernando não sabia que os pais de Rodrigo haviam morrido há muito tempo, quando ele ainda era criança, e que sua única parenta ainda viva, era uma tia, a dona da casa de praia, que ninguém jamais vira. Fernando descobriu tudo apenas quando atendeu o telefonema de um advogado procurando por Rodrigo; ele dizia que sua Tia Helena havia falecido, e que deixara-lhe uma herança. Ao perguntar pelos pais do amigo, o advogado informou-lhe que ambos haviam morrido em um acidente quando Rodrigo tinha apenas treze anos. Na época do telefonema, Rodrigo e Carol já estavam morando juntos.

Fernando foi procurar o amigo para informa-lo da morte da tia; ele recebeu a notícia com um leve sorriso de alegria sob um bloco de indiferença. Ao ser indagado do porquê de nunca ter dito que seus pais estavam mortos, Rodrigo encolheu os ombros e disse: “Ser órfão faz com que eu tenha mais sucesso com as gatas. Elas adoram um homem desamparado.” A maneira e o tom de voz com que Rodrigo dissera aquilo, causou arrepios em Fernando! Achou que era melhor contar toda a verdade a Carol, e ele o fez; após mostrar-se chocada por alguns instantes, ela respondeu que com toda certeza, Rodrigo tivera seus motivos para manter segredo. Foi quando Fernando percebeu que ela estava tão apaixonada por ele que não tinha importância o que qualquer um dissesse. 
Os dois continuaram amigos, e continuaram saindo juntos. Muitas vezes, Rodrigo deixava Carol sozinha e ambos iam para boates, onde ele se divertia com outras mulheres. Fernando não gostava daquele papel de cúmplice nas infidelidades do amigo, mas não conseguia dizer não para ele por desejo de não ferir Carol, e encobria as saídas do amigo. Carol jamais procurou-o para confirmar nada, mas se ela o tivesse feito, ele já havia decidido que seria o álibi perfeito. Mas quando ele soube que Rodrigo estava saindo com Gina, a melhor amiga de Carol, ficou indignado! Tentou conversar com Rodrigo sobre o assunto, mas ele disse que estava apenas se divertindo, e que não pretendia ter nada sério com ela. Eles discutiram, e Rodrigo disse: “Agora eu percebo tudo: você está apaixonado pela Carol!”

Fernando não pode negar. Sentiu-se envergonhado. Rodrigo começou a rir alto. 
Eles estavam em um bar naquela noite, e Gina tinha ido ao toilete. Rodrigo pediu ao amigo que mantivesse segredo. Fernando disse que se ele não terminasse tudo com Gina naquela mesma noite, ele contaria tudo para Carol.

As feições de Rodrigo mudaram totalmente, e o rosto amigo e alegre que ele sempre conhecera, transformou-se em uma máscara de puro desprezo. Ele retrucou: 

“Você tem inveja de mim, Fernando. Sempre teve, e por isso se aproximou de mim e fez questão de ficar meu amigo: para admirar-me mais de perto, para ver se conseguia aprender a ser um pouco como eu! Sempre quis ter o meu rosto, o meu corpo, a minha vida, as minhas roupas. Pensa que não percebi? E sei também que você está... ‘apaixonadinho’ pela Carol!”

Atônito, não apenas pelo efeito devastador do que o amigo dissera, mas porque ele mesmo sabia que no fundo era tudo verdade, Fernando tentou negar:

“Que absurdo! Só não quero que você machuque a Carol, só isso! Cara, ela e a Gina são amigas desde os tempos de escola!”

Rodrigo deu um sorriso de puro escárnio:

“Você não é nada, Fernando, esse seu jeitinho de cara certinho não atrai ninguém. Você é frouxo. Você não saberia como comer uma mulher como a Carol. Não é homem o suficiente para ela, enquanto eu sou, para ela e para muitas mais! E vou continuar sendo. Nem adianta ir correndo contar tudo para ela feito um maricas, porque não importa o que você faça, ela está de quatro por mim – literalmente, eu diria, e aposto que você gostaria de ver a cena (fez um gesto como se estivesse fazendo sexo com Carol). Meu negócio com a Carol vai acabar quando eu decidir, entendeu? Acho até que você não passa de um virgenzinho... ui! Quem sabe, seja gay? (Rodrigo imitou os gestos de um gay). Você perdeu, Fernando. Sabe por que? Porque você é um perdedor nato.

Naquele momento, Gina voltou para a mesa, e Rodrigo beijou-a apaixonadamente. Fernando saiu do bar e foi direto para o apartamento de Carol, contando-lhe tudo. Ela atendeu a porta de camisola, pronta para ir deitar-se. Vê-la daquele jeito atiçou nele a paixão e o desejo, e Fernando contou com prazer mórbido sobre onde Rodrigo estava naquele momento, e com quem. Enquanto ela sentava-se no sofá da sala, segurando a cabeça entre as mãos, chorando muito, ele se arrependeu; mas quando ela aceitou seu ombro amigo, deixando-se ser abraçada por ele, Fernando imediatamente achou que tinha feito a coisa certa. Beijou-lhe a cabeça fraternalmente, mas logo perdeu o controle, e passou a beijar-lhe as lágrimas, os lábios bem de leve (ela não tentou desvencilhar-se), e abraçou-a mais forte, fazendo com que o corpo dela ficasse totalmente envolvido pelo seu ao deitá-la no sofá; esperou um instante antes de continuar, para ver se ela o repeliria, e como ela não o fez, ele continuou deitado sobre ela, agora deixando as mãos deslizarem de leve sobre seu corpo, aumentando a intensidade das carícias aos poucos. Ela chorava enquanto abriu a camisola e entregou-se a ele.

Quando terminaram, Fernando pensou que a tinha ganho para sempre. Mas ela repeliu sua tentativa de fazerem amor novamente, dizendo:

“Por favor, Fernando. Vá embora.”

“Mas eu pensei que...”

“Vá. Apenas vá.”

“Você não vem comigo?”

Ela pareceu confusa, e olhou para ele entre as lágrimas:

“Como?! Ir com você? Para onde? Por que?”

Fernando não conseguia falar. Percebeu que aquele não tinha sido um momento de paixão. Tinha sido pura vingança. Ela não tinha a menor intenção de deixar Rodrigo. E mesmo que o deixasse, jamais ficaria com ele. Qualquer homem que estivesse ali em seu lugar teria obtido o que ele obtivera naquele sofá. Tinha sido apenas uma vingança perpetrada por um coração ferido, mas pronto a perdoar. Ele catou suas roupas no chão e vestiu-se. Ainda olhou para trás antes de sair, mas Carol não pediu-lhe para ficar.  Humilhado, ele saiu. 

Agora estava naquela estrada, voltando à casa onde tinha tido tantos momentos felizes... a casa de Rodrigo, a casa das reuniões da galera da faculdade. No e-mail, Rodrigo praticamente implorava-lhe que fosse. Pensou nos momentos em que a amizade deles tinha parecido sincera. Por causa daqueles momentos, ele decidiu ir.




segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Último Final de Semana - Parte I

Carol dirigia pela estrada semi-escurecida, envolta em seus pensamentos. Não ligara o rádio, apesar
de sempre fazê-lo quando dirigia por muitas horas. Mas não daquela vez. Queria pensar. Nem sabia ainda porque tinha aceito aquele convite para ir novamente à casa de Rodrigo depois de tudo o que acontecera entre eles no passado. Já tinha percorrido aquela mesma estrada muitas vezes, há sete anos, quando todos estudavam na mesma faculdade e eram amigos inseparáveis. O e-mail era claro: "Preciso ver você novamente. Por favor, esqueça tudo o que aconteceu no passado, pois eu preciso urgentemente de você. Não me abandone..." a urgência daquelas palavras cortaram seu coração ao meio, embora Carol odiasse que aquilo tivesse acontecido.

Aos poucos, sua mente foi viajando de volta ao momento em que ela tinha visto Rodrigo pela primeira vez, comendo um sanduíche na cantina da faculdade. Ela estava sentada sozinha em uma das mesinhas, entre a balbúrdia alegre dos outros jovens que circulavam em volta dela. Mas quando ela o viu, seus olhos ficaram presos na imagem dele, no rosto, no sorriso, nas mãos que seguravam o sanduíche. Carol sabia que já estava apaixonada por aquele estranho perfeito, ou por aquele perfeito estranho. Por mais que tentasse, não conseguia tirar os olhos dele. 

Até que ele percebeu, e sorriu para ela, e de repente, ela teve a sensação de que as nuvens de um céu tempestuoso se abriam e mostravam um infinito perfeitamente azul, imaculado! Logo ela retribuiu o sorriso, e ele convidou-se para sentar-se com ela. Dali, ficaram amigos, e uma semana depois, estavam namorando. Carol parecia ter encontrado seu príncipe encantado! Ainda não sabia que aquele jovem lindo, cheio de vida, simpático e sedutor, transformar-se-ia em um sapo horroroso... que ela continuaria a amar com a mesma intensidade. 

A paixão intensa que tinha por ele fazia com que Carol não enxergasse certos sinais alarmantes: ele sempre pedia-lhe dinheiro emprestado e esquecia-se de devolver... às vezes, ela ficava sabendo que ele fora visto em alguma boate após deixá-la em casa, e morria de ciúmes. Mas ele sempre conseguia convencê-la de que estava apenas com amigos, que encontrara por acaso. E ela se deixava convencer porque já não conseguiria viver sem ele. Faria qualquer coisa, acreditaria em qualquer mentira para não perdê-lo! E ele retribuía seu amor com noites intensas de muito sexo e paixão. Ela nem percebia que aquilo que ele lhe dava, não era e jamais seria amor. Só queria viver aquele sentimento.

Nem percebeu quando Gina, sua melhor amiga, apaixonou-se por Rodrigo. Assim como também só ficou sabendo que os dois estavam saindo há meses depois que ela recebeu a notícia através de um amigo. A úncia coisa que ela conseguiu fazer, foi entregar-se àquele amigo, num gesto de vingança. Mais tarde, ela descobriu que os pais de Rodrigo  já tinham morrido há muito tempo, quando ele ainda era criança, e que ele fora criado por uma tia que também já estava morta, mas que lhe deixara a casa na praia, um apartamento no qual ele não chegou a morar porque ficava em outra cidade distante da faculdade, e algum dinheiro. Quanto, ninguém sabia realmente, já que mesmo após receber sua herança, ele continuou pedindo dinheiro emprestado a todos.



Mesmo após saber da traição e da mentira sobre a morte dos pais, Carol o perdoou, embora tivesse rompido para sempre com Gina. Achou que as lágrimas de arrependimento que escorriam profusamente dos olhos dele, enquanto ele estava ajoelhado aos seus pés pedindo perdão, eram verdadeiras e sentidas. Não quis admitir que ele só queria dinheiro para pagar o aluguel no final do mês. E ela nunca se lembrava de perguntar a ele por que ele não alugava o apartamento herdado da tia a fim de pagar seu aluguel, embora este pensamento permanecesse no fundo de sua cabeça, querendo emergir. E quando perguntou-lhe por que ele não vendia a casa na praia, onde eles iam apenas algumas vezes ao ano, Rodrigo quase chorou: disse ser um lugar do qual trazia muitas lembranças de infância, embora ele sempre escorregasse para longe quando alguém tentava perguntar-lhe sobre sua infância ou adolescência.

Mais alguns meses se passaram, e sempre que ela tocava no nome de Gina, Rodrigo falava dela como se fosse uma mulher fria, sedutora, que o forçara a traí-la. Fazia-se de vítima, e Carol adorava quando isso acontecia, pois quanto mais ele atacava a reputação de sua ex-amiga, igualmente ressaltava o quanto Carol era uma pessoa bacana, justa, honesta, que jamais daria bola para o namorado de sua melhor amiga.

Até que, quase um ano após Carol descobrir sobre a traição, sua ex-amiga Gina apareceu grávida, dizendo que o filho era de Rodrigo... e ela teve que admitir que os dois nunca tinham parado de se ver.

Terminar com ele deixou-a em grande depressão. Trancou a faculdade por quase seis meses. Sua vida sem ele - mesmo sabendo o quanto ele mentira - era apagada, sem brilho... precisou fazer análise durante mais de dois anos para finalmente tirá-lo de sua cabeça (mas nunca de seu coração, e por isso, Carol estava ali naquele carro, atendendo ao que ela dizia ser o último chamado de Rodrigo ao qual ela atenderia).

Enquanto isso, Gina viajava de ônibus para o mesmo local. Pensava mais ou menos nas mesmas coisas. Terminara  tudo com Rodrigo há muito tempo, e também tivera sua parte de sofrimentos até poder dizer que o tinha esquecido o suficiente para continuar com sua vida. 

Lembrou-se do quanto ele pareceu feliz ao saber da gravidez, e acreditou nele quando ele insistiu que ela fosse a um médico de família para cuidar de sua saúde e da saúde do bebê. Não reparou que a clínica para onde ele a levara era uma clínica de aborto. Rodrigo segurou-lhe a mão fortemente, e o tempo todo, dizia o quanto estava feliz com a notícia, embora demonstrasse um nervosismo que ela pensou ser perfeitamente normal. Eram os únicos pacientes do tal doutor. Rodrigo alegou que o médico só atendia com hora marcada, e que dava sempre um intervalo de vinte minutos entre cada consulta. Acrescentou com entusiasmo que ele não era como os outros médicos que marcavam a mesma hora com várias pacientes ao mesmo tempo, fazendo-as esperar; não! Dr. Macedo era um médico especial, para quem o dinheiro que ganhava pelas consultas era a coisa menos importante.

Ao ser atendida, Rodrigo disse que preferia aguardá-la na recepção, e Gina entrou sozinha. Achou lindo vê-lo sentado na salinha azul, torcendo as mãos e engolindo em seco, um leve sorriso nos lábios. Sentiu-se muito segura naquele momento.

 Dr. Macedo cumprimentou-a com secura, mas ela achou que fosse por profissionalismo. Foi logo pedindo que ela se despisse e vestisse um avental e uma touca que estavam no banheiro. Carol obedeceu-o. Depois, ele pediu-lhe que deitasse na maca, e ela obedeceu. Deu-lhe um remédio para tomar, dizendo que era para dar contraste no exame de ultrassonografia, e ela mais uma vez fez o que ele tinha pedido sem discutir, confiante em Rodrigo. 

Quando acordou, havia um lençol sujo de sangue. Havia instrumentos ao lado da maca, também sujos de sangue. Ela gritou. Dr. Macedo veio correndo, e mandou que ficasse quieta de maneira rude. Ainda tonta, Gina perguntava o que ele tinha feito com o bebê. Rodrigo entrou na sala, e os dois começaram a discutir. Dr. Macedo dizia que havia pensado que "A moça estaria de acordo," e xingava muito Rodrigo. Mandava que ele saísse dali levando Gina e que nunca mais voltasse. Ele a carregou até o carro, e ela vomitou no assento. 

Ao chegarem em casa, ainda  no carro Gina mal podia acreditar no que Rodrigo tinha feito com ela, com o bebê deles! Ele pedia que ela se acalmasse, pois tinha feito o que era melhor para todos, pois a amava e não achava que era a hora certa para terem um filho. Afinal, nem tinham terminado a faculdade. Dizia que a amava muitíssimo. Gina chorava. Chorou até sentir-se fraca demais até mesmo para chorar. Sentiu a hemorragia descendo pelas suas pernas e banhando de vermelho o banco do carro de Rodrigo. Ele praguejou, dizendo que era porque ela tinha feito muito esforço, ao invés de repousar como deveria. Levou-a a um hospital, onde ela foi atendida de emergência. Mais tarde, ela descobriria que jamais poderia ter filhos novamente, pois precisou fazer uma histerectomia total a fim de conter a hemorragia e a infecção. 

Dizia que a primeira coisa que faria ao sair do hospital, seria denunciar o médico, mas Rodrigo desencorajou-a, dizendo que ele desaparecera sem deixar vestígios, e que remexer aquela história só faria com que os pais dela - católicos fervorosos - ficassem sabendo de tudo, e que ela deveria poupá-los de tal desgosto. Tanto falou, e tanto segurou sua mão, e chorou, e lamentou-se dizendo que a amava muito e que se arrependera, que Gina... perdoou-o.

Mas o argumento que mais contribuiu para que ela o perdoasse, foi quando ele disse junto ao seu ouvido, numa noite em que a segurava apertado em seus braços na cama enquanto ela chorava: "Gina, no fundo, você deveria saber que aquela era uma clínica de aborto assim que entrou, mas não quis admitir. Não teria coragem de fazê-lo sozinha, precisou que eu a levasse lá, e até o último momento, você se enganou ao tentar bloquear a informação sobre a verdadeira atividade daquela clínica. No fundo, você sabia que eu estava fazendo a coisa certa, e por isso, não protestou. Você sabia. No fundo, você sabia..."  Ela engoliu a verdade daquelas palavras, sem nada dizer ou pensar. Apenas reconheceu que ele tinha razão, e que o fato de não mais poder ser mãe, era o preço que estava pagando por aquilo.

Foram viver juntos - ele mudou-se para o apartamento dela, que pagava quase todas as despesas. 

Meses depois, ela chegou em casa e chamou por ele. Ele não respondeu. Correu até o armário, e viu que Rodrigo tinha levado embora todas as suas roupas - e também alguns discos, livros, aparelho de som, telefones celulares e todo o dinheiro que estava na gaveta, e que ela reservara para o aluguel do mês. Nunca mais ouviu falar de Rodrigo, até que recebeu o e-mail implorando-lhe que fosse até a casa de praia onde tinham sido felizes tantas vezes. E Gina simplesmente foi.


(continua...)



quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Lembranças - miniconto




Toda noite, ela se esquecia.

Tudo começou após o acidente que vitimou toda a sua família, e que levou também a sua memória de longo prazo. Após um longo período de recuperação, Susan, aconselhada pelos médicos e terapeutas,  manteve um diário onde anotava as suas memórias para que soubesse, ao acordar, quem ela era. Mantinha-o sempre sobre a mesa de cabeceira.

A casa era toda cheia de bilhetes colados em todas as partes, que lembravam-na dos horários nos quais ela deveria tomar remédios e números de telefone para os quais ligar caso precisasse de alguma coisa. E todas as manhãs ela acordava confusa, assustada e sentindo-se muito só. Olhava em volta, descobria o diário sobre a mesa e começava a ler. Conforme avançava e passava a compreender sua história, uma grande dor tomava conta dela, e Susan entendia que sua vida era muito triste. Perdera todos os seus familiares. Mal conseguia lembrar-se de quem era. E estava condenada a conviver com aquelas memórias para sempre, e por isso, seus dias eram sempre tristes.

 Até que ela dormia e se esquecia de tudo novamente.

Mas um dia, Susan tomou uma decisão: ao terminar de ler sua triste história, rasgou o diário e queimou-o na lareira. Nada restou. Sabia que todas aquelas tristezas estariam ausentes de sua vida para sempre, assim que acordasse na manhã seguinte. E então, ela começou a reescrever uma nova história, cheia de fatos felizes, onde ela era a personagem principal. Criou datas e nomes. Passou a noite toda inventando lugares maravilhosos nos quais ela tinha estado, pessoas incríveis que conhecera - amigos imaginários - e uma vida movimentada e alegre, cheia de música, beleza e magia. Criou até mesmo uma linda história de amor!

Quando os primeiros raios de sol entraram pela janela do quarto, Susan dormia. E esquecia-se. Uma nova vida a estaria esperando quando despertasse novamente. 

E foi então que o improvável aconteceu: na manhã seguinte, após dormir por mais de vinte e duas horas, Susan acordou e descobriu que lembrava-se de tudo. Sua memória voltara.





A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...