domingo, 23 de julho de 2017

“A D O Ç A!”








Você pode pensar que amargura é o mesmo que tristeza. Que gente triste é, necessariamente, amarga. Mas não é verdade. Gente triste pode estar se sentindo assim por algum motivo. Na maioria das vezes, a tristeza durará enquanto durarem os motivos, ou enquanto ela for alimentada. Mas o tempo, que é o melhor médico, vem e cura, reestabelecendo as coisas e os sentimentos aos seus lugares corretos. É só deixar que ele haja. É só não se agarrar ao que passou e ao que foi perdido. Porque, se deixarmos que nossos olhos se voltem constantemente para o passado, estaremos fixando residência na segunda fase da tristeza, que é a amargura. Desta, dificilmente alguém consegue se livrar, pois que ela finca suas raízes no coração da gente. Porque a amargura pode ser a segunda fase de uma tristeza não curada. A próxima fase, quem sabe, será a solidão. Não aquela solidão de estar fisicamente sozinho, que pode até ser uma escolha, mas a pior de todas: aquela em que estamos cercados de gente e nos sentimos vazios.

Porém, existe um outro tipo de amargura, que parece ter nascido junto com alguém; quando ainda bem pequenos, esses amargos natos já demonstram sua vocação através das rusgas que estão sempre criando entre as outras crianças; é sempre assim: tudo está em paz, e quando ele chega, começam a aparecer brinquedos quebrados, rostos arranhados, brigas e desentendimentos, lágrimas e queixas. De repente, aquele grupo de crianças que há poucos minutos brincavam e se divertiam, está dividido e choroso, sentados nos colos das mães, enquanto o amargo desfruta sozinho de todos os brinquedos. Este é o amargo nato: espalha fel aonde quer que vá.

Assim nasceu Mara, e o nome que recebeu não poderia ter sido mais apropriado! Na escola, ela nunca tivera problemas em fazer amizades, mas as outras crianças não se aproximavam dela porque gostavam, realmente, de estar com ela, mas porque achavam que assim estariam protegidas contra as investidas da própria Mara. Mas a garotinha cresceu sem saber o que seus amigos falavam quando ela não estava presente.

Mas a vida, que não deixa nada de graça, fez o favor de contar a ela sobre si mesma quando, aos vinte anos de idade, Mara encontrou alguém que a enfrentou e desvencilhou-se dela, expondo as suas fraquezas. Depois daquele dia, ela nunca mais foi a mesma, e precisou de ajuda psicológica. Porque o espelho pode ser a mais terrível das coisas para alguém que nunca olhou para si mesmo de verdade.  
No divã, ela desabafava suas mágoas, dizendo ao seu analista o quanto ela não entendia porque a outra pessoa – que considerava como sendo sua melhor amiga – a tratara daquele jeito. 

Para acrescentar insulto à injúria, Mara descobriu que seu marido tinha outra família, e quando o confrontou, ele foi embora de casa. 

No consultório, Mara dizia que considerava-se alguém bom, correto, e principalmente, sincero. Sentia-se traída e abandonada pelos que amara. Aos poucos, após ficar conhecendo melhor sua paciente, o analista logo percebeu qual era o problema: Mara carregava dentro de si a maldição da amargura. Em suas falas, ela estava sempre se comparando aos outros, destacando o que ela considerava serem seus pontos fortes através do rebaixamento de alguém que conhecia. Quanto mais demonizava as pessoas, mais santa ela se sentia. Mas não era nada fácil tentar fazer com que Mara percebesse aquelas coisas, pois sempre que seu analista tentava, ela erguia um muro de indiferença entre eles e então faltava às próximas sessões.

Após alguns anos de análise, Mara ainda não admitia de onde vinha a raiz de todas as suas agruras, e então abandonou a análise e decidiu-se por entrar para uma religião a conselho da mãe. 

-A religião adoça as pessoas, Mara. Experimente! Após algum tempo, você se sentirá bem melhor. A religião vai transformar você.

A mãe dissera-lhe aquilo após de uma das explosões de raiva de Mara. Ela primeiro desprezou o conselho da mãe, mas uma das palavras que ela escutara, ficaram dançando em sua cabeça, indo e vindo: “Adoça.”  Ela não entendia por que não conseguia parar de pensar naquela palavra. 

Incoscientemente, Mara começou a adoçar demais o café e o suco. Passou a consumir doces desenfreadamente, e durante as madrugadas solitárias, na ausência destes, ela não hesitava: abria a lata de açúcar e comia colheradas generosas. Com isso, sentia-se enjoada, e precisava consumir também algo salgado. 

“Adoça.” Esta era a palavra que surgia quando Mara se sentia invejando alguém. E ela tentava apagar aquele sentimento na confeitaria mais próxima. Infelizmente, a frequência com que se sentia mal em relação a alguém era bem alta, o que fez com que Mara comesse cada vez mais doces, e depois, alguma coisa salgada para tirar o enjoo. 

No templo religioso que frequentava, ela aprendia que as coisas que sentia (e que aprendera a disfarçar muito bem) eram sentimentos nefastos, e cada vez mais, ela se sentia culpada por tê-los tão arraigados dentro dela. Então ela rezava, e participava cada vez mais dedicadamente de todos as cerimônias. Mas quando estava sozinha, se olhava no espelho, Mara descobria, no fundo dos olhos, que dentro dela, nada mudara. Então, ela cobria tudo aquilo com uma grossa camada de açúcar. 

E todos começaram a dizer o quanto ela estava mudada, o quanto era doce, bondosa e feliz. A felicidade passou a ser como alguém que ela mantivesse acorrentada ao pé de uma mesa, e como uma algoz, de vez em quando Mara a cutucava com um espeto, ordenando: “Sorria!” E a felicidade mostrava um sorriso torto e forçado. 

Assim, sob camadas e mais camadas de creme de confeiteiro, açúcar e muito glacé, Mara conseguia (pelo menos temporariamente) sobrepujar sua amargura.





segunda-feira, 17 de julho de 2017

A ÁRVORE - Conto de Fadas Moderno -completo








A ÁRVORE




Sidônio mudara-se para aquele apartamento no quarto e último andar de um prédio antiguinho por causa da árvore. Era uma enorme figueira, linda e frondosa, plantada na calçada larga, e seus galhos estendiam-se na frente da janela de seu quarto e varanda da sala. O apartamento nem era exatamente como ele sonhara antes de comprá-lo – havia um outro bem mais interessante, construção recente, mas foi a árvore que ajudou-o a tomar a decisão. Ele simplesmente adorava acordar, abrir os olhos e ver os passarinhos cantando nos galhos. Os amigos gostavam de brincar, dizendo que após os quarenta, Sidônio se transformara em um amante da natureza; seria a idade? Ou teria sido o divórcio? 

Fato era que, depois que Sandra o deixou pelo professor de filosofia, Sidônio tornou-se um homem quieto, e passou a ler poesia – coisa que antes desprezava. 

Quando chegava em casa, após seu trabalho na redação do jornal, sentava-se na varanda com seu jantar encomendado no restaurante da esquina e jantava com sua árvore. Sentia que, de alguma forma, ela lhe fazia companhia. Ficava bastante tempo estudando seus galhos, o olhar percorrendo o tronco nodoso e antigo. Sabia que à esquerda havia um ninho de sabiá abandonado; sabia que os esquilos gostavam de brincar de correr pelos galhos na hora do almoço, e nos finais de semana, ficava observando os bichinhos. Passou a conhece-la tão bem, que cada galho tornara-se familiar. É claro que ele às vezes pensava em Sandra e no quanto fizera tudo por ela. Ajudou-a a pagar a faculdade; concordou em não ter filhos enquanto ela não se sentisse pronta, o que significava estabilizar a carreira. Não a amava mais – não agora, que tivera bastante tempo para pensar na injustiça e na ingratidão que ela demonstrara ao traí-lo durante dois anos, antes de pedir o divórcio. E a árvore, que se tornara sua confidente, a tudo escutava sem qualquer demonstração de tédio ou reprovação. 

Num domingo, despertou com um pequeno ruído. Parecia alguma coisa que roía devagar. Sonolento, pensou tratar-se da obra no apartamento de baixo. Quem sabe, estavam lixando as paredes. Fechou os olhos e voltou a dormir. Acordou mais tarde, à mesma hora de sempre, calçou os tênis e foi fazer sua corrida matinal. Na volta, passou na padaria, comprou seu pão e o jornal, parou na banca de revistas para conversar com alguns conhecidos e voltou ao apartamento, chegando em casa por volta das dez e trinta. Tomou um banho demorado e debruçou-se na sacada da varanda olhando a árvore, os raios de sol infiltrando-se através das folhas. Foi quando ele percebeu um buraco no tronco que não estava lá.

Era pequeno e redondo; deveria ter cerca de dez centímetros de diâmetro, quem sabe, um pouco menos. Talvez fossem os esquilos, ele pensou. Ou quem sabe, um pica-pau. Não deu mais importância ao evento e esqueceu-se do assunto. Porém, uma semana depois, notou que além do buraco, alguém tinha construído com muita habilidade um pequeno telhado de galhos e folhas sobre o buraco. Seria alguma brincadeira de criança? Mas qual criança conseguiria subir tão alto em uma árvore, arriscando a própria vida a fim de construir aquele telhado, que só ele poderia enxergar, já que aquele pedaço de tronco, que ficava bem na frente da sua varanda, só era visível do último andar?

Intrigado, ele ficou olhando o esmero da construção. Parecia alguma coisa feita por um artesão. As vigas eram talhadas em pequenos arabescos, e as folhas secas, tão cuidadosamente entrelaçadas umas às outras, que ele pensou que nem a ventania mais forte poderia derrubá-las. Percebeu que as vigas tinham sido firmemente fincadas no tronco. Apesar da sua curiosidade, ele foi mandado em uma viagem de negócios e alguns dias se passaram antes que ele olhasse para o pequeno portal, que deveria medir uns 30 centímetros, novamente.

E o que viu deixou-o sem palavras.

Era uma manhã de sábado. Sob o portal, um deck de madeira havia sido erguido. O buraco havia sido tapado por uma portinha de madeira redonda, ao lado da qual havia um vaso de flores bem miúdas,  do tamanho de um dedal. Sidônio arregalou os olhos, surpreso, e então ele ficou durante algum tempo observando aquela pequena obra de arte. Até que a portinhola se abriu, e uma moça não mais alta que seu dedo médio, começou a varrer o chão. Ela usava um vestido simples,  leve e esvoaçante, de cor lilás, e estava descalça. Seus cabelos iam até a cintura, em ondas avermelhadas e sedosas. Ele não conseguiu perceber detalhes do rosto mínimo da moça devido à distância – mais ou menos dois metros – mas notou que ela cantava uma canção que ele nunca tinha escutado, em uma língua que ele jamais ouvira antes. A voz dela, afinada e doce, chegou aos ouvidos de Sidônio como uma brisa, deixando-o em transe. 

Ele pensou estar alucinando. Piscou os olhos com força tentando banir a ilusão de ótica, mas quando os abriu, ela ainda estava lá, e olhava para ele. Desta vez, tendo terminado sua tarefa de varrer o chão, ela descansava em um galho de árvore bem próximo a Sidônio, que então teve a chance de perscrutar seu rosto e descobrir o quanto ele era belo. A moça era linda: cada detalhe mínimo parecia ter sido talhado à mão por um habilidoso artista: as mãos, os pés, os olhinhos encimados por longos cílios, e até mesmo o vestido. Sem saber mais o que fazer ou o que pensar, ele se viu cumprimentando-a:


-Bom dia, moça.

Ela hesitou um pouco antes de responder:

-Bom dia. 

Ficaram em silêncio por algum tempo, estudando um ao outro, e ela pensava se poderia confiar nele. Notou que ele era um homem bonito. Percebeu nos olhos dele que era uma boa pessoa, e que tinha bom coração. Aspirou com força o ar que vinha dele a fim de confirmar sua impressão, e finalmente, chegou mais perto. Sidônio ficou ainda mais encantado ao ver que ela podia voar. Dirigindo-se a ela, perguntou:

-Você existe mesmo, ou ainda estou sofrendo os efeitos do vinho do jantar de ontem?

Ela riu, e respondeu:

-Sou tão real quanto você. 

-Mas... de onde você vem? O que é você... ou... quem é você?

Ela voou para ele, pousando em seu ombro rapidamente, e indo instalar-se sobre a mesinha da varanda, sentando-se na beirada da xícara de café, respondeu:

-Meu nome é Joan. Sou uma fada.

-Hein? Você... quer dizer, uma fada mesmo? dessas que voam, jogam pó de pirlimpimpim e essas coisas?

Ela sacudiu a cabeça:

-Vocês humanos têm ideias loucas a nosso respeito. Não fazemos essa coisa de jogar pó em ninguém. Mas... sim, temos alguns poderes que vocês consideram mágicos. E sim, podemos voar. O que eu posso lhe dizer, é que fiquei surpresa quando você conseguiu me enxergar. Isso geralmente não acontece com frequência. Pelo menos, não mais...

-Quer dizer que há mais de vocês?

-Sim, embora... haja poucos hoje em dia. Somos uma espécie em extinção, graças aos humanos, que nos dizimaram. Não sermos vistas é nosso último recurso, nossa última defesa. Raramente um de vocês consegue nos ver... e quando veem, são crianças. Porque as crianças – digo, algumas delas – ainda têm o coração puro. 

-Você disse “algumas delas?” Não todas elas?

-Sim. Existem crianças realmente más, e outras que são bem maldosas, e ainda, algumas totalmente frias e indiferentes. Muitas de nós já caíram vítimas dessas criaturas. 

Sidônio ficou surpreso.

-Mas... como?

-Por acharmos que todas elas eram puras. Alguns foram trancafiados em caixas de brinquedos e morreram de fome e de sede, esquecidos... outros, dados como alimento a cobras e aranhas de estimação. E outros foram esmagados ao sentarem-se sobre nós. 

-Eu sinto muito!

Ela baixou os olhos. 

-Mas por que eu consigo vê-la?

-Porque você é um homem realmente bom. 

Ele ficou pensando no que ela acabara de dizer. Seria mesmo? Bem, os amigos diziam a mesma coisa. Alguns o criticavam por isso. Um de seus amigos dissera-lhe que ex-mulher abusara de sua confiança porque ele era bom demais, e que ele deveria ficar mais “esperto” dali por diante, ao envolver-se com outras mulheres. E seus pais afirmavam que dos três filhos, ele era o mais presente, o mais bondoso e o mais solícito. Sidônio ficou feliz por aquilo. Resolveu continuar a conversa:

-Então... só eu posso enxergá-la?

-Sim. 

-E se você não desejar mais ser vista por mim?

-É impossível. Se um humano pode nos ver, não podemos evitar sermos vistos. 

-E... há mais de vocês por aqui neste momento?

-Não. A maioria de nós prefere viver escondida no fundo de florestas inexploradas. Mas eu prefiro ficar aqui. Sabe, sou um tanto... reclusa. Não gosto muito de companhia.

-Mas há muita companhia por aqui. Estamos em uma cidade. 

-Mas eu escolhi esta árvore porque ela é bem alta... e só há um morador neste apartamento, portanto, ele é silencioso... não sabia que você seria capaz de me enxergar.

-Agora que sabe, o que vai fazer? Ir embora?

Ela encolheu os ombros miúdos, e começou a voejar em volta dele:

-Não... acho que talvez possamos ser amigos, pois eu acho que você anda precisando de companhia. 

Ele riu:::

-Vai ser minha fada-madrinha, ou algo assim?

-Se você permitir.

Ele pensou por algum tempo. Tentou encontrar uma explicação para o que estava acontecendo. Achou que poderia estar enlouquecendo. Abriu a boca para responder, mas de repente, achou melhor não levar mais aquilo adiante, e virando-se de costas, entrou no apartamento, fechando a porta.

Ficou vários dias sem ir à varanda. Dedicou-se ao trabalho, fazendo horas extra todas as noites e chegando tarde em casa. Também começou a sair todo final de semana com os amigos, e ficava a maior parte do tempo na rua, só voltando em casa para dormir. Após quase um mês, notando que a varanda estava um tanto suja, pois ele proibira a faxineira de ir até lá ou de abrir aquela porta, Sidônio achou que já estava na hora de enfrentar seu medo: munido de vassoura, balde e pano-de-chão, abriu a porta da varanda e passou a varrer, evitando olhar para a árvore. 

Qual não foi sua surpresa quando, de repente, a vassoura saiu de suas mãos, indo descansar junto à parede, enquanto a varanda simplesmente ficou limpa. Ele olhou em volta, tentando entender o que acontecera, quando escutou uma risadinha; lá estava sua amiga Joan, e ela parecia bastante divertida às custas dele. Sidônio levou um susto, e ela deu uma gargalhada:

-Pensei que já nos conhecêssemos, Sidônio. Ora, eu só te dei uma mãozinha... não gostou?

Ele respirou fundo, relaxando:

-Na verdade, sim. Poupou-me meia hora de esforço. Eu ia... tomar café. Quer um pouco?

Ela voou para dentro do apartamento, sentando-se sobre a geladeira, enquanto Sidônio preparava o café. Quando ficou pronto, ele olhou em volta procurando uma vasilha pequena o bastante para servir Joan, mas ela apenas disse: 

-Pode colocar na xícara normalmente.

Ele obedeceu, e num passe de mágica, uma forte luz inundou a cozinha, e ele precisou fechar os olhos depressa. Quando voltou a abri-los, ela estava sentada à mesa, e tinha quase o tamanho dele. Daquela vez, ele percebeu que ela usava um par de sapatilhas transparentes e flexíveis, de tecido, e usava um vestido verde e esvoaçante, simples como o primeiro que ele vira. Joan pegou a xícara, e tomou um golinho do café. Ele notou o quanto ela era linda, perfeita! Pensou que poderia apaixonar-se por ela facilmente, se ela não fosse uma fada. Se ela ao menos, existisse. Mal sabia ele que ela pensava a mesma coisa a respeito dele, que poderia apaixonar-se por ele, se não fosse um humano. 

Meses se passaram. Joan passou a frequentar o apartamento de Sidônio diariamente. Ele lamentava não poder apresenta-la aos amigos, pois somente ele podia vê-la; assim, falar sobre ela seria como admitir que estava louco. Joan era o seu segredo. 

Certa noite, eles estavam jogando cartas e comendo pizza. Ele acabara de ensinar Joan a jogar vispora, e ela já estava ganhando o jogo na primeira partida. Davam gargalhadas, divertidos, quando a campainha tocou. Sidônio entrou em pânico, mas Joan disse:

-Não se preocupe! Você se esqueceu de que só você pode me ver? Vá abrir a 
porta, fique tranquilo. 

Era Edu, um amigo do escritório.

-Oi, Sidônio. Estava passando por aqui e decidi vir visitá-lo. Você anda sumido. 

-Olá, Edu. Quer... entrar?

Sem responder, Edu passou por ele, e foi logo dizendo:

-Hum... que cheirinho de pizza! Ainda tem?

Dizendo aquilo, começou a andar em direção a cozinha. Eram amigos há anos, e não haviam cerimônias entre eles. Sidônio lembrou-se do que Joan lhe dissera, ou seja, para ficar tranquilo, pois somente ele podia enxerga-la. Por cima dos ombros do amigo, ele a viu ainda na forma humana, sentada à mesa. Piscou para ela, e ela piscou de volta. Mas Edu, que também estava enxergando Joan,  estancou o passo de repente, dizendo:

-Oops! Desculpe, não sabia que estava acompanhado!

Joan arregalou os olhos, e Sidônio sentiu o coração chegar até a garganta. Engoliu em seco, talvez tentando levar eu coração de volta ao lugar certo, e antes que pudesse dizer qualquer coisa, viu que Joan erguia-se da cadeira, estendendo a mão a Edu:

-Olá! Sou Joan. 

Edu segurou a mão dela, os olhos fixos em seu rosto:

-Olá, Joan. Sou Edu.

Sidônio notou que o amigo estava absolutamente fascinado por Joan, e sentiu ciúmes. Pigarreando, ele disse:

- Bem, Joan é... uma amiga. Não é, Joan?

Ela sorriu, e quando o fez, Edu sentiu que estava derretendo. Para disfarçar, puxou uma cadeira e sentou-se, pegando uma fatia de pizza e passando a mastigar grandes pedaços. Não conseguia tirar os olhos dela. Joan sentou-se na frente dele, e erguendo um braço, convidou Sidônio para juntar-se a eles. Sidônio gostou daquele gesto, e pegando a mão dela como somente um namorado faria, sentou-se ao seu lado. Joan notou que ele estava com ciúmes, e gostou. 
Finalmente, após quase duas horas, Edu levantou-se da cadeira e foi embora. Sidônio percebeu que o amigo estava apaixonado por Joan, e que conversara com ela a maior parte do tempo, quase ignorando-o. Joan foi atenciosa e gentil o tempo todo, o que deixou-o ainda mais enciumado. Depois que Edu saiu, Sidônio olhou para Joan, segurando a mão dela, e disse:

-Joan... eu... acho que ... quero dizer... é comum que humanos e fadas se enamorem uns dos outros? 

Uma faísca brilhante escapou dos olhos dela:

-Mais do que você pensa! Tenho certeza que nesse exato momento, existem muitos casais mistos por aí... embora nem sempre dê certo.

-Por que?

-Bem... nós fadas temos uma concepção de vida diferente sobre o amor. Não existe exclusividade, ou seja, ela só acontece se for natural. 

-Quer dizer que fadas podem se relacionar com mais de uma fada? Ao mesmo tempo?

-Sim... mas nós jamais procuramos por isso. Acontece às vezes. E quando acontece, simplesmente aceitamos. Nós não temos o sentimento de ciúme, ou de posse. Somente os humanos o tem. 

Sidônio pensou um pouco, e disse:

- Você se casaria comigo?

Ela demorou um pouco antes de responder:

-Se eu me casasse com você, minha invisibilidade seria quebrada. Isso significa que qualquer um poderia me ver. E eu teria que passar a maior parte do tempo do tamanho de um humano, e isso faria com que meus poderes diminuíssem bastante. Porque para manter-me deste tamanho, gasto bastante energia. Nós temos uma quantidade de energia limitada por dia. Nossos poderes mágicos dependem dela. 

-Mas você sente por mim o mesmo que eu sinto por você, Joan? Você se casaria comigo?

Joan sabia que amava Sidônio. Mas tinha muita coisa em jogo, desistir de tudo para ficar com ele... ela precisava de mais tempo para pensar. Quem sabe, viajar durante algum tempo e consultar sua família. Sua prima mais velha vivia com um humano na Irlanda, e eles eram felizes a maior parte do tempo, mas ela precisava fazer muitos sacrifícios e desistir de muitas coisas. Precisava aprender a sentir como uma humana. 

Joan disse:
-Preciso de tempo para pensar. Amo você também, Sidônio... mas... preciso de mais tempo.

Ele segurou, pela primeira vez, o rosto dela entre as mãos, beijando-a levemente nos lábios.

-Eu lhe darei o tempo que precisa.

Na manhã seguinte, Sidônio procurou por Joan, mas ela não estava em sua casinha na árvore. Por três dias, ele chamou por ela, sem obter resposta. 

Edu passou a visitá-lo diariamente naqueles três dias, sempre perguntando por Joan, o que o deixava irritado. Finalmente, Sidônio disse ao amigo:

-Eu e Joan estamos namorando. Ela viajou para dizer à família que aceitou meu pedido de casamento.

Edu pareceu muito constrangido:

-Ora... por que não me disse logo, amigo?

-Não queria ser grosseiro, mas percebo que você demonstra um interesse exagerado em minha noiva. Entenda uma coisa, Edu: eu a vi primeiro. Ela é minha. 

Edu ergueu o pescoço:

-E ela sabe disso?

-Como assim?

-Ela sabe que é propriedade sua, Sidônio? Porque naquela noite em que a conheci, ela foi bastante... atenciosa comigo, e pensei que estivesse interessada em mim. Nunca me engano nessas situações. 

Sidônio irritou-se:

-Ora, você é um Don Juan convencido, Edu! Joan não é para o seu bico. Ela, não! Ela não é como as franguinhas que você pega por aí. E já disse, estamos noivos!

-Mas você a apresentou como sua amiga!

-Ficamos noivos depois que você saiu.

Edu coçou a cabeça, dizendo:

-Bem... se é assim...

Após uma semana, Joan ainda não voltara de sua viagem, e Sidônio começou a desesperar-se. Temia que ela estivesse vendo Edu em segredo. Na sua imaginação, via os dois aos beijos e abraços. Durante a noite, acordava assustado, diante da possibilidade dela nunca mais voltar. Sua mente dava voltas. 

Não conseguindo mais trabalhar direito, pediu férias no trabalho por motivo de doença. Estava irritadiço, desatento e apático ao mesmo tempo, e seu chefe concordou que ele precisava ver um médico, e talvez um tempo afastado fizesse bem a ele. Quando deixava o escritório e estava a caminho de casa, Sidônio viu a redoma em uma loja de antiguidades.

Parou, e olhou a vitrine. Era uma redoma de forma ovalada, feita de vidro, com uma base de cobre. O vidro continha alguns furos, que pareciam ter sido feitos para que o ar pudesse passar. Achou que media por volta de 40 centímetros de altura por 30 centímetros de diâmetro.  Seu coração deu um salto, e ele precisou respirar mais fundo para se controlar. Ficou ali, parado em frente à vitrine, olhando a redoma. Alguns minutos se passaram, e o vendedor da loja veio ter com ele:

-Vejo que gostou da redoma. É antiga. Tem mais de duzentos anos. 

-Para que servia?

O moço explicou:

-Eram usadas para muitas coisas... colocar velas, ou expor objetos... também como pequenos jardins. Esta é perfurada, e acredito que era usada para colocar vasos de flores, talvez. 

Sidônio sentiu um calor surgir de dentro dele. Tomado por um impulso, comprou a redoma e levou-a para casa, colocando-a no centro da mesa. Notou o quanto o vidro era pesado. Ficou muitas horas olhando para ela, andando em volta dela, pensando no quanto ela lhe seria útil. Sua mente trabalhava de forma autônoma, ignorando o bom senso e a ética. Seu lado selvagem tinha vindo à tona, em jorros de paixão, medo e ciúmes. Se ela voltasse...

A possibilidade de Joan nunca mais voltar fazia com que seu estômago se revirasse. E se ela voltasse, ainda teria que conviver com a ameaça que Edu representava. Ela mesma tinha dito que infidelidades eram comuns entre as fadas. 

O dia acabou, e sombras começaram a entrar e acomodar-se nos cantos do apartamento, antes que Sidônio se lembrasse de acender as luzes. Ele foi até a janela, e quando olhou lá para baixo, viu Edu parado na esquina, as mãos nos bolsos, observando o apartamento. Acenou para ele, mas Sidônio entrou, fechando a porta de vidro e as cortinas da varanda. Pela greta, viu quando o amigo ainda esperou um pouco antes de ir embora. 

Achou que Edu estava ali esperando para ver se Joan tinha chegado. Irritou-se ainda mais, e naquele momento, sabia que sua decisão tinha sido tomada.
Joan ainda levou cinco dias para retornar ao apartamento. Certa noite, um Sidônio magro e barbado olhou para a árvore, desesperançado, e notou que havia luz lá dentro. Joan estava de volta! Imediatamente, seu olhar se iluminou, e não querendo que ela o visse naquele estado lastimável, Sidônio tratou de barbear-se, tomar um banho e comer alguma coisa rapidamente. Depois, abriu a porta da varanda e chamou-a. 

Joan atendeu, dizendo:

-Acabo de chegar! E trago boas notícias, Sidônio. Falei com minha família; alguns concordaram, outros não... mas mesmo assim, meus pais me apoiaram. Eu aceito me casar com você!

Dizendo aquilo, ela transformou-se na frente dele, enlaçando-lhe o pescoço. 
Passaram a noite juntos, e Sidônio jamais sentira nada parecido com o que Joan fez ele sentir.  Fazer amor com uma fada era bem diferente, e muito melhor, do que amar uma humana. Dormiram abraçados, e ela acordou ao lado dele em sua forma de fada, adormecida sobre o travesseiro. Ele ainda a olhou dormir por algum tempo, antes de dar seguimento ao seu plano.

Quando Joan despertou, estava sob a redoma de vidro. Ela olhou em volta, tentando compreender sua situação. Olhou para ele, surpresa e magoada, e 

Sidônio disse a ela:

-Não posso arriscar-me perde-la. Ficar sem você seria a morte para mim.
Joan enxugou uma lágrima, ainda não acreditando naquilo; achava que ele poderia estar brincando com ela:

-Ora... solte-me, amor. Nós vamos nos casar! Lembra-se?

Ele colocou a redoma sobre a mesa da cozinha, sentando-se em frente a ela, os cotovelos apoiados sobre a mesa.  Disse:

-Se você se casar comigo, acabará me traindo. Como minha primeira mulher. Eu vi o quanto você gostou de Edu, e ele de você. você mesma me disse que fadas amam diferente, que não levam a fidelidade em consideração.

-Mas Sidônio! Se você pensar bem, verá que os humanos também não o fazem. Apenas fingem! Eu estava disposta a desistir de grande parte de meus poderes e ser uma esposa para você, tornando-me humana, indo contra a minha natureza... 

-Você disse “estava?”

Ela pareceu desconcertada. Andava de um lado ao outro por dentro da redoma, os olhos em chamas.

-Você não pode me manter aqui! Se me soltar, prometo que me caso com você.

Ele balançou a cabeça, negando:

-Não! Se eu soltá-la agora, você voará por aquela janela e eu nunca mais a verei!
Ela sabia que ele estava certo. Desanimada, sentou-se, abraçando os joelhos. Teria que esperar uma chance para escapar dali. Porém, mais do que triste, Joan estava desiludida. Acabara caindo em uma armadilha, como tantas outras fadas que acreditaram em humanos. 

Sidônio esperava que ela dormisse, e quando isso acontecia, ele levantava a tampa da redoma rapidamente e jogava alguma comida e água lá dentro. Quando precisava limpá-la, agarrava-a com uma das mãos com tanta força, para que ela não fugisse, que Joan mal respirava. Depois, com a outra mão, limpava a redoma. 

A pobre Joan olhava pela vidraça do apartamento, para sua casinha na árvore, para o céu, a liberdade... o vidro era pesado demais para que ela o erguesse. Ele havia colocado uma pequena almofada na redoma, e ela passava o dia todo sentada ou deitada sobre ela. Seus poderes não funcionavam sob o vidro. 

Ele voltou a trabalhar, e quando Edu perguntou sobre Joan, Sidônio dissera que tinham desmanchado o noivado e que ela voltara para sua terra natal. Mas Edu percebia que havia algo diferente com o amigo. Ele não era mais uma pessoa doce e bondosa. Parecia ter envelhecido alguns anos de repente, e estava calado, isolando-se de todos. Também passou a exibir um comportamento estranho – às vezes, pegava-no falando sozinho, murmurando coisas. 

Vários dias se passaram. Nada mudava. Joan desistiu de pedir por sua liberdade, e tornou-se como um brinquedo nas mãos de Sidônio, que a queria somente para si mesmo, isolando-a de tudo. Vítima de suas desconfianças e de seu ciúme. Aos poucos, sua vitalidade começava a diminuir, e ela sabia que em breve estaria morta. Mais uma fada que deixaria de existir devido à interferência humana. Ele não acreditava nela, quando ela dizia que se permanecesse sob a redoma, começaria a definhar. Ele a olhava e dizia:

-Você me parece tão linda como sempre foi. Se a mantenho aí, é porque eu a amo, e não suportaria perde-la!

Ela notava que ele mesmo estava definhando. Parecia estar se transformando em uma outra pessoa. Apesar de tudo, ela ainda o amava. Os amores das fadas custavam muito a morrer. 

Sidônio lembrava-se de sua primeira noite de amor com Joan, e queria poder revivê-la; mas a possibilidade de que ela fugisse dele, o apavorava. Ele segurava a redoma entre as mãos, fascinado pela sua beleza da mesma forma que ficara na primeira vez que a vira. Sentia muito não poder amá-la com seu corpo, mas amava-a profundamente com sua alma. 

Certa manhã, Sidônio olhou a redoma e viu que Joan ainda não acordara. Ele chamou por ela, mas ela não respondeu. Aflito, bateu de leve no vidro, tentando despertá-la, mas Joan não se mexia. Ele chegou o rosto mais perto do vidro e viu que ela estava muito pálida. Desesperado, ele abriu a redoma, tocando a pele dela com a ponta do indicador: ela estava gelada. Cutucou-a de leve, chamando por ela. Aquela foi a chance de Joan, que de repente, voou para longe. Usando seus poderes, quebrou o vidro da varanda, escapando dali. Ele correu na direção dela, apoiando-se no parapeito da varanda, vendo-a afastar-se e ficar cada vez menor, sumindo para sempre no céu da manhã. 

Mas algumas fadas não tiveram a mesma sorte, e morreram à míngua nas mãos de humanos egoístas, ciumentos e dementes. Até hoje, ainda há fadas que caem nas garras de tais criaturas. Elas entregam de si muito mais do que deveriam, e sempre acabam perdendo seus poderes e tornando-se escravas. 






quarta-feira, 5 de julho de 2017

A MÃO & O LAÇO – CAPÍTULO XIII – Final









Quando procurei por Shirley, acompanhada de Noel, foi Reginaldo, o mordomo, quem atendeu a porta. Mandou-nos entrar, e quando pensei que ele tivesse ido avisar a Shirley que estávamos lá, ele voltou com um envelope branco e grande, de bordas douradas, em uma bandeja. Olhamos para ele, sem nada entender, e ele fez sinal para que pegássemos o envelope. Hesitante, perguntei-lhe:

-O que significa isto?

Solenemente, Reginaldo respondeu-me:

-Madame Shirley mandou entregar-lhe este envelope.

-Mas... onde ela está?

-Não sei informar-lhes. 

-Não sabe... não pode ou não quer?

Reginaldo ergueu as sobrancelhas, assumindo um ar frio e impenetrável:

-Madame deu-me ordens para que este envelope chegasse até a senhora. Nada mais posso dizer. Na verdade, eu já estava indo entregar-lhe, mas a senhora poupou-me o trabalho. Eu também já estou de saída.

Noel disse:

-Pegue logo o envelope e vamos embora daqui, Jordana.

E virando-se para Reginaldo:

-Obrigada.

Agarrei o envelope enquanto meu marido me puxava para fora do apartamento. Subimos em silêncio no elevador. Senti que havia algo sólido dentro do envelope, e apalpando, descobri os contornos de uma chave. Mal chegamos no apartamento, sentamos no sofá da sala e comecei a abrir o envelope. Realmente, ele continha uma chave. E uma carta, que comecei  a ler em voz alta::

“Querida amiga – posso chama-la assim?
Sei que o tempo que passamos juntas foi relativamente curto – apenas um ano escolar e algumas horas fora da escola, mas estas horas significaram muito para mim. Você me inspirou de verdade, Jordana. Acho que se não a tivesse conhecido a tempo, eu teria me transformado em alguém muito ruim, pois eu não tinha nenhuma esperança, nenhum sonho, nenhuma inspiração. Eu era uma pessoa amarga antes de você. Você significa muito para mim. A melhor amiga que já tive. Participar de sua vida, frequentar a sua casa e a casa de sua avó foi para mim uma experiência enriquecedora. Eu precisava, ao final de minha adolescência conturbada, de alguém em quem me inspirar. Alguém que me fizesse crer que valeria a pena ser uma pessoa melhor. Esta pessoa foi você. Eu estava perdida, pois acho que todo adolescente precisa de um ‘role model’, e eu não tinha nenhum adequado em minha vida, nenhum bom exemplo a seguir.” 

Parei de ler naquele ponto, a fim de recuperar o fôlego. Noel colocou a mão no meu ombro e fez uma carícia, percebendo o quanto eu estava emocionada. Continuei:

“Eu vivia por aí, tentando demonstrar ser o que eu não era: feliz, autoconfiante, sexy, poderosa e temida. Bem, talvez eu fosse temida. Mas minha vida era baseada em domínio e vingança. Eu me vingava quando as pessoas não faziam o que eu queria, mas eu não consegui me vingar de você. Porque eu a amava muito. Não sei explicar de onde vêm esses sentimentos - fique tranquila, era um amor de amiga, nada romântico! Na verdade, um amor de irmã. Também gostava muito de sua mãe, apesar de saber que ela não me apreciava, e adoraria ter nascido sua irmã. Mas as coisas são como são, não é?

E foi pela vontade de ser como você, de impressioná-la, de ser admirada pelo caráter que eu não tinha, que eu me modifiquei. Eu notava o quanto você era querida entre os professores da escola e entre as outras pessoas. Você nos trouxe algo novo, a sua presença naquele último ano foi como uma lufada de ar fresco. E tudo o que sua mãe fez por Diana, e pela mãe dela, sem nem sequer conhece-las! Fizeram apenas para ajudar, porque desejavam que elas tivessem uma chance. Eu nunca tinha visto ninguém fazer algo assim.”

Imediatamente, minha mente voltou àqueles tempos em que fôramos colegas de escola. Lembrei-me das muitas festinhas, das risadas que demos juntas, de nós duas de braços dados passeando pelo shopping; lembrei-me de nossas brigas e do quanto era bom fazer as pazes. lembrei-me das tantas vezes em que enxugamos as lágrimas uma da outra, e o quanto era bom ter alguém a quem contar as coisas que me aconteciam, e estar ali, sempre pronta para ouvir sobre ela – apesar das tantas mentiras que, mais tarde, descobri. Também lembrei-me daquela minha festa de aniversário polêmica, na qual Shirley chegou, arrasando com seu vestido decotado, justo e vulgar, mudando o ritmo de uma festa que poderia ter sido bastante chata, não fosse a sua presença bem humorada. Continuei a leitura:

“Nós éramos tão diferentes... e aquilo me fez perceber o quanto eu estava me afastando de tudo o que era bom na vida. Eu gostava de prejudicar as pessoas. Eu gostava de fazê-las sentir medo de mim. Gostava de sentir o poder de manipular a todos a fazer o que eu queria. Mas aquilo não teria me levado longe.
Quando o assunto do meu pai surgiu, percebi o quanto eu andava precisando desabafar sobre aquilo, que eu tanto escondia de todo mundo. Mas na verdade, embora eu tenha tentado com muita força odiá-lo e puni-lo pelo que ele tinha me feito, eu nunca consegui. Eu me via nele. Ele também tinha sido aquela criança que eu era, embora naquela época eu ainda não soubesse disso. E os adultos em volta dele em nada ajudaram; só atrapalharam. Por isso, quando sua mãe apareceu, mostrando-me que eu não tinha nada do que me envergonhar e que eu precisava de ajuda, pois era uma vítima, percebei que meu pai, de certa forma, também o era. Ele também precisava daquela ajuda. E antes que a polícia pudesse pôr as mãos nele, eu corri para ele e contei-lhe que ele estava em perigo. 

Você nem imagina o quanto aquilo nos aproximou- daquela vez, de verdade, como pai e filha! Senti que pela primeira vez em muitos anos, o olhar que ele me dirigiu foi amoroso, e arrependido também. Meu pai chorou. Naquela noite, no carro, quando estávamos com Diana, ele contou-nos a sua história. Mas isso não vem ao caso agora. 

Senti que eu poderia perdoá-lo por tudo, e me libertar daquela amargura, me preparando para ser uma nova pessoa, alguém melhor. Mamãe não compreendeu; ela nunca perdoou papai. Meu padrasto também não. Por isso, mantive segredo de tudo para eles também. Foi muito difícil não poder compartilhar aquilo com ninguém, pois eu sabia que ninguém nos entenderia. 

Bem, naquela noite, a nossa última, em que vocês me pressionaram e eu percebi que desconfiavam de mim, fiquei muito magoada. Senti que precisava me afastar. Pelo menos, por enquanto. Até que eu pudesse ter forças para contar tudo o que realmente tinha acontecido. Meu padrasto morreu, e eu e mamãe herdamos todo aquele dinheiro; nos mudamos. Ela conheceu outro homem, casou-se... percebi que não havia mais lugar para mim na vida dela. E eu não queria estar ali. Casei-me também, com um homem muito rico, e ele me deixou muito bem após a separação. Acho que ele ainda me ama. Procurou-me recentemente, e hoje, quando você estiver lendo esta carta, saiba que ele estará cuidando de mim. Porque até isso você me ensinou: a amar. Compreendi, ao ver você e Noel juntos, que eu me sentia da mesma forma em relação ao meu ex-marido. Fugi dele por medo. Eu não queria ser abandonada quando ele soubesse.

Mas ele ficou sabendo, e mesmo assim, me procurou e me quis de volta, mesmo sabendo que nós não teremos muito tempo. Estou doente, Jordana. Muito doente. E nem todo o meu dinheiro poderá me curar agora. Mas não se preocupe, eu estou bem, estou feliz. Porque vocês me perdoaram. 

Eu comprei e reformei este apartamento para você. Conheço seu gosto, conheço você e sei que vai adorá-lo. Mas pode modificar o que quiser. Tenho certeza de que você faria o mesmo por mim se pudesse, pois você é esse tipo de amiga. No envelope estão a escritura e a chave. Espero que você o aceite de bom grado. Se não quiser ficar com ele por algum motivo, ele será doado a uma instituição de caridade – meu advogado já arranjou tudo.”

Imediatamente, me arrependi das vezes em que desconfiei de Shirley. Lágrimas grossas rolaram dos meus olhos quando me lembrei da imagem dela se afastando, naquela nossa última noite. Eu nunca dei a ela uma chance de se explicar. Não dei a ela o tempo que precisava. 
Apertei a chave na palma de minha mão. Continuei a leitura:

“Acreditando que o que realmente conta não é o tempo de uma amizade, mas a intensidade do sentimento, eu me despeço de você, e espero que você possa ser capaz de guardar de mim uma boa lembrança. E não se preocupe: a esta hora, há uma carta contando à polícia a verdade sobre tudo o que aconteceu naquela noite. Só peço a vocês que não revelem, jamais, o paradeiro de meu pai. Deem a ele uma chance para aprender a viver. Pode acreditar em mim: por mais terríveis que tenham sido as coisas que ele fez, ele se arrependeu. Diante de Deus, que tudo conhece e que percebe a verdade das coisas, ele nada mais tem a pagar. Mas diante da justiça torta dos homens, que estão prontos a condená-lo pelo resto da vida, ele sofreria uma pena que não merece mais. Imagine, o próprio Judas Iscariotes jamais foi perdoado, e continua sendo pendurado nos postes e torturado por um bando de hipócritas, mesmo após ter se enforcado de tanto arrependimento pelo que fez... dirá meu pai! 
Meu pai hoje está velho. É uma outra pessoa. Ele tenta ser melhor a cada dia. Assim como todos nós.

Um grande beijo da sua amiga

Shirley.”

Nós nos mudamos para o apartamento algumas semanas depois. Minha mãe e minha avó leram a carta de Shirley, e acreditaram nela. As duas ficaram tão comovidas quanto eu fiquei. Laura e Adílio também receberam cartas semelhantes, e todos nós, do fundo de nossos corações, fomos capazes de entender e perdoar nossa louca amiga. 

Hoje, nós temos uma filha. Seu nome é Shirley. Nós ficamos com o apartamento, embora tenhamos feito várias modificações – o estilo extravagante de Shirley não combina com o nosso. Mas mantive algumas coisas como estavam, em lembrança dela.


FIM










segunda-feira, 3 de julho de 2017

A MÃO & O LAÇO – CAPÍTULO XII








Logo na manhã seguinte, enquanto eu me preparava para ir trabalhar – Noel teve uma audiência naquele dia e saiu mais cedo – a campainha tocou. Joguei a bolsa sobre o sofá e fui atender. Era Shirley. Ela me olhou da cabeça aos pés, dizendo:

-Não quero atrapalhar. Vejo que está de saída.
-Não, entre... ainda tenho alguns minutos.

Ela entrou, sentando-se no sofá e olhando em volta:
-Nada mudou por aqui. 
-É... decoro os apartamentos e casas de tanta gente e ainda não achei tempo para decorar este. Mas na verdade, não acho que mamãe gostaria que o modificássemos. Ela adora esta mobília. 
-Pensei que vocês tinham ficado com o apartamento!

Eu neguei com a cabeça, sentando-me ao lado dela e checando a hora discretamente.

- Bem, tínhamos a intenção de comprar o apartamento que você está morando... mas você chegou na frente. De fato, amei a decoração! Quem fez?

Ela encheu o peito, com ar brincalhão:

-Eu mesma planejei tudo, comprei tudo pessoalmente. Surpresa? Afinal, você não conhecia esse meu lado, não é?

Pensei que havia várias facetas e vários lados de Shirley que eu nunca conheci e talvez jamais conheceria, mas preferi não dizer aquilo. Ao invés, perguntei-lhe se aceitava um café. Ela agradeceu e recusou:

-Grata, mas também preciso sair... tenho que fazer umas compras. Só vim aqui para pedir uma opinião sua... sabe... é que ando pensando em reunir a turma. Laura, Adílio, eu e você. Como nos velhos tempos. Acha que eles concordariam?

Fiquei um tanto sem graça, pois sabia que a última coisa que Laura desejava, era ver Shirley de novo; mesmo assim, fui delicada:

-Talvez, acredito... que sim, mas você teria que perguntar a eles. 
-É aí que você entra: perdemos contato. Você se importa de fazer esta parte? Quero dizer, explicar-lhes que estou de volta e que desejaria vê-los? Há muitas coisas que eu gostaria de explicar.

Pensei nos motivos que ela poderia ter para desejar rever a todos nós juntos, e no que ela poderia querer explicar-nos. Olhei bem para ela, tentando analisar suas emoções, mas ela parecia um muro impenetrável, apesar de tentar aparentar estar sendo verdadeira... ou seria apenas minha impressão?

-Posso tentar falar com eles, Shirley. Mas não sei se estarão dispostos. Você sabe que o último encontro entre nós não foi muito bom. Nossas últimas... experiências... você sabe...

Ela concordou com a cabeça:

-Eu sei, você está certa. Mas isso tem me perseguido há anos. Toda essa história. Quero pedir desculpas, me retratar. Vocês eram meus melhores amigos. Eu... sinto falta de vocês. Sinceramente. Pense bem, por que eu não estaria sendo sincera? O que mais eu poderia querer? Que mal eu poderia fazer?

Pensei naquelas perguntas antes de responder, o que levou alguns segundos, e não encontrei nenhuma resposta coerente. Ela me olhava, as sobrancelhas caídas para os cantos exteriores do rosto, como ela costumava fazer quando queria pedir desculpas. Quem não a conhecesse, com toda certeza deitaria no chão para ela passar por cima após um olhar daqueles. Respondi:

-Tudo bem, vou falar com eles, mas não posso garantir nada. 

Ela me agradeceu, e saiu. Levei algum tempo me recuperando da presença dela, que parecia sugar todas as minhas energias. Tomei um café preto, e saí para trabalhar. Chegando lá, entre um projeto e outro, contei tudo para Elisa. Ela me ouviu com atenção e disse:

-Ponha logo um final nessa história, Jordana. Ouça o que ela tem a dizer. Pelo menos, tente. Todo mundo merece uma segunda chance.

-Mas não me parece que ela queira uma segunda chance, embora seja isso que ela esteja dizendo. Não sei... ela está tão estranha!

-Pelo que você me conta, ela sempre foi esquisita. Já pensou que ela pode ter algum tipo de distúrbio psicológico? 

-Como assim?

-Sei lá! Shirley pode ser uma psicopata. 

Eu ri alto:

-Não! Nem tanto, Elisa. 

Entrei em contato com Adílio e Laura naquela mesma noite, através do computador. Fiquei feliz ao ver que Patrícia estava linda, muito graciosa, e que ela já me reconhecia, mesmo através da telinha do computador. Nós ficamos conversando durante algum tempo, colocando as notícias em dia, até que tomei coragem e contei a ela sobre a volta de Shirley. Contei a história toda, que agora éramos vizinhas e que ela desejava reencontrar a todos nós juntos. Laura protestou veementemente, mas Adílio acalmou-a:

-Calma, amor. É só a boa e velha Shirley. Estamos vacinados contra ela. Vamos lá ver o que ela tem a nos dizer; eu estou curioso. Você não?

Laura pigarreou – sinal de que estava bem nervosa :

-Na verdade... sim. Mas minha Patrícia vai ficar com a vovó. Não vou levar minha filha para Shirley conhecer. Não confio nela.

Adílio riu:

-O que você pensa que ela vai fazer, amor?

Noel respondeu:

-Jogar um feitiço contra a menina, talvez? Eu, que nunca vi essa tal de Shirley pessoalmente, já estou com medo dela.

Todos rimos, mas logo depois, ficamos sérios, e o silêncio desceu. Eu sabia exatamente no que eles estavam pensando. Antes de Laura me perguntar sobre o caso de Diana, eu já sabia o que ela ia dizer. Respondi:

-Acho que arquivaram. Nada foi descoberto, e Pedro continua desaparecido.
Laura perguntou:

-Você não acha que ela talvez saiba onde o pai está?

Aquela possibilidade me pareceu ridícula:

-Claro que não! Por que ela o esconderia?

-Ele é pai dela, Jordana. Ela sempre usou isso para se justificar de não tê-lo entregado à polícia.

-Mas ao mesmo tempo, não hesitou em chantageá-lo e arrancar dinheiro dele – Adílio acrescentou. 

Pensei que Shirley era mesmo uma incógnita...

-Não sei como vai ser morar aqui perto dela, amigos... acho que vamos ter que acabar indo embora daqui. Eu... não quero ter que correr o risco de esbarrar com Shirley todos os dias no corredor ou na portaria. 

Laura disse;

-Eu já teria começado a procurar outro lugar para viver se fosse vocês.

Estudei aquela possibilidade por alguns segundos:

-É... acho que é o que vai acabar acontecendo! Quando falei com mamãe sobre a volta de Shirley e onde ela estava morando, ela pensou em vender o apartamento. Minha mãe nunca gostou dela. Nem minha avó. As duas estão escandalizadas com a volta dela. Bem, posso dizer a ela que você aceitam vir, então?

Eles concordaram, e nos despedimos. Telefonei para Shirley dizendo que eles viriam, e ela pareceu muito feliz. Agradeceu-me efusivamente, com a voz chorosa:

-Logo vocês vão entender tudo, e quem sabe, sejam capazes de me perdoar então. 

E o grande encontro se deu em uma noite enluarada de sexta-feira. Noel, dizendo que não tinha nada a ver com aquilo, achou melhor ir ao cinema com Elisa e Breno, e disse que depois iriam jantar fora e demorar bastante. Nem quis ficar a fim de conhecer minha tão falada amiga. Disse que ter visto suas fotografias já era o suficiente. 

Eu cheguei ao apartamento de Shirley primeiro, às sete e trinta da noite, como combinado. Adílio e Laura estavam atrasados. Ela mesma abriu a porta, segundos após eu tocar a campainha, dando-me a impressão de que nos aguardava ansiosamente. 

Shirley tinha colocado uma linda mesa de jantar, e usava um vestido bege claro caseiro e sandálias rasteiras, mas o vestido simples e de corte reto apenas ressaltava sua elegância.  Usava os cabelos soltos, e uma presilha de pedrinhas coloridas imitando borboletas de cada lado da cabeça, o que lhe dava um ar ingênuo. Achei que aquele toque fora proposital, e apenas olhando as presilhas superficialmente, dava para notar que eram feitas de pedras preciosas caríssimas. 

Uma música suave tocava baixinho, e luzes indiretas davam ao local uma sensação de conforto e aconchego. Apenas sobre a mesa de jantar havia uma luz um pouco mais forte, e algumas velas acesas sobre candelabros de prata. Ela me recebeu com um abraço, conduzindo-me ao sofá. Fiquei contente por ter escolhido um belo vestido, elegante e simples como o dela, na cor branca. O colar longo de pérolas dava o toque final. Eu estava bonita, e sabia disso. 
Ficamos conversando amenidades, até que não resisti mais e perguntei:

-Shirley... você disse que nos convidou porque tem algo a nos dizer. Posso saber de antemão do que se trata? Estou curiosa. 

-Você vai saber, amiga... posso chama-la assim, ainda? Mas na hora certa, quando todos estiverem presentes. Enquanto isso, me fale de você! O que tem feito? Quais os seus planos?

Não me sentiria nada à vontade de conversar com Shirley sobre aqueles assuntos, como se fossemos apenas duas velhas amigas colocando os assuntos em dia, e fui salva pela campainha. Quase gritei:

-Devem ser eles! quer que eu vá abrir?

Mas antes que ela respondesse, um senhor altivo apareceu e cruzou a sala silenciosamente, indo abrir a porta. Ela me disse, ao ver meu olhar impressionado:

-Este é Reginaldo, meu mordomo. Ele vai servir o jantar. Ora, por que a surpresa? Tenho certeza de que você já teve um mordomo!

Reginaldo dirigiu-me um aceno de cabeça discreto, que eu correspondi da mesma forma, e abrindo a porta, conduziu nossos amigos sala adentro. Levantei-me e abracei Laura calorosamente, e também Adílio. Eles ficaram de pé olhando para Shirley, que aguardava sua vez de cumprimenta-los. Ela hesitou, mas estendeu os braços em direção de Laura, que apenas esticou-lhe a mão friamente. Shirley fez um ar magoado, mas cumprimentou-a, e depois olhou para Adílio, que a estreitou nos braços, diante do olhar indignado da esposa. 
Nós nos sentamos, e Reginaldo serviu-nos drinks maravilhosos. O ambiente era constrangedor, devido a não aceitação de Laura. Enquanto isso, eu, Shirley e Adílio tentávamos manter uma conversa forçosamente animada, mesmo diante da cara amarrada de Laura. Finalmente, Shirley olhou-a, perguntando diretamente a ela:

-Soube que vocês tem uma filha. 

Laura respondeu friamente:

-Temos. 

Shirley ficou aguardando ela continuar, mas Adílio salvou a situação:

- Temos sim, ela se chama Patrícia e é linda!

-Pena que ela não veio... adoraria conhece-la!

-É, mas como viajamos no final da tarde, achamos que ela ficaria cansada. Está um pouco gripada, e ficou com a avó. Quem sabe, uma outra vez?

Laura fuzilou-o com o olhar, tomando um grande gole de seu drink. Shirley concordou com a cabeça, e dirigindo-se novamente a Laura, disse:

-Laura, será que você nunca vai me perdoar? Vai querer dizer que nunca errou, nunca mentiu?

Aquela pergunta deixou um rastro de pólvora no ar, principalmente pelo tom de voz rascante de Shirley. Eu e Adílio nos olhamos, impotentes, aguardando o pior, mas Laura respirou fundo e disse, com a voz fria e controlada:

-Mentir? Sim, é claro. Quando eu era criança menti algumas vezes. Mas nunca menti sobre desaparecimentos, assassinatos e abusos sexuais.  E nunca menti para as pessoas que considerava minhas amigas, fazendo-as sentir como se fossem tolas, e ainda por cima, usadas! Realmente, Shirley, se eu estou aqui hoje, é por dois motivos: curiosidade e a pedido do meu marido. Não é porque pretendo reatar a nossa amizade. 

Aquilo nos deixou boquiabertos. Adílio tossiu, e eu acabei com meu drink de uma só vez. Shirley olhou-as em silêncio, tentando absorver o impacto de suas palavras, e depois, como se nada houvesse acontecido, anunciou:

-Vamos todos jantar! Mandei preparar um prato especial que tenho certeza que vão adorar!

O jantar decorreu sob uma paz forçada, risadas forçadas e conversas forçadas, entrecortadas por longos períodos de silêncio. Laura não disse uma palavra, e mal tocou na comida. Reginaldo tentava ser invisível enquanto nos servia, e quando o jantar terminou, ele serviu a sobremesa – que ninguém quis comer – e depois, quando fomos nos sentar no sofá novamente, ele nos trouxe uma bandeja de café e licores, desaparecendo. 

Shirley parecia nervosa. Eu nunca a tinha visto daquela forma, e quando ela me tocou a fim de me servir a xícara de café, notei que estava gelada. Tomamos o café com gosto, e aguardamos. Decidi quebrar um pouco o gelo:

-A refeição estava ótima, Shirley. 

-Obrigada. Sabia que iam gostar.

Adílio balançou a cabeça, concordando com um sorriso, e Laura olhou para o teto, impaciente. Achei a atitude dela imatura e mal educada, mas nada disse.
 Finalmente, após Reginaldo recolher as xícaras, Shirley – que torcia as mãos nervosamente – começou a falar sobre o motivo daquele jantar. Toldos silenciamos e olhamos para ela, ouvindo-a atentamente . Até mesmo Laura tinha os olhos grudados nela.

-Bem, vamos ao motivo deste jantar... é claro que um dos motivos foi rever a todos. Eu estava com saudades, e pensei muito em todos nós durante esses anos de afastamento. Isso pode soar estranho, eu sei. Minha vida mudou muito... nosso último encontro não foi dos melhores... por isso eu nunca os procurei. Mas acho que já passou da hora de colocarmos uma pá de cal sobre essa história toda, esse mal entendido. Bem, para começar: eu não matei Diana. 

Laura disse:

-Mas sabe quem o fez, não é? E o protege.

Adílio começou a censurá-la quando a própria Shirley o interrompeu:

-Não, Adílio; ela tem razão. Eu sei quem matou Diana, e venho escondendo-o durante todo esse tempo. Não com a intenção de protege-lo, mas... porque... eu não posso, é mais forte que eu, não posso entregar meu pai à polícia!

Todos nós nos entreolhamos, espantados pela revelação dela – mesmo que estivéssemos esperando exatamente por aquilo. Todos suspeitávamos de Pedro. Mesmo assim, não pudemos deixar de nos surpreendermos. Me precipitei:

-Onde ele está?

Ela me olhou. Tinha os olhos rasos d’água.

-Fora do país.

Eu insisti:

-Conte-nos mais sobre aquela noite, Shirley.

Ela serviu-se de uma taça de licor, e nós recusamos a bebida. Shirley bebeu de sua taça, enchendo-a novamente duas vezes. 

-Naquela noite, eu estava andando pela rua, perto daquele bar onde Diana me viu com meu pai. Esperava por ele do lado de fora, pois não queria ficar lá dentro sozinha. Só há bêbados e gente inconveniente. Ela me viu. Na verdade, eu a vi primeiro, mas fingi não ver. Mas sabia que ela estava escondida atrás de um poste, me observando do outro lado da rua. Meu pai chegou, e entramos. 

Começamos a conversar. Vi quando Diana nos observava através da vidraça do bar. Comentei com meu pai sobre ela, mas ele não a olhou, disse que resolveria aquilo depois. Achei que ele queria dizer que falaria com ela, mas não foi isso que ele fez...

Bem, ele me entregou a maleta com o dinheiro e disse que aquela seria a última vez, pois estava indo embora do país. Fiquei furiosa; afinal, minha fonte secaria. Mas eu já tinha uma boa quantia para recomeçar minha vida... sabem, eu não queria esperar que o marido de mamãe morresse para pôr a mão no dinheiro. Eu precisava dele naquele momento. A escola estava terminando e eu queria fazer faculdade, me mudar da cidade. Meu padrasto se recusava a me ajudar. E minha mãe não me dava nenhum apoio.

Bem, ele me entregou a maleta. Nós saímos do bar. Diana estava virada de costas para nós, falando ao telefone, e não viu quando nos aproximamos dela. Ela ficou muito surpresa ao nos ver. Meu pai segurou-a pelo braço, obrigando-a a entrar no carro dele. Ela bateu a cabeça com força quando entrou no carro, por isso acharam aquela contusão na testa dela. Não foi meu pai quem bateu nela. Bem, ele dirigiu até perto da represa para que pudéssemos conversar. Diana protestava, eu disse a ela que ninguém lhe faria mal nenhum, mas ela estava muito nervosa.
Chegando lá, saímos do carro.

Eu a interrompi, perguntando:

-Por que escolheram um local tão afastado para conversar apenas?

-Porque meu pai não queria ser visto. Ele dizia, no carro, que só queria despedir-se de Diana e de mim. 

-E por que ele não a chamou para dentro do bar quando a viu?

-Porque ele não queria chamar mais atenção sobre ele do que o necessário! 

Ficamos lá apenas alguns minutos... só o tempo de entregar-me o dinheiro e sair.

-E por que ele não fez aquilo do lado de fora?

-Porque estava sendo procurado pela polícia por abuso de menor! O carro que usava tinha sido roubado também. Estava parado sob uma árvore, do outro lado da rua, em um terreno baldio...

Ela parecia estar revendo as cenas das quais falava. Ela continuou:

-Bem, meu pai parou o carro junto a represa... tinha chovido, e ela estava bem barulhenta. A testa de Diana estava bastante inchada após a batida. Meu pai nos disse que cometera muitos erros na vida, mas que o pior deles, fora contra nós duas. Que ele nos amara, um dia, mas que a bebida o transformara. Pediu-nos desculpas. Foi tudo meio- surreal, acho. Aconteceu muito rápido: ele ergueu a mão em direção a Diana a fim de ver o hematoma em sua testa. Ela deu um passo para trás, e caiu lá em baixo. Ele ainda chamou por ela, mas Diana, que não sabia nadar, caiu dentro da represa. Ela afundou. Ficamos olhando, impotentes... não havia nada que pudéssemos fazer a respeito. Esperamos, para ver se ela reapareceria, mas ela não apareceu... estava escuro. Começou a chover, e fomos embora.

Laura começou a bater palmas lentamente, de maneira sarcástica, dizendo:

-E isso foi tudo? Deixaram ela lá, não avisaram a ninguém... você acha mesmo que acredito nessa história, Shirley!

Shirley continuou:

-O que poderíamos fazer? Não tem como e entrar lá! É uma parede de concreto de vários metros de altura! 

-E por que você não comunicou à polícia?

-Eu... estava esperando que meu pai conseguisse os documentos falsos para sair do país... mas o corpo dela foi encontrado antes. Eu queria que ele fosse embora antes que encontrassem o corpo, pois eu sabia muito bem que ele seria o principal suspeito, quando eu mesma estava lá e vi que ele não teve culpa nenhuma. Por que ele deveria voltar para a cadeia por algo que não tinha feito?

Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Shirley estava defendendo o homem que abusara dela e da irmã na infância, que maltratara sua mãe! Gritei:

-Mas ele estuprou você e Diana várias vezes! Será que isso não seria motivo suficiente para manda-lo para a cadeia?

Ela começou a chorar. Os ombros de Shirley sacudiam-se, e ela tinha as mãos sobre os joelhos, a cabeça baixa. Achei que ela não poderia estar fingindo aquilo. Adílio sentou-se ao lado dela, tentando acalmá-la, o que fez com que Laura ficasse vermelha de raiva. Após alguns minutos, Shirley continuou:

-Vocês não compreendem! Naquela noite, no carro, ele nos contou que ele próprio foi vítima de abuso quando criança. E vocês nem imaginam as coisas pelas quais meu pai passou! Batiam nele... a mãe e o pai... ele era amarrado enquanto adultos o tocavam... ele passou por coisas terríveis, e não sabia como lidar com elas, e então ele conheceu a mãe de Diana... uma prostituta drogada que acabou com a vida dele para sempre. Eu sempre odiarei aquela mulher,  não importa o que digam!

Ela virou-se para mim:

-Quando eu soube que você e sua mãe a estavam ajudando, eu juro, Jordana, que odiei vocês duas! Mas depois compreendi que pessoas como vocês não podiam agir diferente. Vocês cresceram em um mundo diferente do meu. Do nosso. Vocês eram... boas pessoas. Só conheceram o lado mais bonito da vida. Eu invejava você, eu queria ser como você.

Fiquei boquiaberta, sem saber o que dizer. Se Shirley alguma vez dissera a verdade, aquela era a vez. 

-Meu pai nos disse que ele iria sair do país e procurar ajuda. Ele queria ter uma nova chance. Ora, se aquela vagabunda teve uma, por que não meu pai?

Laura observou:

-Mas mesmo sendo assim, tão... solidária com ele, você não deixou de aceitar dinheiro dele e chantageá-lo, não é? Que paradoxo!

Shirley fechou os olhos, apertando-os. Quando ela os abriu novamente, segundos depois, olhou para Laura tristemente. 

-Naquela mesma noite, eu devolvi ao meu pai a mala com o dinheiro. E mais tarde, devolvi todo o resto, que eu tinha colocado em um local escondido em meu quarto. 

-Então... você esteve com ele novamente? – Adílio perguntou.

Ela concordou com a cabeça:

-Sim. Eu o ajudei. Levei-lhe os documentos para fugir do país, quando ficaram prontos. Ele ficou escondido no porão da nossa cabana de pesca, naquela floresta. Quase ninguém sabia que havia um porão. Era bem escondido. Subterrâneo, e a entrada ela pela floresta, através de um túnel. Eu levava-lhe comida... ele ficou lá durante cinco dias após a descoberta do corpo de Diana. 
Minha memória trabalhou rápido. Sim, houve uma época na qual Shirley desaparecia por dias a fio. Então ela estava com Pedro. 

Adílio perguntou:

-Onde ele está agora, Shirley?

-Ele tem uma nova vida. Casou-se de novo. Ele fez uma histerectomia, eles não têm filhos. Meu pai... ele mora em algum lugar em Bogotá. Uma casa afastada. E ele tem um outro nome, uma nova identidade. Deixou a barba crescer. Fez uma plástica no nariz e na boca, tingiu o cabelo. Engordou uns vinte quilos.  Está irreconhecível. Acho que ele é feliz hoje, da maneira que descobriu ser possível. E ele faz tratamento, está vendo um psiquiatra. 

Laura arregalou os olhos:

-Então vocês ainda se encontram?

-Sim. Eu viajo até lá nas férias... eu o perdoei. Convivemos muito bem hoje. E eu gosto muito da nova mulher dele. 

-Ela sabe de tudo?

Shirley me olhou, muito séria, quando fiz a pergunta:

-Ela não sabe de nada. E nunca saberá. 

Ela se levantou, e pediu que esperássemos enquanto foi buscar algo em seu quarto. Ficamos esperando por ela, em silêncio, olhando para os desenhos complicados do seu tapete caríssimo, que pertencera à minha avó. Ela retornou segurando uma caixa.

Sentou-se novamente, abrindo-a. começou a retirar várias cartas, que entregou a nós. Os selos eram da Colômbia. Eram cartas de Pedro. 
Começamos a ler algumas, e nelas, ele dizia estar bem. Perguntava por Shirley, quando ela iria vê-lo. Enfim, as cartas confirmavam toda a história contada por ela. Havia fotografias do homem que ela acabara de nos descrever. Ele às veze parecia ao lado de uma mulher mignon de cabelos escuros, meio-gordinha, e muito sorridente. Havia também fotos dele e de Shirley juntos. 
Olhamos tudo, e ficamos calados. Shirley disse, a voz sumida:

-Eu só queria que vocês me perdoassem. Eu só queria andar por aí de cabeça erguida, sabendo que não sou julgada, que as pessoas acreditam em mim, e que elas me perdoaram pelo que eu possa ter feito de errado, e eu sei que eu errei muito. A única coisa que eu queria era saber que vocês não me odeiam, e que se lembrarão de mim com carinho. 
Nós erguemos os olhos das fotografias:

-Nos lembraremos de você? – perguntou Adílio. – Por que nos lembraremos, se você está aqui, se você voltou?

Ela deu um longo suspiro:

-Não vim para ficar. Eu vim para me despedir.

Engoli em seco, achando que Shirley pudesse estar doente. Quase verbalizei minha pergunta, mas Laura interrompeu meu pensamento:

- E para onde você vai?

-Para bem longe, Laura, não precisa se preocupar. Não volto nunca mais. 
Laura pareceu um tanto sem-graça, e baixou os olhos. Senti que as feições dela suavizaram-se, e então ela disse:

-Shirley... eu sinto muito por tudo. Eu, você e Adílio éramos amigos de muitos anos na escola. Eu entendo porque você não nos contou muitas coisas. Entendo porque você inventava tantas histórias... só agora eu entendo. E saiba que não preciso perdoar você, não há o que perdoar. Mas acho que você deveria esclarecer o que houve à polícia.

Shirley negou com a cabeça: 

-Agora não. Mais tarde. Porque se eu o fizer agora, terei que responder a várias perguntas que não quero, e que atrapalharão a vida de meu pai. Mas um dia, farei isso, pode acreditar. Tudo a seu tempo, Laura. Tudo a seu tempo. 

Laura ia retrucar, mas Shirley cortou-a:

-Eu prometo a vocês que contarei tudo. Mas na hora certa. Preciso que confiem em mim. Qual seria o bem, falar nisso agora? Diana está morta, sua mãe está morta e ninguém liga de verdade. Elas não tinham nenhum parente, a não ser... eu. Preciso que vocês me deem tempo. 

Eu, Adílio e Laura nos entreolhamos, e consentimos ao mesmo tempo. Shirley nos agradeceu efusivamente, e a tensão do ambiente começou a ser aliviada. Ainda ficamos por lá durante algum tempo. 
Quando voltei para casa, contei tudo ao meu marido. Ele me ouviu, ficando impressionado;

-Nossa... essa história daria um filme. Ou um livro. Gostaria de conhecer essa figura pessoalmente.

Sonolenta, aconchegada nos braços dele, ainda consegui dizer:

-Amanhã eu apresento a Shirley a você.

Mas na manhã seguinte, ela não estava mais lá. 

(...continua...)









A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...