segunda-feira, 15 de abril de 2024

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

 





PARTE 5 – AS SERVIÇAIS

 

Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao despertar na manhã seguinte e encontrar as janelas da casa escancaradas para uma manhã de sol. Mas já não estava mais na sala de estar: alguém a carregara para o seu quarto. Escutou ruídos no andar de baixo da casa. Espreguiçou-se, sentando-se na cama para encontrar o gato preto, que parecia ter acabado de acordar, deitado na poltrona em frene à sua cama.

Eduína vestiu seus jeans velhos, as botas surradas e uma suéter cinza de gola alta que já tivera dias melhores. Olhou-se no espelho: estava magnífica! A pele brilhava, e os cabelos escovados moviam-se em volta dela quando ela se virava. A roupa não fazia a menor diferença. “O que uma boa noite de sono não faz!”, ela pensou.

Ao descer as escadas para o primeiro andar, seguida pelo gato, notou que a mesa da sala de jantar estava posta para o café da manhã, e um bule fumegante ladeado por croissants perfumados, frutas, bolos e sucos coloridos a esperavam. Estancou ao deparar com as duas mulheres de pé no meio da sala, as mãos cruzadas em frente aos corpos. A primeira, que parecia ser mais nova, aparentando ter setenta anos, aproximou-se:

-Bom dia, Sra. Eduína. Sou Beatriz, a arrumadeira, e ela (apontando ligeiramente para a outra, que aparentava ter algo entre noventa e cem anos), chama-se Guiomar, a cozinheira.

Eduína espantou-se com a aparência envelhecida de Guiomar, mas apenas cumprimentou-as com a cabeça. 

Guiomar era impressionante: alta, magra, muito esguia, tinha olhos verde escuros e nariz adunco, usava os cabelos brancos presos em um coque atrás da cabeça, vestido preto simples sob um avental branco e sapatos de saltos baixos e grossos. Quando sorria, os lábios curvavam-se ligeiramente para baixo. O que era impressionante, é que quando ela falava, sua aparência envelhecida e cansada desaparecia, dando lugar a uma mulher cheia de vida, talvez com sessenta anos. Eduína pensou que ela era bonita, apesar da idade. Já Beatriz, a mais nova, era baixa, gorda e atarracada, tinha cabelos grisalhos encaracolados presos por uma faixa de malha branca, usava um vestido igualmente preto e simples mas sem o avental. Igualmente, logo que se acostumou com ela, Eduína notou que ela talvez não fosse tão velha quanto pensara antes, pois movia-se pela casa vigorosamente, abrindo e fechando janelas, espanando móveis, arrumando as almofadas do sofá, limpando o chão. E todos os seus movimentos pareciam rápidos e eficientes, e ela jamais ofegava, nem mesmo após encher a bandeja com as louças sujas do café e dirigir-se à cozinha.

O café da manhã estava maravilhoso, e ela comeu até se fartar. Surpreendeu-se consigo mesma, já que nunca fora de comer muito, mas aquela comida era a coisa mais deliciosa que já provara, mais ainda do que  a sopa da noite anterior. Mas apesar de ter comido muito, sentia-se leve.

Eduína riu por dentro, imaginando que as duas mulheres fossem, na verdade, duas bruxas, e que tinham mais de trezentos anos de idade. Ela encontrou o olhar do gato naquele momento e podia jurar que ele fizera um sinal afirmativo com a cabeça.

Eduína passou o resto da manhã andando pelo jardim, e também pela rua. As casas pareciam segui-la com os seus olhos de janelas quando ela passava, mas ela não viu ninguém. Ao chegar à entrada da rua, avistou a casinha branca onde Lázaro morava, e viu a fumaça saindo da chaminé.

Também viu o portão de ferro da guarita fechado a cadeado.

Ela tinha pensado em dar uma volta na cidade, mas desistiu; não queria incomodar o homem àquela hora da manhã apenas para abrir o portão para ela. Sendo assim, Eduína caminhou de volta até a casa, sempre seguida pelo gato.

 

-Como ele se chama? – ela perguntou à Beatriz, apontando para o gato. – A quem ele pertence?

Beatriz lançou um olhar carinhoso para o gato, chamando-o para lhe entregar um pequeno petisco:

-Este é o Félix. Está na famíia há muito tempo. Depois que Madame Évora se foi, ele ficou meio perdido... mas parece que gosta da senhora. Encontrou uma nova dona.

Eduína concordou com a cabeça.

-Como era a minha bisavó?

-Madame Évora, sua bisavó, era uma pessoa muito reservada. Não tinha amigos, e não saía de casa jamais. E sua avó Hermínia, filha de Madame Évora, era uma moça muito bonita e cobiçada pelos homens! Quando ela engravidou de sua mãe, ainda solteira, Madame Évora não ficou nada feliz. Mas aceitou o fato. Porém, anos depois, sua mãe faleceu dando à luz você.

-E como minha mãe era?

Beatriz deixou seus olhos se perderem na paisagem à janela da cozinha ao responder:

-Dona Viviane era uma criatura maravilhosa. Belíssima. E seu pai...

Ela estancou a fala de repente, dizendo:

-Preciso ajudar Guiomar a cuidar do almoço agora. Com licença, senhorita.

Eduína ficou parada no meio da cozinha, enquanto as duas mulheres descascavam legumes em silêncio. Félix ronronou, esfregando seu corpo macio contra as pernas dos seus jeans velhos. Ele saiu da cozinha, parando à porta, para ver se ela o seguia. Agora que ela sabia seu nome, era como se os dois tivessem se tornado ainda mais íntimos. Ela foi atrás dele, e ele subiu as escadas da casa, sempre parando no caminho e olhando para trás.

Eduína estava intrigada: agora que descobrira que tinha uma família, ela a perdera. E as pessoas da casa não pareciam gostar de falar sobre eles.

Félix entrou em um dos quartos, cuja porta estava entreaberta. Eduína seguiu-o, e ele parou diante de uma cômoda, olhando para ela e para as gavetas. Eduína abriu a primeira gaveta, encontrando alguns álbuns de fotografias. Sentou-se na cama com alguns deles.

Ela viu as pessoas nas fotos, quase sempre sérias. Algumas fotos eram muito antigas, parecendo ser de outros séculos. As imagens eram fascinantes!

De repente, uma das fotos intrigou-a: a pessoa ali retratada, aparentando ser bastante jovem, parecia-se com alguém que ela conhecia. Mas quem? E como seria possível, se aquela fotografia estava datada em 1890? Eduína olhou para Félix, que a observava em sua pose de iogue. Como ela era muito boa fisionomista, logo identificou a pessoa: aquele homem parecia-se demais com Lázaro! Mas como poderia? Quem sabe, fosse um antepassado?

Naquele instante, o gato pulou da cadeira onde estava, ajeitando-se ao lado dela na cama, a pata direita batendo de leve no álbum, e virando a folha, Eduína encontrou os nomes das pessoas que estavam naquela fotografia. Ela leu devagar, o dedo apontando para as letras desenhadas à tinta preta: Lázaro Schumann. Ao lado dele, havia uma bela mulher que se parecia muito com ela. Ela segurava um lírio, e estava de braços dados com Lázaro. Eduína virou novamente a folha para ler o nome por trás dela: Viviane Siqueira Camargo. Sua mãe.

Mas como poderia ser? Se aquilo fosse verdade, Lázaro Schumann tinha mais de cem anos... com certeza, deveria ser outra pessoa, quem sabe, um antepassado? Mas o que a fotografia de um serviçal, de um simples empregado, estaria fazendo entre as fotos de família?

Eduína apanhou o album pesado e carregou-o para fora do quarto, indo pousá-lo na mesa da sala de jantar. Seu fiel amigo, Felix, seguiu-a, subindo em uma cadeira próxima a dela, sob a toalha da mesa de jantar, e ali permaneceu. Enquanto isso, a moça foi até a copa e praticamente arrastou Guiomar pela mão, já que Beatriz não estava por lá. Guiomar era ligeiramente mais alta do que ela, e deixou-se guiar sem tentar impedi-la, mas mantendo sempre seu ar altivo e distante. Eduína abriu o álbum, apontando a foto de Lázaro e Viviane com o dedo:

- A senhora poderia me explicar quem são essas pessoas, por favor?

A velha senhora deixou um ligeiro sorriso escorrer pelo canto dos lábios, olhando a moça bem dentro dos olhos:

-Se a senhorita já sabe, por que pergunta?

Eduína sentiu algo estranho; apesar do absurdo da situação, era como se aquilo tudo de repente fosse normal e fizesse sentido para ela. E repentinamente, ela compreendeu que aquela era sua estranha família, e que Lázaro era seu pai. Também intuiu, corretamente, que ela mesma teria uma vida tão longa quanto todos eles. E ao invés de sentir espanto por tudo aquilo, foi como se todos os pingos caíssem em seus respectivos “is”. Enquanto isso, Guiomar, virando-se de costas, caminhou de volta à copa.


(continua)



 

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

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