quinta-feira, 3 de março de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 2

 





Parte 2

 

Desperto na manhã seguinte com um barulhinho na vidraça. Abro a cortina devagar, e vejo que é um passarinho bicando o vidro. Ele voa para longe quando me vê. Pela posição do sol eu percebo que já passa das dez da manhã, e ao olhar o relógio na mesa de cabeceira, confirmo. De repente, o tal passarinho volta a pousar à janela, bicando o vidro e piando de mansinho. É uma saíra azul, a espécie preferida do meu pai. Ela agora parece não ter medo de mim. Fico olhando para ela, me deixando acreditar que aquela é apenas uma manhã normal, como tantas outras.

São as férias de julho da escola. Estou no último ano. Penso em voltar ao hospital, e ao mesmo tempo, me pergunto o que eu vou fazer lá, se meu pai já não está mais lá. Mas é o meu dever estar lá quando acontecer. Não quero que ele se vá sozinho, então visto meus jeans, calço meus tênis de lona encardidos, escolho uma camiseta cinza no armário e um casaco de moletom preto. Passo as mãos e uma escova pelo meu cabelo ondulado e castanho, desembaraçando os fios. Me olho no espelho: apenas uma adolescente normal, penso.

Mas quando pego meu celular, percebo que houve várias ligações do hospital naquela manhã, e eu me esqueci de ligar o som do telefone antes de dormir. Enquanto seguro o aparelho, ele toca. Atendo.

- Por favor, é da casa do senhor Otávio Moreno?

Concordo com a cabeça, engolindo em seco. Ela repete a pergunta, e percebo que não a respondi em voz alta.

-Sim.

-Com quem falo, por favor?

-Sou Valentina, filha dele.

- Senhorita Valentina, precisamos que compareça ao hospital e que traga documentos e uma muda de roupas para o seu pai.

-Ele... melhorou?

- Não posso informar. Por favor, peço que compareça ao hospital imediatamente.

Desligo o telefone, pensando que se me pediram para levar roupas para o meu pai, é porque ele acordou e melhorou. Escolho uma camisa azul que ele adora e um par de jeans. Antes de sair, ligo para o tio Heitor:

-Tio, ligaram do hospital pedindo para eu levar documentos e uma muda de roupas. Acho que o papai melhorou!

Ele diz alguma coisa para minha tia, mas não consigo ouvir o que é. Depois, ele responde:

-Estamos indo para lá também.

Entro no ônibus após esperar durante vinte intermináveis minutos. O ar frio da manhã deixa meus dedos arroxeados, mas eu não ligo. Entro no ônibus e dou bom dia às pessoas, e algumas respondem, enquanto outras me olham com uma cara indiferente. Começa a chover no caminho até o hospital, e a chuva bate no vidro da janela do ônibus. Após uma viagem de meia hora, finalmente chego ao hospital. Meus tios estão me aguardando na recepção, e me abraçam de uma forma estranha. Digo:

-Eu trouxe as roupas e os documentos. Como ele está?

Olho por cima do ombro e vejo o médico de braços cruzados, e a cara dele não é boa. Ele se aproxima ao me ver.

Entendo tudo, meu pai não melhorou. Ele não melhorou, e eu não estava lá com ele. Eu o deixei ir embora sozinho. Digo aquilo em voz alta. Tio Heitor diz para eu ficar calma, e não me preocupar, pois ele “vai cuidar de tudo.” Só quero ver o meu pai, mas o médico me diz que ele ainda está no necrotério, e me pede as roupas. Meu tio pega a sacola da minha mão e faz sinal para Tia Atena me tirar dali, e ela me puxa para a cafeteria do hospital. Eu me deixo levar, pois não sei o que mais eu poderia fazer. Olho para trás e vejo meu tio conversando com uns homens de terno, que mais parecem urubus. Minha tia me diz que são agentes funerários. Ela me diz para não me preocupar com nada, pois o Tio Heitor ia cuidar dessa parte.

Estou sentada em frente a minha tia na cafeteria do hospital. Ela assopra um café preto, dando pequenos golinhos, e eu seguro uma xícara de café com leite entre as mãos sem tomar nada. Diante da gente, um cesto com cookies de chocolate que me embrulham o estômago só de olhar. Ela me pede para comer algo, pois o dia seria longo. Mas eu não consigo. Minha tia começa a mastigar os biscoitos um a um, enquanto chora. Mas eu não consigo chorar. Ela segura a minha mão por cima da mesa:

- Valentina, você não está sozinha, e é importante que você entenda isso. Vamos arrumar um quarto lá em casa para você passar a noite, não se preocupe com nada. Depois tratamos da sua mudança para a nossa casa...

Eu a interrompo:

- Não precisa, tia Atena. Eu vou para a minha casa. É lá que eu vou morar.

-Mas você não pode... ainda é menor de idade.

-Posso sim, eu sou emancipada. Meu pai me emancipou. Ele sempre soube que eu posso tomar conta de mim mesma.

Ela parece surpresa, e ao mesmo tempo, aliviada. Não consegue suprimir um longo suspiro que eu interpretei como sendo de alívio. Tia Atena é uma ótima pessoa, mas nunca gostou de tomar conta de crianças, e eu sei que ela pensa que eu sou uma criança.

Alguns minutos depois, meu tio senta-se à mesa conosco. Diz que o velório foi marcado para a manhã seguinte, e que ele já estava avisando a todo mundo. Agradeço, pois eu não saberia como fazer isso: “Oi, aqui é a Valentina, e estou ligando para avisar que o meu pai morreu.” Olho para o meu tio, e de repente ele me parece dez anos mais velho. Ele e meu pai eram muito próximos. E eu sei que ele me ama. Pergunto:

- Você avisou aos meus avós?

-Sim, Valentina. Eles disseram que sentem muito por não poderem comparecer, mas seu avô está com a pressão muito alta. Disseram que vão te ligar mais tarde.

Pensei que nem precisaríamos avisar à tia Agnes, pois ela com certeza não conseguiria chegar a tempo, e talvez nem estivesse interessada. Ela e meu pai nunca tinham sido exatamente amigos, mas meu tio disse que tinha mandado uma mensagem para ela.

Quando terminamos o café, fomos novamente até a recepção do hospital, pois eu queria ver o meu pai antes de ir, mas me informaram que ele já tinha sido levado para ser preparado para o velório. Olhei para meu tio zangada, pois ele tinha me prometido que eu ia ver meu pai. Ele me disse:

-Querida, é só o corpo dele, ele não está mais entre nós. Eu só quis te poupar de um sofrimento desnecessário. Amanhã você terá a chance de se despedir do seu pai.

Meus tios disseram que iam passar a noite na capela mortuária, mas perguntei a eles:

-Para quê? Vão para casa. Meu pai não está lá, é só um corpo.

 E foi assim o dia em que meu pai morreu.


 (continua)




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...