segunda-feira, 4 de março de 2013

O Fantasma da Moldura




Tudo começou no dia em que cheguei àquele chalé no alto do penhasco, de onde se podia ver o imenso mar azul escuro lá embaixo, e a estreita faixa de areia que lhe desenhava a borda. Após uma desilusão amorosa que resultara em separação, fui curar minhas feridas durante um período de férias no meio do inverno. Logo eu, que sempre tirava férias no verão. 


Consegui o chalé através de um anúncio no jornal, e fechei o aluguel por um mês. Quando fui ao encontro da proprietária para receber as chaves, em uma chuvosa tarde de sexta-feira, surpreendi-me com aquela figura atemporal, sentada à mesa do restaurante à minha espera. Sônia era uma mulher que aparentava ter alguma coisa entre trinta e cinqüenta anos – difícil dizer, tudo dependia do ângulo em que a luz incidia sobre seu rosto, ou se ela estava falando, sorrindo, calada... era uma mulher de gestos elegantes, e ao contrário de mim, sentava-se ereta, as costas apoiadas no espaldar da cadeira, cabeça erguida. A voz, límpida e macia, parecia exercer um encanto em seus interlocutores, pois notei que mesmo as pessoas sentadas às outras mesas, disfarçadamente prestavam atenção quando ela falava.



Mas a coisa mais impressionante a respeito de Sônia, eram o par de olhos verdes encimados por sobrancelhas espessas e arqueadas. Seu rosto era muito expressivo. Algumas vezes, peguei-me como que adivinhando o que ela ia dizer antes que abrisse a boca, somente observando seus olhos, e notei que o mesmo acontecia com ela, a meu respeito. 





De qualquer maneira, eu sentia-me uma pata desajeitada ao lado daquela mulher fascinante, embora eu também não seja nada feia ou deselegante. 



Após o almoço, durante o qual ela descreveu as instalações do chalé e fez algumas perguntas pessoais ( se eu iria sozinha, por que desejava alugar o chalé, onde eu trabalhava, enfim, uma série de perguntas que me pareceram bastante relevantes) ela estendeu-me a chave, dizendo: 



“Aqui está, Regina. Espero que você tenha um bom descanso. Mas antes que se vá, gostaria de dizer que aquele chalé não é apenas uma casa qualquer.”



Ela tomou mais um gole de vinho, antes de continuar:



“É um lugar muito especial. Você verá por si mesma. Talvez tenha algumas revelações muito importantes. Mas de qualquer maneira, nada posso dizer sobre elas, pois são muito pessoais. Só a aconselho a observar tudo com muito cuidado, e a jamais andar pela mata que circunda o chalé quando houver neblina.”



Perguntei-lhe o motivo, mas ela, dando de ombros, mudou de assunto, olhando o relógio de pulso e dizendo que precisava ir embora. Achei que ela estava apenas querendo criar um clima de mistério, e acabei não dando importância ao que ela dissera.



Naquela noite, sonhei que andava por um lugar coberto por uma espessa neblina, tão espessa, que eu não conseguia seguir adiante. Acordei com uma sensação de frio gélido, que espantei com um longo banho quente em minha banheira. Depois, tomei o café da manhã e, colocando as malas no carro, segui em minha viagem de férias.


Segui as indicações de Sônia, e após duas horas, virei à direita, subi uma colina e logo estava em frente ao chalé.



Ele não era muito grande, e precisava de reformas. A tinta branca descascava aqui e ali, mas o estado geral era razoavelmente bom. Ficava situado bem no alto da colina, e a vista para a praia lá embaixo era simplesmente espetacular. Lamentei que não fosse verão, pois com o frio que fazia, não podia nem considerar a hipótese de ir nadar, o que eu adorava fazer.



Havia uma densa floresta de coníferas e eucaliptos atrás do chalé, que começava a mais ou menos trinta metros da casa. O cheiro ativo de cedro, eucalipto e pinho era refrescante. Achei que adoraria ficar ali.




Passei o primeiro dia fazendo uma breve limpeza, apenas o suficiente para tornar o lugar habitável: varri, tirei o pó, sacudi cobertores. Aproveitei a manhã do dia seguinte à minha chegada, que estava bastante ensolarada, apesar de fria, para estender algumas peças ao sol. O lugar era pequeno: no primeiro andar, havia uma sala cujas paredes eram forradas de madeira clara, que deveria medir quatro por quatro, e uma cozinha pequena que ficava no final de um corredor aonde existia uma despensa. No andar superior, ficava um quarto espaçoso e um banheiro. No mezanino, um pequeno sofá e uma estante com alguns livros já bastante gastos, e uma moldura com a fotografia de um desconhecido.




A princípio, mal olhei a fotografia; mas enquanto tirava-lhe o pó, percebi que o homem no retrato era bastante bonito, e tinha um olhar triste. Vestia um casaco acolchoado azul-escuro, e os cabelos, agitados pelo vento, eram pretos. A foto tinha sido tirada em um dia escuro e cinzento, e nos fundos, estava o mar. Percebi que ela tinha sido feita no jardim do chalé. Fiquei olhando a foto durante algum tempo.



À noite, acendi a lareira e enrolei-me em uma manta grossa, deitando-me no sofá. Havia muitas coisas nas quais eu desejava pensar com cuidado, como por exemplo, que rumo tomaria a minha vida após aquele relacionamento frustrado que durara dois anos. Ainda pensava muito em meu ex-namorado; não com amor, mas com mágoa. Queria esquecer.



Também não gostava de meu emprego, e tinha a intenção de pedir demissão assim que voltasse das férias. Após seis anos trabalhando naquela firma, sem que nada de excitante acontecesse , executando o mesmo trabalho monótono, eu precisava de mudanças. Talvez voltasse a estudar e desse uma guinada em minha carreira, quem sabe... ainda era jovem e tinha muito chão pela frente. Entretida com aqueles pensamentos, adormeci.





Quando acordei, o fogo na lareira tinha apagado, e restavam apenas algumas tochas em brasas, mas a sala ainda estava quente. Levantei-me e fui alimentar o fogo. Depois, cheguei à janela, enquanto tomava uma xícara de chocolate quente. As luzes do jardim estavam acesas, e fiquei observando as copas dos pinheiros, agitadas pelo vento, e o luar que brilhava por trás delas. Tudo era lindo! Mal podia esperar que o dia amanhecesse , pois desejava fazer algumas compras na cidadezinha próxima.



De repente, no canto direito, sob uma árvore, vi um homem de pé, parado, observando o chalé atentamente. Meu coração deu um pulo, e fui acometida de grande medo, pois estava sozinha por ali, e a casa mais próxima ficava a pelo menos meio quilômetro de distância. Corri até a porta, para ver se ela estava trancada. Quando voltei à janela, o homem ainda estava lá. Abri a vidraça e gritei: “Quem é você? O que deseja?”



Ele olhou para cima, mas não respondeu. Eu gritei novamente, dizendo que chamaria a polícia. Mesmo assim, ele não se moveu. Comecei a entrar em pânico. Peguei o celular para chamar a polícia – não havia telefone no chalé – e vi que estava sem bateria. Nervosa, não conseguia achar o carregador de bateria. Senti que passos se aproximavam da porta, seguindo pelo caminho de pedras, e paravam diante da soleira. Àquela altura, eu estava totalmente dominada pelo pânico. Vi quando a fechadura foi girada. Gritei, a voz vindo de algum lugar além de mim. Corri para o andar superior.



Tranquei-me no quarto de dormir, e fiquei junto à porta, escutando. Ouvi alguém subir os degraus de madeira, vagarosamente, e parar à porta do quarto. De repente, a fechadura pareceu ceder, e a porta entreabriu-se. Apavorada, vi que o rosto que me olhava era o mesmo da foto sobre a estante.



Acordei no sofá, apavorada, coração batendo na garganta: tudo não passara de um pesadelo; tinha tido um falso despertar. A sala estava fria, e as chamas da lareira, há muito apagadas. Lá fora, o dia começava a clarear. Ainda zonza pelo pesadelo, vesti-me e fui dar uma caminha da na praia.





Ao contrário do dia anterior, a manhã estava fria e cinzenta, e caía uma chuva fina como poeira. O mar estava agitado. Caminhar pela areia a passos rápidos foi revigorante. A praia estava totalmente deserta, e pude sentar-me sobre um rochedo e pensar, enquanto observava o mar. Estava envolta em minhas reflexões, quando senti que havia alguém de pé atrás de mim; virei-me, em um sobressalto, e lá estava o homem da fotografia! Ele ficou me olhando, enquanto eu me levantava, sem saber o que fazer. Será que morava por ali? Resolvi conversar com ele:



“Bom dia... estou hospedada no chalé e parece que... bem, acho que é sua fotografia que está lá na estante. Você mora por aqui? Conhece a proprietária?”



Ele ficou me olhando, e quando abriu a boca para falar, estendendo um braço em minha direção, houve apenas um murmúrio: “Por favor... me... ajude...”



Fiquei apavorada novamente, e ia responder, mas para meu total espanto, ele foi desaparecendo aos poucos, bem diante de meus olhos.

Ainda atônita, e sem saber o que pensar, retornei ao chalé e preparei meu desjejum; talvez estivesse faminta. Talvez o ar frio, a maresia, ou o pesadelo da noite passada, tivessem deixado uma forte impressão em mim. Mas o olhar suplicante do homem não me saía da cabeça.


Passei o dia fazendo compras na cidadezinha, e almocei em uma pensão. Clarisse, A proprietária, uma senhora muito simpática, logo puxou conversa. Convidei-a para sentar-se à minha mesa, e ficamos trocando amenidades. Os outros hóspedes da pensão – dois senhores idosos, um rapaz, que segundo Clarisse me dissera, era um pescador, duas irmãs gêmeas de meia-idade e um casal de turistas – almoçavam e conversavam. Mas notei que todos, exceto o casal de turistas, prestavam atenção à nossa conversa. “Cidade pequena,” pensei. 



Clarisse logo perguntou-me o que eu fazia ali, e expliquei-lhe que estava em viagem de férias, e que estava hospedada no chalé de Sônia. Ela pareceu chocada:





“Você está na casa da bruxa?”

Naquele momento, todos olharam para mim, e fez-se silêncio. Eu tentei sorrir.
“Bruxa? Como assim, eu... achei-a uma pessoa muito interessante...” Clarisse revirou os olhos, soltando um ‘puff’ de impaciência:
“Aquela mulher é uma bruxa, isso sim! Desde que veio viver por aqui, coisas estranhas começaram a acontecer.” Perguntei-lhe que coisas estranhas, e um dos senhores de idade respondeu: “Se eu fosse você, dona moça, daria o fora daquele lugar maldito.” E Clarisse ofereceu-me um quarto na pensão, mas eu lhe disse que tinha pago o chalé por um mês. Uma das gêmeas perguntou-me quem estava comigo, e quando respondi que estava sozinha, ela e a irmã se entreolharam com pavor. Retruquei:



“Vocês podem me dizer o que está acontecendo? Qual o problema com o chalé?”

Todos baixaram a cabeça, e Clarisse começou:
“Há quase sete anos, essa mulher – Sônia – apareceu aqui com um jovem rapaz, bem mais jovem do que ela, para dizer a verdade. Ninguém aprovou, mas neste lugar, aprendemos a cuidar de nossas próprias vidas, e levamos uma vida cristã, então eu os hospedei em minha pensão e procurei ignorar o assunto. Mas toda noite, vinham barulhos estranhos do quarto deles, e quem olhasse pela greta da porta, via luzes se movendo... os outros hóspedes começaram a reclamar, e pedi que saíssem. Daí, ela comprou o chalé de uma senhora idosa da nossa comunidade, que veio a falecer logo depois. Os dois mudaram-se para lá.



“Daí, começaram os desaparecimentos. Duas crianças. Nunca mais foram encontradas, apenas o laço de fita do cabelo de uma delas, próximo ao chalé. A polícia procurou durante muito tempo, e embora suspeitassem do casal, nunca puderam provar nada contra eles. Logo depois, os animais das fazendas próximas começaram a aparecer mortos. Totalmente estraçalhados. Sangue foi encontrado na soleira da porta do chalé, sangue de gado. Mas a polícia não encontrou mais nada que pudesse incriminá-los, e eles alegaram que o sangue tinha sido posto ali de propósito por alguém que não gostava deles.



“Algumas semanas depois, todas as redes que os pescadores puxavam do mar, só traziam peixes podres. Foram semanas de muitas dificuldades, e a aldeia começou a revoltar-se. Em uma noite nebulosa, os pescadores, com suas tochas, resolveram fazer uma peregrinação até o chalé. Exigiam que a bruxa e seu consorte deixassem a cidade imediatamente, ou eles fariam justiça com as próprias mãos! Mas o casal chamou a polícia, e a multidão se dispersou...





Eu ouvia atentamente, e até o casal de turistas resolveu parar para escutar a história que Clarisse estava contando. O tempo todo, eu me lembrava da sensação estranha ao encontrar Sônia no restaurante, e concordei que ela parecia diferente. Mas daí a pensar que ela era uma criatura maléfica? Ora, com certeza, tratava-se de fantasia de gente supersticiosa! Mas... como explicar o que eu acabara de ver na praia? E o homem que aparecera em meu sonho? Fora tudo tão real!... Decidi ouvir o resto da história:



“Dias depois, ela deixou a casa. Saiu sozinha. O rapaz que estava com ela nunca apareceu. E ninguém fez perguntas, pois o fato de ela ter ido embora, bastava a todos nós! Mas várias pessoas acreditam que ela o matou, pois o seu fantasma sempre aparece para qualquer pessoa que se aproxime da casa.”



Perguntei sobre os outros hóspedes para quem ela havia alugado o chalé antes de mim, e Clarisse olhou-me confusa: “Que hóspedes? Você é a primeira a quem ela aluga o chalé!”



Após ouvir aquelas histórias todas, peguei minha sacola de compras, despedi-me de todos e fui caminhando de volta ao chalé. No caminho, uma densa neblina começou a baixar, encobrindo a paisagem. Lembrei-me das palavras de Sônia, para que eu nunca saísse para a floresta quando houvesse neblina. Ri por dentro, tentando manter a calma, afinal, todos ali não passavam de um bando de gente supersticiosa e sem cultura, e talvez Sônia fosse como eles. Mas não; a mulher do restaurante que entregou-me as chaves de sua casa, parecia culta, além de bela e elegante.


Entrei em casa, colocando as compras sobre a mesa da cozinha: chocolates, algumas revistas, pão, queijo, o jornal do dia, um pacote de macarrão, molho pronto e uma garrafa de vinho tinto. Meu jantar seria no chalé. Lá fora, a densa neblina cobria tudo, deixando de fora apenas as pontas dos pinheiros. Parecia uma atmosfera de sonho.





Ouvi um barulho na porta dos fundos, e ao olhar pela janela, vi que tinha visitantes: um casal de esquilos brincava de correr. Saí para ver melhor, e segui-os floresta adentro, esquecendo-me totalmente dos conselhos absurdos de Sônia e das histórias fantásticas dos habitantes locais. A neblina tornou-se um pouco menos densa.

Quando dei por mim, estava bem no meio da floresta. Ouvi um barulhinho de riacho, e segui-o. As árvores cobertas de limo gotejavam umidade. Um arbusto florido encantava o caminho. Eu nunca havia me sentido tão próxima assim da natureza! 

De repente, senti que estava sendo observada. Parei no meio de uma clareira, e olhei em volta. Tinha a sensação de que vários pares de olhos me observavam. Os pássaros e grilos que cantavam há poucos minutos, silenciaram de repente. Não havia mais nenhum ruído de animais, e nem de riacho. Comecei a sentir o medo novamente se espalhando por meu corpo. Gritei: “Quem está aí?” O som de minha voz pareceu sem ressonância, devido à neblina. Um arbusto pareceu mexer-se, e outro. Havia ali alguma coisa maléfica, eu podia sentir!



Comecei a correr de volta para o chalé. A tarde estava terminando, e logo seria a hora do crepúsculo. Ficar perdida naquele lugar ermo deixava-me apavorada, por isso, corri, e corri... caí algumas vezes, e sentia que era seguida. Escutava passos atrás de mim, e assovios. Arranhei meu rosto em alguns galhos de árvore, e senti a pele ferida queimar. Mas eu precisava continuar correndo. De repente, surgiu diante de mim, o homem da praia, e dando um grito de horror, eu desmaiei.




Acordei , e ele se debruçava sobre mim. Assustei-me, mas ele me pediu para ter calma. Ajudou-me a levantar, dizendo:

“Aqui eu posso me comunicar melhor com você. Você está em meu mundo, agora.”
Achei aquela conversa absurda. Sentia ainda o medo me dominando, mas como pensava que aquele homem poderia ferir-me se eu o contrariasse, decidi escutá-lo. A noite começava a chegar, e sair dali era tudo o que eu desejava. A paisagem tornava-se cada vez mais ameaçadora.
“Meu nome é Leo. Eu estou preso na fotografia. Sônia condenou-me a ficar lá o resto de minha existência, pois eu não queria compactuar com as coisas que ela andava fazendo.”



“E que coisas, exatamente, ela andava fazendo?”



“Bem... ela atraiu duas crianças até o chalé. Matou-as e usou seus órgãos e sangue para fazer adivinhações. Era assim que mantinha-se sempre rica, apostando muito na bolsa de valores. Depois, passou a sacrificar animais, para não levantar suspeitas. Mas o efeito não era tão bom quanto quando ela matava crianças.”



Apavorada, tentei manter o controle:



“E qual era o seu papel nisso tudo?”    Ele pareceu triste:



“Sônia é uma mulher fascinante... ela consegue manipular qualquer pessoa que deseje, ela exerce um certo fascínio sobre os outros.”



Pensei que ele estava certo. Leo continuou:

“Eu queria fugir, quando me envolvi com ela, não tinha idéia do que ela era capaz. Eu era só um jovem ambicioso... mas jamais fui um criminoso, jamais! Daí, houve uma confusão na aldeia... queriam que fôssemos embora, e para vingar-se ela passou a matar os peixes dos pescadores... quando puxavam as redes, só havia peixes podres. Toda vez que eu dizia que ia embora, ela me dominava de uma forma que eu não era capaz de vencer. Eu simplesmente não conseguia sair! Adoecia, tornando-me fraco ao ponto de não conseguir andar! Ela fazia sempre o que bem entendia de mim...”


Ele começou a chorar, e senti pena dele.

“Um dia, resolveu partir, e disse que não me levaria com ela. Fiquei feliz, pois achei que estava livre! Ela pediu-me que eu posasse para uma foto, pois queria levá-la como lembrança, e eu concordei. Mas ela pôs a foto em uma moldura, e dizendo algumas palavras que não entendi, colocou-a sobre a estante. Senti que eu me afastava deste mundo, sendo puxado rapidamente para trás... quando despertei, eu estava aqui, nesta floresta, no meio da densa neblina. Tentei sair várias vezes, mas apenas consigo fazê-lo por alguns instantes.”


Assustada, perguntei-lhe:



“Isto significa que eu também estou presa aqui?!”

Ele disse: “Não, não... você pode sair. E peço que me ajude a encontrar uma maneira de me libertar.”


“Mas... como?”



Ele continuou, desta vez, segurando-me pelo braço e me conduzindo de volta à trilha do chalé. Enquanto caminhávamos, ele dizia:





“Sônia costumava usar um livro, grande e grosso... guardava-o sempre sob o assoalho, debaixo da cama. Talvez você encontre a resposta lá. Tenho certeza que é uma espécie de livro de encantamentos. Tudo o que você tem a fazer, é ler o livro e ver se acha uma resposta.”



“Mas... eu não tenho nenhum poder, eu não sou uma bruxa! E se aquele é o livro de Sônia, por que ela o deixaria aqui, ao invés de levá-lo com ela?”



“Porque é um livro mágico! Ele não pode sair do chalé, ninguém consegue tirá-lo de lá, nem mesmo ela! A atmosfera do chalé é que dá magia ao livro.”



“Mas... por que ela foi embora?”



“Ela temia que o chalé fosse incendiado pelos moradores. Se isso acontecesse, toda a sua magia estaria perdida! Deixou-me preso aqui, como um guardião do chalé. Sempre que alguém se aproxima dele, mesmo que eu não queira, apareço como um fantasma, e o invasor bate em retirada. Quando vi você, achei que Sônia tinha voltado. Mas ao ver que não era Sônia que estava no chalé, achei que você poderia me ajudar.”



Achei tudo muito estranho; por que ela alugaria o chalé logo para mim? Deveria haver um motivo muito forte! Pensei na sintonia que havia entre nós duas, e da sensação de que podíamos adivinhar os pensamentos uma da outra. Havia, tinha que haver um motivo para ela ter me escolhido!



Voltei ao chalé, e achei o livro facilmente, seguindo as instruções de Leo. O tempo todo, a sensação de estar sendo observada não me deixava. Passei a noite toda lendo o tal livro, e finalmente, quando o dia amanhecia, achei o feitiço da moldura, e como desfazê-lo!



Dispus tudo que eu precisaria sobre a mesa da cozinha, e li o encantamento várias vezes, até memorizá-lo. Instintivamente, saí e colhi as ervas indicadas pelo livro, mesmo sem conhecê-las, e aquilo foi muito estranho. Também precisei matar um pequeno esquilo para utilizar seu sangue, e surpreendi-me, pois em condições normais, eu não era capaz de matar sequer um inseto! Mas eu o segurei com firmeza, cortando-lhe o pescoço e deixando que o sangue caísse sobre as ervas sem sentir o menor remorso. Eu parecia outra pessoa, uma Regina que eu não conhecia, mas que estava dentro de mim.





Ao dizer as palavras mágicas, senti que meus braços se erguiam instintivamente, e uma grande força me dominava. Eu as pronunciei sem titubear, sentindo o poder das palavras espalhando-se pelo ar e alcançando seu alvo. 



Quando terminei, a atmosfera carregada de energia vibrava.



Minutos depois, Sônia apareceu diante de mim, dizendo-me que fizera a escolha certa, e que eu poderia ser a sua herdeira, aquela que teria todo o seu poder. Parecia muito envelhecida e fraca. parabenizou-me por ter tido a coragem de andar pela neblina, mesmo depois de seu aviso; uma boa bruxa deveria ser sempre curiosa. Disse-me também que eu estava fadada a ter sempre uma vida solitária, e a ser incompreendida pelas demais pessoas, que me julgariam através de seus olhares ignorantes. Disse-me também que eu tinha a opção de escolher qual caminho desejaria seguir: o da Mão Direita ou o da Mão Esquerda; tinha certeza de que, no início, eu escolheria o da Mão Direita, como ela, mas que os apelos do caminho da Mão Esquerda eram muito fortes, e seria quase impossível resistir a ele, pelo poder que conferiam aos seus seguidores. Completou seu discurso dizendo que eu estaria sempre caminhando entre as trevas e a luz, e que uma leve inclinação de cabeça poderia fazer com que eu caísse para sempre no caminho mais escuro, e que eu teria que ser bastante forte – forte como ela não tinha conseguido ser – para resistir.



Então, ela desapareceu, e tudo pareceu voltar ao normal. A energia que vibrava desapareceu, dando lugar a uma atmosfera de paz.



Bateram à porta, e quando a abri, deparei com Leo, feliz da vida. Ele me agradeceu, e seguiu seu caminho. Perguntei-lhe se não desejaria ficar, mas ele disse que preferia um caminho diferente, pois aquele, ele já conhecia. Desejava ficar o mais longe possível daquele lugar.



Passei a viver no chalé, e as pessoas da aldeia, apesar de me tratarem sempre com respeito e consideração, só me procuram quando algum de seus parentes adoece, e eu os curo.



Tenho conseguido manter-me no Caminho da Luz há quase cinco anos, desde então. Mas de vez em quando, sinto agitar-se o apelo das trevas dentro de mim, e confesso que está ficando cada vez mais difícil não ouvi-lo.

 

4 comentários:


  1. UAU! Que conto! Este é dos meus. Senti-me completamente envolvida pela leitura. Muito bom mesmo.
    Você pensa em ser romancista? Deveria.

    Obrigada pelo carinho de seus cumprimentos por ocasião do meu níver.

    Beijo.

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  2. PUTZ! Que história hein dona ANA BAILUNE?! Deixou-me boquiaberta, sabia? NOssa, eu li tudo num fôlego só e não dava pra parar..Você sabe como entreter o leitor e eu fico orgulhosa de ti amiga escritora, talentosa!

    Um conto que bem poderia se transformar em livro, pense nisso.
    Eu gosto imenso de mistérios e uma pitada de terror... Quer dizer que Regina era uma bruxa branca, mas que a qualquer momento poderia vir a ser maléfica. Vida difícil da moça... Teria que se controlar com toda força!

    Aplausos de fã pra ti.

    bacios caríssima!!

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  3. Que beleza de conto! Entramos na história e só paramos quando chega ao fim. E com aquele desejo de continuar. Parabéns, Ana!! Adorei! Bjs.

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  4. Caramba, muito bom, me segurou ate o final, gosto de contos assim. Parabéns ! Amei. Bjs

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