segunda-feira, 30 de junho de 2014

Como Fazer Amigos - Um Conto Juvenil Parte II




Sustentei o olhar dele o máximo que eu pude, daquela vez. Ele sorriu de um jeito mais atrevido, e senti meu rosto queimar. Odiava aquela minha mania de ficar vermelha feito um pimentão toda vez que um garoto me olhava! No fundo, eu 'sabia' que, quando eles me olhavam, era por mera curiosidade, por causa do meu jeito esquisito. Furiosa, sentei-me ereta na cadeira e virei para frente, tentando prestar atenção na aula de Geografia, cujo professor acabara de chegar.

Na hora da saída, Priscila passou o braço pelo meu como se fôssemos velhas amigas, e senti o olhar das outras meninas queimando-me as costas... no caminho até o prédio onde ela morava, ela ficou falando uma porção de bobagens sobre roupas e maquiagem, e eu apenas escutei. "Nossa, como é vaidosa e vazia," pensei. Mas no fundo, nem percebia o quanto eu desejava ser como ela, popular e linda.

O apartamento de Priscila era grande, arejado, claro e muito bem decorado. Fiquei impressionada com os sofás macios e brancos, em volta de um tapete vermelho felpudo. Admirei os quadros nas paredes que retratavam coisas incompreensíveis, mas que deveriam custar uma fortuna, e os objetos de arte espalhados em todos os cantos. Pensei em minha casa simples e quase nua de ornamentos, e senti que jamais a convidaria para ir até lá. Jurema, a empregada, sorriu-me gentilmente, enquanto pegava a bolsa e a mochila de Priscila para guardar. Pensei no quanto ela deveria ser uma dondoca inútil que nem sequer guardava suas próprias coisas. Depois, Jurema voltou, avisando que o almoço logo estaria pronto. 

Cheguei à janela e desfrutei da bela vista para o parque. A cidade estendia-se aos nossos pés, ou seja, aos pés de Priscila. Lembrei-me da vista do meu quarto: os fundos do quintal. cada vez mais, me invadia um sentimento de inadequação (o que eu estava fazendo ali, afinal?) e um amargor que crescia e tomava conta de mim. Jurema chamou-nos para o almoço, e segui Priscila té uma sala linda e silenciosa, sem janelas, com uma mesa para doze pessoas sobre a qual descia um lustre de cristal que cintilava de tanto brilhar, e sentei-me em uma das cadeiras macias estofadas de veludo azul-caneta. Perguntei pela mãe de Priscila, e notei uma sombra passar-lhe pelo rosto quando ela respondeu:

-Ela está no trabalho, é arquiteta. Minha mãe quase não fica em casa. Chega bem tarde.

-E seu pai?

-Hum... meu pai... mora em outra cidade, sabe. Eles são divorciados. Ele não vem muito aqui, tem outra filha, outra mulher, outra vida.

Não falei nada, mas pensei em meu próprio pai, que eu nunca conhecera, e em minha mãe, que naquele momento estaria trabalhando em seu feio escritório na repartição pública. E começamos a desfrutar da deliciosa lasanha servida por Jurema. Após o almoço, ela me chamou para irmos até seu quarto, um enorme espaço, onde vi sua mochila em uma cadeira ornamentada, e a bolsa que usara na escola, pendurada em um cabide cheio de outras bolsas que pareciam caríssimas. Olhei em volta: sobre a cama com cabeceira de ferro dourada, um colchão estufado de tão macio, coberto por uma colcha rosa-choque e travesseiros e almofadas rosas, azuis, brancos e amarelos. Nas laterias, um par de tapetes brancos muito felpudos onde Priscila com certeza colocava seus pés pela manhã, ao acordar naquele quarto maravilhoso.

As paredes eram rosa-claro, e havia uma cômoda por trás da qual um enorme espelho dominava uma das paredes. Pensei no quanto ela devia passar horas diante dele... Na parede oposta, uma barra dourada para bailarinas, daquelas que só existem nas academias de dança, e Priscila imediatamente tomou posição e começou a alongar-se (apenas para exibir-se para mim). Fiquei olhando para ela, apreciando seus gestos delicados e precisos. Gestos de quem já dançava há muito tempo.

-Eu não sabia que você dançava.

-Faço balé desde os três anos de idade. Bem, com licença um minuto. Vou me trocar.

Dizendo aquilo, ela desapareceu por uma porta estreita, pela qual pude entrever os azulejos brilhantes e muito brancos de seu banheiro privativo. Pensei nos azulejos rachados do único banheiro de minha casa. Minutos depois, ela voltou, usando um vestido de malha largo e confortável - e cor de rosa, é claro. Tinha prendido os cabelos em um coque, e calçava chinelos de salto com pom-pons. Parecia uma diva de cinema. Enquanto eu ia tentando explicar a ela os fundamentos da trigonometria, reparava em suas unhas esmaltadas de branco e bem-cuidadas, e no anelzinho de ouro com pedra vermelha que ela usava na mão esquerda. Envergonhei-me de minhas unhas quadradas e sem brilho, e do meu anel preto de fibra de coco.

Após duas horas, olhei meu reloginho de pulso e disse: 

-Tenho que ir, está ficando tarde. Mas acho que precisaremos de outras aulas.

Ela concordou, desanimada:

-É, eu acho que sim... sou uma negação com números. Mas... antes de ir, me fale um pouco de você, Nanda. Sabe, você é um mistério!

Aquela observação me pegou de surpresa; nunca antes alguém se interessara em saber qualquer coisa a meu respeito, a não ser minha mãe - se eu estava indo bem na escola, se eu estava com saúde, se precisava de alguma coisa - e Ágatha - se eu tinha beijado alguém no final de semana, se eu tinha assistido ao show na MTV. Mas jamais alguém perguntara sobre minha pessoa. Ela percebeu que eu estava embaraçada, e riu:

-Tudo bem, Nanda, só estamos nós aqui. Não precisa falar, se não quiser. Olha, vamos fazer assim: eu falo um pouco de mim, e depois, se você quiser, você fala de você. Tá bom? Bem, eu tenho quinze anos, moro nesta cidade há apenas seis meses, gosto muito de sair, adoro o Justin Bieber e a Avril Lavigne, minha cor favorita é o rosa, já namorei muito, e hoje em dia, estou de olho em um garoto, mas... tá difícil (ela deu uma risadinha), amo dançar, estudo balé, viajo muito, amo natação, e tenho um cavalo... no aras, é claro, e eu o monto nos finais de semana. O nome dele é Charlie. 

Ela ficou me olhando. Pensei nas coisas que ela dissera, e que para mim, nada diziam sobre uma pessoa. Também intrigou-me o fato de ela dizer que estava de olho em um garoto e não estava sendo correspondida. Decidi entrar no joguinho dela, e dar respostas completamente diferentes das suas, apenas para chocá-la e deixar claro que não tínhamos nada a ver uma com a outra:

-Meu nome é Fernanda mas todo mundo ( e não é muita gente) me chama de Nanda, moro aqui desde que nasci, nunca viajei, eu detesto balé, odeio natação ou qualquer atividade na água, minha cor favorita é preto, odeio Avril Lavigne, abomino Justin Bieber e amo Avenged Sevenfold (já ouviu falar? Um grupo de rock pesado), nunca namorei, não estou interessada em ninguém e ninguém está interessado em mim, não tenho um cavalo, mas um cachorrinho vira-latas desde que eu tinha nove anos, e ele não tem nome, eu o chamo de Cachorro. Ah, temos algo em comum: também tenho quinze anos!

Ela ficou me olhando, tentando digerir minhas informações, e de repente, caiu na gargalhada. Aquilo me deixou furiosa, mas finalmente ela parou de rir, e me olhando fundo nos olhos, declarou:

-Gosto de você. Você tem algo que eu gostaria de ter, Nanda: autenticidade. Você é você mesma, e não se importa.

Fiquei pasma, boquiaberta! A princesinha gostava de mim? me achava original? Dizia que não era autêntica? Era a minha vez de rir alto! E eu o fiz. Ela ficou me olhando com seus enormes olhos azuis, deitada de bruços no tapete, o rosto apoiado nas mãos. Olhei para ela de onde eu estava, sentada na beirada de sua cama dourada, e sua posição física inferior a minha deu-me coragem:

-Sabe, Priscila... você é um mistério. Como assim, você não se acha autêntica?

Ela baixou os olhos, passando a mão no tapete:

-Na verdade, eu luto muito para manter minha imagem de garota perfeita, sabe... você não sabe quantas horas eu passo por semana no salão de beleza fazendo unhas e cabelos, depilação, massagens... ou escolhendo as roupas certas. Minha mãe não admite que eu me descuide. Quer que eu pareça sempre perfeita, talvez para mostrar às suas amigas que, apesar de ter sido abandonada pelo marido por ser uma megera workaholic, ela tem tudo sob controle. Vê essa casa perfeita? Ah, eu estou sempre de dieta! 

-Mas nós almoçamos lasanha, se não me engano.

-Porque eu liguei e pedi para Jurema preparar, escondido da minha mãe. Disse que ia trazer uma colega cujo prato preferido era lasanha.

Dizendo aquilo, ela começou a olhar as próprias unhas, muito séria:

-Meu esmalte lascou... droga, preciso ir ao salão. Minha mãe odeia unhas lascadas e esmalte descascado. Ela diz que é o cúmulo do desleixo!

Sentando-se ao meu lado na cama, ela encostou em mim,  e senti seu hálito de chiclete de morango:

-Bem, como é a sua mãe, a sua vida?

Respirei fundo, e percebi que não pensava muito naquilo também. De repente, um sentimento de ternura tomou conta de mim, e comecei a falar de minha mãe:

-Minha mãe se chama Débora. Não conheci meu pai, ele morreu antes de eu nascer. Mas minha mãe tomou conta de tudo o melhor que pode. Não temos uma vida perfeita, mas ela sempre se preocupa comigo, e a gente sai, vamos ao cinema juntas, fazemos compras, vamos ao mercado, ao shopping, à lanchonetes. Ultimamente, agora que você me perguntou, percebo que não tenho conversado muito com ela...

-Talvez porque você está crescendo, e todos os adolescentes odeiam seus pais, é normal.

Percebi que aquilo não era verdade.

-Não, eu amo minha mãe. É que eu ando meio-confusa ultimamente...

Notei que aquela conversa estava ficando perigosa; afinal, eu estava me abrindo para o inimigo! Olhei novamente o relógio, e levantei-me, dizendo que precisava realmente ir, afinal já eram quase cinco horas da tarde e minha mãe logo estaria em casa. 

-OK, então. Quando vamos nos encontrar de novo? Poderia ser na sua casa!

Tive uma reação intempestiva e quase gritei:

-Não! 

Ela ficou me olhando. Me corrigi com uma mentira:

-Não, a casa está em obras, sabe. Muita poeira.

-Tudo bem, então. Podemos repetir amanhã, após a aula?

Pensei no rumo que as coisas estavam tomando; eu, frequentando a casa daquela patricinha metida após as aulas, todos os dias? Ela devia pensar que eu não tinha nada melhor para fazer. Resolvi decepcioná-la:

-Amanhã eu não posso, tenho um compromisso. 

-Depois de amanhã, então?

-Mas é sábado!

-A gente se encontra no shopping. Podemos estudar lá.

-Você acha? Não é muito... barulhento e movimentado?

-Hãhã. Mas tem um café que é bem tranquilo. Nos encontramos no Herald's Café Às duas e meia, então? 

-OK.

Fui para casa me sentindo muito estranha. Eu caminhava e sentia meus passos mais pesados, como se eu fosse uma pata desajeitada, apesar de ser tão magra. Ao passar na vitrine de uma loja, parei e me vi refletida, e meus jeans desbotados e rasgados no joelho de repente me pareceram feios demais. Meu rosto branco, os olhos delineados de preto, o rabo-de-cavalo longo caindo sobe as costas, o piercing perto do olho, tudo me fez sentir como uma esquisita ridícula. Mas aquela era eu! Priscila era a esquisita ridícula, cheia de si, metida e patricinha. Ela mesma me elogiara pela minha originalidade. 

Pensei em Santiago, e no que ele faria se tivesse que escolher entre uma de nós duas. Bem, na verdade, aquela escolha jamais existiria, pois ele nem sequer pensaria duas vezes: ficaria com Priscila, é lógico! Até eu no lugar dele faria a mesma coisa. Era tudo tão óbvio.

De repente, lembrei-me do filme "Carrie, a Estranha." Na história do filme, Carrie, a esquisita da escola, a que nunca se adaptava, foi abordada por um garoto e um grupo de meninas populares que só quiseram humilhá-la em público. lembrei-me dos olhares de Santiago para mim, e em suas tentativas de aproximação, e também no súbito interesse da garota mais popular da escola pela minha pessoa, e pensei que aquilo tudo poderia não passar de um plano sujo. 

(continua...)




domingo, 29 de junho de 2014

Como Fazer Amigos- Um Conto Juvenil - Parte I





Eu juro, não sou uma má pessoa. Nunca fui. Sempre obedeci aos meus pais, procurando ser uma boa filha, obediente e cordata. Tive boas notas na escola, colaborei com meus colegas de classe ajudando-os com as lições sempre que podia, enfim, fui uma boa filha, uma boa aluna e uma boa amiga.

Tudo começou há muitos anos, quando Priscila apareceu em minha vida. E eu juro que tentei ficar longe, bem longe dela, pois tudo naquela menina me incomodava: seus cabelos loiros e ondulados, que caiam fartos até os ombros, e emolduravam um rosto lindo, de bochechas rosadas e olhos azuis-escuros. Seu corpo bronzeado de curvas generosas e carnes firmes e lisas, causava-me asco. Quando ela ria, costumava jogar a cabeça levemente para trás, e seus dentes muito retos e brancos reluziam. Ah, como eu ficava irritada! E para piorar, estava sempre alegre e muito bem vestida. Gostava muito de usar vestidos coloridos que deixavam à mostra as suas belas pernas.

Nunca tive muitas pretensões quanto aos meninos, pois sempre tive consciência de que não nasci com muitos dons físicos... meus cabelos, pretos, lisos e escorridos até a cintura, não brilhavam muito, e por isso, eu sempre os trazia presos em um rabo-de-cavalo. Tinha a pele branca e sem vida, os olhos castanhos mortiços e inexpressivos. Eu não gostava de mim quando era uma adolescente, achando-me insignificante e feia. 

Minhas roupas eram sem-graça, pois era tão magra e sem curvas que fazia de tudo para não chamar muita atenção para minhas formas. Usava jeans rasgados e velhos, tênis e camisetas quase sempre pretas. Tinha também um piercing perto do olho esquerdo. Gostava de usar delineador preto em volta dos olhos, e esta era toda a minha "maquiagem."

 Eu olhava as outras meninas, curvilíneas e esbeltas, com seus seios redondos aparecendo sob as camisetas justas, e depois olhava meu peito praticamente liso e sem protuberâncias, e me perguntava quando chegaria, para mim, a tal adolescência (naqueles tempos, eu tinha quinze anos, mas achava que aparentava ter doze).

Como eu disse antes, procurava não chamar muita atenção e não me interessar pelos meninos da escola, pois tinha certeza absoluta que nenhum deles jamais se interessaria por mim. Até que um novo menino, uma beldade de dezessete anos vinda de outra cidade, começou a fazer parte da minha classe da oitava série. Seu nome era Santiago. Lembro-me da primeira vez que bati os olhos nele: meu coração quase parou, de tanto bater forte! Ele era lindo... alto, moreno, olhos negros e misteriosos, corpo bem torneado e forte, roupas estilosas, e usava sempre uma corrente de prata grossa e reluzente com uma cruz, que chamava a atenção sobre suas camisetas -quase todas pretas ou escuras. Santiago tinha uma motocicleta, e não era de falar com os meninos da classe. Fez amigos mais velhos no primeiro ano, e na hora do intervalo, ficava com eles. Na hora da saída, ele subia em sua motocicleta e ia embora, sem olhar para trás. Às vezes, ele me olhava com um certo interesse, e até chegou a puxar conversa comigo. Acho que gostou do meu jeito meio-dark de ser... mas eu, insegura e com baixa autoestima, tranquei-me dentro de mim, evitando olhar para ele, respondendo suas perguntas com monossílabos e olhando sempre para o chão. Ele tentou algumas vezes, mas acabou desistindo. Ágata, uma das poucas meninas com quem eu conversava, um dia me disse que ele andava fazendo perguntas sobre mim. 

Quando eu chegava da escola, trancava-me no quarto e ia para frente do espelho. Às vezes eu tirava toda a roupa, e desanimada, olhava meu corpo magro e sem graça, desejando ser como uma de minhas colegas. Principalmente, como Priscila. Eu colocava uma música e me deitava no tapete, de olhos fechados, imaginando-me em suas roupas, entre seus amigos, com toda aquela irritante autoconfiança que ela exalava. Priscila passou a tornar-se uma espécie de obsessão para mim; depois de Santiago, era ela a pessoa a quem eu dedicava horas de meus pensamentos. Eu desejava ser como ela, e como não podia, eu a odiava.

Éramos todos colegas de classe, e eu era uma excelente aluna; era comum que os colegas me procurassem para pedir ajuda nas épocas de provas. Um dia, Priscila pediu-me ajuda para a prova de trigonometria. Eu estava sentada em minha escrivaninha na hora do recreio, ouvindo música, quando ela chegou timidamente, sorrindo meio sem-graça, e colocando o cabelo para trás da orelha, inclinou os joelhos levemente:

-Oi, Nanda! Tudo bem?

Eu a olhei tentando demonstrar hostilidade, sem retirar os fones de ouvido, o que a deixou ainda mais embaraçada, mas ela continuou:

-Será que você podia... sei lá... me dar uma ajudinha em trigonometria? Isso é, se não for incomodar muito...

Eu pensei muito bem antes de responder, e fiquei olhando para ela durante algum tempo, tentando tomar uma decisão. Bem, Priscila era uma curiosidade para mim, e se a ajudasse, teria mais tempo para analisá-la melhor e concluir minha teoria de que ela era uma fraude total. Retirei os fones de ouvido e tentei soar um pouco mais gentil:

-OK, então. Onde podemos?...

Ela deu um largo sorriso: 

-Que tal na minha casa depois da aula? A gente podia almoçar juntas. Moro em um prédio aqui pertinho!

-OK. Nos vemos na hora da saída.
-OK! E ... obrigada, Nanda.

Recoloquei meus fones de ouvido, e ela se afastou, acenando-me um 'tchauzinho.'
Eu nem podia acreditar no que acabara de acontecer! A princesinha da popularidade tinha acabado de me pedir ajuda! Ri; quando ergui os olhos, dei com Santiago me olhando fixamente. 

(continua...)





quinta-feira, 19 de junho de 2014

A Terra do Sonho Possível




Era uma vez um reino distante, como tantos reinos distantes que existem por aí em muitas histórias. Seria apenas mais um, não fosse por uma pequena diferença: neste reino distante, todos que nasciam recebiam de presente o direito a um único pedido mágico, que fosse qual fosse, se realizaria. A única condição é que nenhum pedido poderia ser retirado, ou seja: a partir do momento que alguém escolhia determinada coisa, teria que conviver com ela para sempre!

Bem, até o momento, você deve estar pensando o quanto gostaria de viver em um lugar assim! Imaginem só, ter direito a um desejo mágico, fosse qual fosse, e vê-lo realizado num piscar de olhos? Realmente, este reino deve ser um lugar onde todos são felizes...

Mas não é assim que acontece. Porque as pessoas sempre se precipitavam ao fazerem seus desejos, e acabavam pedindo coisas estúpidas; por exemplo, havia um menino de oito anos que pediu que a avó a quem ele tanto amava e que acabara de falecer após anos de doença e sofrimento, pudesse voltar à vida. Ele sempre a vira feliz e sorridente, pois a boa senhora tentava esconder suas mazelas e dores do menino, procurando sempre aparentar estar sentindo-se bem. Assim, quando ela se foi, o menino acreditava que sua avó era uma pessoa feliz e saudável. Quando ela finalmente descansou e acordou no paraíso, livre de todas as suas dores e sofrimentos, mal pode dar dois passos em direção à luz e sentiu-se puxada de volta para um túnel escuro, e despertou novamente em seu velho corpo doente.

Os olhos do menino brilharam de alegria ao rever sua querida avó, e ele confessou: "Que dia feliz, vovó! acabo de usar meu pedido mágico para trazê-la de volta!" Entre espasmos de dor, a avó retrucou: "Você não sabe o que fez, menino... condenou-me a uma eternidade de sofrimentos e dores ao seu lado, e eu o odeio por isso!"

A Grande Lei dizia que aquele que fez o pedido deveria conviver com ele até o final dos seus dias, e durante quase oitenta anos, o menino (que cresceu e tornou-se um velho amargo e solitário, pois nenhuma mulher jamais casou-se com ele devido às imprecações de sua avó) foi obrigado a conviver com sua avó, agora uma pessoa amarga e infeliz, que gemia de dores todas as noites no quarto ao lado do seu, proferindo muitos palavrões.

Como a história deste menino, havia milhões de outras, sobre pessoas que desejaram ter de volta um ente querido, o que fez com que o reino encantado passasse a ser um lugar superpopulado e habitado por muitos seres taciturnos e entristecidos, pois ninguém que tenha visto o outro lado da vida, deseja voltar.

Há também a história do homem que desejou ser rico e famoso; como esta, há milhões de histórias parecidas, de pessoas que se tornaram cantores famosos, dançarinos, mágicos, escritores, etc, e perderam o prumo de suas vidas. Este nosso amigo imediatamente adquiriu o dom da pintura, e passou a pintar quadros maravilhosos que fizeram dele um homem cada vez mais rico, famoso e vaidoso. A mulher dos seus sonhos, não aguentando mais viver sob sua sombra egoísta, acabou por deixá-lo, e ele amargou o resto de sua vida em um mundo fútil e superficial. Até desejou não mais ser rico e famoso, mas aonde quer que fosse, era assediado por repórteres que escreviam mentiras sobre ele e pessoas interesseiras que queriam aparecer como seus amigos.

Algumas pessoas pediam que alguém que não era apaixonado por elas  as amassem. Assim, muitos casamentos e noivados eram destruídos, e às vezes, a pessoa que fez o pedido percebia que o príncipe ou princesa encantados não passavam de rãs e sapos... mas tinham que conviver com eles para sempre. E mesmo tendo como exemplo várias histórias infelizes, as pessoas sempre acabavam achando que com elas, seria diferente.

Pessoas que estavam envelhecendo pediam para voltar a serem jovens novamente, e se esqueciam que isto significava que permaneceriam jovens enquanto seus entes queridos envelheciam e morriam. Estas pessoas tornavam-se imortais, e amargavam uma eternidade dedicada ao arrependimento e à saudade.

Enfim; as pessoas faziam os pedidos mais loucos do mundo, e sempre causavam grandes desastres, pois a maioria dos seres humanos pensava somente em si e em seus próprios desejos, recusando-se a aceitar a vida como ela era - e é assim que ela deveria ser. Nosso reino encantado tornou-se um lugar sombrio, onde seres infelizes competiam uns com os outros e temiam que alguém fizesse algum tipo de desejo destinado a destruí-los - e havia muita gente que desperdiçava seus desejos desejando o mal para os outros.

Mas lá de cima, alguém olhava por aqueles seres egoístas e insensatos, e resolveu finalmente mandar-lhes ajuda. Assim, brandiu uma varinha de condão e decretou que a partir daquele dia, os desejos humanos, concedidos ao nascer, estariam abolidos.

Ao saberem de tal coisa, os seres do reino encantado ficaram indignados, mas com o tempo, descobriram que teriam que aceitar a decisão tomada pelo Ser Superior. Pouco a pouco, com o passar dos anos, o reino foi tornando-se um lugar melhor. Mesmo assim, uma semente atávica descansa na alma de todos os seres humanos, e isto faz com que, até os dias de hoje, desejemos coisas estúpidas, egoístas e impossíveis.





domingo, 8 de junho de 2014

DESVENTURA



"Foi-se o tempo dos poetas tísicos, que morriam aos trinta anos de idade recitando poemas bêbados pelas calçadas da vida, uivando para  a lua, enquanto a amada platônica fechava-lhe a janela na cara!"

Ele não conseguia esquecer as palavras dela, que iam e vinham em sua memória,  ecoando sardonicamente. Pusera todo o seu amor em um pedaço de papel. Seu coração e sangue arrumados em linhas cuidadosamente caligrafadas. Diziam que suas letras pareciam-se com as de uma mulher, e ele caprichou nas letras que introduziam as estrofes, desenhando-as cheias de volteios, fazendo com que o texto se parecesse com alguma coisa antiga. Depois, colocou tudo em um envelope de linho cor-de-champanhe, lacrando-o com um coração de cera vermelha.

O poema falava de um amor tão forte, que transcenderia até mesmo a morte: o amor dele por ela.

Apenas não o assinara.

Deixou-o sobre a mesa dela, no escritório. Ficou de longe, olhando disfarçadamente, coração dando voltas, a fim de estudar sua reação. Ela chegou atrasada, como sempre, os saltos das botas marcando o rítimo seguro e impetuoso de seus passos. Ele ergueu os olhos da tela do computador. Viu quando ela largou a bolsa enorme sobre a mesa, e deparou com o envelope, puxando-o de sob o peso de pedra. Virou-o de um lado para o outro, e sem nenhum cuidado, abriu-o, despedaçando o coração de cera, cujos farelos ela displicentemente pisoteou, ao sentar-se.

Leu o conteúdo. De onde ele estava, só via os olhos dela, indo de um lado a outro da folha, trocando de linhas. Sem pensar duas vezes, ela rasgou o pedaço de papel em dois, jogando-o na lixeira, e disse a frase em voz alta, aquela mesma frase que vinha  martelando-lhe a  cabeça  há mais de uma semana.

Desde então, seu coração frustrado passou a odiá-la. Pensava que ela poderia ter tido mais tato. Poderia não ter rasgado o poema. Ele tornou-se ainda mais taciturno, e sempre que ela sorria, o som de seu riso causava-lhe calafrios de horror. O perfume que ficava no ar quando ela passava, dava-lhe ânsias de vômito. Os saltos de suas botas ecoando pelo escritório quase fazia com que ele tivesse convulsões. 

Às vezes ela vinha até a mesa dele, os longos cabelos presos por um lápis em um coque mal-feito deixando o pescoço fino e alvo à mostra, e perguntava sobre algum documento, mostrava algum relatório ou pedia sua ajuda para resolver algum problema. Ele tinha que fazer um enorme esforço para não pular sobre aquela veia do pescoço dela que pulsava bem perto da linha dos olhos dele, quando ela se inclinava sobre sua mesa. Sonhava com seus dentes cravando-lhe o pescoço, puxando e arrebentando aquela veia saliente que pulsava, pulsava... o sangue se esvaindo, espalhando-se pelo chão branco de cerâmica do escritório, os colegas todos correndo em direção a ela, enquanto ela se debatia, agonizando.

Um dia, ela não apareceu para trabalhar. Alguém disse que ela estava doente. Semanas se passaram, e as notícias não eram boas: ela estava, realmente, muito doente. Foi quando ele descobriu que não lhe desejava a morte: amava-a ainda mais desesperadamente, agora que estava na iminência de perdê-la para sempre. Em sua imaginação, ela estava deitada em uma cama de hospital, chamando por ele, estendendo-lhe os braços enfraquecidos, o rosto, uma máscara de dor. Só ele poderia salvá-la!

Naquela tarde, saiu mais cedo do escritório e comprou um enorme buquê de rosas brancas para dar a ela. Seu coração estava aquecido, pois sabia que, ao vê-lo, ela começaria a recuperar-se rapidamente, pois embora não soubesse, sua doença devia-se ao seu desamor por ela. Assim que ela soubesse que ele ainda a amava, ficaria curada!

Chegou ao hospital e percorreu o corredor que levava ao quarto dela, sorrindo para as enfermeiras, segurando o buquê. Ao chegar na porta, respirou fundo, e quando ia bater, notou que a porta estava entreaberta. Olhou pela greta, e viu um rapaz inclinado sobre a cama dela, segurando-lhe as mãos, sorrindo-lhe tristemente. Viu quando ele beijou-lhe a boca, e ela, apesar de fraca, correspondeu.

Ele voltou para o corredor, deixando cair as flores, e sentou-se em um sofá bem em frente a porta do quarto. Tremia de ansiedade. Esperou durante quase uma hora, até que finalmente, o rapaz saiu do quarto.

Entrou.

Ela dormia, a cabeça inclinada para o lado esquerdo, a veia do pescoço pulsando fracamente. Amor e ódio lutavam dentro dele. Paixão. Fogo ardente. Quem venceria?

Sufocou-a com o travesseiro, e depois jogou-se do décimo andar. Mas não sem antes deixar um bilhete, responsabilizando-a por tudo.

Um policial, ao ler o bilhete, apenas disse: "Não podemos responsabilizar ninguém pela nossa própria loucura."




quinta-feira, 5 de junho de 2014

A Última Dança


Do alto de sua varanda, ela olhava a rua e o movimento que passava pelo portão de sua casa, sentada em sua velha cadeira de vime. As pessoas que iam e vinham quase nunca notavam sua presença silenciosa e observadora... observadora? Via ela, realmente, alguma das coisas que parecia observar? Não... na verdade, ela olhava e via outras coisas, outro mundo... 

A casa era muito antiga, tendo sido uma das primeiras a serem construídas naquela rua. Tivera sua fase áurea, e reinou sobre todas as outras casas que foram sendo construídas à sua volta. Reinou tão majestosamente, que foi a única que sobreviveu ao progresso. Todas as outras foram sendo substituídas por modernos prédios de apartamentos, mercados, estacionamentos. Sobraram, da antes tão vistosa alameda, apenas algumas árvores. 

Ela morava ali há tanto tempo, que ninguém mais se lembrava dela. Os seus vizinhos sabiam apenas que na casa velha junto ao terreno baldio, morava uma senhora muito idosa, cujo nome ninguém sabia, e cujas compras eram entregues pontualmente às sextas-feiras em sua casa pelo rapaz da mercearia. E já houvera muitos entregadores diferentes ao longo dos anos!

Ela não saía. Tinha uma rotina, porém: acordava, ia até a cozinha preparar seu café preto, que tomava com uma ou duas bolachas, e depois comia uma fruta qualquer; assistia TV quase a manhã toda, depois dava um jeito na casa (um jeito bem sem-jeito); ao meio dia e trinta ela almoçava; geralmente, uma sopa de legumes. Depois, cochilava em sua poltrona por alguns minutos.

Durante o resto da tarde, ela sentava-se na varanda do segundo andar, e observava. Ou fingia observar. Se estava frio, ela enrolava-se em seu xale marrom. Se calor, levava consigo um copo de água.

Mas à noite, ela abria seu velho álbum de fotografias, e eles enchiam a sala! sentavam-se à sua mesa e jantavam com ela; jogavam cartas, tomavam licor, conversavam alto e riam, riam, riam... às vezes, um deles a convidava para dançar, e ambos rodopiavam pelo soalho empoeirado da sala de estar  - que, nestas horas, parecia cintilar de tão limpo.. E ela era jovem novamente. Incansável. E ria, ria, ria...

Um dia, ela não apareceu mais na varanda. O rapaz da quitanda tocou a campainha, e ninguém atendeu. 

Quando eles vieram abrir a porta e procurar por ela, já temendo o pior, nada encontraram. Nem sinal da velha senhora. Apenas um álbum de fotografias permanecia aberto sobre a mesa, e nele, a imagem de uma jovem e linda mulher sendo conduzida em uma valsa. E ela ria, ria, ria...


A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...