terça-feira, 28 de junho de 2016

A RESENHA DO MAL - CAPÍTULO XI








A RESENHA DO MAL - CAPÍTULO XI



Naquela noite, após o jantar, Brian sentou-se no sofá da sala de estar ao lado de Endora, e mostrou a ela as fotografias que conseguira fazer da fazenda. Mostrava paisagens onde raios de sol empoeirados passavam entre as folhas das árvores, ou então peixes que pulavam para fora do limite do espelho do rio; mostrou-lhe flores exóticas das quais ela se lembrou de ter visto quando ainda era jovem, e ela lhe falou dos lindos arranjos que fizera com elas para decorar a mesa da sala. Décio escutava a conversa dos dois de longe, sentado na varanda, observando a noite estrelada. Nunca tinha visto tantas estrelas em sua vida! E de repente, a vida parecia calma e perfeita. Ele teve a impressão de que amanhã iria embora dali para sempre, escreveria sua história e nunca mais ouviria falar daquelas duas mulheres e nem daquele lugar amaldiçoado. Voltaria para o seu apartamento barulhento, às noitadas com meninas diferentes e vazias, o trabalho, a convivência alegre e amorosa com a mãe. E quem sabe, um relacionamento diferente com Brian. 

Sophie não estava em lugar nenhum. Batera à porta do quarto dela, mas ninguém  veio abrir. Procurara por ela, indagara sobre ela a Diana, que nada soube responder. E ele pensou que talvez fosse melhor daquela forma; e se aquela história que Endora lhe contava não fosse totalmente verdadeira, de qualquer maneira, era fascinante, e renderia uma excelente reportagem – quem sabe, um livro que o tornaria famoso. Era isso que importava: tornar-se um excelente profissional, voltar à vida real onde os acontecimentos eram controlados, e fantasmas não circulavam pela casa entre os vivos. 

Mas bastou que a voz dela soasse atrás dele para que suas convicções fossem por água abaixo. Sophie o convidava para dar uma volta de carro na cidade com ela. Quem sabe, tomar um drink... ela disse que precisava sair dali por algum tempo, pois a fazenda a estava enlouquecendo. E foi só ela estender a mão, e ele a pegou, e entraram no carro dele. Adeus, estabilidade! Adeus, mundo de coisas equilibradas e reais! Adeus, apartamento barulhento, emprego, família, mulheres... era só Sophie que importava no mundo todo, e ele não podia fugir dela. Nem que ele quisesse. 

Despediram-se de Brian e Endora, que ficou muito feliz ao vê-los de mãos dadas. Foram no carro dela, que dirigiu quase uma hora até os limites da cidade, onde havia , em uma curva da estrada, uma parada entre árvores, por onde ela entrou e estacionou. Havia muitos carros, e ele pode perceber ao olhar para o local iluminado e escutar a música animada que vinha de lá, que tratava-se de um lugar animado. Era um prédio com fachada de madeira, no estilo dos velhos filmes de cowboy, com um letreiro iluminado onde se lia: “Robert’s.”  Décio ficou impressionado por Sophie, sempre tão taciturna, escolher um local como aquele. 

-Uau! Não sabia que você gostava de balada.

Ela puxou a chave da ignição, colocando-a no bolso da jaqueta jeans que usava sobre um vestido negro de saia rodada, e respondeu:

-E não gosto. Mas quero que você conheça alguém. 

Sem dizer mais nada, ela saiu do carro, e ele a seguiu. Quando entraram, a atmosfera enfumaçada pelos cigarros de dezenas de fumantes quase o sufocou, mas a música alegre que tocava, os risos e as cores vivas logo tiraram a má impressão que tivera. Sentaram-se junto ao balcão do bar, pedindo duas doses de tequila. O barman, um jovem alto, forte e bonito, quase comeu Sophie com os olhos, mas ela pareceu não notar. Décio notou que pela primeira vez na vida, sentira ciúmes. O rapaz serviu os drinks, e continuou seu trabalho, mas sempre mantendo um olhar discreto sobre Sophie. Os dois ficaram sentados ali observando o movimento, quando uma música lenta começou a tocar e ela o puxou para o centro da pista.

Décio passou os braços em volta dela, orgulhoso por estar acompanhado da mulher mais linda que havia ali dentro, percebendo os olhares admirados dos outros homens e a inveja das outras mulheres. Dançaram algumas músicas, e o clima esquentou; ele a beijou apaixonadamente várias vezes, esquecendo-se do real motivo por eles estarem ali. Parte das luzes do salão tinham sido apagadas, dando ao local um ambiente de penumbra acolhedor e íntimo. Décio gostaria de poder voltar para casa ou então ir a um local onde pudessem estar sozinhos; mas foi quando ela interrompeu seus pensamentos libidinosos:

-Eu acho melhor a gente parar por aqui... eu quero que você conheça uma pessoa, lembra?

Ele respirou fundo, enterrando os dedos nos cabelos dela e aspirando seu perfume. Sentiu que ela estremeceu em seus braços, e segurou-a mais forte, mas Sophie o empurrou suavemente:

-Hey! Venha comigo agora, Décio.

Ela o pegou pela mão, e os dois entraram atrás de uma cortina vermelha que levou-os por um corredor meio-escuro, longo, até uma sala nos fundos onde Décio viu um homem de meia-idade sentado à uma escrivaninha, usando um computador. A música do bar penetrava através das paredes com um som abafado. Ao vê-los, o homem ergueu os olhos sorrindo para Sophie, e levantou-se, abrindo os braços para ela, que largou a mão de Décio e foi aninhar-se nos braços do estranho. Estarrecido, Décio ficou observando a cena, queimando de ciúmes, quando eles pareceram lembrar-se de que ele estava ali, e o estranho olhou para Sophie como se indagasse quem era o homem que ela trouxera até ele. Ela sorriu, e fez as apresentações:

-Décio, este é o meu pai.

A cabeça de Décio deu um nó: aquele era Ruy, o amante de Endora! O pai verdadeiro de Sophia? 

-Desculpem, mas... Endora me contou que você era o pai verdadeiro do primeiro filho dela, um bebê que foi levado para longe. (E virando-se para Sophie) Sua mãe me disse que você é filha verdadeira de Cícero.

-Bem, parece que Endora não lhe contou toda a verdade... sente-se!

Décio sentou-se na cadeira em frente a Ruy, e Sophie foi sentar-se ao lado dele. Décio estava muito confuso com aquela história toda, e não via a hora de esclarecê-la. Foi Sophie que começou a falar:

-Minha mãe está morrendo, você sabe... ela inventou aquela história de eu ser a filha verdadeira de Cícero porque ela temia que os parentes dele reivindicassem a herança depois que ela morresse. Ela quer que eu herde tudo.

Décio pensou por um tempo, e depois concordou com a cabeça, mas ainda havia uma pergunta:

-Mas como você descobriu?

E foi Ruy quem explicou:

-Bem, ela começou a procurar por mim. Queria dar uma última alegria à Endora. Queria que voltássemos a nos ver. Sophie desejava que ela pudesse ter uma última alegria. 

-Então... mas... ela me disse que achava que Cícero tinha matado você!

-Bem, como você pode ver, não matou. E nós continuamos nos encontrando. Cícero apenas me deu uma surra que me deixou desacordado por algumas horas na beira de uma estrada de terra batida. Ele e uns capangas. Acho que pensou que eu estivesse morto, mas eu sobrevivi. E mudei de nome, fabriquei outra identidade. E comprei esse lugar aqui, depois de economizar muito trabalhando como capataz de outra fazenda. Quando Sophie me encontrou, ela também pensava ser filha de Cícero, mas nós fizemos um exame de DNA. Eu tinha certeza que ela era minha filha.

-E como você podia ter tanta certeza?

-Porque Cícero era estéril! Eu o escutei comentar sobre isso com um primo. Os dois estavam conversando no estábulo, quando Endora engravidou pela segunda vez. Eu estava escondido ali após encontrar-me com Endora. Cícero estava tremendo de ódio por causa da gravidez da esposa, mas o tal primo aconselhou-o a fingir que Sophie era filha dele, para salvar a honra da família. Endora acreditaria, já que não tinha conhecimento da esterilidade dele. Portanto, quando Sophie apareceu aqui, eu logo soube que era a minha filha.

-Mas... onde está este primo agora? Ele poderia aparecer e contar toda a verdade!
Sophie respirou fundo:

-Ele está morto. Morreu naquela noite junto com os outros. Eu o matei, Décio.

A cabeça de Décio deu uma volta, e ele sentiu-se enjoado:

-Mas... foi sua mãe, Endora que colocou veneno no chá...

Sophie baixou os olhos, e secou uma lágrima furtiva com o canto da mão:

-Eu era apenas uma menininha... este animal, primo de Cícero, tentava me agarrar. Eu não conseguia lutar contra ele. Ele... ele fez coisas horríveis comigo, e eu sentia medo, e nojo dele. Disse que mataria minha mãe se eu contasse, e que me colocaria para fora da casa para viver sozinha pela estrada. E eu acreditava nele. Porque eu tentei falar com Cícero sobre as coisas estranhas que o primo dele me obrigava a fazer, e ele me repreendeu e me colocou de castigo.

Ela deu uma pausa. O coração de Décio dava voltas. Queria protege-la daquelas memórias, mas ao tentar abraça-la, sentiu que o corpo dela se enrijeceu  completamente, e  ela se encolheu ao toque dele. As lembranças faziam com que ela tivesse aquela reação. 

-Certa tarde... eu entrei no paiol, e ele estava se divertindo ao matar um rato com veneno... o pobre animal guinchava e o corpo dele estremecia... foi uma visão horrível! Tudo o que eu pude ver, enquanto ele colocou suas mãos sobre mim, foi que junto ao pobre animal havia um vidro escuro. O vidro tinha um rótulo com uma caveira desenhada. Associei a morte do animal àquele vidro. 

Ela chorava copiosamente. Décio não sabia o que pensar, ou como agir. Aquela história era muito mais sórdida do que ele pensava.

-Quando ele acabou o que queria fazer comigo, eu fui embora, e pensei sobre o vidro a noite toda. De manhã bem cedo, fui até o paiol e procurei por ele nas prateleiras. Encontrei-o, e guardei-o comigo. Dias depois, Cícero estava na sala de estar com meus avós e aquela gente nojenta. Mandou que mamãe servisse um chá para eles. Enquanto ela foi pegar o açúcar para colocar na bandeja, eu peguei o vidro de veneno e derramei quase tudo no chá. Depois... você já sabe o que aconteceu... quando eles começaram a passar mal, fiquei apavorada, pois não sabia que eles sofreriam tanto, mas mamãe me viu encostada à parede, segurando o vidro na mãos, e imediatamente compreendeu tudo. 

Ela tomou o vidro das minhas mãos, limpando-o com um pedaço do tecido de sua saia, e começou a tocar nele. Sei hoje que tentava deixar suas impressões digitais sobre o vidro. Disse que eu ficasse calada, e que eu deveria esquecer-me de tudo o que acontecera ali. Repetiu aquilo tantas vezes, que eu acabei concordando. Então, depois que eles morreram, ela chamou a polícia e confessou o crime. Mas antes, ligou para sua prima no estrangeiro, contando o que fizera, ou seja, o que ela queria que as pessoas acreditassem que ela fizera. Esta prima concordou em me receber, e então ela chamou a polícia. Enquanto esperávamos, ela me fez jurar que jamais falaria sobre aquilo com ninguém. Que seria levada para longe de mim durante muito tempo, mas que sempre estaríamos juntas, e por mais que as pessoas falassem coisas terríveis sobre ela, que eu não deveria acreditar nunca, e jamais contar a verdade a ninguém. Eu deveria deixar todo mundo pensar o que quisesse. Eu era inocente. Seria sempre inocente, e ela, a culpada.

Décio estava chocado, mas tentava compreender os horrores pelos quais a pequena Sophie passara nas mãos daquelas pessoas cruéis: surras, castigos, humilhações, estupro. O silêncio era entrecortado pelas risadas que chegavam do bar. Lá fora, a vida continuava. Era sempre assim: quando o mundo acaba para alguém, ele sempre continua como antes para a maioria das pessoas. Décio tentou entender o que o grande amor que uma mãe tinha por seus filhos poderia fazer. Imaginou os anos que Endora amargara na prisão, longe da filha, e tudo o que fora obrigada a ouvir sem rebater. Com certeza, ela fora humilhada, ferida e espezinhada durante aqueles vinte e cinco anos.  Depois de tudo, ao invés de um pouco de alívio, tinha que conviver com a doença que a estava matando. Sentiu muita pena dela. Sentiu pena de Sophie, mas também um certo horror em relação a ela. Décio pensou que jamais deixaria que sua própria mãe pagasse por um crime que ele próprio cometera por causa de dinheiro. 

Ele olhou para Sophie, que estava de cabeça baixa, e depois, para o homem estranho sentado do outro lado da mesa. Ele tinha um olhar sereno, e na pele, muitas cicatrizes daquilo pelo qual ele passara e enfrentara pelo amor de uma mulher. Décio conseguiu perguntar a ele:

-Você sabia de tudo, esses anos todos?

-Não. Soube há apenas algumas semanas. Para mim, Endora cometera todos aqueles crimes. Mesmo assim, jamais consegui odiá-la ou sentir medo dela, pois eu sabia o que ela e seus pais passaram nas mãos daquela família horrorosa.

-E hoje, o que sente por ela?

Ruy deixou que seu olhar se perdesse nos desenhos intricados de um quadro, na parede em frente. Demorou um pouco para responder:

-Não sei mais. Eu me casei, continuei minha vida. Tenho uma esposa e dois filhos. Um deles, é a criança desaparecida, o menino que Cícero levou para longe de Endora. O irmão de Sophie. O nome dele é Roberto. Como o meu.

Décio conseguiu sorrir. O destino tinha tramas engraçadas.

-E como foi que você o encontrou?

-Fui seguindo as pistas. Descobri que tinha sido deixado em um orfanato no Rio de Janeiro. Um capataz da fazenda, que era meu amigo, me contou. Depois que Endora foi presa e Sophie viajou para o estrangeiro, eu fui procurar a criança, e no Rio de Janeiro, conheci minha esposa, Mirtes. Nós nos casamos e adotamos o menino, e um ano depois, ela engravidou. 

-E ele sabe de sua história de vida?

-Sabe. Desde cedo, nós nunca escondemos nada dele. Ele e Sophie vão se conhecer hoje à noite. Ele já deve estar chegando.

-Mas... você vai rever Endora?

Ele olhou para a filha, e havia um acordo estabelecido naquele olhar.

-Não... já faz muito tempo. Ela está muito fraca. Não quero deixa-la preocupada, achando que a história verdadeira virá à tona. Ela não sabe de nada. Nem deve saber.

Décio tentou não dizer nada; afinal, aquela história não era sua, e não deveria se envolver. Mas de repente, ouviu sua própria voz dizendo:

-Desculpem, mas acho que estão errados! Ela ficaria contente em saber que seu filho e seu grande amor do passado ainda vivem. Com certeza, morreria tranquila sabendo que Sophie não está sozinha, que tem um pai, e irmãos. Uma família. 

Pai e filha se entreolharam. Depois, Sophie pousou os olhos nele, com gratidão, dizendo:

-Eu sabia que você me compreenderia melhor que meu pai neste assunto, e que ficaria do meu lado, Décio. Por isso eu quis que você viesse e ficasse sabendo de tudo. Por favor, pode me ajudar a convencê-lo?

Décio sentiu-se desconcertado, mas disse:

-Você escutou a moça, Ruy...

-Por favor, me chame de Roberto. Sempre.

Décio desculpou-se, e prosseguiu:

-Você não precisa amar Endora hoje. Mas pelo menos, honre a memória do amor que os uniu, há tantos anos. Deixe que ela saiba que seu filho vive, e que você vive. Tenho certeza de que ela vai ficar contente. Eu a conheço pouco,  mas o suficiente para saber que sua maior preocupação na vida, tem sempre sido o bem estar de Sophie. 

Ruy – ou Roberto – hesitou antes de responder:

-Eu não acho que minha esposa vai gostar dessa história de voltar  a ver um grande amor do passado...

Naquele momento, Sophie abriu a bolsa e pegou uma fotografia, que entregou a ele. Décio viu que lágrimas brotaram nos olhos de Roberto ao contemplá-la, e ele precisou deixar o cômodo de repente, carregando a foto. Voltou minutos depois, com os olhos vermelhos. Sophie disse:

-Esta foto que eu te entreguei é da mulher que você conheceu e amou, a mãe de dois de seus filhos. Esta é a Endora que você conheceu no passado, que apesar de ser um pouco mais velha que você, era tão linda, que o encantou e o fez apaixonar-se por ela a ponto de arriscar a própria vida.

Então, Sophie pegou outra fotografia, de uma mulher velha, acabada e macilenta, entregando-a a ele, e dizendo:

-Esta é a Endora de hoje. Tenho certeza de que, se sua esposa olhar para ela, não terá medo.

Ela estendeu a foto para ele mais juma vez, e Roberto a pegou, olhando-a vagarosamente antes de explodir em lágrimas. Ele então pousou as duas fotos sobre a mesa, lado a lado, dizendo:

-Nem parecem a mesma pessoa. Como ela envelheceu! Pobre Endora... eu sinto muito, Sophie. Meu Deus, eu sinto muito...

Naquele instante, bateram |à porta. Antes que alguém pudesse abri-la, o rosto de um homem muito parecido com Sophie – o mesmo cabelo rebelde e os mesmos olhos verdes – apareceu na porta entreaberta:

-Posso entrar?




(continua...)






domingo, 19 de junho de 2016

A RESENHA DO MAL - CAPÍTULO X







A manhã seguinte foi como o despertar de um pesadelo. Abriu os olhos, e viu a luz do sol entrando pela cortina transparente, brincando com a poeira. Escutou o barulho de pássaros cantando lá fora, e sentiu o aroma de café fresco. Feliz, viu que Sophie ainda dormia ao lado dele, e não o mandara embora, como da outra vez. Ela abriu os olhos, e ele ficou esperando pela reação dela, cheio de ansiedade. Nunca sentira aquilo antes por causa de uma garota. Ela ficou olhando-o durante algum tempo, e então, esticou a mão e tocou-o na perna, fazendo-lhe uma suave carícia. Aquilo foi o suficiente para despertar nele uma tonelada de desejo, e eles se engalfinharam na cama, e tudo foi intenso, forte, urgente. Ainda tonto de prazer, ele segurou a cabeça dela entre as mãos, obrigando-a a olhar para ele:

-Sophie, o que você fez comigo?

Ela nada disse: apenas beijou-o nos lábios, como se estivesse com fome e quisesse alimentar-se dele. E quando ele estava ficando pronto para ela novamente, Sophie esfriou sob o corpo dele, afrouxando os músculos, e ele sentiu. Olhou para ela, e o que viu, foi um par de lindos olhos verdes que pareciam mais apavorados do que cheios de desejo. Ela tentou balbuciar alguma coisa, mas não conseguiu, então apontou para onde queria que ele olhasse, atrás dele. Décio virou a cabeça na direção que ela apontava, e teve que se conter para não gritar: havia alguém ali no quarto, em plena luz do dia. Alguém com olhos maldosos, um homem grande e ruivo, que estava observando os dois, e parecia divertido. Um arrepio de medo percorreu a coluna dele. Mas quando Décio abriu a boca para falar, a fim de perguntar quem ele era, e o que queria, o homem desapareceu como se fosse fumaça, diante dos olhos dele. 

Décio saiu de cima de Sophie, e os dois se abraçaram, e ela tremia:

-É ele! É ele... foi ele, Décio. Ele...

Décio logo compreendeu que tratava-se do tio que a agarrara quando criança. 

-Mas Sophie, como ele se atreveria a voltar aqui, agora que...

-Ele não pode voltar, Décio. Não pode! Não poderia, ele está.. morto! Eu o matei!

Décio não podia acreditar no que acabara de escutar! Nada estava fazendo sentido: ele não acreditava em fantasmas. Mortos não voltavam, e ele disse aquilo a ela. Sophie pareceu não ouvir. Ele viu que os olhos dela estavam vidrados enquanto ela se levantava da cama. Ela cruzou o quarto nua, e então entrou no banheiro, fechando a porta. Ele escutou o ruído do chuveiro. Tentou colocar a própria cabeça em ordem, mas nada fazia sentido. Ficou com medo de que estivesse ficando louco. 
Quando Sophie saiu do banheiro, vestia calças jeans e uma bata preta com franjas azuis. Calçava botas de cano alto sobre a calça, e usava um pingente com uma pedra azul grande. Estava linda. Ele olhou para ela, e ela olhou-o de volta, desta vez, com sua habitual frieza. Ia sair do quarto, mas ele segurou-a pela mão, obrigando-a a parar.

-Quem você matou, Sophie?

Ela olhou para ele como se não soubesse do que ele estava falando, e rindo, encolheu os ombros:

-Você deve ter sonhado! Eu vou tomar meu café. 

Dizendo aquilo, ela abriu a porta, que deixou escancarada atrás de si, sem se importar com a nudez dele. Décio vestiu suas roupas, que estavam sobre uma cadeira, e foi para a sala de jantar, onde Brian tomava café com Endora, que parecia estar se sentindo bem melhor. Ela ria das coisas que ele dizia. Sophie, sombria, tomava seu café alheia à conversa dos dois. Brian logo notou o clima tenso entre Sophie e o irmão, mas achou melhor não dizer nada. Continuou com seu trabalho de encantar Endora e fazê-la rir. Depois, Brian pegou sua câmera e saiu, dizendo que ia dar uma volta e fazer umas fotos. 
Endora olhou de Brian para Sophie, parecendo preocupada. Quis quebrar o gelo:

-Seu irmão é adorável, e muito bem-vindo a esta casa, Décio.

-Obrigada, Endora. Sente-se melhor?

-Sim... há muito eu não ria assim. Mas vejo que não posso dizer o mesmo sobre vocês. O que houve?


Sophie ergueu as sobrancelhas:

-Como assim, mãe? Não houve nada. Só dormimos juntos de novo.

Décio soltou o guardanapo sobre a mesa de maneira brusca, e afastando a cadeira com raiva, saiu da mesa sem pedir licença. Hesitou à porta de saída, e disse, dirigindo-se à Endora:

-Eu acho que vou embora. Obrigada por tudo, Endora. 

A senhora brandiu um sininho, chamando Diana, que veio mais do que rapidamente, e então ela segredou algo no ouvido dela, que correu atrás de Décio:

-A senhora pede que por favor, você e seu irmão fiquem, e que desculpem Sophie. Ela anda muito tensa com todos os acontecimentos recentes. 

E dirigindo a ele um pedido pessoal, no qual Décio sentiu uma súplica, Diana disse, segurando-o pelo braço:

-Por favor, senhor, fique! Ela não tem muito tempo.

De alguma maneira, Décio sentiu que Diana não pedia por Endora, mas por si mesma. Quis perguntar a ela por que ela não deixava a fazenda e voltava para sua terra natal, mas antes que formulasse a pergunta, eles ouviram o sininho de Endora, e Diana voltou correndo para dentro da casa. Décio colocou as mãos na cintura, chutando o chão. Entrou na casa. Ele sabia que não ver Sophie nunca mais seria a coisa mais sensata a se fazer, mas ao mesmo tempo, ele não conseguia ir embora. 
Naquela tarde, após o almoço, Endora chamou-o ao seu quarto. Sophie passara a tarde toda fingindo que ele não existia, o que o deixava muito magoado. Ela resolveu conversar com Brian, com quem esbanjou simpatia daquela vez, e ambos passaram a tarde juntos, passeando pela fazenda – sem ele. 
Décio bateu à porta do quarto, entrando ao escutar a voz de Endora. Ela estava radiante, sentada à cama, coberta por um lençol branco bordado. Usava uma camisola azul-clara, e os cabelos tinham sido penteados e estavam presos por um arco de cabelo, lavados e sedosos. Nem parecia uma mulher tão doente. Tinha usado um pouco de maquiagem, o que talvez explicasse sua aparência tão saudável. 
Décio sentou-se na mesma poltrona de antes, e Endora começou:

-Décio, antes quero agradecer por você ter ficado. É muito importante para mim que você termine seu trabalho, meu jovem. E é muito importante para Sophie também...

-Ela me odeia. Eu não entendo. Tivemos uma noite linda, e de repente ela me olha como se eu não fosse nada! Ela é tão... inesperadamente brusca...

Endora riu:

-Minha filha está confusa, Décio. Sophie nunca se apaixonou por ninguém antes.
O coração dele deu uma guinada dentro do peito, e ele tossiu de leve. Então Sophie o amava? Mas como?

-Acho que você está enganada, Endora.

Ela balançou a cabeça, negando e tornando-se séria:

-Apesar de passarmos anos separadas fisicamente, nós nos correspondíamos, e eu acompanhei cada fase da vida de Sophie. Conheço minha filha, e é só uma questão de tempo até ela descobrir o que está sentindo por você. Até Brian notou! Diana também... você não?

-Não sei... Às vezes, como ontem à noite, ela parece que gosta de mim, mas de repente, Sophie me olha como se eu fosse um estranho. Nunca garota nenhuma fez isso comigo. O que ela faz... seria o suficiente para que eu nunca mais olhasse na cara dela, mas ela é diferente das outras.

Endora ouviu-o com atenção, e disse:

-Vocês nasceram um para o outro. É claro que sim!

Décio gostou de escutar aquilo, mas algo não se encaixava, não fazia sentido. Gostaria de poder acreditar em Endora, e nos sentimentos de Sophie. Mas ele não estava conseguindo. Havia algo errado com aquelas mulheres, aquela casa. Ele hesitou, mas achou que deveria perguntar de uma vez:

-Os sonhos dela, Endora. Ela me contou sobre o que eles são. 

-Isto é mais uma prova! Ela nunca fala sobre eles com ninguém. 

-Mas ela disse algo que me deixou confuso... bem, ela tinha acabado de ter um pesadelo, estava muito impressionada... mas ela... Endora, ela me disse que matou o homem que fez aquilo com ela. É verdade?

Endora engoliu em seco, levando as mãos ao rosto:

-Não, não, não! Não é verdade. Ela está confusa, é só isso. Como você disse, ela acabara de ter o pesadelo. Fui eu quem o matou. Matei  todos eles, envenenados. Eu dei a eles veneno de rato. Achei no paiol. Eu mesma coloquei-o no chá antes de servir, fui eu, não ela. E eu quero que todo mundo saiba como foi. Você vai me ajudar! Tem que me ajudar!

Décio tentou acalmá-la, pois Endora estava ficando agitada demais, e ele teve medo. Serviu-lhe um pouco de água que estava em uma jarra sobre a mesinha de cabeceira, e pediu-lhe que se acalmasse. Ela respirou fundo, bebendo a água. Ele estava ainda mais confuso, e agora se perguntava se tinha sido mesmo Endora quem matara aquelas pessoas, há tantos anos... mas ao mesmo tempo, uma menina de apenas seis anos não poderia ter feito aquilo sozinha. Seria impossível. Sim, seria impossível! Mas... por que a menção daquela possibilidade tinha deixado Endora tão apavorada ao ponto de quase entrar em pânico? 

Ele estava evolvido em seus pensamentos, quando Endora o trouxe de volta à realidade:

-Podemos começar?

Ele relaxou, encostando na cadeira. Ligou o gravador, e a voz dela tornou-se quase hipnótica. 

-Falávamos de como Cícero reagiu ao saber que tinha uma menina, e não um menino como ele queria, e do quanto Sophie o enfrentava... pois é... foi exatamente assim. Ela sabia que o pai não a amava. Sabia que os avós não a amavam. Sabia que eu era a única criatura dentro desta casa que a amava de verdade. E ela apegou-se a mim. E eu, a ela. Não havia lugar para mais nada, nem mais ninguém depois que Sophie nasceu. Eu pensava muito no meu garotinho, que tinham levado para longe, e uma dor incrivelmente forte me apertava o peito naquelas horas...mas eu precisava esquecer, pois ele deveria estar morto há muito tempo, e estava. Mas Sophie estava viva, e precisava de mim. 

-Você chegou a procurar pelo seu filho?

-Eu não podia... não podia sair da fazenda. Era prisioneira. Perguntei a todo mundo: empregados da fazenda, meus sogros. Cheguei a indagar em fazendas vizinhas, mas ninguém me dizia nada. Ou não sabiam, ou escondiam alguma coisa por medo de Cícero. Um dia, durante uma discussão, Cícero me disse que era melhor esquecer aquele menino, pois ele não existia mais. E foi o que eu fiz, mas não sem muita dor. Ainda me lembro dele, ainda posso sentir seu cheiro de bebê, ouvir sua voz, sua risada... ele nunca cresceu, entende? É como se tivesse ficado encantado no tempo, sempre bebê, e sempre meu... não importa para o quão longe o carregaram, eu sempre estou junto com ele, e para isso, basta fechar os olhos do corpo e abrir os olhos da alma. Isso, ninguém conseguiu tirar de nós: somos um só. Mãe e filho. 

Ela puxou um lenço de dentro do bolso da camisola, e secou os olhos. Décio comoveu-se pelo amor que ela ainda nutria por seu filho, mesmo após tantos anos. Ela continuou:

-Um dia, os parentes de Cícero vieram para mais uma de suas interináveis temporadas, nas quais eu tinha que bancar a esposa feliz e a anfitriã satisfeita. Eles me tratavam como se eu fosse a empregada da casa, mal me dirigindo a palavra. Mas eu suportava tudo, pois a minha esperança estava naquele saco de dinheiro que eu juntava, e que ficava maior a cada vez. Quando eu não aguentava mais a presença repugnante daquela gente – eles gostavam de beber e jogar cartas até tarde da noite, e fumavam charutos fedorentos enquanto o faziam – eu ia para a varanda do segundo andar, e olhava a estrada, que me chamava. Sonhava que ainda não era tarde, e quem sabe, lá fora eu ainda fosse encontrar Ruy e meu filho. Fantasiava que os dois estariam juntos, felizes em algum lugar, esperando por mim e por Sophie. Porque eu tinha certeza que Ruy a criaria como se fosse sua. E sonhar foi o que me salvou da loucura naqueles instantes.

E então, eu percebi que minha Sophie andava diferente. Arredia, até comigo. Ela sempre brincava comigo, gostava de fazer roupas para suas bonecas, e nós íamos para longe da casa da fazenda carregando sua boneca, uns trapos, tesouras e agulhas...e nós a vestíamos de princesa. A boneca de Sophie. Mas ela não queria mais brincar com sua boneca, e estava ficando cada vez mais arredia. Parecia esconder algum segredo de mim. Eu estava muito preocupada, mas quando falei com Cícero, ele não deu importância, dizendo que meninas eram assim mesmo, cheias de frescuras. Provavelmente, ela estava ‘de lua.’ Como eu, ele disse. 

E um dia, eu vi. Segui Sophie até o paiol. Vi quando aquele marmanjo ruivo colocou suas mãos nela. Eu vi, e não consegui fazer nada, a não ser ficar grudada no chão, as lágrimas caindo. Eu tinha que fazer alguma coisa, mas sabia que se eu entrasse de repente, ele seria capaz de torcer o pescoço de minha filha – já o vira matar cães, gatos e outros animais por puro prazer. Mas ela me viu, e gritou por mim. Eu tive que correr até ela, e enfrentá-lo. Ele se recompôs, guardando sua indecência, e soltando Sophie, que eu aninhei em meus braços, ele nos disse que mataria a ambas, da mesma forma que matara, ele mesmo, com as próprias mãos, a pedido de Cícero, o meu bebê! E antes dele, Ruy! E ele descreveu como atirou em Ruy após amarrá-lo a uma árvore, e como jogara meu bebê dentro do rio, e ficou olhando até que o rio o cobriu. Eu fiquei possessa de ódio! Prometi que todos saberiam de suas maldades, disse que iria à polícia! Ele riu, e saiu do paiol endireitando a cinta, sem se importar conosco, e voltou ao casarão. 

Décio sentiu os olhos arderem, e percebeu que estivera tão envolvido pela história de Endora, que nem percebera que estava chorando. Ele nunca chorava! Há anos não o fazia. Aquelas mulheres realmente mexiam com o seu emocional. Mesmo assim, sabia que aquela história tão cheia de emoção não estava batendo com alguma coisa, mas não sabia o que era. 

Endora tomou mais um pouco de água, e deu continuação à sua história:

-Eu sabia que de nada adiantaria contar àquelas pessoas, pois elas não acreditariam em mim. Diriam que eu estava levantando calúnias contra uma pessoa da família, alguém de confiança, honrado. Mas eu precisava fazer aquilo parar. Naquela mesma noite, eu peguei o saco de moedas e coloquei algumas coisas na mala, sem que Cícero se desse conta – estavam todos na sala, jogando cartas. Peguei Sophie pela mão e nós duas saímos noite adentro, em busca de um destino melhor. Caminhamos pela beira da estrada até amanhecer. Pensei que eu estava livre, mas logo veio um carro da fazenda, com Cícero ao volante, e seu primo ruivo, o horroroso, e eles nos forçaram a entrar no carro e voltar para casa. Eu gritei, tentei contar a Cícero o que estava acontecendo à nossa filha. Mas é claro que ele não acreditou em mim. Nem um pouco. Achou que eu estava fugindo para ir ao encontro de Ruy, e me assegurou de que ele estava morto. Chegamos à fazenda, e na frente dos empregados, Cícero tirou a cinta e aplicou-me uma surra com ela, do lado de fora da casa, para que todos vissem, e depois, deu ordens a todos os empregados de que eu deveria ser vigiada 24 horas por dia, e que jamais poderia sair dos limites da fazenda. Eles nada disseram: baixaram as cabeças, e com certeza, cumpririam as ordens do seu senhor. Minha menina, enquanto isso, foi levada para dormir no quarto dos avós. Cícero disse que a menina precisava ser educada devidamente, e que eu não era a pessoa certa para isso. 

Dizendo aquilo, Endora deixou que faíscas de ódio saíssem dos olhos dela, provocadas pelas dores daquelas lembranças. Depois, não conseguindo continuar, pediu a Décio que a deixasse descansar um pouco. 

Quando ele saiu do quarto, encontrou Sophie sentada no chão do corredor, junto à porta do quarto. Ela chorava. Ele quis tomá-la em seus braços e consolá-la, mas a dor dela era tão grande, que ele teve medo. Apenas depositou uma carícia sobre a cabeça dela, e depois foi trancar-se em seu quarto.



(CONTINUA...)





terça-feira, 14 de junho de 2016

A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO IX











Na manhã seguinte, a caminho da fazenda, Décio ainda se perguntava se teria sido uma boa ideia levar Brian com ele naquela entrevista. Recomendara que ele mantivesse a boca fechada, fosse educado, não fizesse perguntas e mantivesse uma distância cortês de Sophie, pois ela era avessa a conversas com estranhos. Brian acabou ficando irritado, e eles quase tiveram um desentendimento:

-Confie em mim, Décio. Não estou aqui para atrapalhar nada, e sei me comportar. Não sou mais um menininho idiota de quem você precisa tomar conta.

A manhã estava estranhamente fresca em relação aos outros dias, e um vento cortante soprava sem parar. O céu negro anunciava chuva. Décio parou o carro junto ao casarão, que parecia ainda mais sinistro naquela manhã cinzenta. Ao ouvir o motor, Sophie foi abrir a porta, e seu semblante demonstrou claramente que a presença de Brian não era desejada. Décio tentou contornar o mal-estar, apresentando-o:

-Sophie, este é Brian, meu irmão. Ele... chegou ontem, de repente, e achei que não incomodaria se eu o trouxesse. Mas se você quiser, ele pode ir embora.

Sophie examinou Brian dos pés à cabeça, e o rapaz corou. Ele apertava as mãos nervosamente, os braços estendidos ao longo do corpo. Ela pôde ver a tensão das veias da testa do garoto; reparou nos cabelos presos em um rabo de cavalo baixo, a calça jeans limpa e a camiseta imaculadamente branca. Brian calçava um par de tênis velhos, o único que trouxera consigo. Ela viu também que as roupas pareciam um tanto largas para ele, e que provavelmente pertenciam a Décio. Por um momento, sentiu pena dele, e saindo do caminho, fez sinal para que entrassem. Quando chegaram à sala, ela apontou as escadas para Décio, e disse secamente:

-Ele fica. 

Brian estancou no meio da sala sem saber o que fazer. Ela deu um suspiro de impaciência:

-Se quiser, pode dar uma volta pela fazenda. Tem alguns lugares bonitos. Ou fique por aí.

Dizendo aquilo, ela subiu as escadas com Décio, sem olhar para trás.

Brian ficou olhando em volta, impressionado com a quantidade de coisas velhas e empoeiradas. Achou que o lugar precisava de uma mão feminina, como sua mãe gostava de dizer, e teve certeza de que ela teria torcido o nariz àquele arremedo de decoração demodé, e principalmente, àquelas fotografias antigas e amareladas sobre os móveis. Uma delas – provavelmente, de Sophie, ainda criança, com sua mãe – fascinou-o; apesar da menina ser apenas uma criança, já era tão linda que prendia os olhos de quem a olhasse. Admirou-se da sorte do irmão em estar perto de alguém como ela, embora ela não fosse nada simpática.

Colocou a foto de volta no lugar – tentou encaixá-la exatamente sobre a marca que a poeira deixara em volta dela. Depois, decidiu dar uma volta pela fazenda, como Sophie sugerira. Saiu pensando no porquê daquelas pessoas nunca reformarem ou limparem a casa, se eram tão ricas. Sua mãe teria um chilique se entrasse ali. 

Enquanto isso, Décio parou à porta do quarto de Endora, que cheirava a remédios e limpeza. Parecia ser o único cômodo realmente limpo da casa. O assoalho de madeira brilhava, e os lençóis brancos e caros formavam uma nuvem em volta de Endora, quase tão branca quanto eles. Ela parecia ter envelhecido alguns anos desde o dia anterior. Ela olhou para ele, fazendo sinal para que entrasse e sentasse na poltrona em frente à cama. Para sua decepção, Sophie saiu, fechando a porta. Havia tantas coisas que ele gostaria de perguntar a ela, mas teria que deixar para uma outra hora. 

Olhou para Endora:

-Então, sente-se melhor? Tem certeza de que deseja continuar hoje?

Ela assentiu com a cabeça.

-Sim. Não sei se estarei viva amanhã, meu rapaz. Vamos retomar a história de onde paramos, ou seja, a partir da morte de minha mãe.

Ele preparou o gravador, e ela começou: 

-Depois que enterrei minha mãe, e que Ruy e meu filho desapareceram, eu fiquei realmente muito sozinha. Sentia-me a mais desgraçada das criaturas. Precisava bancar a esposa feliz e obediente para as visitas de Cícero, ou ele me surrava. Aliás, não precisava haver motivos para que ele me batesse; às vezes, ele começava apenas porque estava com vontade. Meus sogros não intervinham; quando viam que as humilhações e surras iam começar, eles se retiravam e iam para seu quarto, fechando a porta. Eu achei que nada poderia piorar, e que meu destino era viver para sempre isolada entre aquelas pessoas que me odiavam, e a quem eu odiava! Até os empregados temiam falar comigo, por medo de irritarem Cícero, ou meus sogros. Eu estava totalmente só, e muito sentida por saudades de meus pais, meu filho e meu amante.

Eu achava que nada poderia ser pior do que aquilo que eu estava vivendo, mas logo descobri que eu estava enganada: Cícero passou a fazer sexo comigo. Não havia amor, ou qualquer tipo de emoção. Era apenas uma maneira a mais que ele encontrou para humilhar-me e me fazer infeliz. Quatro anos após aqueles acontecimentos, descobri-me grávida novamente. Tive que dar a notícia a ele. E Cícero ficou quase contente com a notícia de que em breve seria pai, e desta vez, o filho seria realmente dele, pois não havia a menor possibilidade que não fosse, já que eu era vigiada o tempo todo. Parou de me bater e proibiu que meus sogros tocassem em mim. Não se tornou um homem gentil, mas pelo menos, não era mais violento. Fazia questão de que eu fosse bem alimentada e mandava um médico até a fazenda para me examinar uma vez por semana! Mas eu não tinha permissão para deixar a fazenda, sob hipótese alguma. 

A gravidez foi tranquila... logo dei à luz , ajudada por minha sogra, à menininha mais linda do mundo, a minha Sophie. Apaixonei-me por ela desde o primeiro instante em que a vi. Estava disposta a protegê-la daquela gente nem que para isso eu tivesse que matar! Eles não a tirariam de mim, não fariam com ela o que tinham feito a Ruy, aos meus pais e ao meu filho. Quando Cícero soube que era uma menina, ele não se preocupou em demonstrar a sua decepção! 

Naquele ponto da narrativa, Endora deixou que seu olhar se perdesse em algum lugar inalcançável dentro de suas memórias, fitando as nuvens negras lá fora. Décio ajeitou seu travesseiro, e serviu-lhe um pouco do suco que estava sobre a mesa de cabeceira. Endora prosseguiu:

-Cícero deixou que eu escolhesse o nome dela: Sophie. Não sei bem o motivo, mas sempre achei, desde que a vi pela primeira vez, que ela um dia moraria em Paris o que realmente aconteceu. Meus sogros a ignoravam quando podiam, e quando não podiam, faziam questão de implicar com ela. Nem mesmo o sorriso inocente de uma criança conseguia comover aqueles monstros. Cícero apenas a tolerava, mas quando ela cresceu e passou a correr pela fazenda, independente, acho que ele não gostou; achou que tinha que mostrar que era ele quem mandava em tudo, e que ela era apenas uma das coisas que pertenciam a ele naquele lugar. Minha vida era um inferno, exceto nos momentos em que estávamos sozinhas, brincando em paz no jardim, ou passeando pela fazenda. Naqueles momentos eu era feliz.

Sophie era livre e destemida, e por incrível que pareça, não tinha receio de desobedecer ao pai e aos avós. Fazia o que queria, e mesmo que fosse punida, não baixava a cabeça nunca! Felizmente, Cícero passava muito tempo fora em suas viagens, e quase não tinha tempo de olhar para ela. Mas os avós não perdiam a chance de castigá-la, colocando-a em quartos escuros e até através de punições físicas. Quando descobriram que Sophie tinha medo de baratas, amarraram-na a uma cadeira e colocaram várias sobre ela. Eu ouvi minha filha gritar, e corri até a sala para encontrá-la amarrada, enquanto os dois riam. Ela tinha apenas quatro anos... desamarrei-a, e xinguei os dois de todos os nomes ruins que eu conhecia. Meu sogro veio para cima de mim, ameaçando me bater, mas eu reagi... não sei o que me deu, eu reagi, empurrei-o e ele caiu sentado. Minha sogra me olhou, eu vi os olhos dela queimarem de ódio enquanto ela ajudava meu sogro a levantar-se. Depois daquele tombo, ele passou a sentir muitas dores no quadril e precisou da ajuda de uma bengala para caminhar.

Décio disse:

-E ele bem que mereceu. 

-Mas quando Cícero voltou para casa e ficou sabendo do ocorrido, é claro que ele me bateu... e pela primeira vez, bateu na menina também. Eu virei um monstro! Corri para cima dele, arranhando suas costas, e consegui livrá-la dele. Ele me empurrou, eu caí e quebrei um braço. Mas reagir foi bom... mostrei a ele que eu não era uma inútil e uma fraca. Comecei a tentar elaborar um plano para fugir dali com minha filha... eu catava dinheiro dos bolsos dele e do meu sogro, qualquer moedinha, e juntava em um saco de estopa que eu escondia no celeiro. Apenas Sophie sabia da existência daquele saco. Eu planejava levá-la comigo durante uma das viagens de meu marido. 

Porém, apesar de ele estar quase sempre fora, um dia chegaram à fazenda alguns primos e tios dele...

Ela tossiu, e a crise de tosse fez com que Endora erguesse o corpo em busca de ar, e quando Décio ia levantar-se para ajudá-la, Diana entrou rapidamente no quarto e ministrou-lhe um medicamento injetável, que foi fazendo com que ela se acalmasse aos poucos. Apavorado com aquela cena dantesca, e temendo que tivesse que testemunhar pela primeira vez a morte de alguém, Décio encolheu-se no canto da parede, tentando manter a calma enquanto Diana e Sophie tratavam de Endora. Sophie começou a aplicar compressas na testa da mãe, e colocou-a no oxigênio. 

Finalmente, elas pareceram se lembrar que ele estava ali, e Sophie, olhando rapidamente para ele, anunciou:

-Vocês ficam para o almoço. Mamãe quer assim. Ela quer que você esteja aqui sempre, pois quando sentir-se melhor, não deseja perder tempo. Ela quer contar a história dela para você, e eu não sei porque. Mas se é isso que ela quer...portanto, já preparei dois quartos: um para você e outro para Brian. E não se preocupe: estão ambos limpos. Diana me ajudou. 

Décio gostou da perspectiva de ficar sob o mesmo teto que Sophie, embora isso significasse ter que viver naquela casa sombria e esquisita. Tinha a esperança de que aquela noite em que fizeram amor poderia se repetir, e esta expectativa o deixava aceso. Culpou-se por pensar em sexo em um momento daqueles, mas como fugir de si mesmo?

Pediu licença e foi até a sala, mas encontrou-a vazia. Seu irmão devia ter seguido o conselho de Sophie e ido dar uma volta pelo lugar. Sabia que Brian gostaria da ideia de ficar por ali. foi à procura dele. Lá longe, o calor do dia anunciava chuva para o final da tarde, através de grandes rolos de nuvens cinzentas que se aproximavam no horizonte.

Décio foi caminhando pelo terreno lateral à casa, que nada mais era do que um pedaço de pasto com árvores aqui e ali. Ao final deste, o terreno se afunilava, transformando-se em mata por onde se podia seguir através de uma trilha de terra batida. Ele caminhou por uns dez minutos, e acabou chegando à cabeceira de um largo rio verde-musgoso, as águas tão calmas e paradas que o céu se refletia nelas. E lá ele encontrou seu irmão, sentado sob uma mangueira, comendo uma fruta e observando o rio. Chamou seu nome, e Brian teve um pequeno sobressalto:

-Oi. Venha sentar aqui um pouco. Olhe só como é bonito. Acho que eu poderia viver aqui... isso é, se tiver wi-fi. E algum clube aqui por perto, cinema, um shopping e alguns bons restaurantes... 

-Esqueça, não há nada disso por aqui, Brian. 

Brian coçou a testa:

-Cara, que casa sinistra! E tão empoeirada... olha que eu não sou de reparar nessas coisas.

-Sendo filho de Patrícia, aposto que é sim. É verdade... é uma casa bem estranha. Mas mesmo assim, nós vamos passar a noite aqui. Se não quiser ficar, pode pegar o carro e ir para a casa alugada. Mas vai ter que cozinhar se quiser comer por lá. 

Brian arregalou os olhos, dando uma risada:

-passar a noite aqui? Você só pode estar brincando! Por que?

-Porque Endora está muito doente, e pode morrer a qualquer momento. Se eu quiser minha história, tenho que ficar aqui para que ela a conte quando estiver se sentindo melhor.

-Pôxa... então ela está mal mesmo, hein? Coitada da Sophie. Vai ver que é por isso que ela é tão marrenta. 

Décio não pode deixar de rir, enquanto tomava assento ao lado do irmão. 

-Não, acho que ela nasceu assim. Mulher difícil...

-Diferente das minas que você está acostumado, não é? Como a Rafaela...

-É. Diferente. Mas eu não estou querendo nada sério com ela. Minha vida é longe daqui, e a dela, assim que a mãe morrer, acredito que também será longe daqui. Longe do Brasil. Com certeza, vai voltar para a Europa. 

Brian deu um longo suspiro. Levantou-se, limpando a calça com as mãos. Jogou uma pedrinha no rio, fazendo com que ela ricocheteasse sobre a superfície. Eles ouviram um trovão ao longe. Décio disse:

-Se não for ficar, melhor ir de uma vez, antes que o toró caia. 

Brian olhou para ele, e riu:

-Vou ficar. Pelo menos, tem comida decente, espero...

-Tem. Sophie cozinha bem. Mas lembre-se de não fazer nenhuma pergunta a ela, pois Sophie detesta papo furado. E não fique andando pela casa como se fosse um zumbi; fique no seu quarto e só saia de lá se alguém chamar, ok? 

-Ok.

Na hora do jantar, Sophie sentou-se à mesa com os convidados. Ela estava usando um vestido verde-escuro, debruado de rendas negras, e uma camada de tule preto sobre a saia. Os cabelos revoltos tinham sido cuidadosamente despenteados, dando-lhe um ar mais juvenil e sedutor. Os olhos verdes dela brilhavam, as pupilas estavam dilatadas e pareciam querer saltar dos olhos. Como antes, Diana não jantou com eles. 

Décio pensou que ela parecia uma gata brava. Ou uma gata assustada? Brian serviu-se do empadão de palmito como se estivesse em sua própria casa, enchendo grandes colheres de arroz e colocando no prato. Também comeu bastante salada de alface e tomate, talvez para compensar os vários dias que passou alimentando-se tão mal. Décio foi mais educado, mas também repetiu um pedaço de empadão, enquanto Sophie mal tocou na comida. Não era à toa que ela era tão magra, Décio pensou. 

O silêncio da mesa era entrecortado apenas pelo ruído dos copos e talheres. Sophie estava visivelmente tensa. Décio achou melhor não colocar lenha na fogueira, e sabendo que ela tinha um humor muito variável, achou melhor esperar até que ele mudasse e ela se tornasse mais amigável. Mas Brian, que tentava seguir os conselhos do irmão e não fazer perguntas, acabou por não resistir:

-Sophie... posso fazer uma pergunta?

Décio fuzilou-o com o olhar, mas Sophie concordou com a cabeça, pousando os talheres e olhando para ele.

-O que você pretende fazer depois... depois que... você sabe, a sua mãe...

Décio ergueu uma mão, vermelho de raiva:

-Brian! Cala essa boca!

Brian corou até a raiz dos cabelos, e o clima ficou muito tenso. Sophie tomou um gole de vinho, limpou a boca com o guardanapo de papel e encolheu os ombros:

-O óbvio. Vou embora daqui. Não vou ficar morando nesse mausoléu. Isso não é vida para mim. Por que a pergunta?

Brian olhou para Décio, que parecia furioso, mas resolveu arriscar:

-Você é jovem, e muito bonita, se me permite dizer...

Ele ficou esperando que ela agradecesse o elogio, mas como aquilo não aconteceu, ele continuou, dessa vez mais tímido:

-Você não pensa em se casar?

Décio quase saltou sobre o irmão:

-Agora chega, Brian! Cala essa boca e vá para o quarto!

Brian largou os talheres, dirigindo ao irmão um olhar magoado:

-Eu só estava... eu só queria...

Décio repetiu a ordem:

-Vá agora! 

Sophie não fez menção de intrometer-se a favor dele, e só restou a Brian sair da sala, e subir as escadas de cabeça baixa. Décio desculpou-se:

-Eu sinto muito, Sophie. Não sei onde ele está com a cabeça. Na verdade, não temos muito contato. Mal o conheço, e ele veio parar aqui assim, do nada...

Ela quase sorriu, tomando outro gole de vinho:

-Parece que você terá outro repórter na família. Está tudo bem, ele é só uma criança. Um moleque. 

Então, ela riu de verdade, pela primeira vez, e covinhas formaram-se em seu rosto, deixando-a ainda mais encantadora. Ele riu também, e atreveu-se a esticar a mão sobre a mesa até tocar a dela. Ela não moveu a mão, e olhou-o com um ar desafiador. Décio pôs a mão sobre a dela, e ela deixou-o ficar. Uma espécie de eletricidade passou de um para o outro. Décio sentiu o coração acelerar como nunca acontecera antes. Sophie deu um pequeno suspiro:

-Que tal conversarmos na varanda? Está quente aqui. 

Ele concordou, e eles foram se sentar nas cadeiras velhas de vime, com assentos acolchoados forrados por um tecido velho e esgarçado. Ele viu os trovões e raios que se aproximavam ao longe:

-Parece que teremos um temporal daqueles esta noite.

Ela concordou com a cabeça.

-Você virá ao meu quarto hoje, Décio?

Ela era assim, direta, sem subterfúgios, nada parecida com as meninas fúteis que ele conhecia, e que estavam sempre preocupadas em mostrarem ser sensuais sem o serem, inteligentes e espertas quando na verdade, eram tolas e ridículas, imaturas e fúteis. Sophie, mais velha que ele alguns anos, sabia o que queria e como conseguir, não tinha medo de nada, e nem falsos pudores. Décio pousou a mão sobre a dela novamente, e sem querer, a voz dele ficou rouca:

-Claro que sim, Sophie.

Eles se levantaram das cadeiras, e ele imprensou o corpo dela entre a parede e o corpo dele, em um longo, quente e apaixonado beijo.

Mais tarde, abraçados um ao outro na cama enquanto a tempestade caía lá fora, Décio não pode mais disfarçar uma verdade óbvia: estava apaixonado pela primeira vez na vida. Amava Sophie. Viver sem ela seria algo bem difícil de se fazer. Sentindo o calor do corpo dela contra o seu, e apreciando a beleza suave dos cílios longos e grossos de Sophie, ele adormeceu. 

Despertou horas depois com ela mexendo-se entre seus braços, a boca entreaberta, o rosto em fogo. Estava tendo outro de seus pesadelos. Ele a abraçou mais forte, mas ela desvencilhou-se dele, ainda dormindo, e desferiu um arranhão em seu peito. Décio segurou-a ainda mais forte, o que fez com que Sophie parecesse ainda mais apavorada, e finalmente, ela gritou, despertando e sentando-se na cama, a silhueta dela desenhada contra a claridade dos raios. Ele pôs a mão sobre as costas dela, e sentiu que ela ofegava. Tentou abraça-la, e daquela vez, ela não o repeliu, deixando-se ficar nos braços dele até que finalmente se acalmou. E então ele perguntou:

-Que pesadelos são esses, Sophie?

A voz dela saiu quase sussurrante:

-Ratos...

-Você sempre os tem?

-Sim, desde criança.

-Como eles acontecem? Talvez falar sobre eles possa ajudar!

Ela ficou em silêncio por um longo tempo, e Décio pensou que ela tinha dormido, ou que então não queria tocar no assunto; mas de repente, a voz dela preencheu o silêncio do quarto, com os trovões e a chuva ao fundo:

-É muito íntimo o que eu vou te contar.

Ele esperou, abraçando-a mais forte e beijando os cabelos dela.

-Uma vez, quando eu era criança, estava brincando pela fazenda. Eu costumava andar por aí, quando minha mãe estava ocupada, e brincava com os filhos dos empregados... quando as mães deles não estavam olhando, pois se me vissem perto deles, chamavam suas crianças como se eu tivesse a peste... assim, eu costumava brincar sozinha, na maioria das vezes. Então... eu estava brincando, e decidi ir até o paiol. Estava escuro lá dentro, mas eu escutei um barulho no fundo, e vi uma luz. Abri a porta, e vi meu tio – eles costumavam passar longos períodos de férias aqui na fazenda – abaixado olhando um rato que se debatia e guinchava de dor... ao lado, havia um vidro de veneno. Morri de pena do animal, e ia embora, mas meu tio me viu, e me puxou pelo braço. Eu era pequena... ele era um homem feito...

Ele sentiu o corpo dela tremer, e um líquido quente correr sobre a pele do seu peito. Décio beijou-lhe os cabelos novamente, acariciando-lhe a nuca suavemente.

-Ele me agarrou...

Ela começou a soluçar. Décio apertou-a contra o peito dele, o coração cheio de um sentimento que era totalmente inédito para ele. Queria protege-la, queria apagar aquelas memórias e fazer com que ela nunca mais sofresse. 

-Foi horrível! Ele cheirava à bebida... e o rato guinchava... debatia-se, enquanto ele passava aquela mão imunda em meu corpo...

Décio estava horrorizado:

-Sophie, eu... nem sei o que dizer, sinto muito, muito mesmo... mas tudo passou agora, você cresceu... eu estou aqui...

Ela pareceu não escutar o que ele dissera, e continuou:

-Eu não podia gritar, pois a mão dele estava sobre a minha boca, enquanto a outra me bolinava. E ele arfava em meu ouvido, minhas costas de encontro ao peito dele... senti quando ele me molhou, um líquido pegajoso e nojento. E então ele me soltou, mas antes disse que se eu contasse a alguém, ninguém acreditaria em mim, e também disse que ele me mataria, e mataria minha mãe com aquele veneno, como fizera com o rato! Eu saí dali correndo... eu rasguei aquele vestido, joguei-o no rio e fui para casa totalmente nua. Felizmente, ninguém me viu, e eu entrei em meu quarto, e tomei um banho longo de banheira. Eu não chorei. Só sentia ódio, ódio, ódio!

Sophie desvencilhou-se dos braços de Décio e levantou-se, indo até a janela, abrindo-a, e Décio continuou sentado na cama, sem saber o que fazer. Queria abraçá-la, mas ela não deixou mais. A chuva molhava o corpo nu ela, que brilhava. Ela passava as mãos ao longo do corpo com raiva, como se tentasse limpar-se de uma sujeira antiga e repugnante, uma sujeira que entranhara em seus poros e em sua pele, e que ela tentava, há anos, limpar. Os trovões davam à cena proporções dantescas, e Décio, fascinado pela intensidade do momento, o horror da história que ela contara e pela beleza dela, mal piscava os olhos. Ela arfava, urrava de dor. E foi entre um relâmpago e outro, que ele notou a criatura de pé junto à porta do quarto. Uma mulher velha. Ela usava um vestido cinza, de mangas longas, como um modelo antigo. Tinha os cabelos grisalhos presos em um coque, e tinha a face enrugada, os olhos maldosos e um riso sardônico nos lábios. E quando ele se levantou para ver melhor, ela simplesmente sumiu. Décio correu para o corredor, a fim de tentar ver se ela estaria ali, mas encontrou apenas a escuridão entrecortada pelos relâmpagos. Ele voltou, e apanhando o lençol, enrolou-o sobre o corpo de Sophie, trazendo-a para a cama e fechando a janela. Ela tremia, e estava gelada. E ele, apavorado. Não conseguia mais abrir os olhos, com medo de ver a mulher outra vez. Abraçou-se à Sophie, que aos poucos, foi parando de tremer. Ela relaxou nos braços dele, adormecendo novamente, mas Décio não conseguiu dormir. 







quinta-feira, 9 de junho de 2016

A RESENHA DO MAL – CAPÍTULO VIII







O estômago de Décio revirou-se ao avistar o irmão. Brian estava com os cabelos loiros e cacheados compridos e revoltos, e um tanto magro. Suas roupas – uma camiseta marrom com algo estampado na frente e jeans rasgados – pareciam não ser trocadas há algum tempo. Aos pés dele, uma mochila grande e surrada. O relógio de pulso parecia grande demais para seu braço fino. Décio notou também os piercings que ele fizera nas orelhas e até no nariz, e sentiu repulsa. Por que uma criatura que tinha condições de vestir-se bem escolheria se vestir daquela forma? Décio grunhiu:

-Como você me achou? Quem disse que eu estava aqui?

Brian levantou-se, limpando a calça com as mãos e estendendo a mão para Décio:

-Bom dia pra você também, irmão. 

Décio ignorou o gesto de Brian:

-O que você quer?

-Bem... estou de férias e decidi dar um rolê por aí.

-Pois eu não estou de férias, estou aqui a trabalho e não posso receber ninguém. Seus pais sabem que você está aqui?

Brian negou com a cabeça, o que fez com que Décio sacasse o celular do bolso com raiva, discando o número da mãe. Após alguns instantes, Brian ouviu o irmão dizer:

-Mãe, como é que você deu meu endereço ao Brian? Não sabe que estou aqui trabalhando? Como não foi você?! Sim, ele está aqui na minha frente... e parece que não toma banho há dias. Não, mãe, eu... escute, por favor. Só quero que você ligue para o papai e a Patrícia avisando que ele está comigo aqui, e que estará em casa em breve. Não, mãe, já falei que eu não posso!

Dizendo aquilo, Décio guardou o celular, irritado. Brian arriscou:

-Eu ia avisar a eles eu mesmo. E não foi a Lana que me deu seu endereço, foi a Rafaela, sua colega de trabalho. Aquela mina que você andou pegando há uns tempos.

-Eu sei quem ela é... aquela intrometida dos infernos!

Dizendo aquilo, Décio abriu a porta da casa e entrou, seguido pelo irmão, que olhava em volta. Brian comentou:

-Hum... essa casa não é exatamente compatível com seus padrões, não é, maninho? 

-Combina mais com você, concordo. Mesmo assim, você nem esquente lugar no sofá, pois vai embora hoje mesmo. Cadê seu celular? Todo mundo estava procurando você.

-Desliguei. Não queria ser achado.

Décio percebeu que o menino parecia um tanto angustiado, e decidiu pegar mais leve com ele. Abriu uma janela e a porta dos fundos, deixando o ar circular pela casa abafada. Pegou uma toalha e foi até o banheiro. Brian não o seguiu; permaneceu sentado no sofá enquanto o irmão tomava banho e mudava de roupa. Quando Décio entrou na pequena sala, minutos depois, jogou uma toalha sobre o irmão:

-Aproveite e tome um banho também, pois seu cheiro está empesteando a casa toda.

 Brian agarrou a toalha, deixando a mochila sobre o sofá, e fez como o irmão mandara. Enquanto isso, sozinho na sala de estar, Décio achou melhor revistar a mochila do irmão, e não demorou para encontrar, entre roupas usadas e notas de dinheiro amassadas, o celular do irmão e alguns cigarros de maconha. Encolheu os ombros; afinal, não era problema dele. Naquele instante, ouviu alguém batendo palmas do lado de fora, e ao olhar pela janela, deparou com Marta, a dona da casa que ele alugara. A caminho da porta, ele pensou: “Só me faltava essa...”
Tentou ser gentil; afinal, ela não tinha culpa.

-Bom dia, Marta. Posso ajudar em alguma coisa?

Ela se aproximou, sorrindo:

-É que não vi você ontem, e fiquei preocupada.

Ele percebeu a curiosidade dela, e achou melhor não dizer onde tinha passado a noite; mudou de assunto:

-Mas estou de volta agora, e estou bem. Obrigada pela preocupação. 

Ela esticou o pescoço, olhando para dentro da sala:

-O menino achou você?

Brian saía do banheiro naquele instante, e acenou para ela:

-Achei sim, Marta e obrigada!

Ela acenou de volta, e quando notou que Décio não daria mais explicações, despediu-se dizendo:

-Se estiverem com fome, são meus convidados para o almoço. Eu fiz torta de palmito e macarronada.
Brian já ia aceitar o convite, mas Décio, sabendo que tudo o que Marta queria era saber onde ele estivera para poder fofocar com a vizinhança, agradeceu e disse:

-Obrigada, Marta, mas eu tenho macarrão instantâneo e batata frita de pacotinho. Já ia preparar.

Brian pensou na comida horrível que o irmão comia, e sentiu-se desanimado; mas nada disse. Marta foi embora, e Décio foi preparar o macarrão instantâneo. Brian seguiu-o até a cozinha, sentando-se à pequena mesa.

-Calor dos infernos, esse lugar... tomei banho e já estou suado.

Décio jogou água quente nos copinhos de Cup Noodles, empurrando um em direção ao irmão, sentando-se de frente para ele, e começou a comer, despejando batata palha sobre o macarrão. A batata espalhou-se sobre o tampo da mesa, e Brian começou a comê-la aos poucos. Ficaram em silêncio durante algum tempo, enquanto comiam. Tomaram um pouco de Coca-Cola. Brian tentou:

-Escuta, Décio, eu sei que você não gosta de mim...

Décio sentiu a testa franzir, mas não olhou para o irmão. Aquela afirmação, ele sentiu, não era assim tão verdadeira. Ele não gostava é do que Brian fazia ele se lembrar: o pai abandonando a ele e à mãe, indo viver com outra mulher, e só aparecendo esporadicamente; a frieza de Patrícia, que marcou sua relação com o pai com ciúmes e indiferença em relação a ele. Depois, quando Brian nasceu, a presença do pai – que já era quase nenhuma – tornou-se ainda menos frequente. Mas Décio não disse nada. Brian continuou, parecendo estar pisando devagar, como quem pisa em um campo minado:

-É que se eu fosse para casa de algum amigo, a mãe deles ia telefonar para a minha mãe, e eu não quero ver a cara dela tão cedo.

Brian sabia o quanto Patrícia sabia ser uma cadela quando queria, e perguntou:

-Por que? O que houve?

Brian largou o garfo e a comida que mal tinha tocado. 

-Ela está saindo com um cara. Peguei os dois no centro da cidade, ela no carro dele, os dois se beijando. Eu fiquei sem chão, o pai não merece isso...

-Saiba que ‘o pai’ fez a mesma coisa com a minha mãe. Portanto, merece, sim.

Brian olhou para ele, o olhar cheio de perguntas:

-Ninguém nunca me conta essa história. Então... nosso pai ‘chifrou’ a sua mãe com a minha?

-Exatamente. 

Brian deixou que seu olhar se perdesse na paisagem à janela.

-Mas... Lana não tem nenhuma raiva de mim, mesmo sabendo que sou filho da amante do ex-marido dela! Eu acho que se eu fosse ela, eu me odiaria. Agora entendo...

Décio, terminando de comer, empurrou o macarrão que o irmão deixara em direção a ele novamente, fazendo um gesto para que ele o comesse, e ele obedeceu:

-Entende o quê?

-Por que você me detesta.

Décio teve pena do irmão, e sentiu que seu coração era como uma pedra de gelo que estava começando a derreter. Lana sempre lhe dizia que Brian nutria por ele grande admiração, e que já tinha dito a ela que queria ser jornalista, como o irmão. Toda a dificuldade do relacionamento deles vinha de sua parte, nunca da parte de Brian. Décio amansou um pouco mais o tom de voz:

-Eu não odeio você, Brian. Nunca foi assim... mas eu tenho que ser sincero: detesto a Patrícia. Não suporto nem ficar perto dela. Ela sempre me tratou muito mal, e me afastou do meu pai. Ela roubou minha família. Desculpe, sei que é sua mãe, mas é assim que eu me sinto.

-Bem, não tenho culpa de ser filho dela. Queria mais ser filho da Lana, seu irmão por inteiro. 

Aquelas palavras penetraram fundo no coração de Décio, acostumado a manter-se sempre à salvo de sentimentalismos. Ele levantou-se da mesa, deu uns tapinhas desajeitados no ombro de Brian e levou os copinhos – agora, ambos vazios – para a lixeira da cozinha. Quando voltou, decidiu estabelecer algumas regras:

-Ok, você pode ficar. Mas se – e somente se – seus pais permitirem. E com a condição de não ficar no meu pé, nem me atrapalhar quando eu estiver trabalhando. Agora pegue o celular e telefone para eles. 

Brian animou-se:

-E quanto tempo você vai ficar aqui?

-Não sei. O tempo que for preciso para terminar meu trabalho. Algumas semanas, talvez. 

-A Rafaela me contou sobre o que é. Parece legal, maneiro mesmo!

Décio pensou no quanto gostaria de estrangular Rafaela, mas não disse nada.

-E você já entrevistou a velha, quero dizer, a tal Endora matadora?

-Já, e passei a noite na casa... 

-Conheceu a filha dela?

Décio pensou no quanto Brian e Rafaela tinham se conhecido para que o irmão soubesse tantas coisas.

-Conheci.

-É gata?

Ele riu.

-É. Muito.

-Pegou?

-Eu estou começando a achar que você pegou a Rafaela... ou melhor, ela pegou você, já que é bem mais velha. 

Brian deu uma gargalhada, bem mais relaxado.

-Não, não peguei ela não, nem ela me pegou, mas notei que ela adora falar de você e de tudo que diz respeito a você. Sai fácil feito água da moringa.  Mas fala aí, pegou a moça?
Décio não gostava de discutir sobre as mulheres que passavam sobre sua vida, e mudou de assunto:

-Vai ligar para a Patrícia. Agora. 

Enquanto Brian falava com a mãe, Décio conseguia ouvir os gritos de protestos e os choramingos dela pelo telefone. Por trás, a voz do pai dizia que ela se acalmasse. Décio ouviu, e Brian afastou o telefone do ouvido naquele momento: “Venha já para casa!”  Mas Brian respondeu:

-Você não manda mais em mim,, mãe. Já tenho quase dezessete anos, e posso cuidar de mim mesmo. Você tem... “outros assuntos” com que se preocupar. Além disso, o pai disse que eu posso ficar, e eu estou com o meu irmão mais velho. Quer saber? Vá catar coquinhos. Voltarei quando eu quiser. 
E ele desligou o celular, olhando para o irmão em busca de aprovação. Décio levou a mochila dele para o segundo quarto, junto à cozinha, mas quando Brian viu que ele não tinha janela, disse que ia dormir no sofá. Assim, ele deitou-se no sofá, caindo no sono quase que imediatamente, enquanto Décio, abrindo seu computador, começou a ouvir as gravações da entrevista com o fone de ouvido e fazer anotações. 

A tarde passou daquela maneira, e o trabalho avançou bastante. Após algumas horas, Décio ouviu seu estômago roncar, e achou melhor arranjar alguma comida decente no mercadinho da cidade, já que tinha companhia. Deixou o irmão dormindo, e com o sol já se pondo, pegou o carro e foi até o mercadinho, onde comprou algumas frutas, biscoitos, macarrão, queijo, arroz, café, açúcar, leite em pó, pão, chocolate e alguns legumes. Também pegou algumas salsichas e um pedaço de frango. Chegou em casa e notou que o irmão ainda dormia. Guardou as compras e ia acordá-lo para lanchar. 

Foi quando seu celular tocou. Era Sophie. A voz dela soou como uma ordem, mas Décio já estava se acostumando com a maneira de falar das mulheres daquela família:

-Ela quer que você volte amanhã. 

-Ela está melhor?

-Sim... mas está de cama. 

Ele percebeu um leve tremor na voz dela. Queria poder segurar sua mão, abraçá-la e dizer que estaria com ela sempre que precisasse, e ele achou aquela vontade muito estranha. 

-Quer que eu... quer que eu leve alguma coisa amanhã?

Ela ficou muda, pensando no que ele queria dizer com aquilo, mas respondeu:

-Não, obrigada, temos tudo aqui na fazenda, e se eu precisar, mando um dos empregados trazer.

Ele sentiu que a dispensa dela estava cheia de orgulho, e teve a intenção de colocá-lo ‘em seu lugar,’ ou no lugar onde ela achava que ele deveria ficar. Ela desligou sem despedir-se, deixando-o na linha muda. Esquecera-se de perguntar se poderia levar Brian com ele. 


(continua)












A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...