segunda-feira, 30 de maio de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 7





 Parte 7


Jonathan passa algumas horas na minha casa. Depois que termina o trabalho na instituição, por volta das quatro da tarde, pelo menos duas vezes por semana ele vem para cá. Estamos juntos há quase dois meses, e apesar disso, ainda não fizemos sexo, apesar dos carinhos e da vontade quando estamos juntos. Eu digo a ele que ainda não me sinto totalmente pronta, e ele respeita minha decisão. Ele sabe que eu ainda sou virgem.

Minha avó me telefonou, convidando-me para passar as próximas férias lá – garantiu a passagem na primeira classe, e me disse que a estadia seria em seu apartamento. Meu avô melhorou, segundo ela, mas a saúde dele ainda inspira cuidados. Ela soou um pouco triste ao telefone, e me disse que meu avô estava falando muito de mim ultimamente, e dizendo que gostaria de me ver de novo antes de morrer. Não sei se aquilo foi uma pequena chantagem emocional para me convencer a ir até lá. Mas depois que desligamos o telefone, fiquei pensando neles e nas poucas lembranças que tenho deles. Eram sempre atenciosos e muito legais comigo. Talvez eu aceite o convite, quem sabe. Mas ao mesmo tempo, eu não gostaria de me afastar agora, que Johnatan e eu começamos a nos relacionar. Bem, ainda faltam meses até as férias.

Tia Atena acha que eu não deveria ir, pois para ela, meus avós e eu somos praticamente estranhos, e ela teme que meus avós possam tentar destruir a imagem que tenho de meu pai. A imagem que tenho de meu pai... e que imagem seria essa?

Sinto a falta dele. Todos os dias, quando acordo, ainda preciso repetir para mim mesma que ele morreu, que eu estou sozinha. A realidade vai aos poucos se assentando conforme a manhã avança, enquanto me dirijo à escola, assisto aulas, converso com meus colegas. Aliás, existe um grupinho que gostaria de organizar uma festa aqui em casa (sem pais para atrapalhar, segundo eles). Mas eu não quero. Não vou deixar que me usem desse jeito. Sempre me trataram como se eu fosse Carrie, a Estranha, e agora precisam de um local para dar suas festinhas? Sou melhor que isso, e nem gosto de festas. Nunca gostei. Imagino meu pai, lá do outro lado, me vendo dar uma festa nesta casa! Com certeza, pensaria que eu estou sucumbindo a tudo contra o qual ele me ensinou a lutar toda a minha vida: a superficialidade, os amigos interesseiros supérfluos e sem conteúdo, a vida sem objetivos.

E eu passo meus dias dividida entre a escola, Johnatan, os cuidados com a casa, e livros e mais livros que Johnatan traz para mim. Será que arranjei um outro tutor?

Não sei nada sobre a vida dele fora daqui, a não ser o que ele me contou nos primeiros dias. Não faço perguntas. Nós conversamos sobre livros, filmes, filosofia, e às vezes, arriscamos falar sobre o futuro – mas tais momentos são breves e entrecortados de silêncio. Eu tenho um certo medo do futuro. Porque eu já senti o que ele pode estar preparando para nos surpreender ali na esquina da vida. Assim, tento viver a minha vida sem pensar muito. Johnatan acha a minha atitude um tanto pessimista e melancólica. Vive me dizendo que tive muita sorte em ter tido um pai e uma mãe, em ter avós que se preoupam comigo, e meus tios Atena e Heitor. Ele me faz ver que eu não sou tão sozinha assim. Me diz sempre que cresceu sem ter ideia sobre o que é ter uma família, pais que se preocupam, tios, avós, casa, lar. Desde bebê ele foi criado na instituição, ocupando o quarto com uma porção de outras crianças, fazendo suas refeições em refeitórios, sem ter roupas que fosse realmente suas, ou brinquedos que pertencessem apenas a ele (tudo é compartilhado entre todos) ou momentos de privacidade, pois até os banheiros são coletivos. Quando precisa ficar sozinho, ele vai para um banco de praça e se senta lá por algum tempo, ou então acorda bem cedo e vai dar uma volta à pé, ou então se levanta de madrugada e vai se sentar no pátio para ouvir música (ele coneguiu juntar dinheiro e comprar um celular). Fora isso, ele precisa trabalhar na instituição se quiser continuar tendo um lugar para viver. E obedecer ordens o tempo todo. Um dia, eu perguntei a ele:

- Quando a gente se conheceu, você me disse que era livre. Isso é ser livre?

Logo me arrependi do que disse, pois vi uma sombra passando sobre o rosto dele, enquanto seu olhar caiu no chão, bem junto aos próprios pés. Percebi que aquela história de “Não tenho nada, mas sou livre” era apenas alguma coisa que ele criou para tornar as coisas mais fáceis. Andei até ele e o abracei forte. Ele não respondeu, apenas me beijou.

Às vezes eu percebo uma tristeza dentro dele maior ainda que a minha, mas Jonathan nunca foi uma pessoa de reclamar das coisas. Ele se mostra sempre grato, se contentando com pouco. Uma vez perguntei se ele sentia falta da Pri. Ele me respondeu o seguinte:

- Eu a vejo todos os dias. Continuamos amigos. Mas embora eu a ame, o que eu sinto por ela mudou, virou alguma coisa de irmão para irmão. Acho que já estava assim há muito tempo, mas a gente não percebia. Precisou que você aparecesse na minha vida para eu perceber.

-E quanto a ela? Acha que ela está bem com isso tudo?

Ele encolheu os ombros:

-Não sei... penso que não, ainda não. Ela está tão acostumada com a gente, que de repente se sentiu sem chão. Pensa que ainda precisa de mim, do que a gente achava que tinha.

-Então ela está mal?

-Está. Mas vai superar. A Pri é jovem, bonita... logo vai aparecer outra pessoa.

Pensei que encontrar alguém legal vivendo em uma instituição para crianças e jovens abandonados ou sem lar não deveria ser muito fácil. Sinto pena dela. É como seu eu tivesse roubado alguma coisa muito preciosa de alguém que só tinha aquilo.

Uma vez pedi que Jonathan me mostrasse uma foto dela. Ele abriu uma no celular uma foto onde ela aparecia ao lado dele e de alguns outros jovens. Vi uma menina de estatura baixa, magrinha, olhos bondosos, sorriso tímido. Não uma linda garota, mas delicada, bonitinha. Priscila tem cabelos cacheados na altura dos ombros, castanho-claros, sem um corte moderno. Suas roupas simples e parecendo muito usadas não ajudam na sua aparência. Mentalmente, me vi fazendo comparações entre nós duas, e em todos os quesitos, eu venci: sou mais bonita, mais alta, me visto bem, tenho um corte de cabelo channel moderno e bonito, estudo em uma ótima escola, tenho dinheiro, tenho casa, tenho família, tenho todos os sonhos na palma da minha mão. E tenho Jonathan. 

Até hoje, embora só tenha visto a foto uma vez, me lembro muito de todos os detalhes. E me sinto mal quando penso nela. Ter conhecido o Jonathan me fez perceber o quanto eu tenho sorte, apesar de tudo. Não trocaria a minha vida com a deles de jeito nenhum. Eu tive e perdi meus pais, mas pelo menos, eu os tive. A maioria das crianças e adolescentes daquele lugar não fazem ideia do porquê estão lá, por que foram abandonados, quem são seus pais, onde estão suas famílias. 

Olho meus colegas da escola – todos pertencem a famílias senão ricas, pelo menos bem de vida. Todos têm os celulares da moda, usam roupas de marca, têm pais ou mães que os levam de carro para a escola, comem bem, não precisam se preocupar com o futuro. E vivem reclamando de tudo. Alguns tomam remédios para depressão (eu mesma já tomei) e não se dão bem com a família. Outros se drogam, bebem, são promíscuos, vão a festas e ficam com uma porção de gente em uma só noite. Suas mentes são completamente fodidas.

Jonathan me contou que na instituição também tem muitos jovens assim, que tomam remédios para depressão e ansiedade, que são agressivos, inacessíveis emocionalmente, e que reclamam de tudo. Alguns se drogam, mas se forem descobertos, sabem que serão imediatamente levados para uma unidade correcional. Não vão para nenhuma clínica de reabilitação luxuosa. 

Penso que de qualquer forma, a vida é a vida. A vida não poupa ninguém de nada.

 (Continua...)





quarta-feira, 18 de maio de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - PARTE 6


 



Parte 6


Nem sei como, mas eu me apaixonei pelo Jonathan. Ele acaba de sair da minha casa após ficar conversando comigo na varanda durante quinze minutos, e todo o meu corpo está formigando. Ele não sabe nada de mim, e eu não sei nada dele. Ele só sabe que meu pai morreu, mas sequer sabe que eu estou totalmente só, que não tenho mãe, que fui emancipada. Só falamos de coisas banais, como o quanto está frio, que ele não gosta de futebol, como a maioria dos meninos, mas que adora livros e filmes (a minha TV ainda estava ligada quando ele entrou na sala, e passava um filme) e eu disse a ele que meu autora favorita é Ali Shaw, e ele me responde que nunca tinha ouvido falar dela, então eu entro e pego o livro “A Garota dos Pés de Vidro” na estante e dou para ele. 

Quinze minutos depois, ele vai embora, levando as caixas cheias de roupas, sapatos e livros do meu pai. Promete voltar para me devolver o livro assim que terminar de ler. Penso: tomara que ele leia bem rápido. Ficamos tão envolvidos, que sequer nos lembramos de trocar nossos telefones.

Meus tios me ligam para saber como eu estou, e minha tia percebe que minha voz está melhor, como ela mesma diz. Me convidam para jantar, mas eu não quero, nem mesmo depois que ela diz que meu tio pode passar para me buscar de carro. Quero apenas ficar em casa, pensando em Jonathan. 

Mas os dias passam, um, dois, três, quatro... dez, vinte. Ele não volta. Minhas aulas recomeçam na escola, e chegar na escola e ter os olhos de todos os meus colegas voltados para mim, é constrangedor. Eles todos querem saber como é ser órfã de pai e mãe. A essa altura, descobriram que fui emancipada, e alguns deles me dizem que sentem inveja. Respondo que daria tudo para não ser emancipada e ainda ter meu pai sendo responsável por mim. Eles baixam a cabeça, constrangidos. Penso no quanto as pessoas dizem coisas idiotas tentado ser gentis. 

Penso também que aquele seria meu último ano na escola, e fico feliz. Porque com certeza, eu não sei como lidar com os outros jovens, sou a esquisita, a “misfit”, a “weirdo.” Alguns me olham como se quisessem me conhecer melhor. Os meninos me olham com olhos famintos, mas jamais tentam se aproximar, pois meus cortes são impiedosos. Nenhum deles me interessa, e também não quero saber sobre vestidos, sapatos, maquiagem, times de futebol e bandas de hip-hop. Parece que ninguém lê, ninguém sabe quem são Ali Shaw, Richard Bach, Fernanda Young. Inútil tentar conversar com eles.

Tia Atena e tio Heitor vêm aqui às vezes, mas suas visitas são cada vez mais raras e curtas, porque não temos assuntos a conversar. Eu não sinto falta deles, e nem eles de mim. Após um mês e meio da morte de meu pai, as visitas deles praticamente terminam, e eu dou graças a Deus por isso. De vez em quando, mandamos mensagens que respondemos com emoticons. Mas sei que elas logo também vão parar, pois já usamos quase todos eles. 

Minha rotina: acordar, tomar café, ir à escola, fazer os deveres de casa, preparar minhas refeições, limpar a mina d’água de vez em quando, cuidar da hortinha, pagar as contas da casa, ir ao banco, fazer algumas compras pela internet (detesto ir ao mercado), assistir filmes, limpar a casa uma vez por semana. O jardineiro vem três vezes ao mês. Mal conversamos, ele entra, faz seu trabalho, eu o pago e ele vai embora. Nem sei se ele sabe que meu pai morreu. Também assisto muitos filmes e leio, leio, leio. Sinto falta do meu pai, mas como ele mesmo previu, estou superando. Já não dói mais. De vez em quando, converso com ele. Conto sobre algum filme ou livro, ou sobre alguma idiotice dos colegas de escola. Quando estou na mina é quando me sinto mais perto dele. Parece que sinto ele me ensinando a cuidar dela. Mergulho minhas mãos na água gelada de olhos fechados, e escuto o riso dele.

Quase três meses após a primeira vez que nos vimos, Jonathan reaparece. É uma manhã de sábado, e ainda estou sonolenta quando a campainha toca, sem que eu sequer imagine que poderia ser ele. Tento ignorar, mas ele insiste. Quando finalmente abro a porta, ainda de pijama, e deparo com aqueles olhos intensos, desperto completamente. Ele me estende o livro. Eu mando ele entrar, e vou vestir alguma coisa melhor; escolho um par de jeans e uma camiseta preta novos. 

Nos sentamos diante um do outro, ele na poltrona, eu no sofá, as pernas cruzadas. 

-E então? Gostou do livro?

Ele demora um pouco a responder:

-É muito legal. Sabe, imaginei o que poderia estar transformando as pessoas em gelo... e pensei muito em você, Valentina. Você e a personagem principal parecem ter muito em comum.

Me surpreendo, interessada. Finalmente, alguém para realmente conversar! Me mexo na almofada, pronta para assumir uma posição confortável para que eu possa ficar sentada por horas.

-Mesmo? O que?

- Então... quando eu a vi pela primeira vez... não fique chateada, com isso, mas... pensei que você era uma pessoa fria. Até mesmo seu choro era contido, como se chorar fosse um sinal de fraqueza. Senti raiva no seu choro. Acho que você deveria ter cuidado com esse gelo nos seus pés.

Me sinto corar, e não respondo. Olho para a ponta dos meus pés descalços, me concentrando no esmalte vermelho das unhas. Ele está certo. Aprendi que chorar é sinal de fraqueza. Raramente choro. Olho para ele:

-Ok, ponto pra você. Agora me fale um pouco de você.

Ele parece confuso por um momento, como se estivesse escolhendo que tipo de informação quer me passar. Foi devagar:

- Hum... eu tenho vinte e um anos, trabalho e moro na instituição – fui criado lá – sou órfão, nunca conheci meus pais. Não fui para a faculdade porque não tenho grana. Aliás, eu não tenho nada. E mesmo assim, tenho tudo. Porque eu sou livre. Materialmente, tudo o que eu tenho, está em um quarto que mede 3 X 3. 

Fico chocada com a sinceridade dele. 

-Uau! 

-Uau! – ele repetiu. 

Nós rimos. Ele continua:

-Eu... namoro uma garota. O nome dela é Priscila, e ela também foi criada na instituição. Quando ela chegou lá, eu tinha cinco anos, e praticamente crescemos juntos.

Meu coração murcha, e eu engulo em seco. Tento não demonstrar a minha decepção, mas sinto que ele a percebe. Suspiro e dou um sorriso nada espontâneo:

-Bem, esta é a sua vida. Ela... a Priscila... você gosta muito dela?

Ele concorda com a cabeça:

-Muito. Mas... ah, deixa pra lá.

- Não, fala! Mas...?

Os olhos dele são tão bonitos, e se derramam tanto em cima de mim, que antes que ele diga alguma coisa, eu sei o que estava na cabeça dele: ele gosta de mim.

-Eu não consigo parar de pensar em você. 

-Ah, então foi por isso que demorou tanto a aparecer?

Falo aquilo em tom de brincadeira, mas ele concorda:

-Foi sim. Eu nunca questionei o que eu sinto pela Pri. Até ver você. Tive a impressão de que já nos conhecíamos antes. Sei lá. Foi.... esquisito.

- Uau... isso é muito estimulante. Saber que me conhecer foi esquisito pra você.

Ele ri, e eu também. Comento:

- Mas você tem uma namorada.

-Eu tenho uma namorada. E não costumo ser infiel, aliás, eu jamais fui infiel com ela.

Mudo o tom da conversa:

-Sabe... depois que meu pai morreu, descobri que ele e minha mãe se conheceram quando ele ainda era casado com outra mulher. Ela era meio-surtada, e quando ela descobriu sobre os dois, cometeu suicídio. Quando minha mãe ficou doente, ele teve um caso com outra mulher, bem durante a doença dela, quando ela mais precisou dele. O suicídio da primeira mulher de meu pai, de alguma forma, impediu que meus pais fossem realmente felizes. Eles brigavam muito, e embora se amassem, o que aconteceu sempre pairou sobre a vida deles.

Ele me ouve em silêncio, os olhos presos nos meus. Depois que eu falo, ele permanece quieto, mas os lábios dele se entreabrem, e ele fica vermelho. Está chocado com a minha história. Como ele é lindo! Eu continuo:

-Jamais serei como a minha mãe. Nunca vou construir a minha vida em cima da ruína de alguém. 

Naquele instante, ele se ergue feito uma bala e sai pela porta, batendo-a atrás de si. Eu não me levanto para segui-lo. 

Horas depois, enquanto eu termino de lavar a louça de um almoço que eu não consigo comer, a campainha toca de novo. Abro a porta, já sabendo que é ele, mas sem saber o que ele me diria:

- Eu terminei com a Pri. 

Dizendo aquilo, ele me beija. E quando ele me beija, todas as pontas da minha vida se ligam. Tenho uma sensação de força, alegria, uma certeza de que dali em diante, as coisas vão melhorar muito para mim, e que eu finalmente saberei o que realmente significa ser feliz.

E esse foi o dia em que Jonathan me beijou pela primeira vez.

(CONTINUA)





terça-feira, 3 de maio de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - PARTE 5



Parte 5


Aqui estou eu, sentada em minha sala de estar limpa e cheirosa sem saber o que fazer do resto do meu dia – ou da minha vida. Silêncio de uma manhã de sexta-feira. Meu pai foi enterrado ontem. Minha mãe morreu quando eu tinha sete anos. Nunca vejo meus avós. Minha mãe tinha sido amante de meu pai antes de se casar com ele. Fernanda, a ex-mulher de meu pai, se matou ao saber que minha mãe estava grávida de mim, o que, de certa forma, significa que eu tive alguma culpa nisso. Meu pai mentiu para mim a vida toda, dizendo que ele e mamãe eram um casal perfeito cujo amor transcendental superava a morte, enquanto escondia o fato de ter tido uma amante durante dois anos enquanto minha mãe estava doente.

Tenho 17 anos, e acho que é tarde demais para reconstruir minha relação com meus avós, pois eles já são bem idosos e não estão interessados em novidades em suas vidas. E se quisessem saber de mim, teriam tentado me visitar, teriam enfrentado meu pai. Mas quem sabe, a minha visão pudesse despertar neles algumas memórias de coisas que eles preferiam não lembrar? Eles tinham perdido uma filha. Perderam a filha duas vezes: quando ela saiu de casa para se casar com meu pai e depois que ela morreu. Lembro de meus avós me visitando quando eu era pequena, e são lembranças vagas, mas eu também me lembro que depois daquelas visitas sempre tão raras e breves, meu pai e minha mãe sempre brigavam, e meu pai nunca estava presente quando meus avós vinham. Minha mãe se afastou dos próprios pais por causa de meu pai. E se hoje meus avós e eu não temos nenhuma intimidade, é por causa dele.

Mas lá vou eu estabelecendo culpas de novo. Minha tia me pediu para não julgar o meu pai. Ela disse que ele cometeu erros, mas que me amava, e eu sinto que era verdade. É estranho que crescer signifique desconstruir a imagem que temos dos nossos pais. Eles são apenas pessoas comuns, que erram e falham, e dizem coisas absurdas, e fazem coisas bizarras. Não são os heróis que às vezes imaginamos.

Mas eu sinto falta do meu pai. Eu sinto falta dele, e me arrependo das vezes em que olhei ele desacordado na cama de hospital e desejei que ele morresse. Eu só estava cansada, exausta, para ser mais precisa, e os médicos diziam que ele não ia melhorar, só ia piorar cada vez mais, exatamente como a minha mãe. 

Eu tenho lembranças muito vagas da minha mãe. Nenhuma memória inteira, só pedaços enevoados de momentos. Temos alguns vídeos que meu pai fez de nós três juntos. Bia – minha mãe – era uma mulher um pouco acima do peso, de cabelos pretos e lisos cortados na altura dos ombros, grandes olhos castanho-claros, enfim, uma pessoa comum, diferente da imagem que minha tia Atena fizera de Fernanda. Mas quando ela sorri, seu riso se espalha em luz na tela do computador. Os olhos dela são expressivos e cheios de vida, principalmente quando ela me olha. Não me lembro da maioria daquelas cenas que ficaram gravadas, é como ver o vídeo sobre a vida de outra pessoa a maior parte do tempo, mas eu digo a mim mesma que se trata de mim, aquela criança sou eu, é a minha vida, a minha família. 

Minha mãe não era nenhuma beldade. As roupas dela eram comuns, jeans e camisetas lisas e vestidos estilo boho. Meus pais pareciam um casal de hippies. Mas minha tia Atena me disse que minha mãe era de família muito rica. Meu pai me dizia a mesma coisa. Talvez ela fosse bonita quando conheceu meu pai. 

Vou até o quarto dele, abro o armário dele a procura de mais memórias. É muito estranho mexer nas coisas de alguém que já morreu. A todo momento, penso que estou invadindo a privacidade dele. Eu nunca abri o armário do meu pai, a não ser para pegar roupas para levar para o hospital. Esta é a primeira vez que eu abro o armário do meu pai a procura de segredos ou memórias. Sim, isso configura uma invasão de privacidade, então, para me sentir melhor, vou até a garagem e trago algumas caixas de papelão; assim, posso fingir que estou separando as roupas e sapatos dele para doar – e não há muita coisa, na verdade. Coloco tudo em três caixas de tamanho médio. Tem coisas aqui que eu nunca o vi usar. Elas cheiram a mofo.

Mas logo encontro o que eu estava procurando: uma caixa de papelão na prateleira de cima, bem no fundo. Ali, encontro documentos – a certidão de nascimento de minha mãe, a escritura da casa, algumas contas antigas pagas. E debaixo de tudo, uma fotografia colorida grande, meio-desbotada e um pouco amassada. Meu pai bem jovem e bonitão está ao lado de uma mulher lindíssima, loira, alta, parece uma modelo de revista. Ela é séria, e tem olhos tristes. Só pode ser a Fernanda. Talvez esta seja a única lembrança que meu pai tinha daquela fase de sua vida, e me pergunto se minha mãe sabia sobre essa foto. Fico muito tempo olhando a foto. Chego à janela, tentando reter a imagem na minha cabeça, caso um dia a foto desapareça, e depois volto a olhar para confirmar se consegui.

Após arrumar as coisas em caixas, ligo para uma instituição de caridade que vai buscar tudo horas depois. Enquanto espero, assisto filmes na TV. Como cookies de chocolate. Durmo no sofá da sala. Me arrasto até a varanda, onde me sento embrulhada em uma manta, olhando a rua vazia. De vez em quando, um carro passa. Às vezes as pessoas nos carros me olham, e fico pensando no que elas pensam ao me verem. Não sabem nada de mim, da minha vida, do que eu estou enfrentando. É assim com todo mundo: ninguém sabe o que a pessoa que está sentada ao lado dela no ônibus está passando. Não sabem que aquele menininho no consultório médico, esperando sua vez enquanto brinca com um carrinho, tem uma doença incurável. Muitas vezes, eles mesmos tem doenças incuráveis e não sabem, nem desconfiam. Estão a ponto de descobrir, o que mudará todas as suas perspectivas, expectativas e sonhos.

Uma vez eu vi um filme em que o marido saía de casa ao descobrir que sua mulher estava doente; não conseguia lidar com o problema. A vida da gente pode mudar a qualquer momento, de forma radical, e tudo o que sempre foi certo pode se mostrar bem diferente. 

A caminhonete da casa de caridade encosta junto ao meu portão. O motorista sai, e ao olhar para ele, percebo que não deve ter mais que vinte anos de idade, e que ele é lindo. Ele sorri ao me ver, e eu me levanto (ainda embrulhada na manta) e sem retribuir o sorriso, vou até o portão e o abro para que ele entre. Ele me diz boa tarde, e eu respondo entre os dentes. Não quero ser mal-educada, mas falar dói. Ele me segue casa adentro, e aponto as caixas para ele no chão da sala. Ele me pergunta:

- Isso é tudo?

Concordo com a cabeça. Ele me olha longamente, e sinto meu coração acelerar. Ele me pergunta:

-Você está bem?

E eu não sei mais quem eu sou, ou o que acontece, ou porque acontece: de repente, estou me debulhando em lágrimas bem na frente dele. Não é um choro doce, mas um choro quase raivoso, de revolta mesmo. Ele fica estupefato, sem saber como agir, mas de repente ele caminha até mim e me envolve em seus braços com manta e tudo.

Eu me deixo abraçar por ele, o rosto em seu pescoço, sentindo o cheiro de malva dos seus cabelos curtos e pretos cortados em camadas. Sinto o formato do seu queixo quadrado contra a minha testa. Sinto as mãos dele, fortes, me amparando. Ele é mais alto do que eu, mais forte, e me sinto segura aninhada contra ele. Raramente, alguém me abraça. Nem mesmo meu pai me abraçava muito. Ele não diz nada, apenas me deixa chorar. E eu choro. 

Quando finalmente eu pareço ter esgotado todas as minhas lágrimas (pelo menos, naquele momento), ele me encara com seus olhos castanhos, emoldurados por sobrancelhas negras arqueadas. Ele é realmente lindo, penso. Eu poderia me apaixonar por ele, se... mas eu nunca me apaixonei, nem sei o que é paixão. E talvez nem seja a hora apropriada, então eu o empurro, devagar e docemente, para cada vez mais longe de mim. Ele se deixa levar pelas minhas palmas, cumprindo a distância que eu ponho entre nós. Murmuro um “desculpe” cheio de vergonha. Ele diz que está tudo bem, e me pergunta se tem alguma coisa que ele poderia fazer por mim. Sacudo a cabeça, dizendo um “não”. Ele me olha, e os olhos dele parecem lavas quentes escorrendo pelo meu rosto, ombros, corpo. 

Largo a manta sobre uma poltrona, porque de repente, eu começo a sentir calor. Logo me arrependo, pois me lembro de que estou vestindo calças de moletom rasgadas nos joelhos e uma blusa de lã velha e cheia de bolinhas. Tarde demais: ele me olha da cabeça aos pés, muito sério. De repente, a boca dele se abre, e espontaneamente, ele diz:

- Você é tão linda!

Fico surpresa. Nunca ninguém me disse aquilo antes. Dou um meio sorriso (porque acho que uma garota que acaba de perder o pai não tem o direito de sorrir tão cedo). Ele corresponde, e me estende a mão:

- Meu nome é Jonathan. 

E assim termina meu primeiro dia como órfã.


(CONTINUA...)





A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...