Parte 2
Desperto na
manhã seguinte com um barulhinho na vidraça. Abro a cortina devagar, e vejo que
é um passarinho bicando o vidro. Ele voa para longe quando me vê. Pela posição
do sol eu percebo que já passa das dez da manhã, e ao olhar o relógio na mesa
de cabeceira, confirmo. De repente, o tal passarinho volta a pousar à janela,
bicando o vidro e piando de mansinho. É uma saíra azul, a espécie preferida do
meu pai. Ela agora parece não ter medo de mim. Fico olhando para ela, me
deixando acreditar que aquela é apenas uma manhã normal, como tantas outras.
São as férias
de julho da escola. Estou no último ano. Penso em voltar ao hospital, e ao
mesmo tempo, me pergunto o que eu vou fazer lá, se meu pai já não está mais lá.
Mas é o meu dever estar lá quando acontecer. Não quero que ele se vá sozinho,
então visto meus jeans, calço meus tênis de lona encardidos, escolho uma
camiseta cinza no armário e um casaco de moletom preto. Passo as mãos e uma
escova pelo meu cabelo ondulado e castanho, desembaraçando os fios. Me olho no
espelho: apenas uma adolescente normal, penso.
Mas quando
pego meu celular, percebo que houve várias ligações do hospital naquela manhã,
e eu me esqueci de ligar o som do telefone antes de dormir. Enquanto seguro o
aparelho, ele toca. Atendo.
- Por favor,
é da casa do senhor Otávio Moreno?
Concordo com
a cabeça, engolindo em seco. Ela repete a pergunta, e percebo que não a
respondi em voz alta.
-Sim.
-Com quem
falo, por favor?
-Sou
Valentina, filha dele.
- Senhorita
Valentina, precisamos que compareça ao hospital e que traga documentos e uma
muda de roupas para o seu pai.
-Ele...
melhorou?
- Não posso
informar. Por favor, peço que compareça ao hospital imediatamente.
Desligo o
telefone, pensando que se me pediram para levar roupas para o meu pai, é porque
ele acordou e melhorou. Escolho uma camisa azul que ele adora e um par de
jeans. Antes de sair, ligo para o tio Heitor:
-Tio, ligaram
do hospital pedindo para eu levar documentos e uma muda de roupas. Acho que o
papai melhorou!
Ele diz
alguma coisa para minha tia, mas não consigo ouvir o que é. Depois, ele
responde:
-Estamos indo
para lá também.
Entro no
ônibus após esperar durante vinte intermináveis minutos. O ar frio da manhã
deixa meus dedos arroxeados, mas eu não ligo. Entro no ônibus e dou bom dia às
pessoas, e algumas respondem, enquanto outras me olham com uma cara
indiferente. Começa a chover no caminho até o hospital, e a chuva bate no vidro
da janela do ônibus. Após uma viagem de meia hora, finalmente chego ao
hospital. Meus tios estão me aguardando na recepção, e me abraçam de uma forma
estranha. Digo:
-Eu trouxe as
roupas e os documentos. Como ele está?
Olho por cima
do ombro e vejo o médico de braços cruzados, e a cara dele não é boa. Ele se
aproxima ao me ver.
Entendo tudo,
meu pai não melhorou. Ele não melhorou, e eu não estava lá com ele. Eu o deixei
ir embora sozinho. Digo aquilo em voz alta. Tio Heitor diz para eu ficar calma,
e não me preocupar, pois ele “vai cuidar de tudo.” Só quero ver o meu pai, mas
o médico me diz que ele ainda está no necrotério, e me pede as roupas. Meu tio
pega a sacola da minha mão e faz sinal para Tia Atena me tirar dali, e ela me
puxa para a cafeteria do hospital. Eu me deixo levar, pois não sei o que mais
eu poderia fazer. Olho para trás e vejo meu tio conversando com uns homens de
terno, que mais parecem urubus. Minha tia me diz que são agentes funerários.
Ela me diz para não me preocupar com nada, pois o Tio Heitor ia cuidar dessa
parte.
Estou sentada
em frente a minha tia na cafeteria do hospital. Ela assopra um café preto,
dando pequenos golinhos, e eu seguro uma xícara de café com leite entre as mãos
sem tomar nada. Diante da gente, um cesto com cookies de chocolate que me
embrulham o estômago só de olhar. Ela me pede para comer algo, pois o dia seria
longo. Mas eu não consigo. Minha tia começa a mastigar os biscoitos um a um,
enquanto chora. Mas eu não consigo chorar. Ela segura a minha mão por cima da
mesa:
- Valentina,
você não está sozinha, e é importante que você entenda isso. Vamos arrumar um quarto
lá em casa para você passar a noite, não se preocupe com nada. Depois tratamos
da sua mudança para a nossa casa...
Eu a
interrompo:
- Não
precisa, tia Atena. Eu vou para a minha casa. É lá que eu vou morar.
-Mas você não
pode... ainda é menor de idade.
-Posso sim,
eu sou emancipada. Meu pai me emancipou. Ele sempre soube que eu posso tomar
conta de mim mesma.
Ela parece
surpresa, e ao mesmo tempo, aliviada. Não consegue suprimir um longo suspiro
que eu interpretei como sendo de alívio. Tia Atena é uma ótima pessoa, mas
nunca gostou de tomar conta de crianças, e eu sei que ela pensa que eu sou uma
criança.
Alguns
minutos depois, meu tio senta-se à mesa conosco. Diz que o velório foi marcado
para a manhã seguinte, e que ele já estava avisando a todo mundo. Agradeço,
pois eu não saberia como fazer isso: “Oi, aqui é a Valentina, e estou ligando
para avisar que o meu pai morreu.” Olho para o meu tio, e de repente ele me
parece dez anos mais velho. Ele e meu pai eram muito próximos. E eu sei que ele
me ama. Pergunto:
- Você avisou
aos meus avós?
-Sim,
Valentina. Eles disseram que sentem muito por não poderem comparecer, mas seu
avô está com a pressão muito alta. Disseram que vão te ligar mais tarde.
Pensei que
nem precisaríamos avisar à tia Agnes, pois ela com certeza não conseguiria
chegar a tempo, e talvez nem estivesse interessada. Ela e meu pai nunca tinham
sido exatamente amigos, mas meu tio disse que tinha mandado uma mensagem para
ela.
Quando
terminamos o café, fomos novamente até a recepção do hospital, pois eu queria
ver o meu pai antes de ir, mas me informaram que ele já tinha sido levado para
ser preparado para o velório. Olhei para meu tio zangada, pois ele tinha me
prometido que eu ia ver meu pai. Ele me disse:
-Querida, é
só o corpo dele, ele não está mais entre nós. Eu só quis te poupar de um
sofrimento desnecessário. Amanhã você terá a chance de se despedir do seu pai.
Meus tios
disseram que iam passar a noite na capela mortuária, mas perguntei a eles:
-Para quê?
Vão para casa. Meu pai não está lá, é só um corpo.
E foi assim o dia em que meu pai morreu.