sábado, 25 de julho de 2020

O DIA QUE MUDOU MINHA VIDA - PARTE 2







O DIA QUE MUDOU MINHA VIDA

Parte 2

Eu até hoje me pergunto o porquê de eu ter me escondido naquela ocasião. Eu poderia ter simplesmente caminhado normalmente até a parte de trás da casa, mas não o fiz, me esgueirando junto à parede até chegar ao muro, me escondendo atrás dele. Quando vi Breno, que eu conhecia bem, poderia ter me erguido e dito: “Ah, é você! Me deu um susto!” Ou qualquer outra coisa, mas não o fiz. Apenas o observei. Por que? Não sei! 

Eu poderia ter subido até o quarto de Betina ao ouvir o som de vidro se quebrando, mas fingi que não ouvi. Continuei na piscina por muito tempo ainda, saindo talvez uma hora depois do ruído.
Muitas coisas eu poderia ter feito, e eu não fiz, e até hoje, eu não sei o porquê. Porém, aquele dia mudou toda a minha vida e o que ela poderia ter sido, pois naquela mesma tarde, uma sombra negra começou a pairar sobre a minha cabeça e nunca mais me deixaria. 

Eu poderia também ter ido embora sem olhar para trás; sair pelo portão da mesma forma que eu entrei e pronto. Mas eu achei que deveria me despedir de Betina, que aliás, nem tinha vindo falar comigo, mesmo sabendo que havia alguém na casa que poderia ser eu ou uma das minhas irmãs. 
E então eu tirei os meus chinelos úmidos para não marcar o linóleo da sala. Eu voltei até a cozinha e, pegando outro copo, tomei mais suco de laranja, colocando-o junto com o outro na pia. Depois, subi os degraus até o segundo andar um a um, assoviando “Mistake Number Three.” E estava a apenas alguns passos de cometer meu segundo e terceiro erros. O primeiro, tinha sido tomar a decisão de ir àquela casa naquela tarde.

Andei pelo corredor descalça sobre o tapete macio, e fui ao quarto de Betina. Eu conhecia bem aquele caminho. Chamei: “Betina? Sou eu! Estava na piscina!”  Mas ela não respondeu. Eu poderia ter ido embora ali e me poupado de uma cena dantesca, mas a curiosidade não deixou, e eu parei à porta do quarto. O quarto de Betina era um espetáculo à parte: o carpete era todo branco e felpudo. A colcha da cama era rosa-bebê, cheia de almofadas peludas e fofas em cima, uma de cada cor, todas em tons pastel. As cortinas eram de voil branco, com sanefas rosa-bebê, e eu amava a forma como aquelas cortinas dançavam ao vento. Havia uma cômoda antiga e linda, que ela havia mandado repintar com as cores da bandeira dos Estados Unidos. Sobre a cômoda, seus cremes, perfumes e caixinhas de joias. Na parede por cima da cômoda, um espelho ocupava quase toda a extensão, refletindo a linda paisagem que a janela de vidro da sacada mostrava ao ser aberta. 

Por trás da cabeceira e acima da cama havia em um painel fotografias dela em várias poses, e também de seus amigos – minhas irmãs estavam lá, mas eu, não. Ela vivia dizendo que ia pendurar a foto que eu dera para ela, mas jamais o fazia.

Ao lado da cama havia uma mesinha de cabeceira branca, e do outro lado, um abajur de pé alto com cúpula vermelha. A cabeceira da cama era toda cheia de luzes de fada, que estavam acesas quando entrei. Eu amava aquelas luzinhas! Em frente à cama havia uma pequena lareira, e sobre o aparador, mais fotos dela e também dos pais. Nas paredes, o papel branco decorado por rosinhas miúdas esfumaçadas completava o meu sonho de quarto. Betina tinha seu próprio banheiro e seu próprio closet recheado de roupas de marca. Enfim, a vida que toda adolescente pediu a Deus, mas apenas poucas conseguiram ganhar. 

Eu ainda estava de pé à porta, adorando tudo aquilo. Mas algo escuro sobre o tapete branco me chamou a atenção. Era uma grande mancha que só aumentava aos poucos, muito lentamente, como se alguma coisa muito negativa estivesse se espalhando pelo quarto, e acabaria se esparramando pelo corredor, descendo as escadas e se espalhando pela casa toda. 

Achei aquilo estranho, mas não me assustei- ainda. Entrei e fui até aonde a mancha se encontrava. Olhei por cima da cama e visualizei uma das mãos de Betina no meio de uma mancha vermelho-escuro. Ainda brinquei: “Entornou o esmalte?” Ela não respondeu, ela não se mexeu. Dei a volta devagar, já tendo certeza de que veria alguma coisa muito chocante. Eu não queria fazer aquilo, mas era como se estivesse sendo puxada com força naquela direção. 

Com uma rápida olhadela, notei o último vidro da janela quebrado, junto ao tapete.
Dei a volta na cama e então eu vi tudo: Betina estava deitada de costas no chão, sobre o tapete branco, usando apenas uma calcinha de renda preta. Notei que seus seios eram pequenos e arredondados. Os olhos estavam fixos no teto, verde-esmeralda esparramados e brilhando como vidro. O braço direito dela estava erguido ao longo do corpo, a mão em um ângulo estranho – a mesma mão cujos dedos eu vira na poça escura. O outro braço estava displicentemente jogado sobre o abdômen. No anelar da mão quebrada, ela usava um anel de pedra azul que eu adorava, e que ela já havia se recusado a me emprestar mais de uma vez, pois tinha sido um presente de sua falecida avó. Ao lado do corpo de Betina – sim, ela estava morta, embora eu demorasse a perceber – havia uma estátua de ferro caída e suja de sangue, um cachorro sentado que ela usava para segurar a porta da sacada da janela para que o vento não a batesse. 

Com certeza, ela caíra de costas sobre o objeto, atingindo-o com a parte de trás da cabeça – ou alguém o usara contra ela? A queda de Betina sobre o cachorro de ferro fizera com que parte do objeto caísse para fora da varanda, quebrando o vidro da janela. Concluí sem dificuldade que aquela tinha sido a causa da morte de Betina e a explicação para todo aquele sangue que saia sob a cabeça dela, sujando todo o tapete branco. 
Eu subi na cama para não me sujar com o sangue, e de bruços, toquei no rosto dela. Queria me certificar do óbvio: sim, Betina estava morta. Toquei de leve sua pupila com a ponta do meu indicador; úmida, dura como uma bola de gude verde. Puxei a mão correndo, a sensação úmida na ponta do meu dedo. Por que fiz aquilo? 

Mais tarde, eu sentia arrepios ao me lembrar daquela atitude um tanto macabra!

O grito que eu queria dar ficou preso na garganta, não apenas naquele momento, mas durante os muitos anos nos quais aquela imagem me assombrou e me acordou durante a noite. Meu coração descompassado me fez descer depressa da cama e olhar para o outro lado, caindo de joelhos no tapete, na parte limpa. Fiquei ali, sem saber o que fazer. Betina estava morta. Provavelmente, Breno a matara. Só eu conhecia aquele segredo. 

Eu tinha visto nos filmes que quando algo assim acontecia, a coisa certa era chamar a polícia. Mas eu não sei porque, mais uma vez, eu não fiz a coisa certa, cometendo meu segundo erro. Eu não podia acreditar que 

Breno tinha matado Betina. Eram amigos de infância, e ele era a pessoa mais doce do mundo! 
Eu senti que ia vomitar, e corri para o banheiro dela. Sobre a pia, uma carreira de pó branco e um canudinho de plástico. Mal pude conter o vômito. Não sabia que Betina se drogava! Sequer desconfiava que ela poderia se drogar! Aquilo estava ficando perigoso demais: como eu explicaria à polícia que eu estava ali, e que eu não usava drogas? Perguntas seriam feitas. Perguntas que eu não queria e nem sabia como responder. E se eles pensassem que eu a tinha matado? Quem, acreditaria em mim? Minhas irmãs sabiam que eu não gostava muito dela. A própria Betina devia saber. Poderiam pensar que eu a matara!

Aqueles pensamentos e medos sombrios eram demais para a cabeça de uma menina de treze anos de idade, que até então não sabia nada da vida.

Voltei ao quarto. O relógio da cabeceira marcava cinco da tarde. Logo minha família estaria de volta à casa, e se eu não chegasse antes deles, teria que explicar aonde estava. Logo todos ficariam sabendo da morte de Betina e poderiam concluir que eu estivera por lá. 

Saí correndo do quarto, alcancei as escadas, a porta da casa e o portão dos fundos por onde entrara, tomando o cuidado de verificar pela greta do portão se a rua estava vazia; ninguém poderia me ver saindo de lá. Antes de sair, ainda olhei mais uma vez para a fachada da casa, a piscina, o céu da tarde avermelhado pelo sol, a porta de vidro quebrada da varanda. Havia cigarras cantando no jardim, e passarinhos nas árvores. E lá em cima, uma garota morta que não ouvia mais nada daquilo. Betina nunca mais mergulharia naquela piscina maravilhosa, nem olharia para mim com seu olhar levemente zombeteiro. Nunca mais frequentaríamos aquela casa, ou a encontraríamos na ruas do bairro, nem lancharíamos juntos na praça de alimentação do shopping. Todas aquelas roupas, joias, maquiagens e sapatos lindíssimos nunca mais seriam usados por ela, ou por uma de nós. 

Ainda um pouco antes de sair, olhei para o muro que cercava a casa, achando-o alto demais, e me perguntando como Breno conseguira pular para o outro lado.
O ano letivo recomeçaria. Minha irmã faria o último ano, mas Betina, não. Ela acabara de se formar na escola da vida. Ou na escola da morte. 

Escutei passos na calçada e fechei devagar a greta do portão, até que eles sumiram na curva da rua ao longe. Mais uma vez, olhei pela greta e como não vinha ninguém, dei uma rápida olhada para as casas próximas e saí, me esgueirando como uma lesma pela greta do portão e alcançando a calçada. Após a curva, corri de volta para a minha própria casa. Entrei pelo nosso portão, girei a chave na porta, batendo-a atrás de mim. Graças a Deus, ninguém tinha chegado em casa ainda. Corri para o banheiro e me joguei sob o chuveiro, lavando o cloro dos cabelos, e depois lavei também sob o chuveiro o meu biquíni e o meu vestido branco. Depois, penteei os cabelos e vesti uma camisola, indo pendurar a roupa nos fundos da casa. 

Meus pais e minhas irmãs chegaram por volta das sete da noite, rindo e falando alto e carregando muitas sacolas. Eu fingi que estava dormindo na minha cama. Minha mãe foi falar comigo para perguntar se eu estava bem. Disse que tinha trazido alguns presentes para mim – o que normalmente bastaria para me tirar da cama ou de qualquer outro lugar, mas naquela noite, eu só murmurei que estava adoentada e que veria tudo no dia seguinte. Não quis jantar, e embora estivesse na cama, fingindo dormir, passei a noite toda em claro. A cena de Betina com os olhos arregalados e verdes. O sangue no chão. A mão naquele ângulo estranho, parecendo quebrada. Os seios redondos. A carreira de pó branco sobre a pia, e o cachorro de ferro. Antes, eu adorava aquele cachorro, como adorava tudo o que ela tinha. O sangue, o sague, o sangue...

E o anel de pedra azul. De repente, passei a mão em volta do meu dedo anelar esquerdo e pude sentir a pedra, mas não conseguia me lembrar de como o anel de Betina tinha ido parar no meu dedo. Não me lembrava de tê-lo retirado dela! Num gesto de pura repulsa, arranquei-o do dedo e lancei-o no chão, vendo-o cair numa greta entre a tábua do assoalho e o rodapé. Me levantei, e pegando meu compasso da escola, tentei alcançar o anel. Após algumas tentativas, apesar de estar tremendo, consegui, e coloquei-o na palma da mão, pensando no que faria com ele.

Acabei escondendo-o na minha gaveta, sob as roupas íntimas, embrulhado em um lenço branco. Na manhã seguinte eu decidiria o que fazer com ele.

Minha cabeça atormentada dava voltas, e doía. Havia muitas lacunas que eu não estava conseguindo compreender. O muro alto, e como Breno conseguira pulá-lo; o anel de Betina no meu dedo. Angústia, angústia, angústia.

Quando o primeiro galo cantou, eu sabia que viveria o dia em que o corpo de Betina seria encontrado. Ela já deveria estar dura, fria e esverdeada, como o cadáver de minha tia-avó. Alguém colocaria, quem sabe, um véu de tule sobre o rosto dela, cobrindo o corpo com flores. O cheiro seria insuportavelmente sufocante. 

Eu tinha ido a um único velório naqueles meus treze anos de vida, e ficara muito impressionada. Eu tinha apenas nove anos quando minha tia-avó morrera em um acidente de carro. Nós não tínhamos muito contato com ela, apenas no natal. Mesmo assim, eu me lembrava do quanto ela era simpática, bonita e faladora, e dos presentes que ela nos dava naquelas ocasiões. A escolha de ir ao seu velório para despedir-me tinha sido minha, e logo que eu olhei para o rosto dela sob o tule lilás, me arrependi de estar ali, mas era tarde. Encontrei um lugar para me sentar no canto da sala e fiquei ali, sem me mexer. Depois, foram meses de pesadelos nos quais ela me aparecia com aquele mesmo véu de tule sobre o rosto, e ficava me olhando, as flores caindo do seu vestido como se ela tivesse acabado de se levantar. 

Minha mãe teve que me levar a um psicólogo para que eu conseguisse superar aqueles pesadelos que me faziam acordar berrando durante a noite. 

E agora eles recomeçariam. Eu tinha certeza. Betina era a segunda pessoa morta que eu via na minha vida. E daquela vez, eu a tinha tocado, e tinha sentido o cheiro do seu sangue e visto seu corpo nu. De alguma forma, usara em meu dedo o anel que ela estava usando quando morreu. Com certeza, eu tinha criado com ela um elo de ligação muito forte que faria com que ela me perseguisse para sempre. Eu tocara em uma pessoa morta, e tinha o seu anel! Mais do que tudo, eu conhecia seu assassino. E não dissera nada a ninguém. Betina não ia me perdoar. Enquanto ela morria, eu usava a sua piscina, tomava seu suco e escutava seus discos. E ainda pensava nela e no quanto eu adoraria ter todas as coisas que ela tinha para mim. 

Fazendo um esforço sobre-humano, eu me levantei antes que todo mundo. Fui preparar o café, pois não aguentava mais ficar parada, pensando. Sem dormir a noite toda, tinha círculos escuros sob os olhos e mesmo debaixo do meu bronzeado, dava para se notar a minha palidez. Eu coloquei xícaras na mesa e arrumei o pão, os biscoitos e o bolo. Minha irmã Paola foi a primeira a se sentar à mesa e encher uma xícara. Perguntou se eu tinha caído da cama. Fingi irritação, dando-lhe a língua. Ela disse:

-Hoje vai fazer calor como ontem. Estou pensando em ligar para a Betina e quem sabe... cair na piscina. Quer ir?

Aquilo foi o suficiente para me provocar náuseas, e corri para o banheiro sem responder. Ela foi atrás de mim, batendo à porta:

- Mônica! Você está passando mal?

Vomitei apenas ar, pois estava com o estômago totalmente vazio. Saí do banheiro pálida feito uma parede branca. Ela me olhou, passando a mão sobre a minha testa:

-Vou chamar a  mamãe. Melhor você voltar para a cama!

-Não, eu... eu estou bem. Mas acho melhor ninguém ir à casa da Betina hoje. 

Ela ignorou minha fala.

-Deve ser do calor! Tem estado muito quente nos últimos dias. Bom... vou ligar para ela.

Eu nada disse, sentando-me do lado de fora, nas escadas da cozinha. Escutei minha irmã discando o telefone, uma, duas, três vezes. Ela voltou e se sentou ao meu lado, dizendo:

-Estranho. Ninguém atende. 

Olhei para ela, mas logo desviei os olhos. Eu sabia porque ela não estava atendendo: mortos não atendem ao telefone! Eu queria gritar aquilo na cara de Paola, mas engoli em seco. Deparei com ela me olhando, a testa franzida:

-Você tá tão estranha, Mônica!

-Claro! Estou passando mal. Olha, eu vou voltar para o meu quarto.

Quando subia as escadas, encontrei com meus pais e Sandrinha descendo para o café. Expliquei que não me sentia bem e que passaria o dia no meu quarto. Minha mãe foi atrás de mim:

-O que você comeu quando eu estava fora, Mônica? Aposto que se encheu de sorvete.

-Não, mãe. Pode olhar, o pote está cheinho na geladeira. Nem toquei nele. Só estou indisposta por causa do calor. 

-Podia ter aceito o convite da Betina para ir à piscina ontem, já que não quis sair com a gente. 

Meu coração quase saiu pela boca, mas entrei no quarto e fechei a porta entre nós duas. Dez minutos depois, escutei o telefone tocar lá em baixo, e meu pai bateu à porta do meu quarto. Pensei que ele ia me dar a terrível notícia, e me sentei na cama, mandando-o entrar. 

-Era da loja. Me pediram para ajudar por lá, já que é sábado e está dando muito movimento. Você quer que eu a leve a um médico antes, filha?

-Não, pai, já estou melhor. Pode ir. 

-Acho que as meninas vão passar o dia na casa da Betina. Você quer ir também? Eu levo vocês.

-Não. Eu vou ficar aqui mesmo. Vou tentar dormir um pouco, não dormi bem à noite. Mas... a Betina as convidou hoje também?

-Não sei. Paola está tentando falar com ela. Bem... beijos. Aproveite o dia. Logo você melhora.

-Beijo, pai. 


(CONTINUA...)




terça-feira, 21 de julho de 2020

O DIA QUE MUDOU MINHA VIDA






Eu lembro que fazia muito calor naquela tarde logo após o almoço. Eu sentia que seria possível fritar um ovo na calçada, literalmente, e o asfalto amolecido parecia emitir ondas em direção ao céu quando eu olhava para ele. A rua do meu bairro estava deserta, e o ruído do portão batendo quando saí de casa ecoou no muro da vizinha. Nenhuma brisa soprava. Apesar de ter acabado de sair do banho, onde depilei as pernas, virilhas e axilas com o aparelho de gilete da minha irmã, meu rosto já escorria suor. Meus pais e minhas duas irmãs tinham saído para ir ao shopping (quem vai ao shopping numa tarde como aquela, meu Deus?) E eu resolvi aceitar o convite de Betina, minha vizinha, para ir à piscina da casa dela. Ela tinha nos convidado no dia anterior. Na verdade, ela tinha convidado Paola, minha irmã mais velha, que era sua amiga e cuja idade batia com a dela; ambas tinham dezessete anos. Mas Paola tinha resolvido ir ao shopping, e convenceu nossa mãe e Sandrinha, minha irmã de dezesseis anos, a ir com ela. Quanto ao meu pai, tinha sido alugado como motorista. Eu sabia muito bem que papai as levaria de carro ao shopping e depois de dar uma passadinha na loja para ver como as coisas estavam indo, se refugiaria na piscina e no bar do clube, aguardando até que as duas ligassem para ele e pedissem para busca-las no final da tarde.  

Eu me recusara veementemente a acompanha-las, tal o calor que fazia, e fiquei esticada no sofá, ventilador ligado, assistindo a um filme velho na TV, quando de repente me lembrei de Betina e do seu convite. 
Na verdade, eu sequer gostava de muito de Betina. Como ela e minhas irmãs fossem bem mais velhas que eu, ela sempre me tratava com uma condescendência irritante, e eu detestava quando ela e minhas duas irmãs começavam a conversar, na minha frente, em uma língua que só elas entendiam, cheia de indiretas e palavras-chave cujo significado eu não imaginava. Elas davam risadas altas e Betina me olhava de soslaio, piscando para mim, como se eu fosse uma criança. 

Mas ela tinha uma casa e uma piscina maravilhosas, e uma porção de coisas que meninas adoravam, como maquiagens, roupas caras da moda que ela nos emprestava às vezes, perfumes, cremes importados e bijuterias finas e caríssimas que nós jamais poderíamos comprar. 

Era o ano de 1985, férias de dezembro. Meus pais tinham uma fábrica de roupas femininas que fechava em dezembro e uma loja onde vendiam as peças. Tínhamos uma vida confortável, embora não fôssemos ricos. Os negócios iam bem, e como estávamos na época do Natal, as mercadorias que tinham sido fabricadas até novembro vendiam muito. Eu tinha então treze anos, mas aparentava mais, pois era alta e esguia para a minha idade. Tinha cabelos pretos, longos e brilhosos partidos para o lado esquerdo, e pele dourada, como era moda na época - ninguém colocava uma saia nos anos 80 se não estivesse com as pernas devidamente bronzeadas. 
Enquanto caminhava, carregando minha bolsa de pano com uma toalha e um bronzeador (o biquíni estava por baixo do vestido leve e solto de algodão branco), eu procurava a sombra das árvores plantadas ao longo da calçada do lado esquerdo, pois a calçada do lado direito era quase completamente nua de árvores. Meus chinelos brancos e um pouco gastos faziam um ruído leve ao roçarem contra a calçada. 

Betina era uma deusa loira de dezessete anos; magra e alta, cabelos lisos até a cintura, olhos verde-esmeralda e pele bronzeada. Todos os garotos da escola queriam ficar com ela, mas ela só tinha olhos para um único garoto: Breno, que, infelizmente, era gay, mas ela vivia dizendo que ia “convertê-lo”, e para isso, usava todo o seu charme. Diziam as más línguas que os dois tinham ficado juntos uma única vez durante uma festa, e  Betina afirmava que perdera sua virgindade com ele, mas ele negava tudo. Eram amigos desde a infância, porém. De vez em quando, Betina namorava um ou outro garoto, mas nunca levava nenhum deles à sério e nem ia até os “finalmente” com eles. 
 
A casa de Betina ficava a apenas um quarteirão da nossa, mas por causa do forte calor, eu tinha a impressão de que não chegaria nunca! Finalmente, avistei o portão pintado de branco, ladeado por dois enormes vasos onde plantaram miniaturas de coqueiros. A casa de Betina era muito bonita. Dei a volta pela casa até a esquina, como sempre fazíamos, e encontrei o portão lateral aberto (sempre entrávamos por ali, e nunca pelo principal). O esguichador do gramado estava ligado, e a porta de vidro da varanda, que dava para a enorme sala de estar estava aberta, e uma música de Boy George tocava: “Mistake number three.” Uma de minhas músicas prediletas. Esse era um dos motivos que eu aturava Betina: ela tinha discos ótimos e sempre me emprestava alguns. 

Chamei por Betina. Sabia que ela estaria sozinha em casa, pois os pais dela viajavam muito a negócios e ela sempre ficava em casa em companhia de Helena, a empregada de muitos anos. 
Ela não respondeu, mas decidi não insistir. Pensei que ela talvez estivesse dormindo, pois estava realmente muito calor. Também achei que era melhor assim, sem a companhia dela, pois a piscina seria só minha. Nem mesmo Helena veio me receber, e como eu estava doida para tomar um copo de refresco, entrei pela porta da varanda, como sempre fazia, e fui até a cozinha. Abri a geladeira, enchi um copo de refresco de laranja e me recostei no azulejo gelado enquanto o tomava bem devagar, sentindo o alívio do contato frio contra a pele. Naquele momento, escutei risadinhas vindo do quarto de Betina, que ficava no andar superior. Era uma casa grande, e havia na cozinha um elevador de comida, e o som veio através dele. Porém, não ouvi mais nada.

Depois que terminei de beber, coloquei o copo na pia sem lavar, molhando o rosto com a água da torneira, e caminhei até a piscina. Agora o toca-discos reproduzia “Karma-chamelion”, mas eu fui até lá e coloquei “Mistake number Three” para tocar de novo. Nesse momento, antes que a agulha tocasse novamente o disco, escutei mais risadinhas e alguém fazendo ‘shshshs,’ como se não quisesse ser escutado. Concluí que Betina estava em casa e tinha companhia, e também que ela – ou eles – não desejavam serem importunados.

Fui até a piscina e tirei o vestido e os chinelos, ajeitando o biquíni em volta do busto, e enchendo o peito de ar,  pulei na piscina, mergulhando até o fundo e sentindo o frescor e o silêncio sob a água. Estava intensamente feliz agora. Subi à tona e me deixei ficar boiando, o sol na pele, os cabelos molhados esticados atrás da cabeça, enquanto vislumbrava a fachada imponente da casa. Eu simplesmente amava aquela casa, aquele jardim e principalmente, aquela piscina! Meu sonho era ter uma piscina, mas meu pai dizia que construir uma significaria ocupar todo o espaço livre do nosso jardim, que era pequeno. A parte de trás da casa também não era grande o suficiente para uma piscina. Eu estava ali, pensando em todas essas coisas sem importância: no quanto eu amava a casa de Betina, no quanto eu amaria ter uma piscina como aquela e no quanto meu sonho era impossível, a não ser que nos mudássemos, e enquanto cantarolava baixinho trechos de “Mistake Number Three.” 

De repente, ouvi dentro da casa um ruído de algo caindo e se quebrando, alguma coisa de vidro. Depois, silêncio novamente. Pensei em entrar para ver se Betina precisava de alguma ajuda, mas a água estava tão boa que eu não queria sair.

Nem sei quanto tempo eu fiquei boiando na água maravilhosa e azul; só sei que quando eu saí, meus dedos das mãos já estavam ficando murchos, e o sol já quase se escondera por trás do telhado, deixando metade da piscina à sombra. Sentindo um pouquinho de frio, saí da piscina e me enxuguei. Olhei para dentro da sala, onde o toca-discos já silenciara há muito, e vi as horas no relógio sobre o aparado: quatro e trinta e cinco. Hora de voltar para casa. Achei estranho que nem Betina nem Helena tivessem aparecido, Mas Betina às vezes era uma menina meio-estranha, e talvez tivesse dado a tarde de folga à Helena.

Estava fora da piscina me aprontando, quando escutei o barulho da porta dos fundos batendo e passos de alguém que corria. Pensei no porquê de alguém sair da casa pela porta da cozinha, e então terminei de me vestir e fui dar uma olhada, tomando cuidado para não ser vista. Estava escondida por trás do muro baixo que separava o jardim da frente da parte dos fundos. Estiquei o pescoço para olhar, e deparei com Breno. Ele parecia muito nervoso, olhando para os lados e segurando a cabeça com as mãos. De repente, ele deu impulso em uma corrida, subindo no muro dos fundos da casa, que dava para um terreno vazio. Tentou duas vezes antes de conseguir alcançar a borda e pular para o outro lado, desaparecendo da minha vista. 


(CONTINUA...)




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...