domingo, 28 de dezembro de 2014

Era Uma Vez Uma Moça que Sonhava Ser Escritora...




Era uma vez uma moça que sonhava ser escritora. Ela lia muito, o tempo todo, e enquanto lia, apreciava a imaginação e o estilo de cada autor. Um dia, ela teve uma professora de Português na quinta série ginasial que ensinou-a sobre rimas, métricas, figuras de linguagem... ela ficou ainda mais interessada, e escreveu seu primeiro poema aos onze anos de idade. Não ficou muito bom, mas como a professora elogiasse muito, ela se sentiu incentivada a continuar. Todo mundo precisa de incentivo para começar algo.

Anos depois, quando já era uma adolescente, a menina começou a escrever histórias em folhas de caderno, além de muitos diários, onde guardava seus sonhos e segredos. Mas com medo de que alguém os lesse, ela sempre os rasgava e queimava ao terminar de escrevê-los. Tantas histórias, memórias e poemas jogados na fogueira que ela acendia no fundo do quintal...

Mas ela nunca perdeu a vontade de escrever. Ela cresceu e casou-se. Soube, através de um cartaz pregado na parede de uma padaria, sobre um concurso de poesias em sua cidade, e resolveu participar. Não tinha muita esperança de ser premiada, mas precisava tentar! e não é que a moça totalmente desconhecida acabou ficando em segundo lugar, entre mais de cento e setenta poetas?!

Ali, ela conheceu pessoas que a convidaram a participar de um Clube de Poesias, no qual poetas se reuniam nas noites de quinta-feira para ler, escrever , recitar e ouvir poesia. Participou de outros concursos internos, ficando sempre entre os quatro primeiros colocados; mas a vida e suas necessidades fizeram com que ela desistisse... precisava trabalhar e estudar. O tempo era curto. Ela deixou a poesia de lado... anos se passaram.

Ela deixou a poesia de lado, mas a poesia cismava com a moça... surgiu um outro concurso, no Silogeu Petropolitano, e mais uma vez, ela enviou um poema sem a menor esperança de ser classificada. E para sua surpresa, ela venceu!

Escrever tornou-se algo concreto. Ela procurou na Internet algum site para escritores amadores, e achou o Recanto das Letras. Houve mitos momentos alegres e tristes. Ela saiu, voltou, saiu, voltou. Ficou. Coisas aconteceram em sua vida. Nos piores momentos, a poesia a salvava sempre. 

E ela passou a escrever contos, poemas, artigos, crônicas. Foi convidada a participar de várias antologias. Lançou um livro, que para sua surpresa, esgotou em menos de três meses. Surgiu um amigo novo que levou-a para o blog Gândavos, onde ela venceu um concurso de contos e participou de vários livros onde contou algumas de suas histórias. Também foi publicada por Helena Frenzel, do blog Bluemadel, que preparou um belíssimo trabalho para ela. Também recebeu e recebe até hoje muitos incentivos de sua amiga Lu Cavichioli, que também  convidou para escrever em seu blog, o Quiosque do Pastel.

E ela foi abrindo blogs e mais blogs. Hoje, ela tem vários, além da página no Recanto das Letras:

O Passagem, o Expressão, A casa & a Alma, Histórias e Nada a Dizer. Também publicou vários livros na amazon.com. Para ela, o menos importante é o quanto ela lucra através de seus escritos; o que realmente importa, é ter o prazer de escrever e contar suas histórias. Porque o que a gente faz por prazer, não tem preço. Se um dia ela virar uma escritora profissional, será ainda mais feliz, mas se isso jamais acontecer, ela será feliz assim mesmo; ela já é feliz.

E ela deve tudo isso a vocês, que a leem.

Este é um resumo da minha história como escritora, que começou quando tive meu primeiro leitor: a minha professora da quinta série, a Dona Arinete. Obrigada a ela, e obrigada a vocês.

Feliz 2015!







domingo, 21 de dezembro de 2014

UMA NOITE DE NATAL









Uma Noite de Natal



A vidraça embaçada filtrava a paisagem chuvosa lá fora. Logo, o pai chegaria em casa com o restante das compras para a ceia, que se daria naquela mesma noite. A menininha grudava os olhos nos bolos, pudins e rabanadas que eram preparados pela mãe e pela irmã mais velha: “Posso ‘lamber’ a forma?” E as duas irmãs mais novas disputavam para saber quem ficaria com a forma e quem ficaria com a colher usadas no preparo da massa do bolo. A mãe ralhava: “massa de bolo crua faz mal!” Mas as meninas pensavam que nada tão delicioso poderia fazer mal.



Os gatos miavam sob a mesa, enquanto a panela de pressão onde as castanhas cozinhavam chiava no fogão. 



A menina correu até a sala, onde estava a árvore de natal feita de cedro, simples, com enfeites espelhados. Sua outra irmã, que naquele momento não estava em casa, já tinha avisado, enquanto montava a árvore: “Não pode tocar em nada!” Mas como ela não estava em casa naquele momento, a garotinha esticou o braço, tocando de leve a bola vermelha, que soltou-se e espatifou-se no chão. Vem a mãe correndo e já zangando, e enquanto varre os caquinhos minúsculos e aproveita-os para jogar sobre a terra do vaso, que passa a soltar pequenas faíscas, repete: “Não mexa em nada, quantas vezes vou ter que avisar? Vou virar essa parte para a parede... assim... pronto, nem dá para ver que está faltando um enfeite.” 



A outra irmã mais nova olha para ela, dando a língua: “Viu como você é burra? Vou contar para ela!” E a menor: “Não vai não!” E gritando: “Mãe! Olha aí!!!” A mãe berra da cozinha, enquanto retira uma rabanada da frigideira: “Parem as duas, ou então vocês vão ver! Vou contar ao pai de vocês!” E assim as culpas iam sendo transferidas de punidores em punidores. 



Naquele momento, a menina foca sua atenção nos pacotes de presentes sob a árvore, e as duas irmãs mais novas ficam cúmplices novamente; a maior diz: “Hum... qual será o meu?” E as duas ficam olhando os pacotes, tentando adivinhar. O pai chega, e elas correm para a cozinha, rodeando os pacotes de onde saem, entre outras coisas, caixinhas de gelatina, um panetone, um garrafão de vinho barato, um peru (a mãe reclama: “Como é que você acha que vamos conseguir preparar esse peru a tempo?”) E a irmã mais velha, que está ajudando na cozinha, já pega a ave e coloca em uma forma, ligando o forno, e joga o molho que já estava preparado na geladeira. As irmãs menores fuçam os pacotes como se fossem cachorrinhos curiosos. O pai vai tomar banho. 



A irmã mais nova reúne suas bonecas no quarto, e começa a cantar uma canção de natal que aprendeu na TV. Depois, beija cada uma delas e guarda sobre o armário, subindo na beirada da cama para alcança-lo. Deseja a elas todas um Feliz Natal. Diz que logo receberão uma nova amiga, e que gostaria que elas a recebessem muito bem. De repente, a irmã menor tem uma ideia: vai aprontar-se para o Natal! Corre até a gaveta da irmã que está fora, pois ela tem uma porção de sombras e batons coloridos, pó de arroz e rímel. Em frente ao espelho, ela vai aplicando camadas e camadas de todas as cores disponíveis ao redor dos olhos, e finalmente, passa o batom, apertando bem forte, apreciando o resultado no espelho fazendo caras e bocas, enquanto se equilibra sobre um par de sapatos de saltos que ficam enormes para os seus pés. Ela escuta os pais e as irmãs conversando na cozinha, enquanto faz poses no espelho. Escuta também a porta da frente se abrindo, e sua outra irmã – a dona das maquiagens – chegando em casa. A menininha corre para esconder-se debaixo da cama sem nem lembrar-se de guardar as sombras que ficaram espalhadas sobre a cômoda. Escuta a irmã perguntando por ela, e a mãe respondendo: “Está brincando no quarto.” Escuta os passos da irmã se aproximando, chamando seu nome, e vê os pés pararem diante da cômoda, e o grito que se segue: “Mãããããe!!!” A mãe vem correndo da cozinha para saber o motivo daquela sangria desatada: “Ela pegou minhas pinturas!” E entre gritos de indignação, dois pares de pés param em frente a cama, erguendo a barra da colcha: “Pode sair daí, mocinha!” 



Ela sai devagar, timidamente, enquanto leva uma palmada da irmã e outra da mãe, que a manda ir tomar banho. Ela vai, aos prantos, a maquiagem borrando e escorrendo pela face. Mas depois do banho, durante o qual ela finge ser uma estrela de cinema fazendo um comercial para o sabonete Palmolive, tudo vai sendo esquecido.



É noite. A mesa da sala está arrumada com os quitutes. A TV preto e branca está ligada em um programa de auditório, onde cantores com gorros de Papai Noel se apresentam, enquanto a plateia aplaude. 



Todos na sala estão de banho tomado e vestidos com suas melhores roupas. O pai passou Gumex no cabelo, que brilha, colado à cabeça. Anos depois, ela ainda se lembraria daquele cheiro de brilhantina. Alguns vizinhos passam para desejar Feliz Natal, e outros cumprimentam-se através das janelas de suas casas ou de seus portões – quase ninguém tinha telefone. Todos também estão vestindo suas melhores roupas, e quase todos os homens tem os cabelos como o do pai da menininha.



Na hora da troca dos presentes, a menininha, decepcionada, descobre que não ganhou a boneca dos seus sonhos – a Amiguinha, uma boneca que era do seu tamanho, pela qual chorara nas Lojas Americanas. Mas após o pai explicar que a boneca era cara demais e a loja não fazia crediário, ela entende e fica feliz assim mesmo. Deve ser por causa da magia do Natal. Abraça sua boneca Alice, que afinal de contas, era bonitinha, e vai apresentá-la às outras bonecas.



Chegam visitas. São os pais do namorado da dona das maquiagens. Cumprimentos. Eles chegam à porta do quarto e brincam com a menininha, que larga a boneca para beijá-los. Comentam o quanto ela está bonitinha. Elogiam a boneca e voltam para a sala. 



Horas depois, alguém pergunta por ela, e vê que ela está dormindo abraçada à nova boneca, as outras bonecas em volta. 





Quando ela finalmente desperta, percebe que cresceu, e que natais como aquele nunca mais voltariam a acontecer.



quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

ONDE SEMPRE ERA NATAL

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Onde Sempre Era Natal - VII CONTO

Da calçada, Ana e Jorge observavam a construção da sua nova casa. Pedreiros, eletricistas, marceneiros e outros profissionais da construção revezavam-se num entrar e sair sem fim, carregando todo tipo de material e reproduzindo uma música de marteladas, risos, rádio tocando, gritos de instrução e de nomes sendo chamados, e ainda o barulho alegre do carro do sorveteiro que passava e era parado por um dos trabalhadores, que enchia uma caixa com picolés. Era a realização de um sonho antigo. Mal viam a hora de poderem entrar naquele espaço e chamá-lo de seu, o que só fariam dali a dois anos – após muitos aborrecimentos, como falta de dinheiro, problemas com os trabalhadores, uma crise de depressão, paredes recém construídas que tiveram que ser derrubadas, críticas de pessoas insensíveis que visitavam a obra apenas para dar palpites, enfim, uma série de aborrecimentos que geralmente fazem parte de uma construção.

Não é fácil construir. Quando o trabalho é de demolição, tudo fica pronto em um único dia. Mas construção demanda muito trabalho, planejamento, plantas, dinheiro, decepções. Mas tudo o que é feito com amor e determinação, tende a dar certo. Finalmente, Às vésperas do Natal, a casa ficou pronta. Houve uma pequena comemoração entre os novos proprietários e os trabalhadores. Uma mesa improvisada – que consistia em uma longa tábua de madeira apoiada sobre dois cavaletes – foi preenchida com as mais deliciosas iguarias natalinas, e todos puderam desfrutar daquela alegre refeição, entre as decorações natalinas que Ana conseguira arranjar quase na última hora: um pinheiro com algumas bolas e luzes coloridas e um arranjo de mesa que ela mesma confeccionou, usando pinhas que achou sob um pinheiro, folhas secas pintadas com tinta dourada em spray e algumas flores que pegou ali mesmo, no jardim da casa.

Finda a festa, os proprietários andaram pelos cômodos ainda vazios (a mudança estava marcada para depois do natal) e relembraram os momentos mais marcantes daquela obra. Ana e Jorge passaram aquela noite ali, junto à lareira acesa, sobre um cobertor de xadrez vermelho. Durante toda a sua vida, ela se lembraria daquela noite como uma das mais felizes que já tivera.

Finalmente, a mudança! Mais uma vez, a música barulhenta e alegre das pessoas entrando e saindo, carregando móveis e tapetes, coisas sendo colocadas em seus lugares e caixas de papelão sendo abertas para mostrar copos, panelas e louças embrulhados em jornal que deveriam ser cuidadosamente desembrulhados e lavados antes de serem colocados em seus devidos lugares na cozinha; As roupas eram rapidamente penduradas nos cabides do closet, uma refeição era preparada por uma das irmãs de Ana na cozinha enquanto seus jovens sobrinhos instalavam as TVs e aparelhos de som. Um dia feliz que rendeu, ao seu final, uma casa lindamente arrumada e aconchegante. E o silêncio de um sonho cumprido. Ana e Jorge, exaustos, aproveitaram o final da noite para um banho a dois, quente e restaurador, com direito a velas e incensos.

Mas apenas um mês depois, Jorge não voltou para casa. Nunca mais ele voltaria. Ana recebeu a notícia à porta vestindo um avental, o nariz sujo de farinha de trigo. Sua perda fora anunciada por um policial que segurava seu quepe entre as mãos nervosas.
De repente, a casa perdeu seu brilho, e os cômodos tornaram-se frios. Ana caminhou pela casa banhada pela luz do crepúsculo, e escutou o tiquetaquear suave do relógio que ficava na parede da sala de jantar. Ecos de risos felizes ainda ecoavam por aqueles cômodos. Sobre a cama, o pijama dobrado ainda não sabia que nunca mais vestiria alguém. Os sapatos de Jorge com as meias dentro (ela sempre ralhava com ele por nunca lembrar-se de colocar as meias na cesta da lavanderia) foi o que fez as lágrimas descerem em profusão. Ana sentou-se sobre a cama e passou a noite daquela forma, rosto entre as mãos, sem coragem para levantar-se.

Mas alguém chegou, cuidou de tudo. Colocou-a deitada e deu-lhe um tranquilizante. O dia seguinte passou entre uma neblina branca e intensa, cheia de ecos de vozes que sussurravam em seus ouvidos, mãos que acariciavam seus ombros e braços que tentavam segurar a sua dor. Olhares surgiam entre a neblina, lábios moviam-se, mas Ana não compreendia o que eles diziam.

Porém, tudo termina. E aquele dia também terminou. Após algumas semanas, o telefone foi parando de tocar e os passos que percorriam o corredor foram rareando até desaparecerem completamente. Alguém saiu e fechou a porta, dizendo que se ela precisasse de alguma coisa, era só chamar. Deixaram o freezer bem cheio, a casa limpa, as roupas passadas e dobradas nos armários. Mas ninguém sabia o que fazer com as coisas de Jorge, e acharam melhor que ela mesma decidisse, mais tarde.

Meses se passaram, e Ana foi se erguendo aos poucos. A vida continuava, como sempre. Logo seria natal. Os pássaros ainda cantavam lá fora, e o carro do sorveteiro passava pela rua tocando sua música alegre. As roupas de Jorge iam ser doadas, e ela penduraria as suas no lugar, espalhando-as para que o espaço fosse preenchido. Triste coisa, doar as roupas e pertences de alguém que já se foi... mas a vida continua. Pelo menos, era esta frase que ela mais ouvia desde que tudo acontecera.

As mãos de Ana, após esvaziarem o armário, percorreram as prateleiras mais altas a fim de verificar se ainda restava alguma coisa. Foi quando as pontas dos seus dedos tocaram a superfície de uma caixa. Ela pegou a escada na área de serviço, e subiu. No cantinho da prateleira vazia, uma caixa embrulhada para presente, com um papel estampado de pequenas rosas debruadas de dourado. Ana abriu-a, ainda de pé sobre o degrau da escada. Havia um envelope e vários enfeites de Natal.

Ana compreendeu logo que Jorge comprara aqueles enfeites para seu primeiro natal naquela casa, que seria justamente, naquele ano. A carta dizia:

“Querida Ana,
Sei o quanto você adora o Natal. Comprei estes enfeites assim que nossa casa ficou pronta, e guardei-os até o dia de hoje para fazer-lhe uma surpresa. Espero que fique feliz. E que nesta casa sempre haja a presença do espírito do natal, durante todos os dias do ano, pois o Natal é uma época em que todos nos lembramos que devemos ser felizes. Eu quero que você seja feliz, não importa o que aconteça.
Com amor, Jorge.”

Ana enxugou uma lágrima que caiu. Pegando a caixa e seu conteúdo, dirigiu-se ao quarto de hóspedes – ainda vazio. Já sabia como atender o pedido de Jorge.

Saiu e comprou lindos enfeites e uma árvore de natal, e também uma poltrona de veludo vermelho. Também adquiriu uma cortina e almofadas com motivos natalinos, luzes, enfim, toda a espécie de decoração natalina que ela achou bonita, e com ela, enfeitou todo o quarto. Quando pendurou as últimas luzes, já era noite.
Pegou uma fotografia emoldurada de sua lua de mel, onde ela e Jorge sorriam para a câmera, e lembrou-se daquele momento. Colocou-a sobre a mesa junto a poltrona, e debaixo dela, a carta que encontrara. Aquele quarto seria onde ela estaria sempre perto de
Jorge. Ali seria sempre Natal.

Os anos foram passando, e Ana, que era uma linda moça e ainda muito jovem, casou-se novamente e teve dois filhos. Seguiu à risca os conselhos de seu primeiro marido: ser feliz, guardando sempre o espírito do natal dentro de si e dentro daquela casa, não importando o que acontecesse. Sempre que ela se sentia triste ou desanimada, entrava no quarto do natal, fechava a porta e procurava lembrar-se de todos os motivos que tinha para agradecer em sua vida.
Recordava bons momentos, quando tinha obtido sucesso, quando seus filhos nasceram, passeios e viagens, enfim, coisas boas. Todos os seus amigos sabiam do quarto do natal, e de vez em quando, pediam para passar alguns momentos dentro dele, o que Ana nunca negava.

Eu sei disso, porque eu mesma passei muitas horas ali naquele quarto. Ana era minha amiga.











quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Um Conto de natal - VII conto

Um Conto de Natal  


Este conto é antiquíssimo. Escrevi-o quando tinha vinte e poucos anos, como uma tarefa de inglês – uma redação - do curso onde estudava. Foi publicado na internet há muito tempo, mas perdi o arquivo; assim, reescrevo-o hoje, baseado naquilo que me lembro do original e reinventando o que não lembro.






Um ser extra-social perambula pelas ruas da cidade. Ele impressiona-se com as luzes coloridas que brilham nas vitrines – janelas da vaidade humana, segundo captam seus sensores- e se encanta com as alegres canções que saem dos auto-falantes pregados nos postes da cidade. “É Natal,” Ele ouve os seres humanos dizendo. 

Ele vive só. Apesar de estar sempre à vista de todos, ele é invisível. Passa despercebido entre as multidões que carregam pacotes e mais pacotes, e seus sensores não conseguem captar o sentido de tudo aquilo. 

Há muito tempo, ele fugira de seu planeta. Fora sempre ignorado ou maltratado por aqueles que coabitavam com ele. Finalmente, embarcou em uma nave de sonhos – que estraçalhou-se no solo durante o pouso, ao bater com força sobre o campo da realidade – e sumiu, para nunca mais voltar. Seus sonhos despedaçados foram desintegrando-se aos poucos, e seu coração, já frio, foi tornando-se também duro como o asfalto que seus pés nus pisavam. Lembra-se vagamente de assistir, em uma pequena caixa quadrada que transmitia imagens em preto e branco, a história de um super-herói que era bom e salvava os fracos e necessitados. Era este o seu sonho: encontrar o super-herói para que este o salvasse. Procurou durante muito tempo, em cada esquina da vida, aterrissando sua pequena nave de busca em vários locais. Aos poucos, começou a esquecer-se do rosto que sempre aparecia na pequena tela quadrada. O ser extra-social compreendeu que teria que transformar-se, ele mesmo, em seu próprio salvador e combater o mal – representado pelos seres sociais.

Em seu rosto encovado estão sepultados milhões de sorrisos. O frio do asfalto às vezes entra pelas solas dos pés e chega até o seu coração. Nesses momentos, ele saca de sua arma interestelar – canivete, navalha – e faz sangrar alguns dos seres sociais. Mas não naquela noite. Era Natal! 
Ele pensa: “Natal deve ser uma coisa boa. Se tanta gente comemora, e fica tão feliz, é porque deve haver um bom motivo! Mas... o que é o Natal? Como fazer com que seja natal também para mim?” 

Ele sai caminhando pelas ruas já desertas daquela noite de Natal. Sua nave imaginária acaba levando-o a um bairro de classe média alta, onde vivem alguns seres sociais. Ele olha pelas janelas e vê pessoas felizes, mesas fartas e árvores enfeitadas rodeadas de presentes. Seus sensores captam a mensagem, há muito esquecida: “Família.” Mas aquelas famílias são bem diferentes da sua. Ali, as crianças não eram maltratadas; eram beijadas, abraçadas e recebiam presentes. Seu coração de lata enche-se de mágoa e tristeza. Ele segue.

Chega a uma casa toda iluminada, onde avista uma cena que chama-lhe a atenção: uma senhora e um homem olham para um menininho que estende os bracinhos para o céu. Três homens muito bem vestidos carregam presentes. Animais rodeiam a cena. Ele gosta, e decide atravessar a rua para ver melhor, voando em sua nave imaginária sobre a baixa cerca que separa a cena da calçada. Ao olhar para o menino, seus olhos se enchem de lágrimas, e mesmo embaçados, seus sensores transmitem-lhe uma mensagem: “Amor.” Mas naquele instante, um homem sai de dentro da casa dos seres sociais, gritando e correndo em sua direção: “O que você pensa que está fazendo, moleque? Caia fora do meu jardim!” 

Assustado, o ser extra-social pula novamente a cerca e atravessa correndo a rua. Não percebe que uma nave de ferro, pilotada por um humano embriagado, vem em sua direção. Apenas escuta uma freada, e seus sensores sequer tem tempo de captar a sua última mensagem: “Morte.”






sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

NEVE NO SERTÃO



Toquinho era o apelido de José Jorge da Silva, um menininho de oito anos, mais novo entre cinco irmãos dos doze que Mariazinha, sua mãe, tivera e que sobrevivera. Ele morava com a família em alguma cidadezinha lá no sertão baiano, cidadezinha que nem está no mapa, no meio do nada, cercada de cactos e com paisagem desoladora. O apelido de José Jorge vinha de sua aparência física: pequeno, franzino, desses que dá a impressão que um vento mais forte conseguiria levar embora. E todo mundo comentava, quando havia alguma morte de criança (coisa que naquela época não era nada raro de acontecer) que Toquinho seria o próximo. Ninguém acreditava que o menino vingaria... o pai, ‘seu’ Juvêncio, tinha uma hortinha que mal garantia o sustento da família, onde plantava mandioca, batata e feijão. O resto vinha do governo, de vez em quando. Trabalhava quando dava. Quando tinha caixa para carregar na venda do ‘seu’ Manoel, capim para cortar ou laranjas para colher nas plantações dos mais abastados. Iam levando. Ou sendo levados.

"Seu’ Juvêncio e Mariazinha já tinham perdido sete crianças, e lá pela quarta, já nem choravam tanto assim. A gente se acostuma a tudo nessa vida. Tudo que Deus manda, é bem-vindo e sábio. Assim, continuavam a colaborar com a fábrica de anjinhos do Divino.

Toquinho, de tanto escutar por trás das portas, acabou descobrindo que seu destino era ser levado dentro de uma daquelas caixas que ‘seu’ Manoel da venda fabricava às pressas com sobras de caixote, e nem cobrava das famílias. Desde então, ele achou que se todo mundo falava, deveria ser verdade. Passou a não brincar mais, e a comer menos ainda – para preocupação dos pais e alegria dos irmãos, que dividiam a comida de Toquinho entre eles sem culpas, já que ele também sabiam que a morte do menino era apenas uma questão de tempo. 

Mariazinha fazia de um tudo para que o menino comesse; preparava mingau de fubá com leite, mandioca cozida passada na margarina (quando tinha), feijão com charque (sempre ganhava um pedacinho quando alguém matava um porco).
Ele às vezes comia, só para ver a mãe dar um sorriso. Mas um dia, ele finalmente caiu doente. Ficava o dia todo na esteira sem levantar muito e sem ir à escola. A professorinha foi visitar, e ficou doída de ver o seu aluno mais novinho naquele estado. Deu à família um cartão de Natal que recebera da família que morava na cidade grande, onde tinha o desenho de uma casinha iluminada no meio da neve, que era coberta de brilhinhos de purpurina. Quando alguém abria o cartão, tocava uma música natalina. Ela apagou  a mensagem com corretor de texto, e escreveu por cima: “Nunca percam as esperanças. Um Feliz Natal!” 

Quando Toquinho viu o cartão, tratou de perguntar: “Professorinha, o que é essa coisa branca e brilhante, linda demais?” E ela respondeu: “É a neve, Toquinho. Ela cai do céu nos lugares muito frios na época do Natal. Fica tudo assim, coberto de branco... é lindo de se ver!” Ele pensou um pouco, passando o dedinho magro sobre a imagem, e olhando a purpurina que ficou na pontinha do indicador: “E você já viu de perto? A neve, já viu?” A professorinha lembrou de sua única viagem ao estrangeiro, quando se casou, há muitos anos: “Vi, sim.” E o menino indagou: “E como é?” “Ah, Toquinho... é linda, macia e fria. Muito branquinha também. Quando o sol bate, ela brilha, brilha... As pessoas gostam de fazer bolas com ela e brincar de jogar umas nas outras, de brincadeira. As crianças fazem bonecos com nariz de cenoura, e colocam chapéus neles. É mágico...”

O menino suspirou fundo. Olhou para a professora bem dentro dos olhos, um olhar daqueles que a gente jamais vai esquecer enquanto viver, e declarou: “Eu queria muito ver a neve!”

A professorinha foi embora com lágrimas nos olhos. A frase do menino quase moribundo ressoando em seus ouvidos, espetando o seu coração: “Eu queria muito ver a neve!”

No dia seguinte, enquanto fazia compras na venda do ‘seu’ Manoel para levar para a família de Toquinho, a professorinha ainda não tinha conseguido esquecer as palavras do menino. Mas como fazer nevar no sertão? Era impossível! De repente, um caminhão parou em frente à venda, e uns homens começaram a descarregar umas caixas grandes. Eram árvores artificiais e enfeites de natal para ‘seu’ Manoel colocar à venda. Encomenda dos grandes fazendeiros da região, pois os clientes mais pobres jamais poderiam pagar por coisas como aquelas. A professorinha ficou observando enquanto ‘seu’ Manoel abria as caixas e ia separando as encomendas, segurando uma lista, caneta atrás da orelha. E conforme ele ia puxando as mercadorias de dentro das caixas, enfileirando os enfeites para separar em cima do balcão, iam caindo no chão bolinhas minúsculas de isopor, que o vento espalhava (aquilo se deu antes do advento do plástico bolha). 

A professorinha começou a ter uma ideia genial, e pegando algumas das bolinhas de isopor, perguntou ao ‘seu’ Manoel: “Como é que eu faço para conseguir mais destas, ‘seu’ Manoel?” O homem coçou a cabeça, sem entender: “O que? “ Ela repetiu: “Essas bolinhas de isopor! Como eu faço para conseguir mais, uma quantidade muito grande delas?” Seu Manoel riu: “E pra que a senhora quer isso, Dona Professorinha?” A professorinha contou a ele a história do Toquinho, menininho doente que queria ver neve no sertão. Quando ela terminou a história, ‘seu’ Manoel tinha os olhos rasos d’água. Disse: “Dona Professorinha, eu tenho caixas e mais caixas disso lá atrás no depósito. Engraçado... eu sempre achei que um dia elas iam servir pra alguma coisa!”  A professorinha ficou feliz da vida!
Dizendo aquilo, ‘seu’ Manoel decidiu que doaria uma árvore de natal que viera faltando alguns galhos, e uns enfeites que tinham quebrado na viagem. Os dois confabularam durante algum tempo, fazendo planos. Puseram-se a montar a árvore com os enfeites. Todo mundo que passava por ali perguntava o que eles estavam fazendo, e eles repetiam a história. As crianças tiveram a ideia de montarem um presépio vivo em frente à casa de Toquinho. Algumas mães confeccionariam as roupas com sacos de estopa. A festa de Natal foi sendo montada.

Alguém se lembrou que tinha em casa um velho gramofone e um disco de canções natalinas. ‘Seu” Alonso da farmácia emprestaria um ventilador grande para ajudar a fazer a neve voar.

Tudo pronto, na véspera de Natal todo mundo foi para a casa de Toquinho sem fazer barulho, pois queriam que o menino tivesse uma surpresa. Montaram tudo: o presépio, a árvore de natal com os enfeites (nem dava para ver que estavam quebrados), uma mesa com a ceia, doada pelos mais abastados da região, o gramofone. Alguns meninos mais levinhos subiram no telhado da casinha com os sacos de bolinhas de isopor, posicionando-se bem por cima da janela onde Toquinho estava. Quando a professorinha deu o sinal, o gramofone começou a tocar “Noite Feliz”, e as pessoas, que já tinham decorado a letra, cantavam junto. A família despertou dentro da casa, e assim que abriram a janela, os meninos começaram a derramar as bolinhas de isopor bem devagar, que era para elas durarem mais tempo. Foi mágico! Mariazinha, pegando o filho já bem fraquinho no colo, levou-o para a janela, dizendo entre lágrimas: “Vem ver! Tá nevando!”
Toquinho nem acreditava no que estava vendo: quase igual ao cartão de Natal! 
Uma força surgiu de dentro dele (dizem que antes de morrer, algumas pessoas há muito tempo doentes despertam se sentindo muito bem, conversam, riem e depois, morrem. É como se fosse uma despedida). Aquela foi  a festa de Natal mais linda que já se ouviu falar. 





FIM





Ah, já ia esquecendo! E quanto ao Toquinho?
Bem, ele melhorou. Morreu não. Cresceu, foi para a cidade grande estudar e virou doutor. Acreditou que tudo era possível depois que nevou no sertão, e assim foi.

Dizem que ainda tem bolinhas de isopor agarradas aos espinhos de alguns cactos, só para lembrar a quem ficou por lá, vazios de esperança, que é possível nevar no sertão. 


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

DEPOIS DE ANOS - Um conto de Natal



Naquele dia, eu caminhava pela cidade enfeitada. Canções de Natal explodiam nos auto-falantes, e pessoas aglomeravam-se nas calçadas, os rostos animados, os braços ocupados por bolsas e pacotes de presentes. Eu mesma trazia na bolsa a minha lista de natal – mais curta a cada ano – e pensava em passar a manhã envolvida com minhas compras natalinas.

Súbito, uma chuva alegre e ritmada começou, e muitos correram para se abrigarem sob marquises, em bares, lojas e cafés. Eu também entrei depressa em uma delicatessen para tomar um café enquanto a chuva não passava. Dei graças a Deus por não ter comprado nada ainda e ter as mãos vazias. Acomodei-me em uma mesa num canto, de onde podia ver as pessoas e carros passando na ruas. Reparei nas decorações das vitrines iluminadas, e deixei que o espírito daquela época me invadisse. Sentia-me leve, alegre e em paz.

Eu observava os rostos das pessoas e tentava adivinhar o que estariam pensando, de onde vinham, o que faziam... era um jogo solitário que eu gostava de jogar desde que era uma adolescente – naquela época, jogava-o com minhas amigas: sentávamos em um banco de praça e ficávamos adivinhando a vida dos transeuntes. Aquela que tivesse mais imaginação e criasse a história mais incrível, tomaria o sorvete pago pelas outras.

De repente, um rosto chamou-me a atenção, trazendo consigo memórias muito antigas. Meus olhos, que tinham passado por ele rapidamente, refizeram o percurso da paisagem até onde ele estava. Um homem. Ele olhava uma vitrine, sob um amplo guarda-chuva preto. Observei-o, enquanto tomava um gole do meu expresso. Algo tentava aparecer na minha memória, que parecia estar com as duas mãos dentro de um baú cheio de coisas antigas, tentando encontrar algo... lembrei-me de mim mesma, em um natal já muito distante no tempo, chorando à janela do nosso apartamento e sendo consolada por meus pais. Acabara de receber uma notícia muito triste, e logo na noite de natal. 

A amiga que me telefonara tinha sido clara e imperativa: “Morreu. Mês passado. Um acidente de carro em Miami. Só soube hoje.” E eu, uma jovem romântica e apaixonada, observava meus sonhos caírem pela janela do apartamento e se despedaçarem na calçada lá embaixo. É muito difícil imaginar que, daquele dia em diante, teremos que conviver com a ausência de alguém para o resto de nossos dias, e portanto, reescrever nossos sonhos, sonhos esses aos quais nos acostumamos. E eu, como qualquer jovem que tinha um amor platônico, criava em minha cabeça mil situações que nós viveríamos juntos, assim que ele descobrisse o quanto estava apaixonado por mim. E mendigava cada olhar, interpretando cada coisa que ele dissesse ou fizesse como um sinal de que eu estava certa... 

Os colegas diziam que não tínhamos nada a ver um com o outro, que éramos como água e vinho, preto e branco, noite e dia. Mas nada me fazia desistir de sonhar; sonhar com ele. Conosco. Se ele me olhasse ou sorrisse para mim, eu ganhava o dia! Chegava em casa e trancava-me em meu quarto, os discos de rock na vitrola, deitada em minha cama olhando para o teto branco onde passavam-se cenas de amor: nosso primeiro beijo. Nós, de mãos dadas no pátio da escola. Ele dizendo, baixinho em meu ouvido, que me amava. Todas as garotas morrendo de inveja.

Certa vez, fiquei sabendo que ele andava indagando sobre mim. Perguntava às minhas amigas se eu estava apaixonada por ele. Aproximava-se de mim mais do que antes, sendo gentil de forma especial. Por vezes, eu o pegava me observando demoradamente, e ele sustentava meu olhar. Mas logo vieram as férias de final de ano, e ele ia passá-las com a família em Miami. Meu sonho teria que esperar para tornar-se real. Despediu-se de mim com um abraço demorado – mais demorado do que o que ele dera nas outras garotas – e um beijo cheio de promessas. Disse-me que esperasse por ele. Deixou todos os meus sonhos ao ponto de fertilidade máxima. Naquela época, eu andava nas nuvens, e às vezes nem percebia quando alguém falava comigo. Gostava de encontrar um canto no jardim e sentar-me lá, no meio das plantas, escondida pelos arbustos, e fantasiar...

Depois que eu soube de sua morte, as amizades foram se dissolvendo aos poucos, ao longo dos anos. Nunca mais ouvi falar de minha amiga ou de qualquer colega de classe daquele ano. Fiz questão de perder contato com qualquer pessoa que me fizesse lembrá-lo, tal a dor que sentia.

Um trovão trouxe-me de volta ao café, do ponto no espaço – há mais de vinte anos – aonde a memória me conduzira. O homem que eu observava entrou na loja. Num impulso, e com o coração dando marteladas no peito, joguei uma nota sobre a mesa e saí correndo sem terminar o meu café, entrando na mesma loja que ele.

Era uma joalheria. Caminhei pelas caixas de vidro, recusando quase impacientemente quando uma vendedora ofereceu-me ajuda. Logo, achei-o sentado ao balcão enquanto uma das moças mostrava-lhe uma joia. Um anel de brilhantes. Olhando-o bem de perto, minha desconfiança transformou-se em certeza: era ele! Os inconfundíveis e longos dedos que tantas vezes percorreram minha pele nos meus sonhos. A pinta escura junto ao lábio, sob a asa direita do nariz. Os ombros fortes e largos, embora mais pesados. Os mesmos cabelos escuros e ondulados, embora alguns fios grisalhos os ornassem. E a mesma voz. Aquela voz que imaginei sussurrando o quanto me amava, há vinte anos...
Eu quis falar, mas minha voz não saiu. O que poderia dizer? Minha vida tomara outro rumo. Estava casada, e era mãe de três filhos. Mas por que ele mentira sobre sua morte? Por que? 

De repente, ele ergueu os olhos e me viu. Notei um certo estremecimento em seu rosto, e nossas pupilas, como que atraídas por ímãs, não conseguiam deixar de se olharem. Eu sabia que ele tinha me reconhecido. Achei que viria falar comigo, e que me explicaria tudo. Mas ele, num esforço, baixou os olhos e apenas entregou à vendedora o anel que escolhera, pedindo a ela que o embrulhasse para presente. Foi ao caixa, e pagou pela compra com um cartão de crédito. O tempo todo, eu não conseguia tirar os olhos dele. Havia tantas coisas que eu desejava saber! Ele viria falar comigo, eu tinha certeza!

E mais uma vez, eu vi a minha certeza ruir e escorregar para o piso da loja, indo misturar-se à enxurrada que passava no meio fio, quando ele, passando por mim feito um raio e sem olhar-me, saiu porta afora. Fiquei ali, parada, atônita. Uma vendedora veio perguntar-me se eu estava bem. Sem responder, deixei a loja e ganhei a calçada.

Olhei para ambos os lados da calçada, e para a rua em frente, apinhada de transeuntes. A chuva aumentara, e esquecida de abrir meu guarda chuva, fiquei encharcada em segundos. 

Ele sumira.

Da mesma maneira que morrera há tantos anos, seu fantasma dissolveu-se e confundiu-se com as luzes que piscavam nas vitrines, com as músicas que tocavam nos auto-falantes e com a chuva que corria pelas calçadas e ruas. 
E eu não sabia dizer a mim mesma o que estava sentindo. 

Voltei ao café. Pedi mais um expresso. Ainda faltava fazer as compras de natal.


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O NATAL DA CAFETINA


Era um bordel tradicional, se é que se pode chamar de tradicional um lugar assim. Existia naquela cidadezinha do interior há muitos e muitos anos, e primava pela discrição e limpeza de suas ‘meninas’, que eram frequentemente examinadas por um médico que vinha da cidade vizinha ( o médico local recusava-se a tratá-las; não por cupidez, pois era um dos mais assíduos frequentadores da Casa de Gerda, mas porque sua esposa o proibira sob ameaça de divórcio). Muitas vezes as mulheres da Sociedade da Família tentaram fechá-lo, mas sempre perdiam as causas. O que elas nem sequer desconfiavam, é que até mesmo o juiz que julgava os casos na cidade era não apenas um frequentador esporádico, mas um colaborador – doava um dinheirinho para a manutenção e para que, quando ele fosse recebido, a casa abrisse apenas para ele. Ningupém poderia saber quem era o frequentador secreto! Assim, a Casa de Gerda ia de vento em popa, e já passara dos vinte anos de existência.

Mme. Gerda chegara por ali sem eira nem beira, fugindo das mãos de um padrasto que a violentava com o consentimento mudo da mãe, uma filha de imigrantes alemães, mulher forte, sisuda, cumpridora dos deveres morais, etc e tal. 

Com fome, Gerda fora acolhida por ‘Seu’ Amâncio, um velho senhor viúvo que para os padrões locais, era rico. Possuía algumas cabras e um pequeno sítio onde produzia leite, queijo e manteiga. Acolheu a menina tímida e maltrapilha em sua própria casa, sob os olhares de admiração do povo. O que ninguém sabia, é que lá detrás das portas, os abusos dos quais Gerda fugira continuaram... mas ela dava-se por sortuda, pois não lhe faltava comida, e eram raras as vezes em que o velho Amâncio conseguia uma ereção... ele a tratava quase bem – pelo menos, não batia nela, como o padrasto. Além disso, permitiu que ela frequentasse a escolinha primária. 

Um dia, ele partiu desta para outra bem melhor, e deixou-lhe tudo o que possuía em testamento, já que não tinha herdeiros. Naqueles tempos, a jovem Gerda contava dezesseis anos de idade. E ela bem que tentou tocar o negócio das cabras, mas não conseguia fazer tudo sozinha. Tentou também contratar alguns ajudantes, mas logo descobriu que eles a estavam roubando quando as cobranças das contas que ela acreditava terem sido pagas começaram a chegar. Sem dinheiro para pagá-las, ia perder o sitio  para o banco, mas recebeu uma oferta por ele que, se não cobria o valor real, pelo menos deixava-lhe algo para comprar uma casinha e recomeçar tudo. E foi o que ela fez: adquiriu por bom preço uma casinha de dois cômodos na beira da estrada, fora da cidade. Conseguiu sobreviver por algum tempo com o dinheiro que sobrara, e tentou arranjar trabalho, o que logo percebeu que não havia por ali – ainda menos para uma menina da sua idade.


Um dia, conheceu Juvêncio, um cabra que estava de passagem. Dizia-se mascate (carregava sempre uma grande mala onde ele dizia estarem os seus “produtos.”). Sozinha e carente, enrabichou-se pelo moço bonito e faceiro, que passou a morar na casinha, sustentado por ela. Mas depois de alguns poucos meses, o cabra cansou-se dos favores da menina e foi-se embora sem nem dizer adeus, levando consigo o pouco dinheiro que restara à jovem Gerda e deixando no ventre da pobre moça uma semente sua, que após nove meses, surgiu no mundo como uma menininha graciosa que Gerda chamou de Lucy. Mas infelizmente, a pequena Lucy ficou por aqui durante um tempo curto demais, despedindo-se da vida aos quatro anos de idade. Sozinha, ferida e sem dinheiro, Gerda começou a “fazer a vida” como podia. Logo, outras moças foram surgindo e formando o seu pequeno staff. Elas apareciam assim, do nada, vindas de suas andanças por estradas que há muito ficaram para trás. Nada traziam, a não ser as histórias tristes de suas vidas curtas e infelizes. E todas as que bateram à porta de Mme. Gerda foram por ela acolhidas e bem treinadas na mais velha profissão do mundo. O negócio foi crescendo, crescendo e transformando-se de uma casinha de dois cômodos a uma casa ampla e confortável, as paredes pintadas de roxo, tapetes vermelhos,  cortinas de brocado dourado vindo da capital e amplas camas com dosséis. Vinham homens também de cidades vizinhas, tal a fama que Mme. Gerda e suas meninas bem treinadas adquiriram. Às vezes, atendiam também a casais que exigiam serviço em domicílio.

Naquela manhã do dia 23 de dezembro de um ano qualquer, Mme. Gerda reuniu suas ‘meninas’ e anunciou:

-Não teremos função na noite do dia 24 e no dia 25 de dezembro.

As meninas olharam-se espantadas, pois naquela noite sempre apareciam alguns clientes sem famílias (ou com famílias) que desejavam ter uma noite feliz. “O prejuízo será enorme para nós,” comentou Juju, uma ruiva maquiada demais cujo sonho era juntar dinheiro suficiente para abrir sua própria casa em outro lugar longe dali. Mme. Gerda tranquilizou-as:

-Não se preocupem, todas vão receber como se fosse uma noite normal. Já fiz as contas e cada uma vai receber o equivalente ao que ganharia se houvesse função. 

As meninas suspiraram aliviadas. Dália, uma negra baixa e gordinha, foi logo perguntando, as mãos na cintura e olhar desconfiado:

-Mas qual o motivo dessas férias repentinas?
-Eu quero ter uma noite de Natal. Nunca tive uma, e acredito que a maioria de vocês também não.

As meninas se entreolharam, algumas baixando a cabeça com tristeza. Uma brisa morna adentrou o cômodo, enquanto Mme. Gerda continuou:

-Vamos já com os preparos da nossa noite de Natal. Juju, você vai ao mercado comprar os panetones, o pernil, um peru de natal bem grande (as meninas interromperam com uivos e gargalhadas) e algumas garrafas de champagne do bom. Dália e Cilene, arrumem os quartos e a sala e deixem tudo nos trinques! Débora e Clô, já para a cozinha e só saiam quando a ceia estiver pronta. E nós, Gigi, Valentina e Margô, vamos comprar os enfeites e preparar a árvore mais linda que já se viu por aqui!

-Vai ter presente, madame?

Mme. Gerda pensou por um segundo antes de responder:

-Vai sim... vai ter presente para todo mundo!

E entre risadas, urros e aplausos, os preparativos começaram. No dia 24 de dezembro, uma das meninas pintou um cartaz de “fechado para o Natal” e pendurou è porta de entrada. Logo, a notícia do Natal da cafetina correu a cidade. As senhoras de bem faziam o sinal da cruz nas esquinas. Algumas, ao saberem da notícia, desmaiaram. Foram até a igreja e perguntaram ao Padre Jonas se haveria como impedir que o nascimento do Salvador fosse profanado naquele templo de perdição. Padre Jonas pensou na ironia daquela situação, pois se aquelas mulheres mantinham-se casadas a tanto tempo, deveriam agradecer a Gerda e suas meninas, e quase disse aquilo; mas achou melhor calar-se, e encolhendo os ombros, disse:

-Não posso impedir ninguém de celebrar a festa do Natal, senhoras. Cristo nasceu para todos nós, e perdoou Maria Madalena. Por que não fazem o mesmo?

Aquilo pareceu acalmar os ânimos por algum tempo; pelo menos, aparentemente. Até que, não se sabe como, chegou às ceias de natal familiares a notícia de que as prostitutas estavam se preparando para ir à Missa do Galo! Alguns homens se entreolharam preocupados, pois temiam serem chamados por seus nomes por alguma das meninas, quando estivessem na igreja acompanhados de suas esposas e filhos. Ao mesmo tempo, nada disseram contra ou a favor, preferindo não tomarem partido. Afinal, quem tem rabo, não senta! Diante das esposas e noivas, todos faziam-se de santos. Mas se só houvesse santos naquele lugarejo, como aquela casa tinha prosperado e sobrevivido durante todos aqueles anos? Todo mundo sabia a resposta, mas preferiam continuar ignorando-a. Assim como todos sabiam o quanto Mme. Gerda pagava de impostos, que geravam benefícios para todos na cidade, e também que ela contribuía generosamente para manter a escolinha local onde estudavam as crianças das famílias ‘de bem’. Todos também sabiam do quanto ela doava, todos os meses, para as obras de caridade de Padre Jonas. Mesmo assim, a Sociedade da Família fazia questão em ser a pedra no sapato de Mme. Gerda. E não arredariam pé nem daquela vez! Um grupo de senhoras decidiu, comunicando-se por telefone, que ficariam de pé na entrada da igreja, e que impediriam a entrada das profanas. 

E assim se deu.

Quando as meninas chegaram com seus vestidos curtos e rendados, e com seus decotes generosos, e suas maquiagens escandalosas, as cabeças cobertas por véus negros, foram barradas à porta da igreja. A confusão ia começar, e os homens temeram por elas, mas nada fizeram para defender as mulheres que tantos prazeres lhes davam, e que tantas vezes os ouviam e aconselhavam. Gigi, a mais afoita, de mão na cintura e balançando os quadris, berrou:

-Sai da frente que nós vamos entrar!

Juju se aproximou, dando um passo adiante, e colocando o dedo no nariz de uma das beatas, anunciou:

-Ninguém vai impedir a gente! 

A velha senhora fingiu um desmaio, e várias pessoas a acudiram entre “ahs” e “ohs” desesperados. Alguém gritou que aquilo era um sinal, e uma quantidade de bosta de cavalo atingiu Juju bem no meio do rosto. As meninas estavam a ponto de bala e prontas para um confronto, enquanto Padre Jonas tentava acalmar a todas as envolvidas, mas sua voz fininha era abafada pelos gritos das mulheres. 

Os homens permaneciam ou dentro da igreja ou olhando a cena de longe, com muita pena das meninas de Mme. Gerda, mas muito mais temerosos pelos seus próprios destinos.

Quando Padre Jonas entrou na igreja tentando incitá-los a irem lá fora e acalmarem suas esposas, eles baixaram as cabeças, dizendo que Deus olharia por elas... e permaneceram onde estavam.
Uma grande briga estava para começar. As meninas arrancavam os véus, as maquiagens borradas pelas lágrimas. As senhoras jogavam nelas o que estava às mãos: pedras, saquinhos plásticos com urina e excrementos de cachorro. As meninas retribuíam com bolsadas e cusparadas. De repente, uma voz de trovão se fez ouvir entre a multidão. Era Mme. Gerda:

-CHEEGA!!! 

As meninas foram se calando, e ainda ofegantes e descabeladas, obedeceram sua líder. Juju ainda tentou argumentar:

-Mas Madame, nós temos o direito de entrar!

Mas madame decretou:

-Nós vamos embora.

As meninas falavam todas ao mesmo tempo, algumas com os sapatos nas mãos, prontas para recomeçar a guerra. Mme. Gerda gritou novamente:

-Eu disse CHEGA! Vamos embora. Aqui não é o lugar e nem a hora certa para uma cena dessas.

Lá dentro, os homens suavam frio.

As meninas retiraram-se sem olhar para trás, ao som de uivos e aplausos efusivos. Ninguém viu que caiam-lhe lágrimas dos olhos, e quem ficou para trás pode finalmente entrar na igreja e assistir à Missa do Galo, onde tudo ocorreu como se nada tivesse acontecido.

Mas quando todos foram para casa, Padre Jonas sentiu-se muito mal. Não queria ser covarde e hipócrita como as mulheres locais. Foi então que, após muito pensar – poderia perder alguns de seus paroquianos ou até mesmo ser denunciado à cúria – tomou uma importante decisão.
Na manhã seguinte, dia de Natal, quando todos adentraram a igreja, Padre Jonas fez seu sermão como de costume. Mas antes que todos saíssem, suspirou fundo e começou um discurso que causaria ódio e amor, revolta e vergonha:

-Meus queridos amigos e fiéis, peço que permaneçam e ouçam de coração aberto o que eu tenho a dizer.

Ouviu-se um burburinho entre os fiéis, mas logo fizeram silêncio, e Padre Jonas pode continuar seu discurso:

-Ontem à noite houve um episódio deprimente à porta desta igreja. 

Os fiéis se entreolharam, e começaram a conversar alto uns com os outros. Mas padre Jonas não se deu por vencido, e elevando a voz até que todos se calassem, prosseguiu:

-Silêncio por favor! Ouçam o que eu tenho a dizer... todos nós sabemos que se nossos filhos estudam em uma boa escola, em excelentes condições, e dispõe de luxos como computadores com internet, demais recursos tecnológicos, merenda de qualidade e material escolar, devemos isso às contribuições de Mme. Gerda, e não ao governo. Todos também sabemos que com os altos impostos que aquela casa paga, os recursos convertidos à qualidade de vida da população são inúmeros.

Algumas beatas retiraram-se da igreja, pisando duro, mas os demais permaneceram em seus lugares.

-Todos nós sabemos que se hoje temos este templo de Deus reformado, belo, adequado aos nossos serviços religiosos, é também a Mme. Gerda e suas funcionárias que devemos. Além disso, os turistas que vem à cidade a procura dos serviços daquela casa sempre acabam comendo em nossos restaurantes, fazendo compras em nossas lojas e até mesmo hospedando-se em nossos hotéis. E tudo isso gera recursos para a cidade. A senhora mesma, Dona Hermengarda, sabe bem o quanto lucra vendendo as flores que enfeitam os salões daquela casa. 
Dona Hermengarda baixou a cabeça e nada disse.

-E o senhor, ‘seu’ Juvenal, fornece a carne e o leite usados nas refeições daquela casa. E o senhor, ‘seu’ Manoel, é quem providencia toda a bebida e demais mantimentos, que são entregues toda quinta-feira à porta daquela casa, pois o senhor não permite a entrada delas em seu mercado... Mesmo que sua entrada por lá nunca tenha sido bloqueada.

Gargalhadas são ouvidas.

- E vocês, senhoras, devem a elas muito mais do que pensam...

Naquele instante, os maridos engoliram em seco e as esposas pigarrearam e baixaram suas cabeças, ou cutucaram seus maridos raivosamente. Padre Jonas achou melhor pular aquela parte.

-Bem, eu proponho que tenhamos um pouco mais de caridade e gratidão do que a que demonstramos na noite passada. Vamos todos hoje à casa de Mme Gerda, onde uma missa especial de Natal será rezada.

Mais algumas beatas retiraram-se, pisando duro e reclamando. Mas a maioria dos fiéis permaneceu na igreja, esperando que alguém entre eles se manifestasse contra ou a favor, para então, segui-lo. E foi justamente a anciã local, Dona Beatriz, quem se manifestou:

-O senhor tem o meu apoio, Padre Jonas. O que aconteceu ontem foi vergonhoso. O senhor tem o meu apoio.

E assim se deu. Todos dirigiram-se até a casa de Mme. Gerda em procissão. Embora preferissem permanecer do lado de fora enquanto Padre Jonas rezava a missa no salão da casa, já tinha sido um progresso.

Quando o serviço religioso terminou e todos se retiraram, as meninas ficaram no salão, conversando sobre tudo o que havia acontecido. Algumas mais sensíveis, choravam. Tinha sido muito importante para elas serem tratadas como gente de verdade pela primeira vez na vida.

De repente, Mme Gerda lembrou-se de uma coisa importante, e retirou-se da sala, voltando com várias caixas embrulhadas para presente. Parou sob o batente da porta, anunciando:

-Mas eu disse que ia ter presente pra todo mundo! E palavra de Mme. Gerda é lei!

As meninas alvoroçadas a abraçaram e comemoraram a ocasião como bem sabiam, e depois puseram-se a abrir seus presentes.

Todas elas receberam a mesma coisa: lindas bonecas vestidas de princesas. Eram  presentes muito merecidos e desejados, que finalmente a vida lhes proporcionava através de Mme. Gerda:  um pouco de suas infâncias roubadas.


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Os Enfeites de Natal





Dia 20 de dezembro. Sozinha na sala de estar, Giovana começou a abrir as caixas com enfeites que tinha colocado sobre o sofá naquela manhã. Os mesmos que ela usava há tantos anos... cada qual com um significado especial. Alguns, confeccionados quando todos ainda eram crianças, com materiais que variavam do isopor e purpurinas às fitas douradas e vermelhas. Muitos traziam as marcas da passagem do tempo, mas mesmo estando um pouco gastos, colados ou emendados, ou com as pontas desfiadas, eram aqueles enfeites que ela usava todos os anos.

Lembrou-se com carinho das pessoas que já não faziam mais parte de sua vida; algumas tinham morrido, e outras, tinham partido de alguma forma. Giovana tentara, muitas vezes, fazer-se presente, mas depois de algum tempo, notou que aquelas tentativas eram forçadas e causavam constrangimento, não só a ela, mas às pessoas envolvidas; recordou-se do último Natal, quando aparecera de surpresa na casa de Luiza, uma de suas irmãs, achando que ela estaria tranquilamente passando a noite com o marido e os filhos - e da cara constrangida que a irmã fez ao mandá-la entrar em uma sala de estar ricamente decorada, onde uma linda festa (para a qual não tinha sido convidada) tinha sido preparada. Seus sobrinhos demonstraram o mesmo constrangimento da mãe, sorrindo-lhe sorrisos amarelos, e cumprimentando-a: "Olá, tia. Feliz natal!" Giovana foi à cozinha buscar um copo d'água e ouviu, sem querer, quando Sérgio, seu cunhado, conversava em voz baixa com Luiza: 

-E agora? Os convidados vão chegar em alguns minutos! Como você vai sair dessa? 

-Eu não sei... não esperava que Giovana fosse aparecer.

-Eu disse a você para convidá-la.

-Sim, mas... todos os nossos amigos estarão aqui, e eles não tem nada a ver com ela. Giovana anda muito deprimida depois do divórcio, não é uma boa companhia para uma festa de Natal.

Ela escutou a conversa em silêncio, sentindo que seu coração se despedaçava. Voltou devagarinho para a sala, com muito cuidado para que ninguém percebesse que ela ouvira. Pegou sua bolsa sobre o sofá, e quando estava se encaminhando para a saída, Luiza e Sérgio entraram na sala. Sua irmã perguntou:

-Já vai?!

Giovana tentou disfarçar:

-É... só passei mesmo para desejar a todos um Feliz Natal.

Sem o menor tato, Sérgio respondeu:

-Obrigada! Mas bastaria ter telefonado, cunhada. Feliz Natal para você também.

Todos se entreolharam, e tentaram aparentar naturalidade. Escondendo as lágrimas, que arrebentaram assim que saiu da casa, Giovana retirou-se. 

De volta ao presente, com gestos automáticos, ela montou a velha árvore e começou a pendurar os enfeites. Depois, colocou as luzes e moveu-a para o mesmo cantinho da sala de estar. Acendeu-a, e olhou o resultado sem nenhum entusiasmo.

Jantou, assistiu a um filme natalino na TV e foi dormir cedo. 

Seria mais um Natal que passaria sozinha, recordando um passado distante e pessoas que não mais faziam parte de sua vida. Ela sabia muito bem que depois do divórcio, tornara-se um tanto melancólica, e com isso, percebeu que jamais tivera amigos verdadeiros. A única que ficara do seu lado o tempo todo, era sua amiga Mariana, mas com medo de ser um fardo até mesmo para ela, não aceitava seus convites para as festas. Ficava sozinha em casa. Participava da festinha do escritório por obrigação, mas o Natal tornara-se para ela um verdadeiro tormento.

Só montava a velha árvore porque tinha prometido à sua falecida mãe que sempre comemoraria o Natal. Desde criança, fora ensinada que esta tradição de família deveria ser seguida sempre. Mas nada mais tinha graça... Giovana chorou um pouco, e adormeceu.

De manhã, ao despertar, olhou em volta, sentando-se na cama. Achou que as coisas pareciam diferentes, e então viu que estava em seu quarto de solteira! Pulou da cama, sentindo uma energia que há muito tempo não sentia, e ao olhar-se no espelho, ela quase caiu para trás: estava jovem novamente! Do alto dos seus quinze anos de idade, Giovana ouviu a voz da mãe cantarolando na cozinha, e logo depois, a porta da frente bater e a voz de seu pai. Quase não conseguiu segurar a emoção ao ouvir aquelas vozes de pessoas tão amadas e há tanto mortas...

Vestiu seu robe azul - seu preferido - e correu quarto afora. Chegou na cozinha e ao ver a cena que se desenrolava na sua frente (a mãe fritava rabanadas e o pai colocava as compras de natal sobre a mesa) - Giovana correu até seus pais e  abraçou-os, chorando muito.

Eles deixaram que ela se acalmasse, e sentaram-se com ela à mesa.

-Pai, mãe... vocês estão...

Sua mãe riu, terminando a frase:

-...Vivos? Mas é claro que estamos! Mas parece-nos que você não está, Giovana, e por isso nós a trouxemos aqui. 

O pai concordou com a cabeça, afagando-lhe os cabelos:

-Você se perdeu de si mesma, filha.

Giovana recomeçou a chorar:

-Minha vida está um verdadeiro desastre... depois que Sandro se foi, eu realmente perdi o rumo da minha vida. Acho que ele era a minha conexão com o mundo, o ponto de intersecção com nossos amigos e familiares. Até mesmo Luiza afastou-se de mim... imaginem que ela deu uma festa de Natal e não me convidou.

Sua mãe ergueu-lhe o queixo, olhando-a profundamente nos olhos:

-Você precisa reagir. Precisa dar um jeito nisso, filha. Sempre deixou sua vida e suas decisões importantes nas mãos de outras pessoas. Nunca enxergou suas verdadeiras qualidades e negligenciou todos os seus talentos. 

O pai acrescentou:

-Casou-se com Sandro simplesmente porque ele a pediu em casamento. Não achou que merecesse coisa melhor. Lembra-se do quanto eu procurei alertá-la para o mau caráter dele? Filha, você partiu nosso coração ao entregar sua vida a um homem como ele; mas também partiu o seu, o que mais dói para nós. Deveria estar feliz por ele ter ido embora.

-Mas Sandro era alegre e engraçado, pai. Ele me fazia rir... por isso tínhamos tantos amigos, mas todos se foram depois que ele me abandonou.

A mãe de Giovana suspirou fundo:

-Não, vocês não tinham amigos; tinham companheiros de farra. Lembro-me das festas que davam, regadas a muita bebida e muita comida. As pessoas se foram simplesmente porque a festas acabaram. Você nunca cultivou amigos verdadeiros, amigos seus. Entrou no mundo de Sandro e deixou-se sufocar por ele. Anulou-se.

Giovana sentia a dor que as palavras de seus pais causavam-lhe, principalmente por sabê-las verdadeiras. Deu graças a Deus porque, afinal de contas, restava-lhe uma única amiga: Mariana.

-Mas o que fazer agora? Eu tenho quase quarenta anos, meu único filho preferiu ir viver com o pai e a nova madrasta, e não vem em casa há seis meses. Mal fala comigo quando telefono para ele. Minha própria irmã me abandonou...

-O pai e a mãe se entreolharam, e ele segurou a mão da filha, dizendo:

-Luiza vive em um mundo de ilusão, Giovana. Igualzinho ao que você vivia com Sandro. Dá mais valor aos amigos que à família. Nem vê que está cercada de amigos interesseiros, que só a procuram por causa de seu dinheiro, suas festas... mas quando a vida que eles cultivam der a eles a sua resposta, ela verá que esteve errada.

Em seguida, sua mãe continuou:

- Giovana... filha... você nunca exerceu sua autoridade sobre Fernando, seu próprio filho...

-Ele não me ama. Com certeza, foi envenenado contra mim pelo pai.

-Não é verdade... ele está ressentido porque, quando o pai disse que fosse morar com ele, você não tentou fazê-lo ficar. Simplesmente deixou que ele fosse.

-Ele fez o que queria fazer.

-Não! Ele fez o que você o deixou fazer, mas no fundo, queria que você tivesse pedido para ele ficar. 

-Agora é tarde demais...

O pai ergueu um pouco a voz:

-Não é não! Ainda é tempo de reconquistar seu filho e sua vida! Saia daquele emprego que você detesta, convide seu filho para passar o natal com você e Mariana - aceite o convite dela desta vez - e quanto à sua irmã, dê tempo ao tempo. Você, mais do que ninguém, sabe que de nada adianta alguém chamar quando o outro quer continuar perdido.

Chorando, Giovana abraçou os pais e respondeu:

-Eu só queria poder ficar aqui com vocês...

Sua mãe respondeu com severidade:

-Mas você não pode! Precisa voltar e reconstruir a sua vida. E faça direito dessa vez! Filha... eu e seu pai estamos aqui olhando por você. Saiba que teve uma oportunidade rara. Não a desperdice!

Ao ouvir aquilo, Giovana sentiu que se afastava aos poucos daquela cena na cozinha, onde seus pais, abraçados um ao outro, olhavam para ela enquanto uma densa neblina os envolvia, e ela se afastava cada vez mais...

Ainda pode ouvir a voz da mãe:

-E jogue fora aquele caco que você chama de árvore de Natal! Livre-se do passado!

Acordou com o canto dos passarinhos na árvore próxima à janela. Levantou-se da cama, e ainda esfregando os olhos, foi até a sala, e começou a desmontar a velha árvore. 

Decidiu que compraria uma nova, com novos enfeites.









sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Mensagem na Neve- Um conto de Natal




Acordou no meio da noite e olhou em volta, piscando na penumbra. Os estalos da lenha na lareira ajudaram-na a despertar para onde estava.

Saiu da cama, e olhando pela janela, viu o luar brilhando sobre as partículas de gelo que formavam um lindo tapete branco sobre a paisagem. Gabriela estava em um hotel, em outro país, bem longe de casa. Decidira que não mais participaria das celebrações natalinas, e para evitar ter de ouvir os insistentes convites da família e dos amigos, e os sermões sobre o quanto era importante estar junto de alguém naquela data, ela decidiu ir para longe naquele ano. Um destino desconhecido a todos. Viajou no dia 22 de dezembro, sem avisar a ninguém, deixando apenas um bilhete sobre a mesa da cozinha, onde sabia, seu marido Fernando o acharia quando voltasse de sua viagem de negócios. Os bilhetes haviam se tornado seu principal meio de comunicação depois que tudo acontecera. Ela não conseguia olhar nos olhos do marido, que após algumas tentativas de reaproximação, aceitara seu silêncio.

Alguns dias antes, Nena, sua cunhada, havia telefonado e convidado para passar o natal na casa dela, onde toda a família estaria reunida:

-Gabi, você precisa superar! Lá se vão dois anos...

Ela permaneceu calada. Quem era ela para dizer-lhe o que precisava ou não fazer em relação à perda de seu filho único? Nana estava feliz, com seus três lindos filhos, fortes e saudáveis. Não precisara passar por tudo que ela passara. Não precisava acordar todas as manhãs em uma casa vazia de sentidos e daquela presença amorosa.

Breno certa vez dissera-lhe que sonhava com ele quase todas as noites. Por que não ela? Por que ele não vinha para ela em seus sonhos, como aparecia nos sonhos do pai? Aquilo virou um ressentimento, como se Breno fosse o culpado por ser o único a sonhar com Gabriel. Até que um dia, na mesa do café, assim que ele começou a contar sobre um de seus sonhos, ela o interrompeu:

-Por favor, eu não quero ouvir.

Ele pareceu ferido.

-Mas... por que, Gabriela? Eu pensei que você gostava de ouvir... e eles são tão reais, e as coisas que ele me fala são...
-Não passam de sonhos, Breno. São uma saída que sua mente criou de lidar com a dor.

Após tomar um gole de café, e agindo como se estivesse pisando em campo minado, Breno respondeu:

-Bem, mesmo que seja... acho que você deveria ajudar a si mesma e criar a sua própria maneira de tentar levar a vida a diante, Gabi. Talvez se você concordasse em ir ao centro espírita comigo...
-Já disse que não acredito nessas coisas, Breno. Não faz sentido para mim. Que Deus levaria embora uma criança de doze anos daquela forma, entre tantas dores? Deus não existe.

Os músculos da face de Breno retesaram-se.

-Você anda muito amarga. Não é bom para você. Não é bom para nós. E não é bom para Gabriel. Ele sente suas vibrações.

Ela levantou-se da mesa, e inclinando-se de pé na direção dele, o peso do corpo apoiado nos punhos sobre a mesa, olhou-o friamente:

-Gabriel está morto. Não sente mais nada. Não vê mais nada. Não existe mais. Pena que eu não fui junto com ele. Nenhum pai ou mãe deveria sobreviver à morte de seu filho. Mas eu sei que um dia eu vou tomar coragem, e...

Ele a interrompeu, gritando:

-Não diga uma coisa dessas! Chega de sentir tanta autopiedade, Gabi! Você nunca foi assim.
-Você nunca me conheceu de verdade. Não dizem que os momentos difíceis trazem à tona a nossa verdadeira personalidade?

Dizendo aquilo, ela saiu da cozinha, deixando-o transtornado. Breno não sabia mais como lidar com ela. No centro espírita, diziam-lhe que tivesse paciência, e não discutisse. Com o tempo, ela seria capaz de superar. O importante era que eles ficassem juntos e se apoiassem mutuamente, mas ele não recebia nada dela, nem uma palavra de carinho, e quando tentava aproximar-se, Gabriela se fechava em uma concha de frieza, e se ele insistisse,  de agressividade.

À janela do hotel, Gabriela ainda olhava a noite branca e fria. A beleza da paisagem, ao invés de animá-la, deixava-a ainda mais triste. No fundo, estava triste e arrependida por ter viajado daquela maneira, pois sabia que todos ficariam tristes e preocupados. Mas não conseguia mais lidar com os sorrisos forçados e palavras forçosamente "animadoras" das pessoas. Ou com quando elas fingiam que nada havia acontecido, tentando conversar sobre amenidades. Detestava quando ela chegava e percebia que todos paravam de falar de repente, se entreolhando e pigarreando.

Tinha consciência de que sua aparência, agora quase dez quilos mais magra, não era das melhores. Os cabelos, antes sempre bem tratados e brilhantes, agora não passavam de uma mancha escura presa em um eterno rabo-de-cavalo baixo. Desde que tudo acontecera, não comprava roupas ou fazia as unhas. Mantinha-nas curtas e sem esmalte. E também não fazia amor com o marido. O toque dele, ou de qualquer outra pessoa, a repugnava. Não queria realmente estar daquele jeito, mas não podia forçar a si mesma... era como se sentia.

Estava perdendo Breno, mas nem isso a fazia despertar.

Estava envolvida por sua dor, quando de repente, pareceu ver algo movendo-se na neve, ao longe. Ficou prestando atenção. Apertou os olhos para ver melhor, pois a luz do luar fora encoberta por uma nuvem passageira. Quando conseguiu vislumbrar do que se tratava, tapou a boca para reprimir um grito: era um menino! tentou abrir as janelas, mas estavam lacradas. Ela o viu correr em direção ao lago congelado. Não podia perder tempo: do jeito que estava, de camisola, agarrou o robe e saiu porta afora, para o corredor silencioso e vazio.

Passou pela recepção do hotel, e o relógio de parede marcava 3:45 da manhã. Não havia ninguém por lá. Talvez o recepcionista de plantão estivesse lanchando ou tirando uma soneca. Achou que perderia tempo se procurasse por alguém para pedir ajuda, e então saiu pela porta giratória, deixando-se envolver pelo ar frio da noite, em direção ao local  onde tinha visto o menino. Correu sobre a neve fofa com dificuldades. Chegou a uma elevação, e o que ela viu deixou-a quase sem fôlego: o menino estava de pé, bem no meio do lago congelado! Parecia muito assustado, e chorava. Naquele instante, Gabriela escutou um ruído que fez seus cabelos se arrepiarem: o gelo estava rachando! Ela gritou para ele:

-Não se mova, fique bem quieto!

Ele a viu, e obedeceu-a. Ela percebeu que o menino não deveria ter mais que cinco anos de idade.

Gabriela ficou tentando decidir o que fazer, pois percebeu que suas decisões seriam vitais para salvar o menino. Gritou:

-Fique quietinho! Eu vou voltar e buscar ajuda!

Ele choramingou:

-Não! Não quero ficar aqui sozinho. Eu vou cair! O gelo...

-Eu sei, meu bem, eu sei... fique calmo...

Ela olhou em volta, e encontrou um longo galho de cedro caído no chão. Rapidamente, mediu o tamanho do galho e calculou que ele seria suficiente para que ela o estendesse sobre o lago para que o menino o agarrasse, caso ela avançasse alguns metros para dentro do lago, e ela poderia então puxá-lo bem devagar. Se ele caísse, ela teria que mergulhar para tirá-lo, mas pelo menos ele se sentiria mais seguro segurando o galho.

Ela tirou algumas folhas da ponta para que ele pudesse sentir mais firmeza ao pegar o galho, e enquanto o fazia, falou com ele:

-Qual o seu nome, meu bem?

Uma voz chorosa e tremida respondeu:

-Roberto! Eu estou com frio...

-Eu sei, eu sei... olhe, eu vou tirar você daí, e logo você estará na cama quentinha, mas tem que fazer tudo o que eu mandar, OK?

Ele acenou, concordando. Tinha os braços ao longo do corpo, e a respiração ofegante fazia surgirem nuvens de vapor de sua boca. Gabriela chegou à beira do lago, avançando  bem devagar, e deitou o galho de árvore no gelo. Foi empurrando o galho, até que este chegou ao menino;

-Está vendo este galho? Quero que você se abaixe bem devagar e o segure bem firme. Eu vou puxar você. Se o gelo quebrar e você cair na água, não importa o que aconteça, mantenha-se sempre segurando o galho. Ok?

O menino fez exatamente como ela disse, e assustados, ambos escutaram nova rachadura no gelo. Gabriela olhou para baixo, e viu que havia uma fenda de aproximadamente meio metro entre eles. O menino teria que pular. Ela começou a puxar o galho. Ao chegar na rachadura, ela disse:

-Agora preste atenção: você vai ter que pular para o outro pedaço de gelo logo em frente.

Ele recomeçou a chorar.

-Não fique nervoso, Roberto. Quantos anos você tem?

-Seis...

-Como você veio parar aqui sozinho?

-Eu esperei a mamãe e o papai dormirem, abri a porta com a chave  e vim brincar na neve... eu nunca tinha visto a neve...

-Está tudo bem, isso logo vai acabar. Quando eu disser "três" quero que você pule, mas não largue o galho, ouviu? Segure bem firme nele! Um... dois... três!

O que aconteceu em seguida foi muito rápido: Roberto pulou na beirada do pedaço de gelo, que virou, e ele  imediatamente afundou na água gelada e negra. Gabriela gritou por socorro. Nem percebeu que várias luzes no hotel se acenderam. Alguém gritou. logo, pessoas corriam sobre a neve em direção a eles. Ela puxou o galho, e apavorada, viu-o surgir, mas sem o menino agarrado a ele.  Sem pensar duas vezes, mergulhou na água. Não conseguia ver absolutamente nada. Esticou os braços e nadou, até que conseguiu agarrar o braço do menino, e nadando para cima, trouxe-o à tona. Tremendo muito, ela o estendeu às pessoas que estavam à beira do lago, e alguém ajudou-a a sair da água. Viu quando alguém o embrulhou em uma manta e o levou para dentro, desacordado. Depois, ela desmaiou.

Ao acordar, Gabriela olhou em volta e notou que estava em um hospital, e era dia claro. Uma enfermeira fazia anotações, de pé ao lado da cama, e ao perceber que acordara, sorriu-lhe:

-Você está bem?

Ela respirou fundo, e mexeu braços e pernas antes de responder, sem sentir nenhuma dor. Estava bem. Acenou para a enfermeira, concordando.

-E Roberto?

-Bem, ele teve uma parada respiratória, mas conseguimos trazê-lo de volta. Foi uma noite difícil, mas ele agora está bem. Ele vai ficar bom. Você gostaria de falar com os pais dele? Eles podem entrar? Gostariam de conhecê-la; querem agradecer...

Ela sentou-se na cama, e ajeitou os cabelos com a as mãos.

-Sim, pode mandá-los entrar.

Alguns minutos depois, um jovem casal em lágrimas entrou no quarto, e a moça, num gesto espontâneo, abraçou Gabriele, murmurando muitos agradecimentos. Logo, o pai fez o mesmo. Após os agradecimentos, o rapaz pigarreou, e a moça olhou-o. Ele disse:

-Hoje é antevéspera de natal, e gostaríamos muito de dar-lhe um presente. Não é nada diante de tudo o que fez por nosso filho e por nós, mas gostaríamos que se lembrasse de nós e do quanto somos gratos.

Dizendo aquilo, ele estendeu-lhe um livro. Gabriele abriu o embrulho, e deparou com os dizeres na capa: tratava-se de um livro sobre crianças que morreram prematuramente, do autor Brian Weiss. Ela tentou não mostrar sua descrença, e sorriu, agradecendo. O casal ia saindo, quando Gariela perguntou:

-E Roberto? Posso vê-lo?

-É claro! Ele acordou, tomou café e está dormindo agora, mas pode vir quando desejar.

O médico entrou naquele momento, e ao examiná-la, disse que podia voltar ao hotel. Gabriela vestiu-se, e antes de ir, bateu à porta do quarto de Roberto. Sua mãe abriu-a e mandou que entrasse. Encontrou o menino sentado na cama, brincando com o pai e alguns carrinhos.

Gabriela sentiu-se muito feliz, mas a dor pela perda do próprio filho doeu agudamente naquele instante. Lembrou-se de Gabriel, também sentado em uma cama de hospital brincando com o pai, quando ainda havia esperanças para o seu caso. Mal sabiam que em apenas alguns dias, aquele cenário mudaria e se transformaria em um terrível calvário... ela enxugou uma lágrima, e aproximou-se da cama. O pai do menino sorriu ao vê-la, e disse a Roberto:

-Filho, esta é a moça que o salvou!

Roberto estendeu os braços para ela, sorrindo:

-Eu sei! Você é muito boazinha. Obrigado.
-Como você está, Roberto?
-Bem. Eu vou para casa antes do natal, ou melhor, para o hotel.

Após conversar com o menino por mais algum tempo, Gabriela despediu-se. Quando já estava à porta, Ouviu Roberto chamá-la:

-Gabriela! Lembrei de uma coisa importante!

Ela voltou até a cama, perguntando:

-É mesmo? E o que seria?...

Brincando com seu carrinho sobre as cobertas, Roberto disse:

-Gabriel me pediu para dizer que ele está bem. Não sente mais dor, e mora em um lugar muito bonito.

Gabriela emudeceu, engolindo em seco. Sentiu que seu coração ia sair pela boca. Os três adultos se entreolharam, e Roberto, inocentemente, prosseguiu:

-Ele disse que esta muito bem, mas que fica triste quando vê você triste ou chorando. O vovô Pedro está com ele. E...

Ele pareceu tentar lembrar-se de algo, e finalmente, acrescentou:

-Ah! Já sei: ele quer que você volte para casa e passe o natal com a família toda. Ele me pediu para falar que... que um dia vocês vão se rever, e que ele ainda não conseguiu ir até o seu sonho porque a sua tristeza é como se fosse uma porta que o segura do lado de fora. E também disse que a ama muito, e o papai também, e que você precisa ser feliz de novo. E disse que vai mandar um presente. Um presente de Natal!

Ao ouvir aquilo, Gabriela não teve mais dúvidas: abraçou a todos, e despediu-se, agradecendo efusivamente. Os pais de Roberto imediatamente compreenderam do que o filho estava falando, e quando Gabriele fechou a porta do quarto, eles se deram as mãos, olhando para o menino que  brincava sobre a cama, e sentiram-se abençoados.

Gabriele pegou o primeiro avião de volta. Não havia mais lugares no avião, mas por sorte, alguém desistiu da viagem na última hora, e a companhia aérea colocou-a no voo.

Após quase oito horas de viagem, ela desembarcou no aeroporto e ansiosa tomou um táxi para casa. Chegou de manhã bem cedo, na véspera de natal. Colocou a mala no chão. Girou a chave na fechadura. Ao abrir a porta, deparou com Breno dormindo no sofá da sala. Segurava uma fotografia da família. Ao lado dele, havia uma garrafa de vinho vazia. Gabriela percebeu o quanto ele estava sofrendo por causa dela, e beijou-lhe o rosto. Ele abriu os olhos e viu-a sorrindo. Piscou várias vezes:

-É um sonho?... Você está sorrindo?

Ela o beijou novamente, desta vez, nos lábios.

- Tenho uma história linda para contar a você. Mas eu o farei diante de todos, na noite de natal.

Breno sentou-se no sofá, abraçando a esposa.

Ao fazerem amor, nem sequer desconfiavam que o presente prometido por Gabriel estaria com eles no próximo natal: Gabriela ficaria grávida de um menino!




A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...