domingo, 31 de março de 2013

A Cria - Parte III - Final




A cria - Parte III

A Fuga


Quase soltei um grito, e caí sentada sob a janela. O que eu poderia fazer? Deveria entrar na casa e pegar a criança à força? Deveria voltar e chamar a polícia? Deveria telefonar para Pedro? Fique sentada ali alguns minutos, tentando me acalmar e deliberar o que fazer. Estava com os nervos à flor da pele, e mal percebi quando a mulher saiu da casa, batendo a porta. Assustei-me com o estrondo, que me trouxe de volta à realidade. ainda tonta pela minha descoberta, escondi-me nos fundos da casa. Vi quando ela se afastou, indo pela trilha até a estrada. Quando achei que ela já estava a uma distância segura, entrei correndo na cabana.

Encaminhei-me para o quarto aonde eu tinha visto o bebê. Quando cheguei à porta, vi o berço no meio do cômodo, e me aproximei com cuidado, para não assustá-lo. Ele dormia, feliz e tranquilo. Fiquei olhando para ele por alguns instantes, sentindo um certo alívio, e não via a hora de entregá-lo aos pais. Mas... de repente, ouvi um grito atrás de mim. Pensava que estivesse sozinha, mas quando olhei para trás, apavorada, deparei com a mulher mais estranha que já vi:

Era muito magra e feia, e estava imunda; seus cabelos longos eram brancos e desgrenhados, e seus olhos, negros e injetados, parecendo grandes demais para o crânio. Sua estatura era baixa - quase uma anã. Apesar da desvantagem do tamanho, ela partiu para cima de mim como se pudesse fazer-me em pedaços, e eu gritei como nunca havia gritado antes. Ela me perseguiu pelo cômodo, as unhas enormes como garras tentando arranhar minha pele, e eu me desvencilhava dela. Era louca! Só podia ser! Consegui pegar uma cadeira que estava em um canto, e a ameacei com ela. A mulher aquietou-se um pouco, respirando pesadamente, e nunca desviando seus horríveis olhos de mim. Eu tinha que sair dali. Estava em perigo, e senti que o bebê também poderia estar. O que aquelas duas loucas queriam com ele?

Foi quando vi, transida de horror, a velha mulher entrando no cômodo. Quando me viu, ela também soltou um grunhido, mas encaminhou-se para a mais jovem, chamando-a de  filha, e passando os braços em volta dela, acariciava sua cabeça, para tentar fazer com que se acalmasse, mas ela agarrada à mãe, chorava baixinho e tremia.

Pela primeira vez, veio-me à mente a sensação de que elas tinham mais medo de mim do que eu delas. Isto me deu coragem. Larguei a cadeira, dizendo:

-Eu vim buscar o bebê que você roubou, e só saio daqui com ele. Se me deixar levar a criança, prometo não comunicar à polícia!

As duas se entreolharam, espantadas, mas logo começaram a gargalhar. A velha vociferou:

-Você quer o bebê, hein? Hum... você quer o bebê... mas você já tem um!
-Você sabe muito bem que aquela criança não nasceu de minha amiga! Esta criança - apontei para o berço - pertence a ela!

Ela veio andando em minha direção, mas tentei parecer forte e corajosa. Empertiguei-me, tentando ficar mais alta do que já sou. Cruzei os braços à frente do corpo. Ela chegou bem perto, e embora eu tremesse por dentro, tentei parecer fria.

- Você não sabe o que diz, moça... não sabe... eu ajudei. Se não fosse por mim, a outra morreria. Eu a salvei, e cobrei meu preço. Tudo tem um preço.
-Não quero saber! Eu vou levar a criança.

Encaminhei-me para o berço, mas vi-me paralisada, incapaz de mover-me, por mais esforço que fizesse, e ela começou a andar à minha volta., seguida pela filha. Comecei a sentir-me tonta e enjoada. Quanto mais eu me esforçava para mover-me, pior eu me sentia, e quando compreendi esta lógica, aquietei-me. Entendi que o filho de Sérgio, supostamente 'salvo' do afogamento por ela, também tinha sido levado, e que o menino que ela devolveu a ele, também era uma criança trocada.

Ela  deve ter lido meus pensamentos, pois respondeu-me:

- É verdade, é verdade sim... aquele outro bebê no rio não morreu. Eu peguei. Eu peguei, e minha filha cuidou muito bem dele, cuidou sim! Eu ajudei. Eu ajudei, eu sempre ajudo! E as pessoas, hum... as pessoas são ingratas, elas são... hum... eu não entendo...mas o moço, não. Ele aceitou o meu bebê. Ele não foi ingrato.

Ela tinha um senso de lógica impossível de combater. Ninguém poderia argumentar com uma louca. Relaxei ainda mais, e aos poucos, recuperei meus movimentos. Entendi que teria que negociar com ela, de alguma forma. Olhei-a nos olhos.

-Você me disse que tudo tem um preço.
-Ela concordou com a cabeça.
-O que quer para deixar a criança ir comigo? E também o filho verdadeiro de Sérgio?

A mulher mais jovem começou a agitar-se e gritar, ma a velha acalmou-a novamente. Ela me olhou, e dessa vez, chegou tão perto de mim, que senti seu bafo horroroso, apesar de ela ser bem mais baixa que eu. Suas roupas também tinham um cheiro nauseabundo.

-Hum, hum... o filho do moço não está mais aqui. Eles sempre vem buscar as crianças quando estão maiores... ele partiu, vive longe, vive lá... agora, é um de nós, é sim. Mas o menino no berço...
-Sim!
-Hum... o que você me dá por ele, o que?

Pensei rápido; pelo que percebi, a mulher estava disposta a negociar, e gostava de crianças.

-Bem, eu devolvo o seu bebê, que está lá na casa grande. E prometo que meu primeiro filho será seu.

Mais uma vez, elas se entreolharam.

-Mas aí não tem bebê - ela passou a mãozinha encardida em minha barriga, causando-me arrepios de nojo. Dei um passo para trás.

- Vou casar-me em breve!

Ela pereceu considera a ideia, conversando baixo com a outra numa língua que eu jamais ouvira. Aquilo tudo era tão surreal, que eu nem tinha mais medo. Senti que venceria o argumento. Ela foi até o berço, e pegando a criança, estendeu-a para mim; mas antes que eu a tocasse, ela o aconchegou, dizendo:

-É uma promessa. E eu vou buscar criança, eu vou... mesmo longe, na cidade. Eu vou buscar.

Concordei com a cabeça, e ela me entregou o menino. De posse dele, saí da cabana o mais depressa que podia, sem olhar para trás.


Alguns metros mais à frente, olhei para trás pela primeira vez, e a cabana não estava mais lá.

Cheguei em casa, e quando fui ao quarto para colocar o bebê no berço, Sarah e Pedro dormiam na cama. Tinham a expressão pesada e triste. Cheguei perto do berço, e ao olhar para dentro, dei com os olhos escuros olhando para mim, arregalados. Por incrível que pareça, a forma daquela horrenda criatura foi desaparecendo aos poucos diante dos meus próprios olhos! Sumiu completamente, sem deixar vestígios. Coloquei o bebê no berço. Finalmente, Saulo estava em casa!

Naquele instante, Pedro e Sarah despertaram. Ela levantou-se, e veio me abraçar. Contou-me que ambos tinham visto, em sonho, tudo o que acontecera. Pedro já estava com Saulo no colo, olhando o filho com lágrimas nos olhos. Sarah juntou-se a ele, e a imagem daquela família feliz e unida, aqueceu-me o coração.

Sarah trocou um olhar significativo comigo, mas não dissemos nada, pois alguns segredos devem permanecer em silêncio, e jamais pronunciados. 

Cinco anos já se passaram, e ainda hoje, quando vejo Saulo correndo feliz e saudável pela casa em ocasião de minhas visitas aos meus amigos, sinto-me feliz por ter participado daquela alegria. 

Filhos? Jamais os tive, e nem os terei. Sou uma freira. Tornei-me freira assim que terminei a faculdade. Casei-me com Jesus.






sexta-feira, 29 de março de 2013

A CRIA - PARTE II





A CRIA - PARTE II

A Descoberta

Eu não conseguia olhar aquele bebê nos olhos. Parecia que ele percebia, e os cantos de seus lábios se erguiam levemente em um riso sarcástico, quando eu era obrigada a olhar para ele. Sarah não tocara no assunto; fomos até o hospital, onde o médico os examinou, e disse que estavam bem de saúde; mas pude notar que também ele estava desconcertado com a feiura daquela criança, e acabou pedindo que Sarah o levasse novamente ao hospital para que pedissem mais exames. Eu sabia que havia algo errado com aquele bebê, e o médico de Sarah, Dr. Geraldo, também.

No caminho de volta para casa, Sarah pediu-me que passasse no açougue para comprar mais carne. Dentro do carro, ela me agradeceu novamente pela ajuda que eu estava prestando, e acrescentou:

-Querida, eu sei que você está chocada com a aparência de Saulo.

Tentei negar, mas ela me interrompeu:

-Mas alguns bebês são assim mesmo. Lembro-me de uma amiga que teve um bebê tão feio e mirrado, que causava espanto! Mas depois, eles crescem e ficam bonitos.

Como eu poderia explicar a ela que aquele bebê não se parecia em nada com o lindo bebê que eu vira nascer?

Eu me sentia angustiada. A criança parecia sugar as energias da mãe, toda vez que ela o alimentava. Algumas vezes, eu percebia sangue no bico do seio de Sarah. Ela reclamava, mas queria continuar amamentando a criança. Lourdes ajudou-a com os seios rachados, aplicando um creme especial, que pareceu trazer algum alívio à minha amiga.

Naquela noite, Pedro retornou à casa - antes do esperado. Abri a porta para ele, que me abraçou entusiasmado, e subiu as escadas correndo. Achei melhor deixá-los à sós naquele momento. Sentei-me na varanda, olhando o jardim às escuras, e pensando nos últimos acontecimentos. Tentava achar alguma explicação para todos aqueles estranhos fatos: o feio bebê que parecia diferente daquele cujo nascimento eu testemunhara, meu tornozelo milagrosamente curado, a árvore que, afinal, não caíra, o esquecimento de Sarah em relação à noite do parto. Estava ali, envolvida em meus pensamentos, quando Pedro, lívido e muito pálido, veio sentar-se ao meu lado. Olhou-me. Escondeu o rosto entre as mãos.

-Meus Deus, Vanessa... meu Deus... por favor, conte-me toda a história novamente.

Voltei a contar-lhe a mesma história que já havia relatado pelo telefone. Ele ouviu tudo, sem fazer perguntas.

-Você também percebeu que o menino não é normal?
-Sim, Pedro. Mas acho que Sarah ainda não está pronta para encarar esta verdade.
-Eu sei... ela se nega. Tentei explicar a ela. Dr. Geraldo telefonou-me, e ele tem quase certeza de que o bebê sofre de uma anomalia rara.

Suspirei fundo; queria criar coragem para abordar o assunto que me afligia:

-Pedro... Sarah também não se lembra da presença da mulher que a ajudou no parto. Parece que o episódio apagou-se de sua memória. Lembro-me de que a mulher deu-lhe um chá para beber, um tranquilizante, segundo ela. Eu... eu estava assustada! deveria tê-la impedido... sinto muito!

Comecei a chorar, convulsivamente, e Pedro colocou uma mão em meu ombro, dizendo:

-Não fique assim... você fez o melhor que podia. Não é sua culpa.
-Mas você não entende... eu venho tentando dizer que essa criança que você viu lá em cima, não é o bebê que eu vi nascer.
Pedro levantou-se, em um sobressalto:

-Como? O que você...
-É isso mesmo, Pedro. Esse menino não é seu filho. Acho que aquela mulher estranha trocou o bebê por outro. Eu não a vi sair da casa depois do parto, acabei dormindo pesadamente também... eu... quando acordei e vi o bebê, fiquei apavorada! Me desculpe, mas é a verdade...
-Vanessa, você está tentando me enlouquecer?
-Não!
-O que você está dizendo é muito grave! É um caso de polícia!
-Eu não brincaria com algo assim, Pedro. Sei o que estou falando! Sérgio, o jardineiro, contou-me que seu filho foi salvo de um afogamento por esta mulher, quando tinha quatro anos, e que depois daquele evento, o menino tornou-se feio e fraco. Morreu no ano passado. Nunca mais foi a mesma criança. Converse com ele, e ele lhe contará tudo.

Pedro olhou-me nos olhos, sentando-se novamente, o rosto entre as mãos. Parecia cansado e envelhecido.

-Vou pedir ao médico que faça um teste de DNA nesta criança, Vanessa. Se o que você estiver dizendo for verdade, alguma coisa muito grave aconteceu. Onde estará meu filho? Onde mora esta mulher?
-Tentei falar com Sérgio, mas ele se nega a dar-me o endereço. Diz que devemos deixá-la em paz, pois é inofensiva. "Apenas uma velha só." Mas sei que se você o colocar contra a parede, ele o levará até ela.

Na manhã seguinte, após o café da manhã, eu passeava no jardim quando vi Sarah empurrando o carrinho de bebê ao sol. Fui juntar-me a ela. Sarah parecia imensamente serena e feliz, embora estivesse mais magra, e ainda com  olheiras profundas. Usava um chapéu branco de renda, que dava-lhe um ar de camponesa, e cantarolava para o bebê. Olhei dentro do carrinho, querendo que de alguma forma, a criança verdadeira estivesse ali; mas deparei com os olhos negros e injetados, a pele branca e descamada. A criatura perecia ser fria, sem vida, embora agitasse os braços e emitisse sons de bebê.

E apesar de apenas poucos dias terem passado, Sarah estava ficando cada vez mais magra, e suas olheiras, cada vez mais profundas. Ao mesmo tempo, tornara-se calada, e toda a sua usual vivacidade desaparecera. Sua única preocupação, era o bebê. Ficava junto a ele o tempo todo, como se temesse que alguém pudesse roubá-lo dela. Até quando Pedro se aproximava, ela tentava proteger seu filho - talvez por perceber que o pai não o aceitava.

Naquele mesmo dia, Pedro convenceu Sérgio a levá-lo onde a velha senhora vivia; mas ambos voltaram para casa frustrados, pois apesar de já ter ido à casa daquela mulherzinha algumas vezes, Sérgio não conseguiu encontrá-la; era como se ela tivesse desaparecido! Pedro acabou se convencendo de que os caminhos dentro de uma floresta são tortuosos, e que com certeza, Sérgio tinha se perdido.

No dia seguinte, Pedro levou a esposa e o filho ao hospital para novos exames, segundo recomendações médicas. Fiquei em casa, pois não queria intrometer-me em assuntos de família. Eu pensando se já não seria hora de ir embora, mas Sarah pediu-me que ficasse com ela mais alguns dias. Ela continuava se alimentado de carne praticamente crua, e de outros alimentos em grandes quantidades, mas mesmo assim, ficava cada vez mais magra.

Mais uma vez, saí para uma caminhada pelas redondezas. Estava uma linda manhã. Foi quando avistei, ao longe, a mulherzinha. Sem que ela me visse, segui-a à distância, e consegui achar a sua casa. Ficava numa clareira, bem próxima à estrada, e eu não entendia como Sérgio não tinha conseguido achá-la... talvez estivesse tentando proteger a velha mulher. Fique escondida atrás de um grosso tronco de árvore, observando tudo. Percebi que na varanda havia plantas penduradas a secar - talvez para chás ou outras 'poções' que ela preparava - e também esqueletos de pequenos animais cuidadosamente montados sobre a cerca. Algum talismã? Vi quando ela abriu a porta da casinha, e colocou um gato para fora. Olhou em volta, como se estivesse farejando o ar, e temi que ela me descobrisse ali. Mas finalmente, ela entrou.

Aproximei-me devagar, e com cuidado, encaminhei-me para a lateral da casa e espiei pela janela.

Lá dentro, era tudo muito sujo e rústico. O chão parecia não ser varrido há muito tempo, cheio de folhas secas e pedaços de gravetos. Havia pouca mobília, e a que havia, estava embaçada de poeira. Olhei para todos os cantos; contornei a casa, indo parar do outro lado. Olhei novamente, e para meu espanto, avistei um berço rústico. De costas para a janela, a mulher o embalava, e parecia estar brincando com o bebê que ali estava. Foi quando ouvi o choro do bebê. Ela inclinou-se e o pegou no colo, e quando ela o ergueu, vi que aquele era o bebê que nascera de Sarah!


quinta-feira, 28 de março de 2013

A Cria






PARTE I  - O Parto

Minha amiga Sarah, que estava no final de sua gravidez convidou-me a passar alguns dias com ela. Já não nos víamos há algum tempo, embora sempre conversássemos por telefone e pela internet.  Ao dirigir-me para sua nova casa - segundo as fotografias que me enviara por e-mail, um chalé espaçoso e confortável, bem afastado da cidade - fiquei me perguntando como alguém poderia eleger como lar um local tão ermo! Eu já saíra da rodovia principal há trinta minutos, e seguindo por estradinhas de paralelepípedos curvas e estreitas, entre ciprestes e pinheiros, riachos e portões de sítios e fazendas cujas casas não se vislumbravam, eu me perguntava se estaria no caminho certo. Nem uma viva alma durante o percurso!

Finalmente, após quase quarenta e cinco minutos dirigindo, cheguei diante do portão de madeira, onde estava escrito: 12.345. Este era número que ela me enviara. Eu tinha chegado. Ainda bem, pois a tarde caía, tingindo tudo com um tom vermelho-amarelado, e as primeiras estrelas já surgiam, embora ainda tímidas. Toquei a campainha do portão, e ele se abriu. Continuei dirigindo mais alguns metros por um caminho de cascalho até que, após uma curva, descobri o porquê de minha amiga Sarah ter se mudado para aquele local: era um pedaço do paraíso! Um enorme gramado, verde e bem tratado, circundava toda a casa. Pinheiros, ciprestes, magnólias, camélias, manacás, margaridas, jasmins, monsenhores e roseiras, tudo muito cuidadosa e estrategicamente distribuído pelo grande espaço, dava ao lugar vários tons de verde salpicados por flores de vários tons e perfumes. Cheguei à porta do chalé e fui recebida por minha amiga e por Pedro, seu marido,  com muita alegria. Sarah estava muito feliz, acariciando sua barriga de quase nove meses.

Sentamo-nos no sofá, e pude reparar a decoração luxuosa da casa, onde predominavam o branco e o dourado, com salpicos de vermelho e ocre nas almofadas e cortinas. As janelas eram grandes e envidraçadas, e ofereciam uma ampla vista de quase toda a frente e laterais do belo jardim. Comentei que achara estar perdida, tal a demora em encontrar o endereço. Sarah sorriu, dizendo:

-Ora, Vanessa, nem é tão longe assim. Fica a apenas doze quilômetros da cidade!
-Sim, pensando bem, você tem razão. Eu é que não estou acostumada à vida no campo.

Pedro juntou-se a nós, trazendo-nos alguns drinks. Ele trabalhava em uma grande empresa de mineração, e sempre precisava viajar bastante à negócios. Como Sarah gostasse de acompanhá-lo em suas viagens, decidiu parar de trabalhar; afinal, Pedro ganhava bem mais que o suficiente para mantê-los. 

-Fico muito feliz que você tenha aceito nosso convite, Vanessa. Como você sabe, mudamo-nos para esta região porque meu trabalho assim o exigiu. Temos muitas coisas a resolver por aqui nos próximos meses - ou quem sabe, anos... achamos mais prático nos mudarmos. Mas  temo que Sarah possa estar se sentindo um tanto só, embora jamais reclame. Se não fossem pelas visitas frequentes da família e dos amigos, que sempre vem quando podem, acho que ela estaria pensando em divórcio...

Sarah deu uma risada, pousando a mão carinhosamente sobre a dele:

-Ora, não por isso! Estou adorando este lugar, e já até fiz amizade com os vizinhos.
-Vizinhos? Eu não vi ninguém enquanto vinha para cá, Sarah!
-Ah, mas eles existem, Vanessa... já visitei alguns deles, e são bastante amigáveis. Preciso organizar um almoço para trazê-los até aqui.

Lembrei-me de que Sarah sempre havia sido alguém que gostava de receber amigos em casa, e acabava sendo o elo de ligação entre todos. Com certeza, ela era capaz de mudar as coisas, agregar pessoas, construir laços, enfim, ela era tudo o que eu admirava em alguém e jamais conseguia ser. Sua amizade era muito preciosa para mim.

Durante o jantar, que foi preparado e servido por Lourdes, a cozinheira, colocamos as novidades em dia. Fiquei sabendo que Pedro teria que ausentar-se a trabalho por alguns dias, e que minha companhia seria essencial para Sarah naquele período, já que não era aconselhável que ela viajasse com ele naquele estágio da sua gravidez. Lourdes, a cozinheira,  teria que ausentar-se no mesmo período para resolver alguns problemas de família, e a não ser pelas arrumadeiras que vinham a cada dois dias, Sarah ficaria sozinha, se não fosse por mim. Seus pais estavam viajando, e sua irmã, envolvida em um novo trabalho, não podia fazer-lhe companhia naquele momento.

Na manhã seguinte, Pedro despediu-se de nós após o café da manhã, e partiu em viagem. Estaria fora pelos próximos cinco dias. Sarah e eu ficamos explorando a região, que era belíssima, e pude até mesmo conhecer uma família vizinha - cuja casa ficava a um quilômetro e meio à pé, e era a mais próxima da casa de Sarah. À tarde, quando voltamos, minha amiga recolheu-se em seu quarto para descansar um pouco antes do jantar, e como a noite estava linda demais para ficar em meu quarto assistindo TV ou lendo, fui lá para fora, sentar-me no jardim. 

Havia muitos animais naquele local onde a fauna era riquíssima e bem preservada. Eu podia escutar o canto dos grilos, cigarras  e  rouxinóis dentro da mata, servindo de trilha sonora ao luar branco que despontava por trás das copas das árvores, em um céu ainda não completamente escuro. Também ouvia pios de corujas, e via os vaga-lumes e pequenos insetos que começavam a voejar junto às lâmpadas que iluminavam o jardim. Um final de tarde perfeito! 

Relaxada em uma espreguiçadeira, as pernas cobertas por uma manta de lã, acabei, eu mesma, também adormecendo.

 Já  tinha escurecido completamente quando acordei, e de olhos ainda entreabertos, vislumbrei uma figura de pé alguns metros à minha frente, a observar-me. 

 Senti um calafrio. Abri os olhos completamente, sentando-me na espreguiçadeira. Parecia ser uma mulher, pois os cabelos eram longos; tinha estatura baixa e braços mais longos que o normal, mas eu não podia ver seu rosto por causa da escuridão; apenas via a forma arredondada de sua silhueta - ela era meio-gordinha. Eu disse-lhe:

-Pois não? Posso ajudá-la?

Ela não respondeu, e nem se moveu, continuando a olhar-me, como se me estudasse. Seria algum vizinho? Não; o portão principal estava trancado. Também não poderia ser o jardineiro, pois ele já havia voltado para sua casa,além de ser um senhor alto e ter cabelos curtos. Lourdes também já havia partido. Tive um sobressalto: poderia ser uma invasora, uma ladra! De repente, senti-me muito frágil e exposta, sentada ali naquele lugar ermo e deserto. Ainda com medo, levantei-me. 

Naquele instante, a mulherzinha moveu-se. Comecei a caminhar em sua direção, mas ela sumiu por trás de um pé de camélias que ficava bem no centro do jardim. Achei que poderia surpreendê-la, e circulei a planta, mas para meu total espanto, ela não estava lá! Como? Não poderia ter cruzado o jardim ser que eu a visse! Não poderia ter desaparecido no ar.

Entrei em casa, trancando a porta atrás de mim. Sarah estava de pé, segurando uma jarra de suco, pondo a mesa do jantar, e pareceu preocupada ao ver minha expressão desconcertada.

-O que aconteceu, Vanessa?

-Eu... pensei ter visto alguém no jardim. Adormeci, e quando abri os olhos eu vi alguém me observando.

Ela ficou assustada:

-Alguém? Mas... quem? Era homem ou mulher?

-Uma mulher. Não vi seu rosto, mas era baixinha, quase anã, e tinha longos cabelos. Fugiu quando me dirigi a ela. Aliás, parece ter desaparecido no ar.

Ela pareceu pensar por alguns instantes:

-Certo... já passei por esta senhora na estrada, quando passeava à pé, um dia. Já a vi algumas vezes. Ela é estranha... algumas pessoas já a viram por aqui, mas ninguém sabe de onde ela vem, ou onde mora. Um dos meus vizinhos dizem que ela mora em um casebre na floresta, não tem eletricidade e vive sozinha há muitos anos, mas que é inofensiva. Não se preocupe com ela.

-Mas ela invadiu sua casa! Pode ser perigosa.

-Oh, não acho... o que uma velha senhora tão pequenininha poderia fazer contra mim? Acho que é meio-louca. Os solitários sempre ficam meio-loucos, dizem... além do mais, Sérgio, o jardineiro, que mora aqui há muitos anos, diz que ela nunca incomodou ninguém.

Fomos jantar, e não tocamos mais no assunto. Mesmo assim, fiquei intrigada com aquela presença estranha na casa; o terreno era todo cercado por um grosso muro de pedra, a não ser por uma parte, nos fundos da casa, que tinha desmoronado e que Sérgio deveria começar a consertar em alguns dias. Ela só poderia ter entrado por ali.

Tive um sono agitado, e despertei no meio da noite com a impressão de estar sendo observada. Tentei mover-me, mas não consegui, e fui tomada de pânico. Ouvi passos ao meu redor, mas não conseguia virar-me para ver quem era. Tentei gritar, mas minha voz não saiu. Foi quando senti um odor de algo que se parecia com arrudas esmagadas, e posso dizer que praticamente desmaiei, só vindo a despertar na manhã seguinte.

Sarah e eu passamos a manhã tricotando sapatinhos para o bebê - um menininho que se chamaria Saulo, em homenagem ao avô. Após o almoço, ela foi deitar-se para descansar, e eu , mais uma vez, fui dar uma volta à pé. Quando chegava ao portão, cruzei com Sérgio, o jardineiro, a cuidar de algumas mudas de plantas. Decidi falar com ele sobre a mulher.

-Boa tarde, Sérgio.
-Boa tarde, Dona Vanessa. Gostando da estadia?
-Sim, muito! este lugar é mesmo lindo... gostaria de ter uma pequena casa pelas redondezas.

Ele parou de trabalhar, enxugando o suor da testa com o dorso da mão.

-Pois é... mas acho que a senhora ia acabar estranhando esse silêncio todo! Ouvi dona Sarah dizendo que a senhora é da cidade grande.

-É verdade, Sérgio. Por isso mesmo, acho estranhas algumas das coisas que vejo por aqui.

-É mesmo, Dona Vanessa? E o que a senhora acha estranho?

Pigarreei:

-É que ontem à noite, eu vi uma estranha mulher rondando a casa. estava no jardim, e me observava. Quando tentei falar com ela, ela ... sumiu!

Ele deixou de sorrir:

-Não se incomode com ela não, senhora. É só uma velha meio-louca, mas não faz mal a ninguém.

Concordei com a cabeça.

-Você sabe onde ela mora?
-Onde ela mora?

Ele engoliu em seco, antes de continuar:

-Olha, se eu fosse a senhora, ia lá não... ela não gosta muito de visita, se é que a senhora me entende. Mas ela fez alguma coisa, incomodou a senhora?
-Não, mas não acho normal que alguém invada a propriedade alheia assim, no meio da noite, e...
-A Dona Sarah reclamou?
-Não, mas...
-Então deixa pra lá, Dona Vanessa. Afinal, não é mesmo da nossa conta, viu?

Olhei-o por alguns instantes, sem saber como responder a tanta petulância! Ele pareceu perceber que tinha ido longe demais:

-É que a senhora me desculpe, mas é melhor não incomodar quem está quieto, não é? É só uma velha. Anda por aí, vive sozinha, come as coisas que planta, esquilos, algumas aves... bebe da água do rio, e só.

-Você parece conhecê-la muito bem!
-Na verdade... conheço um pouco, sim. Ela um dia, há muitos anos, salvou meu filho de se afogar no rio. Serei grato a ela pelo resto da minha vida.
-É mesmo? Seu filho quase se afogou, Sérgio?

Seu rosto assumiu uma expressão bastante tristonha:

-É... ele tinha quatro anos... falava, cantava e brincava, como ele só... Era uma linda criança... tinha que ver! Mas depois do afogamento, ele ficou bem... diferente... o doutor disse que foi porque faltou oxigênio no cérebro... mas é que ele também ficou diferente na aparência...

-Como assim?

-Ficou um tanto feioso, cresceu pouco... parou de falar, e ficou fraquinho, fraquinho. Mal andava! A gente carregava ele para todo lado, e nem foi à escola, que nem os irmãos.
-E quantos anos ele tem hoje?
-Era pra ter dezoito... mas ele morreu no ano passado. Que nem passarinho. Um dia, não abriu os olhos de manhã.
-Sinto muito, Sérgio.
-Deus sabe o que faz. É a vida, dona Vanessa.

Naquela noite, enquanto jantava com Sarah, avistei novamente a mulher rondando o jardim através da vidraça. Ela percebeu meu olhar espantado, e olhando para trás, também viu a mulher. Levantou-se, dizendo:

-Isto já está indo longe demais!

Encaminhou-se para a porta, e eu fui atrás dela. Abrindo-a, olhamos em volta e não a vimos mais. Sarah gritou:

-Hei! Eu quero que você pare de entrar em minha propriedade, ou vou chamar a polícia, entendeu?

Apenas o silêncio respondeu. Mais uma vez, ela sumira sem deixar rastros.

Na tarde do dia seguinte, nuvens negras começaram a encobrir o céu, deixando a linda paisagem um tanto sombria. Um vento forte começou a soprar, derrubando muitas flores, e folhas secas encheram o chão da varanda. O vento uivava nas gretas das vidraças, e ajudei Sarah a fechar toda a casa, pois a tempestade era iminente. Sérgio retirou-se mais cedo, e ficamos as duas sozinhas novamente na casa.

Por volta das cinco horas, as luzes acabaram, e Sarah acendeu algumas velas pela casa. Os relâmpagos eram assustadores, e decidimos fechar as cortinas das imensas janelas para que não os víssemos. Ainda assim, ouvíamos o ribombar estrondoso dos trovões, que pareciam rachar as árvores ao meio. Logo, a chuva torrencial começou a cair em torrentes cinzentas.

Decidimos ir para a cama mais cedo, após um lanche frugal. Sarah não se sentia muito bem, mas disse-me para ficar tranquila; ainda não era hora do bebê nascer. Achei melhor passar a noite com ela, e aconcheguei-me em uma confortável poltrona em seu quarto, ao lado da cama.

Por volta de uma hora da manhã, acordei com os gritos de Sarah:

-Vanessa! Alguma coisa está errada! O bebê... estou sentindo as dores!

Quase entrei em pânico, mas consegui respirar fundo e pensar; peguei o telefone, mas estava mudo. Meu celular, sem bateria... Sarah me disse que o seu também já estava sem bateria há muito tempo, pois quase não o utilizava.

Achei que teria que sair para levá-la para o hospital, e ajudei-a a ir até o carro. Mas não conseguimos sequer ultrapassar o portão: um imenso carvalho tinha caído, com sua enorme copa, barrando completamente a saída. levaria dias até que pudesse ser removido! Sarah e eu nos entreolhamos, no exato momento em que ela sentiu nova contração. achei melhor voltarmos à casa, e coloquei-a de volta na cama. Achei que poderia ir à pé até a casa vizinha buscar ajuda, e vestindo uma capa impermeável, disse a ela que ficasse calma que eu logo estaria de volta.

Mas a tempestade era forte demais, e quando tentei escalar o grosso tronco da árvore que barrava o caminho, a fim de chegar ao outro lado, acabei escorregando e torcendo o tornozelo. Fiquei ali, caída no meio da lama, enquanto rajadas de chuva e vento me fustigavam. Agora, eu não tinha mais condições de procurar ajuda para Sarah! Comecei a chorar de impotência, e com muitas dificuldades e dores, consegui voltar à casa. Da porta, pude ouvir-lhe os gritos.

A casa, escura e sombria, iluminada pelos clarões de relâmpagos e raios, e também por alguns tocos de vela que ainda queimavam, era o cenário de um filme de terror. Fechei a porta e ia começar a subir as escadas, quando ouvi batidas fortes. Parei para ouvir melhor; afinal, poderia ser apenas uma outra árvore que caíra. As batidas se repetiram, e com dificuldades e muita dor, consegui descer novamente o lance de escadas e abrir a porta. Mal pude acreditar quando, diante de mim, estava a tal mulherzinha!

Fiquei olhando para ela, tentando deliberar o que fazer. Foi quando ela disse:

-Eu posso ajudar!

Sua voz era rouca, mas se fazia audível em meio à tempestade, e parecia-me como um oásis no meio de um deserto. Ela repetiu: "Eu estou aqui para ajudar! Depressa!"

Deixei-a entrar. Segui as instruções, indo à cozinha ferver água e depois, pegar toalhas limpas meu tornozelo, estranhamente, parara de doer.

 Quando tudo estava pronto, levei ao quarto e entreguei à mulher, que era a única que estava calma e centrada. Parecia em transe. Sarah olhou para mim, e eu apenas encolhi os ombros, pedindo a ela que se acalmasse, pois tudo ficaria bem. A mulher fez com que Sarah tomasse um líquido - que eu não sei do que se tratava - e ela se acalmou, e minutos depois, teve um parto sem dores. O tempo todo, eu tinha a impressão de estar vivendo alguma cena de filme... mas quando o bebê quebrou o ruído da chuva com seu choro de vida, eu percebi que estava vivendo a beleza de um milagre... a mulherzinha enrolou-o em um pano e estendeu-o para que eu o segurasse. Olhei para o rosto dele, iluminado pela luz das velas, e vi que era uma das crianças mais lindas que eu já vira! Em seguida, ela mostrou-o à mãe, que chorava de emoção. Lá fora, um novo trovão ribombou - tão forte, que estremeceu a casa toda.

Olhei para Sarah, e ela tinha adormecido. A mulherzinha cobriu-a, e olhando para mim, fez-me sinal para que eu ficasse em silêncio, dizendo-me que ela precisava descansar, e que estava bem. Sentei-me à poltrona, pronta para velar seu sono e o do bebê. Na manhã seguinte, após a tempestade, com certeza os telefones e a eletricidade teriam voltado, e eu poderia chamar ajuda. Acabei dormindo também, e quando despertei, os passarinhos cantavam lá fora, em um cenário de manhã fria e cinzenta. Sarah também estava despertando, e sorri para ela. O bebê dormia, enrolado ainda na manta que a mulherzinha providenciara.

Cheguei mais perto para vê-lo melhor, enquanto dizia bom dia a minha amiga, e mal pude acreditar no que eu via: uma criança extremamente feia, a pele branca, enrugada e escamada, mais parecendo um velho! A cabeça era desproporcionalmente grande em relação ao corpo, e os olhos, duas bolas negras e sem vida. Não podia ser o mesmo bebê que eu vira nascer na noite anterior, que era lindo, rosado e de aparência saudável!

Sarah pareceu perceber a minha repulsa, pois sentou-se na cama e pegou a horrenda criatura, aninhando-a contra o peito. Eu não sabia o que dizer, e sabia que ela estava profundamente ferida com minha atitude. Tentei parecer natural:

-E então, como se sente?

Ela me olhou, ainda abraçada à criatura:

-Muito bem, obrigada.

Levantou-se e começou a embalar o pequeno, enquanto lhe oferecia o seio, que ele sugava com tanta sofreguidão, que emitia sons, como um animal voraz.

-Bem, Sarah, eu vou verificar se o telefone já está funcionando, afinal, Pedro precisa saber que seu filho já nasceu. Depois, eu vou tentar encontrar ajuda para retirar uma árvore que caiu em frente ao portão, e levá-los ao hospital para ver se está tudo bem.

Ela assentiu com a cabeça, mas não respondeu. Notei que tinha olheiras muito escuras sob os olhos. Consegui comunicar-me com Pedro, que ficou exultante, embora preocupado. Tomei um bom banho, e para minha surpresa, não havia sequer um inchaço em meu calcanhar ou tornozelo que revelasse meu acidente da noite anterior. Como a eletricidade também tivesse voltado, aproveitei para recarregar as baterias de meu telefone e laptop.

Preparei uma sopa forte e levei-a para Sarah. Ao chegar no quarto, vi que ela também tinha tomado banho e trocado de roupa. O bebê dormia no berço. Ela tomou a sopa e comeu o pedaço de pão, bebendo todo o leite, e depois, enquanto comia uma maçã, disse-me:

-Obrigada por tudo, Vanessa. O que seria de mim sem você aqui ontem...
-Ora, confesso que eu estava muito assustada. Ainda bem que aquela senhora apareceu e ajudou no parto!

Ela mostrou-se confusa, franzindo a testa:

-Que senhora?

Eu ri, desconcertada.

-Ora... você não se lembra? Aquela senhora baixinha que eu disse que rondava a casa! No meio da tempestade, ela bateu à porta, e disse que podia ajudar... você não se lembra? Ela fez o seu parto, Sarah.

-Não, eu não me lembro de nada... mas... se você está dizendo... mas agora, por favor, poderia ir lá em baixo e me trazer mais alguma coisa para comer? Estou morta de fome!

-Uau... bem... o que você gostaria de comer?

-Qualquer coisa bastante substanciosa! Já sei: um bife.
-OK, então, mas você terá que esperar um pouquinho para que eu o frite. Sou meio-desajeitada na cozinha, só sei fazer sopa instantânea...

-Não se preocupe, não precisa fritá-lo. Quero comer carne crua.
-O que?!
-Carne crua, por favor. E mais um copo... não; uma jarra de leite!
-Você não vai passar mal, Sarah? Tem certeza que?...

Ela mostrou certa impaciência:

-Sim! Agora vá, por favor, Vanessa. Faça o que eu estou pedindo.

Quando cheguei à cozinha, encontrei com Lourdes, já de volta ao trabalho. Ela sorriu, desejando-me bom dia.

-Tenho novidades, Lourdes. O bebê de Sarah nasceu durante a noite.

-Oh... e foi tudo bem?
-Sim, correu tudo bem.
-Que maravilha! Por favor, Dona Vanessa, em que hospital eles estão?

Enquanto eu abria a geladeira e pegava o leite e o bife, respondi:

-Eles estão lá em cima! O bebê nasceu em casa. O nome dele é Saulo.
-Em casa?
-Sim. Por causa da tempestade, não pudemos ir até um hospital... aliás... como você conseguiu passar por aquele imenso tronco de árvore no portão?

Ela estancou no meio da cozinha, olhando-me de maneira estranha e confusa:

-Que tronco de árvore?
-Ora, ontem á noite tombou uma árvore enorme no caminho, e por isso, não conseguimos chegar ao hospital. O caminho foi bloqueado!
-Dona Vanessa... a senhora está bem?

Aquela pergunta irritou-me:

-É claro que sim! Estou ótima!
-Bem, não tem árvore nenhuma no portão, e nem sinal de que tenha caído uma. Está tudo no lugar, e Sérgio já está trabalhando, plantando algumas mudas junto ao portão.

Aquela afirmação caiu sobre mim como uma bomba, e saí correndo cozinha afora, a fim de ver com meus próprios olhos. Parei no meio do caminho: não havia árvore caída nenhuma! Mas eu tropeçara tentando escalar a árvore, e machucara o tornozelo! O que estava acontecendo comigo? O que estaria acontecendo naquela casa?







segunda-feira, 25 de março de 2013

Leonora





Baseado na canção dos Beatles Eleanor Rigby



Leonora vivia sozinha em uma dessas velhas casas, cujas janelas, grandes e compridas, dão diretamente para a calçada. A pintura das paredes estava desbotada, e caía em placas aqui e ali. A casa ficava quase espremida entre dois velhos sobrados, e quase não recebia a luz do sol.
 
Leonora  não era uma moça feia, mas também estava longe de poder ser encaixada nos padrões da beleza... na verdade, havia algo intrigante sobre Leonora e seu rosto: ela era totalmente insípida! Olhos verde-pistache sem expressão, emoldurados por sobrancelhas arredondadas e finas, cabelos crespos e sem-cor, um nariz insignificantemente pequeno e sem-personalidade, os lábios caídos, o corpo sem curvas. Leonora era uma daquelas pessoas que poderia passar horas à janela, ou em um salão de festas cheio de pessoas, sem que alguém sequer desse conta de sua presença.

Apesar de já passar dos trinta anos, ela ainda alimentava muitos sonhos. Pensando melhor, os sonhos eram a única razão para que ela suportasse sua existência totalmente sem sentido. Por isso, ela tornara-se uma especialista no sonhar. Sonhava tanto, que chegava a confundir a realidade e o mundo imaginário. Assim, criava personagens em sua mente que acabavam confundindo-se à realidade, e às vezes contava às pessoas estórias sobre eles, mas quem a conhecia há tantos anos, sabia que aquelas pessoas só existiam na mente de Leonora, pois ela jamais recebia visitas.

Um dia, alguém sugeriu - apenas por gentileza - que ela escrevesse sobre aquelas personagens, como em um diário. Leonora achou a idéia um tanto estranha, mas naquela noite, não dormiu. Pensou, pensou, considerou... e decidiu que, daquela forma, poderia tornar ainda mais concreta, a existência de seus amigos imaginários- prende-los-ia em folhas de papel!

Leonora tinha  hábito de ir à igreja todos os dias, e auxiliar Padre Pedro durante as cerimônias. Mas naquela manhã, ela estava tão ocupada começando a escrever suas histórias, que a hora passou e Leonora esqueceu-se de ir à missa!  Três dias depois, como a ausência da moça já começasse a preocupar Padre Pedro, ele decidiu fazer-lhe uma visita. Chegando lá, ela contou-lhe sobre seu novo projeto, do qual ele fez de tudo para dissuadi-la, dizendo que a imaginação demasiadamente fértil era uma das artimanhas usadas pelo demônio, mas Leonora não ouviu uma só palavra do que ele disse. 

Quase em transe, serviu-lhe uma xícara de chá, e dez minutos após sua chegada, ela levou-o até a porta. Ele lembrou-a de que haveria um casamento naquele sábado - sabia o quanto ela adorava casamentos, e que com certeza, a cerimônia a levaria de volta à igreja . Mas Leonora não compareceu. Nem mesmo para recolher os grãos de arroz que caíam nas escadas da igreja, e que ela colocava em uma jarra junto à porta de entrada de sua casa, acreditando que eles lhe trariam sorte e a ajudariam a encontrar um marido.

Ficou em sua casa, escrevendo o dia todo, e às vezes, varando a noite. Só parava quando a fome fazia com que seu estômago doesse, ou o sono lhe roubava toda a concentração.

Quando se cansava de escrever, Leonora ficava à janela. Era lá que ela recolhia a maioria de seus personagens.

Um dia, viu quando um caminhão de mudanças estacionou junto ao prédio em frente à sua casa.  Um belo moço supervisionava a mudança, orientando os carregadores. Imediatamente, Leonora ficou fascinada por ele, e incluiu-o como personagem principal de sua história. 

Desde que o moço tornara-se seu vizinho, Leonora passou a ficar muito tempo à janela, esperando que ele passasse, o que acontecia pelo menos quatro vezes ao dia durante a semana, e duas nos finais de semana. Mas apesar da insistência da moça, que passou a maquiar-se e pentear-se exageradamente, ele jamais a notava. Uma vez, ela tossiu tão alto, que ele olhou em sua direção. Ela sorriu-lhe timidamente, ele cumprimentou-a com um leve aceno de cabeça, e seguiu seu caminho.

Aquilo foi o suficiente para que a moça criasse as mais mirabolantes fantasias sobre ele. Quando os vizinhos passavam por sua janela, ela às vezes apontava para a janela do apartamento do moço, e dizia a eles que em breve, caser-se-ia com o morador do prédio em frente, e que eles iriam morar ali.

As pessoas balançavam a cabeça, com pena de Leonora, e seguiam seu caminho.

Após um mês,  o rapaz que passava todos os dias por Leonora e apenas a cumprimentava, conheceu outra moça. Numa bela manhã de sol, Leonora estava em seu posto costumeiro, quando viu o casal passar de mãos dadas, e entrar no prédio. Ela ficou olhando a cena, totalmente incrédula: ele a estava traindo! Quem seria aquela, que o estava roubando dela?  Um estranho sentimento tomou conta da moça, queimando-a por dentro. Ela não sabia o que fazer, pois nunca em sua vida sentira-se daquela maneira.

Dias se passaram, e ela perdeu totalmente a vontade de escrever suas histórias. Estava angustiada, pois todos os dias, ela presenciava a mesma cena: seu grande amor e a 'outra', passando de mãos dadas, sorridentes e felizes, sob sua janela. Ele nem sequer a cumprimentava mais!

Resolveu ir à igreja, onde confessou tudo a Padre Pedro. Contou-lhe de seu amor platônico pelo moço, das histórias que escrevia, e da cena perturbadora que acabara de presenciar. Ele deixou que ela chorasse e aliviasse seu coração, pois para ele, tudo aquilo não passava de mais um dos delírios da moça. Quando sentiu que ela estava mais calma, disse-lhe:  "Minha filha, você está afastada da igreja, e isso não é bom. Olhe, no próximo sábado haverá um casamento, e quero que você esteja presente. Tenho certeza que você se sentirá bem novamente! Lembra-se do quanto você sempre adorou as cerimônias de núpcias? E esta promete ser muito especial..."  

Dizendo isto, Padre Pedro mandou-lhe rezar algumas Ave-Marias, e depois de obedecer ao padrer, Leonora voltou para casa.

No sábado seguinte, ainda abalada por todos os acontecimentos dos últimos dias, Leonora vestiu seu velho vestido cor-de-rosa bebê e foi assistir à cerimônia. Padre Pedro sempre deixava que ela ficasse em um cantinho do altar, de onde podia ver tudo sem ser vista, e ela sentou-se em sua habitual cadeirinha, esperando. 

Mal pôde conter sua surprêsa quando viu que o noivo que se encaminhava para o altar, a fim de receber, mais tarde, a sua futura esposa, era nada mais, nada menos, que o grande amor de sua vida!

Em sua cabeça, pensou: "Mas então é isso! Padre Pedro quis fazer-me uma surprêsa! Ele vai casar-se comigo!!!"

Saiu detrás das cortinas, e nem percebeu os comentários confusos e os muitos "OooHHs" escandalizados, quando ela, aproximando-se do rapaz atônito, encaixou seu braço no dele. Em seu rosto, um sorriso de delírio.

  Padre Pedro, atraído pelo alarido, veio da sacristia, onde ainda estava arrumando-se para a cerimônia, e deparou com a absurda cena. Pacientemente, tentou poupar Leonora de ainda maior humilhação, tentando retirá-la do altar, onde o rapaz, sem desejar ser rude, ainda  estava de braços dados a ela. Ela teve que ser afastada à força, quase arrancada do altar.

Depois disso, Padre Pedro foi obrigado a trancá-la em um quartinho nos fundos da igreja, até que a cerimônia terminasse.

Foi lá que ela morreu.

Padre Pedro encontrou-a caída no chão, um estranho sorriso no rosto, e, pela primeira vez, notou uma expressão de alegria - embora ensandecida - em seus olhos.

Quando o senhorio foi até a casa de Leonora, a fim de esvaziá-la para o próximo inquilino, Padre Pedro resolveu ir também. HAvia alguns poucos móveis que poderiam ser doados à caridade. Notou que todos os casacos e blusas de Leonora tinham os cotovelos muito gastos, das horas que ela passara à janela, sonhando acordada. Quando lhe perguntaram o que fazer dos vários cadernos escritos à mão que estavam nas gavetas da cômoda, ele apenas respondeu: "Queime-os todos. Eles representam a ruína e morte  de uma boa alma  cristã."

domingo, 24 de março de 2013

SANDÁLIAS







O coração dele disparou ao vê-la aproximar-se. Não era como as outras meninas que chegavam, interessadas nas pulseiras, colares e sandálias que ele fabricava. Já trabalhava naquele canto de praia há vários anos, montando sua barraca todas as manhãs e desmontando-a no final do dia. Estava acostumado à rotina de lindos corpos bronzeados, e por isso, sabia que não era apenas pela beleza do corpo, nem pelas cores deslumbrantes do florão da canga que ela trazia enrolada à cintura. 

Talvez fosse a maneira como os cabelos castanho dourados se agitavam sinuosamente com o vento do mar... ou as esmeraldas que ele percebeu nos olhos dela.

Não era só aquilo; era exatamente aquela coisa que acontece e que é indefinível. Pronto: estava perdido, irremediavelmente perdido.

Pegar seus pertences e ir trabalhar todas as manhãs tornou-se um acontecimento diferente, bem longe da rotina que ele cumpria há anos; pois agora, ela estava lá. Sempre no mesmo horário, passava por ele sem notá-lo. Passava como a brisa do mar, refrescando a todos sem distinções.

Ele decidiu que lhe faria um presente: um par de sandálias. O par mais lindo que jamais havia feito. Selecionou as melhores tiras de couro, as miçangas e cristais. Começou a pensar em um arranjo encantador para dispor tudo sobre as tiras, e como trançá-las de forma que os cristais e miçangas formassem um lindo desenho. Engenhoso que era, logo arranjou uma solução.

Um dia, enquanto trabalhava em sua preciosidade, ela chegou de repente, parando para olhar as coisas que ele vendia. Ela fingia estar olhando as pulseiras, mas na verdade, tinha o olhar atento às costas bronzeadas e musculosas do rapaz (ele estava sentado de costas para ela). Reparou que ele usava uma argola em uma das orelhas. Achou aquilo horrível! Pode perceber que suas unhas estavam sujas devido aos produtos que usava para trabalhar o couro. Também não gostou nada daquilo... mas ele tinha alguma coisa de especial que a atraía, embora ainda nem tivesse visto seu rosto: era o cheiro que vinha dele.

Quando ele se virou de frente para ela, ambos tiveram um momento de confusão, corações disparados, bocas entreabertas.Finalmente, ela gostou de alguma coisa a mais (além do cheiro) que viu nele: os olhos, o olhar profundo, a barba por fazer. Tinha um charme que não era nada parecido com o charme estudado dos rapazes que ela tinha namorado. Ele era totalmente natural e original, tão original que chegava a ser bruto, e aquilo doía. 

Ela pegou uma das pulseiras sem pensar, e disse friamente: "Vou levar esta..." Ele não conseguiu dizer nada: colocou a pulseira em um saquinho de papel, que estendeu a ela, pegou o dinheiro, fez o trôco. Foi quando ela reparou nas tiras cravejadas de pedrinhas e contas que estavam no chão, atrás dele. Ficou encantada com a beleza delicada que estava sendo formada por aquelas mãos embrutecidas.

Perguntou: "O que é aquilo?" Ele respondeu, gaguejando um pouco: "Um par de sandálias." Sem pensar, ela quase gritou, entusiasmada: "Eu as quero! Quando ficam prontas?" Ele sorriu: "Na verdade, elas já tem dono... ou melhor, dona. Estou fazendo as sandálias para dá-las de presente à mulher que é a dona do meu coração."

Ela percebeu que uma leve fúria começou a insinuar-se dentro dela, sem querer. Como ele podia ser tão petulante? Ele percebeu o desconcerto da moça, e achou-o divertido. Ela apenas virou as costas e foi embora, deixando no ar o leve perfume de seus cabelos misturado à maresia. 

Ele trabalhou a noite toda, na casinha humilde que ocupava junto ao pier, para terminar o par de sandálias no dia seguinte. Não aceitou o convite dos amigos para mais uma noitada de violão na praia, em volta da fogueira. Quando terminou, o dia amanhecia, e as gaivotas gritavam em volta dos barcos de pesca.

Ele vestiu sua melhor camiseta, sua melhor bermuda, e foi caminhando até a praia. Seu coração não estava acostumado à emoções tão fortes. Batia descompassado, causando-lhe um misto de alegria e ansiedade. 

Ela chegou, passando por ele. Desta vez, ela sorriu e seus olhares se cruzaram. Ele esperou até que ela estendesse sua canga na areia e, colocando seus óculos escuros, se deitasse sobre ela. Então, ele pegou sua obra-prima e foi até aonde ela estava, parando diante dela, que, ao perceber que havia uma sombra entre ela e o sol, abriu os olhos, retirando os óculos escuros.

"Você ainda quer as sandálias?"
"Pensei que você tivesse dito que elas estavam sendo feitas para a dona do seu coração..."

Sem nada dizer, ele se ajoelhou diante dos pés dela, colocando-lhe as sandálias. Só então ela compreendeu!

No final do dia, quando ambos estavam sentados diante do mar, exaustos de tanto amar, ela se lembrou que teria que partir na manhã seguinte. Sua vida estava lhe esperando. E a vida bem sabia que não poderia juntar, durante muito tempo, duas criaturas tão diferentes.

Quando ele acordou e estendeu o braço, procurando por ela, encontrou apenas o par de sandálias.



quinta-feira, 21 de março de 2013

O Velório




Bianca era uma mulher de meia-idade, cuja vida solitária não lhe trazia grandes aventuras. Vivia uma vida morna e sem gosto.

 No começo, a solidão tinha sido para ela uma opção, após uma grande desilusão que sofrera com seu marido, João,  e sua melhor amiga, Tamara. Tornara-se desconfiada, e por mais que tentasse, não conseguia mais confiar em ninguém. Simplesmente não se sentia pronta a perdoar e esquecer a traição daquela amiga de tantos anos e do homem que ela aprendera a amar. As pessoas insistiam que ela esquecesse o que acontecera, mas ela apenas se irritava quando alguém mencionava o assunto: eles não estavam sob a sua pele! 

Tornara-se calada e arredia. Seus velhos amigos - e até suas irmãs - passaram a evitá-la, devido ao seu ar taciturno e sarcástico. Como não cria mais em felicidade, zombava da felicidade alheia. Nem se lembrava mais dos tempos em que tinha sido uma pessoa totalmente diferente, alegre e de bem com a vida, pronta a correr riscos e lutar por tudo o que desejava, crente nas pessoas e rodeada de amigos.

Afundou-se ainda mais no trabalho, e tornou-se ainda mais competitiva do que sempre fora. Chegou a um dos mais altos cargos dentro da empresa, e todos a temiam ou odiavam.

O acontecimento que mudou sua vida aconteceu quando ainda tinha vinte e seis anos. Era o dia de seu casamento, e Tamara, sua melhor amiga, naturalmente tinha sido convidada a ser a sua madrinha. Após a cerimônia, durante a festa, enquanto dirigia-se ao toilete a fim de retocar a maquiagem, Bianca ouviu vozes abafadas por trás de uma porta fechada. Achou estranho, pois reconheceu, primeiramente, a voz de Tamara:

-Não podemos continuar assim, agora que vocês se casaram, João. Bianca vai acabar desconfiando... aliás, ela já estava desconfiada de você, confessou-me! 
-É mesmo? E o que você disse?
-Ora, eu disse a ela que aquilo era um absurdo, pois vocês estavam de casamento marcado! Ela pareceu acreditar, ficou mais calma.
-Mas a verdade é que eu não deveria ter me casado com ela. É a você que eu amo, Tamara! Bianca sempre me deixa em segundo plano, desde que nos conhecemos... só pensa em si mesma e na carreira.

Enquanto escutava aquela conversa, Bianca sentia que estava ficando cada vez mais gelada. Começou a sentir-se tonta, e amparou-se na parede para não cair. 

-Então, por que casou-se com ela, João?
-Porque eu gosto das duas. Não queria que ela sofresse. Mas há uma maneira de contornarmos tudo, Tamara. Eu esperarei alguns meses, e depois, peço o divórcio. É só o tempo de passar toda essa parafernália do casamento, e...
-Mas eu não entendo! Por que se casou com ela, se já pensa em pedir o divórcio?
-Por pena. Você sabe, a festa já estava toda encomendada, os convites já tinham sido mandados...
-Maldita noite aquela, quando seu carro quebrou no momento em que passava próximo à minha casa! Seu carro tinha que quebrar justo naquela noite? E logo ali, na minha rua?
-Mas você tem que confessar: foi uma noite inesquecível!

Bianca não suportou mais: caiu ao chão, desmaiada, chamando a atenção dos dois, que ouviram o baque de sua queda no piso de mármore.

Depois daquele triste acontecimento, o casamento foi desfeito, e apesar das desculpas pedidas por Tamara e João, Bianca jamais foi capaz de perdoá-los. Os dois se casaram alguns meses após o fato, vindo a se divorciar logo em seguida: João a traíra.

Anos se passaram, e estamos de volta ao acontecimento que dá título a este conto: o velório.

Durante uma tempestade, Bianca vai abrigar-se em uma capela mortuária que ficava próxima ao seu local de trabalho, pela qual passava todos os dias, sem perceber. Pensou que estivesse vazia, pois já era tarde da noite. Não gostava de estar ali, mas era melhor do que estar debaixo daquela chuva torrencial, já preparando uma enchente. Sentia-se esfomeada e cansada, após um dia de trabalho que terminara em um longo serão. Passava das dez da noite, e as ruas estavam desertas e silenciosas. 

Pensou em ficar à porta, mas os raios a amedrontaram, e ela foi penetrando no corredor semi-obscuro da capela, caminhando entre as portas fechadas. Acabou chegando a uma das capelas, a do final do corredor, de onde vinha a luz mortiça de velas. Estava aberta, e ela entrou.

Sentou-se em uma das poltronas, sentindo-se totalmente desconfortável diante daquele caixão aberto, onde uma mulher jazia sem ninguém que a velasse. Movida por uma curiosa morbidez que ela preferiu chamar de respeito, Bianca levantou-se e aproximou-se do corpo. Olhou: as mãos cruzadas sobre o peito, onde havia um pequeno terço entre os dedos entrelaçados. Da cintura para baixo, flores murchas cobriam todo o corpo, e exalavam o cheiro da morte. Foi subindo o olhar. A manga rendada de uma roupa preta. Bianca sentiu indiferença por aquela mulher, até que, olhando em seu rosto, reconheceu sua antiga amiga Tamara.

Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha! Quase gritou, mas conteve o grito na concha das mãos. Há muitos anos não a via, nem sabia dela. A última notícia que tivera, foi quando os dois se divorciaram, o que causou-lhe um sentimento de triunfo. mas vê-la ali, totalmente só, pareceu quebrar a barreira de gelo em seu coração, pois vieram-lhe à memória os tempos em que estudaram juntas, as festas que frequentaram, as viagens que fizeram juntas a vários países. Recordou-se nas noites em que dormiam na casa uma da outra, e  varavam as madrugada comendo chocolates e assistindo filmes. Eram tão íntimas! 

Bianca voltou a sentar-se, com as mãos ainda cobrindo o rosto. Chorou durante alguns instantes. Mas logo vieram também as últimas lembranças, a traição , a festa de casamento... seus sentimentos misturavam-se. Um ódio começou a crescer dentro dela. Decidiu ir embora, mas teve uma péssima surpresa ao chegar à saída: 

A chuva caía lá fora, em torrentes ininterruptas, e o rio transbordara. Impossível sair dali! Teria que passar a noite dentro daquela capela mortuária, com sua melhor amiga e sua pior rival. Apesar dos pensamentos sombrios, Bianca estava tão cansada que acabou adormecendo. Nem sabe quanto tempo se passou, mas quando despertou, a chuva lá fora ainda caía, embora mais fraca, mas a enchente ainda não escoara. De repente, ela ouviu um ruído vindo de dentro do esquife, um farfalhar estranho e inexplicável. Será que haveria ratos ou baratas por ali? Aquele pensamento a amedrontou. Nem sequer cogitou outra possibilidade, pois não acreditava em fantasmas.

Até que ouviu uma voz fraca, dizendo: "Preciso que você me perdoe."

Bianca sentiu calafrios na espinha, mas levantou-se da poltrona, e foi até o caixão. Olhou para o rosto marmóreo da ex-amiga, e quase caiu para trás quando a viu abrir os olhos. Ela estava viva! Como a ouvir seus pensamentos, Tamara murmurou:

-Não, eu não estou viva. Estou morta!

Bianca gritou, dando alguns passos para trás. Quis correr, mas a porta fechou-se com um estrondo antes que pudesse alcançar a saída. estava apavorada! Principalmente depois que Tamara sentou-se, dizendo: "Não tenha medo de mim!"

Com o coração aos pulos, Bianca apontou para ela, gritando:

-Mas você... você...

-Eu a trouxe aqui de propósito. Jamais me perdoei pelo que fiz com você. Você, Bianca, sempre foi a minha melhor amiga... aquela que eu podia contar sempre, e depois do que fiz, as pessoas - nossos amigos - viraram as costas para mim. Acabei sozinha. E o resto da história, você já sabe... mas o que importa, agora? Tudo o que eu fiz, tudo o que João fez, por que odiar-me, agora, que já não mais faço parte deste mundo?

Bianca, de olhos bem arregalados, murmurou:

-Vocês me traíram! Eu a tinha como uma irmã!
-Você nunca cometeu erros, Bianca?

Bianca sabia muito bem a que Tamara estava se referindo. Somente ela a conhecia profundamente, e sabia das coisas mesquinhas que tinha feito a fim de ter a sua tão bem-sucedida carreira no mundo dos negócios. E Tamara jamais ficara contra ela, pois jamais a julgara, embora tentasse fazer com que ela percebesse seus erros, de maneira sutil. Ninguém mais sabia das coisas que Tamara sabia! 

Bianca pensou no que sua vida tinha sido: um suceder de erros causados pela sua ambição desmedida e pelo rancor que alimentara durante todos aqueles anos! Olhou para a amiga morta, que ainda estava sentada em seu caixão, numa cena bizarra. Pensou no quanto ela a tinha amparado em seus momentos mais difíceis, quando a culpa pelo que fazia vinha à tona. Somente Tamara fora capaz de ouvi-la e perdoá-la, sem julgá-la, apesar de tentar fazê-la enxergar que havia coisas mais importantes na vida do que uma carreira bem sucedida e dinheiro. 

Perdoou-a, e de todo coração. Assim que ouviu que estava perdoada, Tamara voltou a deitar-se em seu caixão, cruzando as mãos sobre o peito e fechando os olhos, de onde lágrimas ainda brotavam. Seu semblante , antes angustiado, agora era calmo e sereno.

Bianca conseguiu, finalmente, voltar para casa. Quando saiu, logo nas primeiras horas da manhã, a luz do sol infiltrava-se entre as copas das árvores, onde passarinhos cantavam, e ela olhou, pela primeira vez em muitos anos, o movimento de carros e pessoas que iam e vinham, e sentiu-se parte de tudo aquilo; sentiu-se, finalmente, viva! 

Muitas coisas mudaram em sua vida a partir daquela manhã.




Conto dedicado à Lu Chavichioli, pois além de leitora assídua do meu blog de contos, sugeriu que eu escrevesse alguma coisa com um final feliz. Este final feliz é dedicado a você.


quarta-feira, 20 de março de 2013

Meu Amigo Duende









MEU AMIGO DUENDE

Nunca fui muito popular na escola, quando criança. Eu era um nerd. Usava óculos, era muito magro e franzino, e gostava de usar camisas de xadrez de mangas longas, abotoadas até o pescoço, mesmo quando estava quente. Tinha cabelos lisos penteados para o lado, e eu usava um pouco do fixador de minha mãe para manter a franja bem esticada. Não tinha amigos. As outras crianças apenas me toleravam, quando não estavam troçando de mim. Minhas notas eram sempre excelentes, mas nem mesmo este fato fazia com que eu fosse um pouquinho popular, apesar de ajudar os colegas quando estavam em dificuldades com as matérias. Pelo contrário; eles me usavam, tratavam-me bem antes das provas, quando precisavam de minha ajuda, e depois voltavam a tratar-me da mesma forma, ou seja, algo entre a total indiferença e a pura grosseria.


Eu era apenas um garotinho inseguro, de dez anos de idade, quando o vi pela primeira vez. Como sempre, meu irmão, cinco anos mais velho e muito popular, chegou em casa no final da tarde com sua trupe de amigos – vale lembrar que ele estava vivendo aquela fase da adolescência na qual irmãos mais novos são sempre insuportáveis e só trazem aborrecimentos. Eu estava acostumado a ser totalmente ignorado por ele quando seus amigos estavam por perto, e seus amigos também faziam questão de deixar bem clara para mim a minha não existência. Só se lembravam de mim quando precisavam de alguma coisa da cozinha – um refrigerante, um sanduíche ou outra coisa parecida.


Estranhei quando um dos garotos que estava com Pedro, meu irmão, acenou para mim e sorriu. Foi simpático. Eu nunca o tinha visto antes. Meu irmão e seus amigos entraram no quarto e fecharam a porta, mas ele permaneceu do lado de fora do quarto, de pé no corredor, olhando para mim. 


Ele era um pouco mais baixo que os outros meninos. Vestia uma camiseta lisa verde-musgo, calça jeans e tênis surrados. Tinha cabelos castanhos cacheados, cujas pontas saíam de sob o estranho chapéu, que parecia um gorro de lã preto e meio-pontudo. 



Fiquei ali, na porta de meu quarto, sendo encarado por aqueles enormes e simpáticos olhos azuis. Foi quando ele cumprimentou-me, dizendo meu nome. 


-Olá, Paulinho! 


Não respondi. Aquilo só poderia ser algum truque! Logo, meu irmão e seus amigos estariam ‘aprontando alguma’ para cima de mim! Virei-lhe as costas e entrei em meu quarto. 


Na tarde seguinte, lá estava ele novamente, desta vez, sozinho na sala de estar. 


-Olá, Paulinho! 


Fui até a cozinha pegar um pacote de cereais, passando por ele sem responder. Ele foi atrás de mim. 


-Por que não responde quando eu falo com você? Não está me vendo? 


Respirei fundo: 


-É claro que eu estou! Mas os amigos de meu irmão nunca falam comigo, e se falam, é porque querem alguma coisa de mim. O que você quer? 


Ele sentou-se à mesa da cozinha, os dedos da mão esquerda tamborilando sobre a mesa, o rosto apoiado na outra mão, me olhando fixamente. 


-Eu? Não quero nada! E você? Quer alguma coisa de mim? 


-Você está maluco? Eu não! 


Ele colocou as duas mãos sobre a mesa – percebi que tinha dedos muito finos e mais longos que o normal. As orelhas eram um pouco longas e pontiagudas, mas fora estes detalhes, parecia um garoto como qualquer um. 


Dei um passo para trás, pois ele agora me olhava fixamente, tendo as sobrancelhas cerradas. Inclinou-se em minha direção, perguntando: 


-Então por que me chamou? 


-EU?! Nem conheço você! 


-Na semana passada, voltando da escola, depois que aqueles grandalhões te empurraram e você caiu naquela poça de lama, você não se lembra?... 


Minha memória voltou ao sofrível momento do ‘acidente’ que me deixou de castigo, depois que minha mãe me viu chegando em casa completamente enlameado. Lembrei-me que enquanto eu limpava os óculos, sentado no meio da poça e os outros meninos iam embora rindo muito, eu fizera um pedido; mas fora apenas um pedido idiota, eu jamais acreditaria que ele pudesse se realizar. Não; aquilo só poderia ser um truque de Pedro e seus amigos! 


-Não sei do que você está falando – eu disse, saindo da cozinha. 


Novamente, ele me seguiu até a sala, mas subi as escadas correndo e entrei em meu quarto, batendo a porta, ofegante. Encostei-me contra a porta fechada e fechei os olhos, aliviado por ter finalmente me livrado dele. Quando abri os olhos, ele estava de pé na minha frente! 

Levei um susto tão grande, que dei um berro. Ele nem se alterou. Perguntou: 


-Lembra-se do pedido? 


Eu balbuciei: 


-Si...sim! Eu... eu desejei ter alguém que me defendesse desse tipo de coisa, ou que pelo menos, me ensinasse a me defender. Meu irmão nem liga... ter um irmão mais velho é o mesmo que nada, no meu caso! 


Ele cruzou os braços: 


-Pois é para isso que eu estou aqui. Meu nome é Zap, embora você não tenha perguntado! 


-Zap?! Que nome estranho! E de onde você veio? 


-Eu sou um duende! 


-Um duende? 


-Um duende! Sabe, aquelas criaturas dos contos de fadas, que vivem em florestas e perturbam seres humanos... alguns são verdes e muito feios. Mas eu não. 


Depois daquela tarde, Zap passou a visitar-me todos os dias. Conversávamos durante horas, e ele me dava lições de defesa pessoal e me ensinava alguns truques de mágica, que começaram a fazer com que as outras crianças na escola se interessassem mais por mim. Na verdade, eu nem sabia o que estava fazendo quando tentava os truques, eu apenas pensava e eles davam certo. Fazia surgirem borboletas de dentro das bolsas das meninas, fazia desaparecerem objetos que reapareciam nos lugares mais estranhos – por exemplo, dentro das mochilas dos colegas. As crianças se interessavam, e até aplaudiam. 

Um dia, meu irmão me viu conversando com ele no jardim. Zap já tinha me avisado que só eu podia enxergá-lo, e que bastava que eu pensasse no que queria dizer para que nos comunicássemos, mas eu às vezes me esquecia, e falava com ele em voz alta. E foi numa dessas ocasiões que Pedro nos flagrou. Imediatamente, começou a zombar de mim, perguntando se eu estava maluco, e foi contar à mamãe. 


Ela passou a observar-me, e acabou, ela mesma, presenciando uma das minhas conversas com Zap (só percebi que ela estava lá tarde demais). Contou a papai. Os dois decidiram levar-me a um psicólogo, que acabou convencendo-os de que era normal que garotos na minha idade, muito tímidos como eu, tivessem amigos imaginários. Eu nem tentei fazer com que eles acreditassem que Zap era real, pois sei que de nada adiantaria, e entrei no jogo deles, dizendo que tinha um amigo imaginário. 


O único problema, foi que Pedro espalhou a história pela escola, o que deixou meus pais furiosos com ele. Defenderam-me, e obrigaram-no a desmentir tudo. Fiquei exultante! Afinal, não era tão ruim assim ser maluco! 


Certo dia, quando saí da escola, fui novamente abordado pelos valentões do pedaço, mas Zap me ensinara a reagir. O bando de garotos me cercou. Olhei em volta, e vi Zap encostado a uma árvore, e seu olhar confiante me fez, de repente, dar uma cambalhota incrível, e saindo do meio da roda de meninos, desferi-lhe golpes surpreendentes. Eles não entenderam nada, mas saíram correndo, e nunca mais fui abordado. 

Mas, mais do que tudo, eu gostava de Zap porque ele me ouvia. Queria saber tudo sobre mim: as coisas que eu gostava e não gostava, meus filmes e músicas favoritos, o que eu gostava de ler. Passávamos horas conversando. Aos poucos, eu percebi que Zap estava se tornando muito parecido comigo fisicamente, e me admirei, mas ele disse que era tudo impressão minha; quando a coisa tornou-se óbvia demais, ele alegou que aquilo era normal; duendes ficavam muito parecidos com os seres humanos, se ficassem perto deles durante muito tempo. Era uma questão de essência, segundo Zap. 


Meu amigo duende foi fundamental para que eu adquirisse autoconfiança e passasse a ter uma vida mais feliz. Um dia, eu disse a ele: 

-Zap, é muito legal ter um amigo duende! Gostaria de fazer alguma coisa por você... algo que pudesse mostrar o quanto eu estou grato! 

Ele sorriu, e disse: 

-Não se preocupe. Não quero nada de você por enquanto! Quando o momento chegar, pedirei que você me faça um favorzinho, só isso. 

Assim, passaram-se muitos anos. Eu cresci. Zap foi meu maior amigo durante o começo de minha adolescência. Tornei-me um garoto popular, e até bonito, pois fui tornando-me cada vez mais parecido com Zap, enquanto ele se tornava cada vez mais parecido comigo. Consegui até ganhar a admiração e o respeito de meu irmão mais velho! 


Na noite antes do meu aniversário de quinze anos, fui dormir sentindo-me estranhamente fraco. Achei que estava pegando algum resfriado forte, e mamãe deu-me uma aspirina. De manhã cedo, eu me sentia bem melhor. Fui até o banheiro escovar os dentes, e tive o maior susto de minha vida ao olhar-me no espelho: o rosto que me olhava de volta, não era o meu! Eu tinha o rosto de Zap, as mesmas orelhas longas e pontiagudas, e meus dedos estavam finos e longos. 

Soltei um grito desesperado, e desci as escadas correndo para pedir ajuda, mas quando cheguei na sala de jantar, constatei que eu e minha família tomávamos o café da manhã despreocupadamente... ou seja, havia alguém se passando por mim, aquele garoto não era eu! Vi, atônito, o momento em que minha mãe chegou da cozinha com um bolo de aniversário cheio de velas acesas, e todo mundo começou a cantar Parabéns para mim, enquanto eu sorria e agradecia. 

Eu gritei. O mais alto que eu podia. Tentei tocar em meus pais e meu irmão, mas minhas mãos passavam através deles, que não me enxergavam! Ao mesmo tempo, Zap – que tomara meu lugar – olhou diretamente na minha direção, enquanto agradecia a todos pela surpresa, e entre os agradecimentos, murmurou um ‘obrigado’ que eu sei, foi para mim. 


E foi assim que eu me tornei um duende. 


A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...