PARTE 5 – AS SERVIÇAIS
Um lençol de luz branca agitando-se na frente
do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao despertar na manhã
seguinte e encontrar as janelas da casa escancaradas para uma manhã de sol. Mas
já não estava mais na sala de estar: alguém a carregara para o seu quarto.
Escutou ruídos no andar de baixo da casa. Espreguiçou-se, sentando-se na cama
para encontrar o gato preto, que parecia ter acabado de acordar, deitado na
poltrona em frene à sua cama.
Eduína vestiu seus jeans velhos, as botas
surradas e uma suéter cinza de gola alta que já tivera dias melhores. Olhou-se
no espelho: estava magnífica! A pele brilhava, e os cabelos escovados moviam-se
em volta dela quando ela se virava. A roupa não fazia a menor diferença. “O que
uma boa noite de sono não faz!”, ela pensou.
Ao descer as escadas para o primeiro andar,
seguida pelo gato, notou que a mesa da sala de jantar estava posta para o café
da manhã, e um bule fumegante ladeado por croissants perfumados, frutas, bolos
e sucos coloridos a esperavam. Estancou ao deparar com as duas mulheres de pé
no meio da sala, as mãos cruzadas em frente aos corpos. A primeira, que parecia
ser mais nova, aparentando ter setenta anos, aproximou-se:
-Bom dia, Sra. Eduína. Sou Beatriz, a
arrumadeira, e ela (apontando ligeiramente para a outra, que aparentava ter
algo entre noventa e cem anos), chama-se Guiomar, a cozinheira.
Eduína espantou-se com a aparência envelhecida
de Guiomar, mas apenas cumprimentou-as com a cabeça.
Guiomar era impressionante: alta, magra, muito
esguia, tinha olhos verde escuros e nariz adunco, usava os cabelos brancos
presos em um coque atrás da cabeça, vestido preto simples sob um avental branco
e sapatos de saltos baixos e grossos. Quando sorria, os lábios curvavam-se ligeiramente
para baixo. O que era impressionante, é que quando ela falava, sua aparência
envelhecida e cansada desaparecia, dando lugar a uma mulher cheia de vida,
talvez com sessenta anos. Eduína pensou que ela era bonita, apesar da idade. Já
Beatriz, a mais nova, era baixa, gorda e atarracada, tinha cabelos grisalhos
encaracolados presos por uma faixa de malha branca, usava um vestido igualmente
preto e simples mas sem o avental. Igualmente, logo que se acostumou com ela,
Eduína notou que ela talvez não fosse tão velha quanto pensara antes, pois
movia-se pela casa vigorosamente, abrindo e fechando janelas, espanando móveis,
arrumando as almofadas do sofá, limpando o chão. E todos os seus movimentos
pareciam rápidos e eficientes, e ela jamais ofegava, nem mesmo após encher a
bandeja com as louças sujas do café e dirigir-se à cozinha.
O café da manhã estava maravilhoso, e ela comeu
até se fartar. Surpreendeu-se consigo mesma, já que nunca fora de comer muito,
mas aquela comida era a coisa mais deliciosa que já provara, mais ainda do
que a sopa da noite anterior. Mas apesar
de ter comido muito, sentia-se leve.
Eduína riu por dentro, imaginando que as duas
mulheres fossem, na verdade, duas bruxas, e que tinham mais de trezentos anos
de idade. Ela encontrou o olhar do gato naquele momento e podia jurar que ele
fizera um sinal afirmativo com a cabeça.
Eduína passou o resto da manhã andando pelo
jardim, e também pela rua. As casas pareciam segui-la com os seus olhos de
janelas quando ela passava, mas ela não viu ninguém. Ao chegar à entrada da
rua, avistou a casinha branca onde Lázaro morava, e viu a fumaça saindo da
chaminé.
Também viu o portão de ferro da guarita fechado
a cadeado.
Ela tinha pensado em dar uma volta na cidade,
mas desistiu; não queria incomodar o homem àquela hora da manhã apenas para
abrir o portão para ela. Sendo assim, Eduína caminhou de volta até a casa,
sempre seguida pelo gato.
-Como ele se chama? – ela perguntou à Beatriz,
apontando para o gato. – A quem ele pertence?
Beatriz lançou um olhar carinhoso para o gato,
chamando-o para lhe entregar um pequeno petisco:
-Este é o Félix. Está na famíia há muito tempo.
Depois que Madame Évora se foi, ele ficou meio perdido... mas parece que gosta
da senhora. Encontrou uma nova dona.
Eduína concordou com a cabeça.
-Como era a minha bisavó?
-Madame Évora, sua bisavó, era uma pessoa muito
reservada. Não tinha amigos, e não saía de casa jamais. E sua avó Hermínia,
filha de Madame Évora, era uma moça muito bonita e cobiçada pelos homens!
Quando ela engravidou de sua mãe, ainda solteira, Madame Évora não ficou nada
feliz. Mas aceitou o fato. Porém, anos depois, sua mãe faleceu dando à luz
você.
-E como minha mãe era?
Beatriz deixou seus olhos se perderem na
paisagem à janela da cozinha ao responder:
-Dona Viviane era uma criatura maravilhosa.
Belíssima. E seu pai...
Ela estancou a fala de repente, dizendo:
-Preciso ajudar Guiomar a cuidar do almoço
agora. Com licença, senhorita.
Eduína ficou parada no meio da cozinha,
enquanto as duas mulheres descascavam legumes em silêncio. Félix ronronou,
esfregando seu corpo macio contra as pernas dos seus jeans velhos. Ele saiu da
cozinha, parando à porta, para ver se ela o seguia. Agora que ela sabia seu
nome, era como se os dois tivessem se tornado ainda mais íntimos. Ela foi atrás
dele, e ele subiu as escadas da casa, sempre parando no caminho e olhando para
trás.
Eduína estava intrigada: agora que descobrira
que tinha uma família, ela a perdera. E as pessoas da casa não pareciam gostar
de falar sobre eles.
Félix entrou em um dos quartos, cuja porta
estava entreaberta. Eduína seguiu-o, e ele parou diante de uma cômoda, olhando
para ela e para as gavetas. Eduína abriu a primeira gaveta, encontrando alguns
álbuns de fotografias. Sentou-se na cama com alguns deles.
Ela viu as pessoas nas fotos, quase sempre
sérias. Algumas fotos eram muito antigas, parecendo ser de outros séculos. As
imagens eram fascinantes!
De repente, uma das fotos intrigou-a: a pessoa
ali retratada, aparentando ser bastante jovem, parecia-se com alguém que ela
conhecia. Mas quem? E como seria possível, se aquela fotografia estava datada
em 1890? Eduína olhou para Félix, que a observava em sua pose de iogue. Como
ela era muito boa fisionomista, logo identificou a pessoa: aquele homem parecia-se
demais com Lázaro! Mas como poderia? Quem sabe, fosse um antepassado?
Naquele instante, o gato pulou da cadeira onde
estava, ajeitando-se ao lado dela na cama, a pata direita batendo de leve no
álbum, e virando a folha, Eduína encontrou os nomes das pessoas que estavam
naquela fotografia. Ela leu devagar, o dedo apontando para as letras desenhadas
à tinta preta: Lázaro Schumann. Ao lado dele, havia uma bela mulher que se
parecia muito com ela. Ela segurava um lírio, e estava de braços dados com
Lázaro. Eduína virou novamente a folha para ler o nome por trás dela: Viviane
Siqueira Camargo. Sua mãe.
Mas como poderia ser? Se aquilo fosse verdade,
Lázaro Schumann tinha mais de cem anos... com certeza, deveria ser outra pessoa,
quem sabe, um antepassado? Mas o que a fotografia de um serviçal, de um simples
empregado, estaria fazendo entre as fotos de família?
Eduína apanhou o album pesado e carregou-o para
fora do quarto, indo pousá-lo na mesa da sala de jantar. Seu fiel amigo, Felix,
seguiu-a, subindo em uma cadeira próxima a dela, sob a toalha da mesa de
jantar, e ali permaneceu. Enquanto isso, a moça foi até a copa e praticamente
arrastou Guiomar pela mão, já que Beatriz não estava por lá. Guiomar era
ligeiramente mais alta do que ela, e deixou-se guiar sem tentar impedi-la, mas
mantendo sempre seu ar altivo e distante. Eduína abriu o álbum, apontando a foto
de Lázaro e Viviane com o dedo:
- A senhora poderia me explicar quem são essas
pessoas, por favor?
A velha senhora deixou um ligeiro sorriso
escorrer pelo canto dos lábios, olhando a moça bem dentro dos olhos:
-Se a senhorita já sabe, por que pergunta?
Eduína sentiu algo estranho; apesar do absurdo
da situação, era como se aquilo tudo de repente fosse normal e fizesse sentido
para ela. E repentinamente, ela compreendeu que aquela era sua estranha
família, e que Lázaro era seu pai. Também intuiu, corretamente, que ela mesma
teria uma vida tão longa quanto todos eles. E ao invés de sentir espanto por
tudo aquilo, foi como se todos os pingos caíssem em seus respectivos “is”.
Enquanto isso, Guiomar, virando-se de costas, caminhou de volta à copa.