quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

LEMBRANÇAS - Conto completo




-Sarah! Julie! Venham tomar o café da manhã, ou vão se atrasar para a escola!

Julie despertou com aquela frase ecoando em seus ouvidos. Apurou os ouvidos e constatou que chovia torrencialmente lá fora, de verdade – não era um sonho. Revirou-se na cama, puxando o edredom macio e enrolando-se nele ainda mais. Olhou para a mesinha de cabeceira: o relógio marcava oito horas de uma fria manhã de dezembro. Respirou fundo, tentando não pensar, tentando não puxar a corda das lembranças que ficava sempre aparente na época do natal. 
A voz da mãe chamando a ela e à sua irmã mais velha, Sarah, era algo do qual ela não conseguia esquecer, e que voltava sempre, desde que a mãe falecera, há seis meses. 

Aos poucos, Julie foi se deixando arrastar pelas lembranças de adolescência, e quando percebeu, estava profundamente tomada por elas:

Era o final dos anos setenta. Sarah adolescente ao espelho, penteando os longos cabelos loiros e fazendo poses. Sempre admirara a autoconfiança da irmã. Julie, ao contrário, era tímida e quieta. Espelhava-se na irmã e tentava agir de forma a agradá-la, mas nunca era o suficiente. Até cultivava os cabelos longos, como os da irmã, e tentava comprar roupas parecidas com as que ela gostava a fim de receber a sua aprovação. 

Porém, Sarah e sua personalidade autoritária não deixavam dúvidas quanto à desaprovação, mas deixavam no ar um mistério quando Julie fazia algo tão bom, que seria praticamente impossível não admitir, como na vez em que Julie conseguiu convencer os pais a deixa-las ir a um show de rock. Mesmo assim, Sarah nunca dizia que estava bom. Nunca a elogiava. Apenas erguia as sobrancelhas em sinal de ligeiro reconhecimento, e dava um sorrisinho com o canto da boca. 

Julie gravitava ao redor da irmã mais velha. Adorava seus amigos, e mesmo sendo três ou quatro anos mais nova que eles, conseguia enturmar-se, o que não parecia agradar muito a irmã. Frequentemente, Sarah a humilhava na frente deles, chamando-a de ‘fedelha’ por ela ter apenas quatorze anos, o que fazia com que Julie estivesse sempre alerta a fim de parecer mais madura. Também era comum que Sarah expusesse algumas de suas fraquezas, como seu pavor da escuridão, sua coleção de bonecas, que ela mantinha escondida no sótão, ou o fato de Julie não dançar bem. Os amigos da irmã eram sempre gentis com Julie, mas nunca contrariavam Sarah, que era a líder do grupo. Uma liderança que apesar de jamais ter sido formalmente estabelecida, era aceita e acatada por todos. 

Uma vez, Julie apaixonou-se loucamente por um dos amigos de escola de Sarah. Seu nome era Marcio, e ele tinha dezessete anos, a mesma idade da irmã. Ela passava a maior parte do seu tempo pensando nele, desenhando à lápis coraçõezinhos em seus cadernos de escola com o nome dele e o dela dentro – mas depois os apagava para que ninguém os visse. Ela ficava muito tempo em seu quarto, sozinha, ouvindo música e tecendo lindas fantasias sobre como seria seu primeiro beijo, para o qual Marcio era o escolhido. À noite, frequentemente sonhava com ele. 

Ao fazer compras, ela pensava se as roupas escolhidas seriam do tipo que ele gostaria em uma menina. E quando ele chegava em sua casa, e ela abria a porta para ele, o coração de Julie dava voltas, e ela quase engasgava de tão forte que ele batia quando Márcio estava por perto. Ele sorria para ela, dava-lhe os habituais três beijinhos – momentos nos quais ela aspirava o perfume dele o mais que podia – e depois perguntava por Sarah. Julie mandava que ele se sentasse, e então ia procurar a irmã, o rosto ainda levemente úmido pelo beijo dele. Então, os três sentavam-se no tapete da sala, jogando cartas ou ouvindo os discos de vinil de Sarah. Julie adorava os momentos quando a irmã estava estranhamente receptiva à sua presença, e ela se sentia um deles. Logo, outros amigos começavam a chegar, e Norma – a mãe – preparava um lanche para todos, e eles se sentavam no chão, em volta da mesa de centro comendo seus sanduíches e bebericando suas Cocas. Aqueles momentos seriam sempre inesquecíveis!

E quando Celso chegava do trabalho, e via suas meninas “rodeadas por garotos” (ele sempre ignorava a presença das outras meninas) fazia uma cara zangada e ia para a cozinha conversar com Norma:

-Desde quando esses garotos estão aqui?

Norma sorria, percebendo o tom de voz enciumado do marido:

-Desde depois do almoço. Por que?

-Já está na hora de eles procurarem o caminho de casa, Norma. Dá um jeito nisso, que eu vou tomar banho, estou cansado, quero ler meu jornal e depois jantar em paz.

E norma chamava Sarah, mandando a ela que ‘dispensasse’ o pessoal.

Aqueles episódios repetiam-se durante o período de férias. Sarah estava mais bem-humorada então, e demonstrava mais paciência e boa vontade com Julie, pois sabia que se não a incluísse nos passeios e programas, os pais não a deixariam ir sozinha. E ela levava a irmã, e tentava ser mais gentil. Para Julie, aqueles momentos eram gloriosos! Podia extravasar a sua admiração pela irmã, e fazer de tudo para agradá-la, pois tudo o que fizesse, seria bem-vindo. Naqueles momentos, Julie começava a se sentir mais esperta e inteligente do que realmente era. Até mesmo atrevia-se a dar alguns tragos nos cigarros dos amigos, o que fazia com que ela se sentisse mais adulta. Mas de repente, alguma coisa dava errado. Sempre dava. E Sarah voltava-se contra ela, cobrindo-a de injúrias e hostilidades.

E em questão de segundos, o paraíso transformava-se em inferno. 

Quando Julie tentava conversar com Norma a respeito, Norma apenas dizia:

-Sua irmã é mais velha que você. Você precisa encontrar seus próprios amigos, Julie. Fazer sua própria turminha. 

-Mas mãe, eu não consigo! As meninas da escola me ignoram. Não me sinto muito bem perto delas. Elas sempre parecem mais espertas, mais inteligentes... minha única amiga é Denise, mas ela mora muito longe...

-Isso acontece porque você vive se comparando a elas, filha. Seja você mesma! 

Apenas sendo você mesma, elas a aceitarão.

-Pois eu acho que elas não me aceitam porque eu sou eu mesma...

-Aprenda uma coisa: insegurança é uma coisa que salta aos olhos. Quando a gente se sente insegura, os outros percebem, e agem de acordo. Ouça, você ainda é muito novinha, tem apenas 14 anos. Com o tempo, isso vai mudar. 

E Julie ficava muda, a cabeça apoiada na mão, sentindo-se profundamente frustrada, enquanto a mãe corria de um lado ao outro da cozinha, lidando com a preparação do jantar, já esquecida de seu drama. E tudo o que ela queria, é que a mãe lhe dissesse o que era preciso fazer para que Sarah a amasse. Mas ela não sabia como formular aquela pergunta. 

Durante um dos muitos períodos negros entre elas, Sarah pegou um caderno da irmã a fim de escrever algumas coisas ofensivas. Acabou encontrando um dos corações desenhados por Julie, no qual estava escrito: “Julie e Marcio.” Um coração que Julie esquecera-se de apagar, pois o desenhara na escola naquela mesma manhã. Ali estava a sua oportunidade! Arrancou a página, e guardou-a no bolso.

Julie só percebeu horas depois, quando foi fazer os deveres de casa, que uma página do seu caderno havia sido arrancada, e lembrou-se do que estava escrito nela. Seu segredo tinha sido descoberto, e só havia uma pessoa que poderia ter sido responsável por aquela invasão! Furiosa, pela primeira vez decidiu reagir às armações de Sarah. Pisando duro, passou pelo corredor e foi ter com a irmã em seu quarto, escancarando a porta com um empurrão:

-Eu quero de volta!

Sarah riu, e gritou:

-Quer o que de volta? Tá maluca? E vê se não entra no meu quarto sem bater!
-Não se faça de idiota, Sarah! Devolve a página do meu caderno que você arrancou!

Sarah ajoelhou-se na cama, tirando do bolso do casaco a página dobrada:

-Qual? Esta aqui, onde você desenhou esse coração brega com o nome do meu amigo? De jeito nenhum! Estou guardando para mostra-la ao papai quando ele chegar. E depois, eu vou mostra-la ao Marcio, afinal, ele é o maior interessado – ou seria desinteressado? – no assunto!

Tomada pelo sentimento de humilhação, e sem enxergar muito bem devido às lágrimas e ao ódio que sentia de Sarah, Julie pulou na cama em cima dela, deitando Sarah e ficando sentada sobre ela, puxando seus cabelos e socando-a como podia. Ao mesmo tempo, enquanto a irmã gargalhava, ela tentava alcançar a folha de papel dobrado. As investidas de Julie não chegavam a machucar 

Sarah, que era maior e mais forte que a irmã.

Atraída pelos gritos, Norma apareceu na porta do quarto, gritando:

-Parem com isso já! Julie, largue sua irmã agora mesmo!

Indignada, Julie tentou defender-se:

-Mas mãe, ela pegou... ela pegou...

Dando-se conta de que a mãe não precisava saber o que Sarah havia pego, Julie desabou em lágrimas:

-Você nunca me escuta, mãe! Sempre defende a Sarah, não importa o que ela faça!

E saiu do quarto de Sarah, entrando no seu e batendo a porta.

Imediatamente, Norma estendeu a mão e ordenou:

-Me dê esse papel, Sarah!

Contrariada, e ainda ajeitando os cabelos, Sarah estendeu a folha de papel à mãe, dizendo:

-Sua filhinha já não é mais tão inocente, mãe. Ela está apaixonada!

Sentindo o veneno no tom de voz da filha, Norma sentou-se na cama, obrigando 
Sarah a sentar-se ao seu lado:

-Eu não vou olhar o que está escrito neste papel, Sarah, e sabe por que? Porque o que está escrito aqui não é problema seu. É um segredo de sua irmã, e não se brinca com os sentimentos alheios. O que você fez foi muito errado. Você devia respeitar e amar sua irmã mais nova, e protege-la!

-Argh! Amar essa ridícula? Nem morta! Ela compete comigo pelos meus amigos, pois não tem competência para fazer amizades! Eu não gosto dela, não pedi para ela ser minha irmã e desde que ela nasceu, eu fiquei relegada a segundo plano nesta casa!

Norma surpreendeu-se com as palavras da filha, pois Celso sempre deixava clara a sua preferência por ela, muitas vezes, chegando a dar-lhe presentes mais caros do que os que dava para Julie. Ele fazia todas as vontades de Sarah, dando a ela tudo o que pedia, enquanto quase sempre se esquecia quando Julie lhe pedia alguma coisa, o que fazia com que Norma intercedesse com ele em favor da filha mais nova. Celso dizia que era tudo impressão dela, pois amava a ambas as filhas igualmente, mas ele próprio sabia que estava mentindo, e que sua preferência por Sarah poderia ser percebida por Julie. 

-O que você diz não é verdade, Sarah! Você tem absolutamente tudo o que pede de seu pai! Ele faz todas as suas vontades. E ouça uma coisa: eu nunca mais quero escutá-la dizer que não gosta de Julie. Ela a admira tanto, filha! Ela faz de tudo para agradá-la! E ela é sua irmã!

-Ela é uma chata, isso sim!

Norma respirou profundamente. De repente, sentiu-se cansada. Era muito difícil educar duas meninas adolescentes. Ela gostaria de poder entender a rivalidade entre as filhas, mas não conseguia. Sentia-se impotente para ajuda-las, a não ser quando fazia uso de sua autoridade. Então, ela determinou:

-Você está de castigo, Sarah. Nada de televisão ou toca-discos. E nada de sair com os amigos por uma semana. 

-Mas mãe, eu estou de férias!!!

-E a cada vez que você me contestar, acrescentarei mais um dia ao seu castigo! Portanto, você está de castigo por oito dias. Sem TV. Sem toca-discos e sem sair. No que depender de mim, seu pai não saberá do que houve aqui hoje, e sugiro que ele não saiba por você.

Dizendo aquilo, ela saiu e foi ter com a filha mais nova, levando a folha de caderno. Encontrou-a deitada em sua cama, o rosto afundado no travesseiro. Quando chamou por ela, Julie virou para a mãe o rosto vermelho e congestionado de tanto chorar. Quando viu a folha de papel, sentiu que seu mundo caíra. Com certeza, Norma a tinha lido, o que faria com que ela ficasse de castigo, pois não tinha permissão para namorar. Porém, Norma estendeu para ela a folha de papel, dizendo:

-Eu não sei o que está escrito aqui, e nem quero saber, pois confio em você, Julie. Sua irmã agiu errado, e já foi castigada. Seu pai não saberá de nada do que aconteceu nesta casa hoje. Pelo menos, não por mim. Mas nunca mais quero ver você e sua irmã se atracando daquela forma. Entendeu?
Ela pegou a folha de papel, e assentiu com a cabeça. 

*   *    *    *    *

Julie levantou-se da cama, sentindo suas costas doloridas. Aos quarenta e dois anos, tinha ouvido alguém dizer que quem não sente dor após os quarenta, é porque já morreu. Esticou o corpo, alongando braços, pernas e costas. Varreu para longe as lembranças, e foi começar seu dia. 

Enquanto dirigia para o trabalho, perfurando de carro a neblina e a chuva, (Julie possuía uma loja de flores), sentiu que aos poucos as lembranças começavam a voltar. Era sempre assim naquela época, principalmente após a morte da mãe. De repente, o trânsito parou, e ela se viu presa em um longo engarrafamento. 

O vai e vem do limpador de para-brisa transportou-a para uma outra época, em uma outra viagem de carro, há muitos anos. Ela tinha então oito anos, e Sarah, onze. Elas viajavam à praia com os pais e Denise, filha de uma prima de Norma, que estava de férias na cidade. Só havia duas janelas no carro, e é claro, uma delas tinha ficado com Sarah, e a outra, com Denise; afinal, ela era ‘visita’, e seria educado, segundo o pai lhes dissera antes que entrassem no carro, que Denise ficasse com uma das janelas. Sendo assim, Julie ficou sentada no meio do banco, sem direito a argumentar.

A viagem à praia foi longa, e Sarah a empurrava a todo momento quando o carro fazia uma curva para o seu lado, alegando que Julie estava ‘se jogando’ em cima dela. Foi uma viagem difícil, até que o pai, aos berros, mandou que Julie parasse de se jogar sobre a irmã. E não teve ninguém capaz de convencê-lo de que aquilo não estava acontecendo, nem ela nem a mãe. A não ser quando Denise, timidamente, disse:

-Mas ela não está se jogando, tio. É que o carro faz curvas, e quem está no meio não consegue se segurar direito. 

E virando-se para Julie:

-Sente no meu lugar, prima. Eu troco com você. 

E ali, naquele momento, nasceu uma grande amizade que se transformaria naquela sociedade na loja de flores – mesmo que antes de tal amizade consolidar-se, muitos anos as separariam, pois após aquela ocasião, as duas só voltaram a se encontrar ocasionalmente em períodos de férias, e definitivamente, apenas quando ambas já tinham dezenove anos, ocasião na qual a família de Denise mudara-se para uma casa vizinha à da família de Julie.

Finalmente, após quarenta minutos, o trânsito começou a se movimentar, e Julie conseguiu chegar ao trabalho. Lá dentro, Denise esperava por ela, muito ocupada com o movimento intenso da loja. Ao vê-la entrar, respondeu ao bom dia da amiga, que logo pôs-se a ajudá-la a atender os clientes, fazendo lindos arranjos de flores. Julie, que conhecia muito bem a amiga, logo percebeu que ela a olhava de um modo estranho, mas esperou até que a loja esvaziasse para perguntar:

-Está tudo bem, Denise? Me atrasei porque...

Denise riu:

-Ora, não precisa se explicar, Julie! Você e eu somos sócias, esqueceu? Você não trabalha para mim...

Julie foi para perto da amiga no balcão, dando-lhe uma cotovelada de leve:

-E como foi a noite de ontem?

Denise olhou para ela, fazendo um pouco de mistério, e então explodiu:

-Ma-ra-vi-lho-sa! Ele é tudo de bom. Nós jantamos, conversamos muito, e então... você sabe...

-Ok, Poupe-me dos detalhes sórdidos. Fico muito feliz por você, Denise, de verdade!

Elas se abraçaram. Denise ficara viúva há cinco anos, e desde então nunca aceitara convites para sair, até que Pedro aparecera na loja um dia, querendo comprar flores para o aniversário de sua mãe. Denise foi atende-lo, e logo notou que ele estava interessado em algo, bem mais do que em flores. Mas ela não cedeu, e continuou a trata-lo como aos clientes comuns. Ele voltou ainda duas vezes naquela semana – ora com a desculpa de comprar flores para uma amiga que estava aniversariando, e então, queria flores para ornamentar o túmulo da bisavó... e nas duas semanas seguintes, ele sempre  voltava com uma nova desculpa, até que finalmente, ele a convidou para sair. Pedro soube esperar o momento certo, o que deixou Denise à vontade. 

Denise ajeitou uma mecha de cabelo que caía sobre a testa de Julie, e perguntou:

-E você? 

-O que tem eu?

-Já está na hora de seguir em frente.

Julie caminhou até a porta da loja, olhando para fora. Novamente, as lembranças a alcançaram:

Ela estava com dezoito anos, e Sarah, com vinte e um. Após passar muitos anos esperando que Marcio a notasse, ele finalmente olhou para ela numa tarde de domingo, em que estavam todos em um churrasco na casa de amigos. Julie estava de rabo de cavalo, e usava um short jeans e camiseta branca com um colete de tecido colorido. Alguém começou a tocar violão, e de repente, Márcio aproximou-se dela, pegando o prato que ela segurava e colocando-o sobre a mesa, e levou-a para o centro do gramado, começando a dançar com ela. 
Julie mal podia acreditar no que estava acontecendo! Ela o amara em segredo durante quatro longos anos, e de repente, ele estava ali, segurando-a, uma de suas mãos sobre a cintura dela, e olhando-a de um jeito como nunca acontecera antes. E ele disse:

-Você cresceu, Julie. E está cada dia mais linda! 

Um pouco distante, Sarah, de mãos dadas com um rapaz, os observava muito séria. 

As pessoas juntaram-se em volta de Marcio e Julie, cantando e batendo palmas, enquanto eles dançavam. Era o ano de 1982. A música no violão terminou, e eles ficaram parados no meio do gramado, se olhando, até que Julie, soltando a mão de Márcio, voltou para o seu prato de comida. Mas sua boca estava seca, e ela não conseguiu comer. Largou o prato, e foi dar uma volta perto de um bonito lago que ficava por ali, um pouco afastado da casa. 

E foi lá que Marcio a encontrou. Sentou-se ao seu lado, em uma pedra grande que ficava bem em frente ao lago, e sem nada dizer, segurou a mão dela. Julie estremeceu, e sentiu o rosto corar. Apesar de ter dezoito anos, nunca beijara ninguém, pois só conseguia admitir que uma pessoa o fizesse, e Marcio estava a ponto de fazê-lo. Ela ergueu os olhos para ele, e sentiu que o rosto dele se aproximava cada vez mais. Enquanto isso acontecia, ela tinha a impressão de que havia estrelinhas em seu campo de visão, de tão nervosa que estava, e quando ele a beijou, as estrelinhas pareceram explodir em volta deles, e os ouvidos dela zumbiram. E se havia um momento em sua vida do qual Julie sempre se lembraria como sendo perfeito, era aquele. Seu primeiro beijo. Seu primeiro beijo, e com Marcio. 

Logo, ele pediu autorização aos pais dela para que namorassem, e a obteve. Levou-a à casa dele, e apesar de Julie conhecer a família de Marcio há muitos anos, era a primeira vez que entrava na casa dele como sendo sua namorada. E Julie estava feliz. Foram os melhores anos de sua vida. Marcio era bem mais do que ela esperava que ele fosse. E ele a amava. E ela o amava. 

Dois anos mais tarde, ficaram noivos. Ela tinha então vinte anos, e ele, vinte e dois. 

E então Julie lembrou-se de uma tarde na qual chegara em casa após a faculdade, e encontrara tudo em silêncio. Foi até a cozinha comer alguma coisa, e achou um bilhete da mãe: “Fomos ao teatro. Não nos espere para o jantar!”  Julie concluiu que Sarah deveria ter saído também. Ela estava com um novo namorado. Afinal, Sarah estava sempre com um novo namorado, mas quando eles começavam a se apaixonar, ela os deixava, e arranjava outro. Ela tinha  a impressão de que a irmã não conseguia se afeiçoar a ninguém, e lamentava por ela. 

Foi então que ela escutou um barulho no andar de cima, e concluiu que Sarah estava em casa, afinal de contas, e Julie resolveu subir para bater um papo com a irmã. 

A cada degrau, os ruídos no quarto da irmã tornavam-se mais intensos. Julie pensou que Sarah pudesse ter levado o namorado novo para casa, e censurou-a mentalmente pela falta de cuidado. Se o pai ficasse sabendo, ia fazer um escândalo, com certeza. Já ia começar a descer as escadas novamente, pé ante pé a fim de não ser escutada por eles, quando ouviu uma voz que ela conhecia muito bem. Julie estancou no meio das escadas. Ficou em silêncio, tentando não engasgar com as batidas do próprio coração. Estava ouvindo coisas, só poderia estar!

Mas então a voz surgiu novamente. E ela teve que admitir que aquela era a voz de Marcio. 

Naquele momento, mil coisas passaram pela sua cabeça: quem sabe, Sarah sentira-se mal e ele a estava ajudando? Ou então eles poderiam estar assistindo a um filme... ou então era alguém com a voz parecida com a de Marcio. Não era Marcio! E então Sarah disse o nome dele, em alto e bom tom: “Marcio! Você me deixa louca!”

E o coração de Julie quase parou. Ela ficou ali, sentada nos degraus, tentando determinar o que fazer. Ao mesmo tempo, ela pensava em há quanto tempo aquilo poderia estar acontecendo. Debaixo de seu próprio nariz. Sua irmã e seu noivo. Lágrimas grossas desciam dos seus olhos feito cascatas salgadas. Ela poderia ir embora e fingir que nada daquilo acontecera. Ou ela poderia tentar conversar com ele mais tarde, e pedir uma explicação. Com certeza, ele teria uma. E tudo poderia ficar bem novamente.

Mas não. Ela se viu caminhando em direção à porta do quarto de Sarah, contra a sua vontade. Alguém guiava seus passos, e dizia, dentro de sua cabeça: “Já está na hora de você saber a verdade. Toda a verdade. Sua irmã a odeia, ela nunca gostou de você. Seu noivo a trai. Ele não a ama. Ninguém a ama.” 

E ela se viu diante da porta, e tocou na maçaneta, percebendo que Sarah nem sequer tivera a preocupação de trancá-la. Os dois estavam tão entretidos no que estavam fazendo, que só perceberam a presença dela quase dois minutos mais tarde. Quando Marcio a viu, ele saiu de cima de Sarah, cobrindo-se com o lençol, corando, perdendo a voz, arregalando os olhos, mas Sarah permaneceu deitada na cama, nua, sem nenhuma surpresa no olhar, nenhum arrependimento, nenhum incômodo. E Julie soube que estava mais magoada pelo que sua irmã tinha feito do que pelo que Marcio tinha feito. 

Julie virou-se de costas e começou a descer as escadas, em transe. Marcio ainda tentou correr atrás dela, mas ela o empurrou com uma força física que desconhecia, fazendo com que ele se estatelasse contra a parede fria do corredor, derrubando um relógio que estava pendurado lá. Julie abriu a porta e saiu de casa. Deixou-a aberta atrás de si. Foi para o único lugar seguro que ela conhecia: a casa de Denise, cuja família tinha se mudado para a vizinhança há algum tempo. 

E Denise e seus pais a receberam em sua casa. Quando Celso e Norma apareceram para busca-la, Julie apenas disse a eles que tivera uma briga com a irmã, e que seria impossível voltarem a viver sob o mesmo teto. Norma perguntou-lhe se aquela briga tinha alguma coisa a ver com o fato de Marcio e ela terem desmanchado o noivado, mas Julie negou. Não queria magoar seus pais. Eles não tinham culpa de nada. Chamou a mãe a um canto, e disse a ela:

-Mãe, há muitos anos, você se recusou a ler algo que eu havia escrito, algo que Sarah havia me roubado. Um segredo. E eu sou muito grata por isso. A única coisa que eu posso dizer, é que Sarah fez algo parecido com aquilo, algo muito pior, mas eu não quero falar no assunto. Peço que mais uma vez você mantenha esse papel dobrado, e confie em mim. Será melhor para todos. 

-Mas filha, e quanto a Marcio? Seu noivado...

-Marcio não significa mais nada para mim. E eu descobri que nunca signifiquei nada para ele.

-Não é verdade, filha! Ele a procura todos os dias, ele disse que precisa muito falar com você. Ele me disse ao telefone que tinha feito algo terrível, e que queria ter uma chance de pedir-lhe que o perdoasse. E ele estava chorando, Julie.

-Mãe, eu nunca mais quero vê-lo. Diga a ele que me esqueça.

-Mas filha.. homens fazem coisas que... você sabe... seu pai nunca foi santo, mas ele é um ótimo marido e um excelente pai para vocês. Nós, mulheres, temos que aprender a perdoar. Não vá destruir sua vida por uma bobagem!

-Mãe... eu... eu não quero falar sobre isso, está bem?

-Mas... isso tem a ver com sua irmã? Eles...

-Mãe, por favor! É um segredo meu. Por favor.

*   *   *    *    *     *

Julie sentiu que Denise passava o braço em volta da cintura dela. A chuva passara, deixando um cheiro delicioso no ar, e o sol brilhava dentro das poças d’água da rua. As pessoas moviam-se de um lado ao outro, abarrotadas de compras de natal. A loja em frente a delas exibia uma linda vitrine natalina, de onde vinham músicas antigas e, e um enorme papai Noel de brinquedo dançava. 

Com cuidado, Denise falou

-Ela esteve aqui hoje. Antes de você chegar.

Julie entrou na loja, indo sentar-se atrás do balcão, e começou a preparar alguns laços para presente. Denise seguiu-a:

-Você ouviu o que eu disse?

-Hum-hum. Mas preferia não ter escutado. 

-Ela parecia estar arrependida.

-Sarah nunca se arrepende de nada, Denise, e você sabe disso. 

-Bem... ela me pediu para dar-lhe um recado. Quer ouvir?


Julie ergueu a cabeça, guardando os lacinhos que já tinha feito dentro de uma caixa. 

-Diga lá! Mas saiba que estou apenas curiosa para saber até aonde vai a cara de pau de minha irmã.

Denise pigarreou, e pensou se seria mesmo uma boa ideia tentar fazer com que Julie e Sarah se reaproximassem após todos aqueles anos, e depois de tanto sofrimento que Sarah causara a Julie. Mas Sarah pareceu-lhe realmente arrependida, e até chorara. Disse:

-Sua irmã mandou dizer que sente muito, que está arrependida. Ela também disse que errou, errou muito com você nesses anos todos, mas que gostaria de se redimir. Seus pais se foram, e vocês só tem uma a outra. Que são uma família. Bem, foi isso que ela disse.

Julie escutou, e pensou um pouco: quantas vezes Sarah a procurara dizendo as mesmas coisas, e ela a perdoara? Olhou para a amiga, e respondeu:

-Você acreditou nela?

Denise hesitou antes de responder, e parecia estar pensando um pouco. 

-Hã... ela... bem, ela chorou, e... pareceu estar sendo sincera. Mas quer saber? Não sei se acredito nela. Tenho todos os motivos para não acreditar, mas ela é sua irmã, e a decisão é sua. Não cabe a mim interferir no relacionamento de vocês. Mas se ela a magoar de novo, esta vez eu quebro a cara dela! Ela deixou este endereço. Convidou-a para passar a noite de natal com ela e o marido.
Julie estendeu a mão e pegou um pedaço de papel que Denise dera a ela, guardando-o no bolso do jeans.

Naquele momento, alguns clientes entraram na loja, e elas foram atendê-los. 

Mais tarde, já em casa, Julie ainda estava pensando no que Denise dissera-lhe sobre Sarah. Tinham todos os motivos para não acreditarem nela...

*   *   *   *

Quando Julie foi morar na casa de Denise, seu pai ficou muito magoado. Recusava-se a ver Julie ou a falar sobre ela. Ela tentou falar com o pai muitas vezes, mas ele a repudiava, e proibira que ela fosse visitar a mãe em casa. As duas se encontravam em restaurantes, ou na casa de Denise. Para ele, a família deveria ser uma estrutura sólida, e ele não aceitava que Julie tivesse ido morar na casa da amiga – pelo menos, fora o que ele dissera a Norma. Três anos mais tarde, ele adoeceu e finalmente concordou em receber a visita de Julie, que foi vê-lo no hospital. Somente naquela ocasião, Julie ficou sabendo do real motivo que o fizera não desejar vê-la. 

Ela entrou no quarto, e encontrou o pai muito pálido e magro. Ao vê-lo, Julie teve que se esforçar para conter as lágrimas, mas Celso não teve a mesma preocupação: abraçou a filha, matando anos de saudades. E então ele disse a ela:

-Eu sei de tudo filha, e lamento.

Aquela confissão fez com que Julie se emocionasse ainda mais: o pai estava pedindo perdão a ela. Mas quando ele continuou a falar, Julie mal pode acreditar no que estava ouvindo:

-Sarah foi muito nobre. Ela não contou a Norma o seu segredo, e pediu-me que não o fizesse, e eu confesso que poupei muito sofrimento à Norma não contando a ela, e me orgulho disso, e da filha que tenho. 

Julie balbuciou:

-Ela contou tudo ao senhor, pai? E mesmo assim, acha que ela teve uma atitude nobre?

-É claro, filha. Mas creia em mim, não estou mais zangado com você. 

-Zangado... comigo??? O que foi que Sarah disse ao senhor?

-Do seu problema... ela me falou do seu problema.

Julie estava tão estarrecida, que mal conseguia falar. Ao vê-la tão pálida, Celso tentou consolá-la:

-E sua mãe jamais saberá de nada, prometo, filha. 

Naquele instante, a porta do quarto se abriu, e Marcio entrou. Ao vê-lo, Julie sentiu as pernas tremerem. Apesar de tantos anos separados, ela sentiu que ainda o amava. Ele convidou-a a ir tomar um café com ele, e Julie acabou aceitando.
Sentados em um café do outro lado da rua, Julie olhava o prédio onde seu pai morria naquele mesmo instante. Sua mãe contara-lhe sobre o câncer em estágio avançado. De repente, todos os problemas da vida pareceram-lhe pequenos diante de todo aquele drama: ela estava perdendo seu pai. Marcio pediu dois cafés com conhaque. Depois que a garçonete os serviu, ele disse:

-Ainda quero pedir desculpas a você por tudo aquilo, Julie. E ...

-Já está tudo no passado, Marcio. Tudo passou. Não faz mais sentido falar naquilo. 

Ele sorriu tristemente:

-Não para mim. Nunca esquecerei o seu rosto, e nunca me esqueço de tudo o que perdi ao cair nas garras de Sarah. Eu sempre amei você. Mas Sarah...

-Por favor, não me fale no nome dela. 

-Vocês nunca mais se falaram?

-Não. E vocês?

-Não. Eu nunca mais a vi.

Ela ficou em silêncio durante algum tempo, e disse:

-Eu sempre quis saber... há quanto tempo aquilo estava acontecendo. 

Ele pareceu desconfortável, mas respondeu:

-Aquela foi a primeira e única vez depois que eu e você ficamos juntos, naquele churrasco.

-Quer dizer que... antes daquilo, você e Sarah...

-Algumas vezes, mas nunca foi nada sério. Era só uma amizade colorida. 

Naquele dia, eu cheguei, e ela me recebeu. Me serviu um whisky. Depois outro. Ela pôs uma música e começamos a dançar. Tentei parar, mas Sarah pode ser bastante insistente quando quer alguma coisa, e eu estava meio-bêbado... ela me garantiu que você e seus pais tinham ido ao teatro e que não voltariam para jantar. Até me mostrou um bilhete escrito por sua mãe. E disse que seria a última vez, pelos velhos tempos. Não quero dizer aqui que eu fui inocente, eu errei também. Fui fraco. Fui covarde e irresponsável. Eu... eu estou muito arrependido, Julie. 

-Eu tenho certeza que sim. E eu o perdoo. 

Marcio sorriu, e lágrimas desceram-lhe pelo rosto. Ele tentou segurar a mão de Julie, mas ela a afastou, dizendo:

-Mas nunca poderemos ser mais que dois conhecidos. Nosso momento ficou lá atrás, e você o jogou fora, Marcio.

Ele ficou muito ferido, mas não disse nada. Sabia o tamanho do erro que cometera, e que seria impossível fazer com que tudo voltasse a ser como era antes. Mas ele precisava dizer a ela o quanto ainda a amava:

-Eu sempre amei você. Desde garotinha. 

Ela ficou surpresa:

-Mesmo? Eu nunca desconfiei... você nunca se aproximava muito de mim. Mas eu era apaixonada por você. Fui apaixonada por você desde que o vi pela primeira vez. 

-É que... eu pensava que... bem, Sarah me disse que você e Denise eram... mais que boas amigas. Entende?

Julie quase entornou o café:

-O que? Ela disse isso da gente? Ela insinuou que eu e Denise éramos lésbicas?

-Na verdade, ela afirmou. Disse que eu não teria chances com você. E se me aproximei de você na festa, foi porque eu vi Denise beijando um rapaz. 

Julie riu:

-Nós nunca fomos lésbicas!

Ele riu:

-Pois é... acho que Sarah mentiu, não é? E o fato de você e Denise estarem sempre juntas... sustentou a mentira dela.

-Para variar... mas... então... meu pai acaba de me dizer que Sarah contou a ele meu segredo, e acho que agora eu entendo qual foi este segredo... ou seja, ela inventou uma mentira que fez com que meu pai não falasse comigo por três anos! Ela me afastou dele, me afastou de meus pais!

-Você acha que ela disse a ele que você e Denise...

-Com certeza, só pode ter sido isso! Ele pensa que eu sou... lésbica... Marcio, eu preciso contar a ele a verdade!

Dizendo aquilo, Julie levantou-se da mesa e atravessou a rua em direção ao hospital; porém, ao chegar na porta, deparou com Sarah aos prantos. Ver a irmã naquele estado quase a comoveu, mas Julie imediatamente agarrou-se ao que acabara de descobrir, e toda a piedade repentina que surgiu transformou-se em ódio. Sarah olhou para ela, e estendeu-lhe os braços, dizendo:

-Ele se foi, Julie. Papai acaba de morrer.

Julie tomou um enorme choque: ele morrera acreditando em uma coisa sobre ela que não era verdade! Ainda em choque, Julie só pôde perguntar:

-Você mentiu a ele sobre mim. O que você disse a ele, Sarah?

Sarah chorava muito, e entre lágrimas, confessou:

-Eu ia contar a ele agora, juro! Mas quando eu cheguei aqui, ele... mamãe disse que ele tinha morrido. As coisas que aconteceram no passado foram fruto da nossa imaturidade, e sendo irmãs... sabe... essas coisas acontecem entre irmãs, e elas se perdoam. Eu perdoei você. Me desculpe, irmã!

-Não me chame de irmã! Nunca mais! E você diz que me perdoou? Mas é muita cara de pau!

-Eu preciso que você me perdoe! Por mamãe! 

Um pequeno escândalo começou a formar-se. Vendo aquilo, Marcio aproximou-se, e afastando Sarah, disse entre os dentes:

-Deixe – ela -  em-  paz!

Julie aproveitou aquela oportunidade para entrar em um táxi, indo embora dali. 

*   *   *   *

Deitada em sua cama, pronta para dormir, Julie ainda sentia na alma a dor daqueles dias após o funeral do pai. Ela entrou em um período de depressão profunda, e não pôde trabalhar durante vários dias. Sarah tentava falar com ela, mas Julie recusava-se a recebe-la, ou a Marcio. Não queria mais vê-los. Porém, desabafara com a mãe, contando a ela toda a verdade sobre Marcio e Sarah, e daquele dia em que ela flagrara os dois juntos. Norma ficou muito triste e zangada com Sarah, mas não podia abandonar a filha em um momento tão difícil. 
Sarah estava realmente sofrendo pela morte do pai. 

Norma cuidou de Julie diligentemente durante seu período de depressão. Julie e Denise tinham alugado um apartamento juntas há um ano, e já tinham aberto a loja de flores, e Denise segurou a barra daqueles dias sozinha. Naquela ocasião, já noiva de seu falecido marido, Denise fez das tripas coração para arcar com todas as despesas e resolver todos os problemas que apareciam na loja. Finalmente, um dia Norma decidiu que estava na hora daquilo tudo terminar:

-Julie querida, você está se torturando por coisas que não podem mais ser mudadas. Tenho certeza de que seu pai já sabe da verdade a essa hora, esteja ele onde estiver. Mas Denise precisa de você, ela está com o casamento marcado e resolvendo sozinha todos os problemas da loja. E sua irmã também está sofrendo, Julie! Ela está realmente arrependida de tudo!

-Não me fale dela, mãe. Imagine! No dia em que papai morreu, ela veio me dizer que me perdoava... como se o erro tivesse sido meu!

-Entendo, mas... Imagine, filha, se você estivesse no lugar dela, e tivesse errado tanto, tantas vezes com alguém que você ama, que é sangue do seu sangue, e de repente percebesse o quanto andou errada, e tal pessoa lhe negasse o perdão? Como se sentiria? Perdoe sua irmã! Por favor, filha... tenho certeza de que perdoar Sarah fará com que você saia dessa depressão, sinta-se melhor para recomeçar sua vida! O ressentimento nos destrói por dentro, filha! Ele matou seu pai.

-Sim, é verdade. O ressentimento que meu pai sentiu por mim ao acreditar nas mentiras de Sarah acabou por mata-lo. Sarah tem esse efeito fatal sobre tudo o que ela toca. E seria muita ilusão eu pensar que algum dia fui amada por minha irmã, mãe.

Norma respirou fundo:

-Seja de que jeito for, você tem que se levantar desta cama e começar a agir. E será hoje. Vamos a um shopping. Você precisa cuidar desse cabelo, comprar umas roupas e assumir seu lugar naquela loja. Daqui a pouco Denise vai se casar, e você precisará sustentar-se sozinha. Ou você acha que ela vai pagar esse apartamento para você a vida toda?

E assim, aos poucos, Julie foi se recuperando de tudo o que acontecera. E acabou perdoando Sarah, como sua mãe lhe pedira tantas vezes. Somente as pessoas de bom coração têm essa capacidade de perdoar inúmeras vezes. Pelo menos, era o que Denise e sua mãe lhe disseram. 

As duas passaram a sair juntas uma vez por semana. Sarah dissera a ela que sabia o quanto estava sendo difícil, mas que conseguiria provar a Julie o quanto ela tinha mudado, o quanto ela queria realmente se redimir. E Julie tentou confiar nela, o que foi acontecendo aos poucos. A fim de ajudar, Denise convidou-a para ser madrinha de casamento, junto com Julie. 

O casamento de Denise foi uma ocasião muito feliz e festiva. Se ainda havia qualquer rivalidade entre as irmãs, ela foi dissipada durante aquela festa. E foi na festa de casamento de Denise que Julie ficou conhecendo Alan. Ele era o melhor amigo de Jorge, marido de Denise, e viera para o casamento – morava na Inglaterra. Julie sentiu que seu coração estava pronto para apaixonar-se novamente. E quando ele voltou para a Inglaterra, ela foi com ele. Os dois se casaram, e ficaram morando por lá. Mas Julie manteve a sociedade na loja de flores, tendo Sarah como uma das sócias. Sarah, Julia e Denise passaram a ser muito próximas, amigas inseparáveis. Quando vinha ao Brasil, viagem que Julie fazia quatro vezes ao ano, Julie trazia as novidades que encontrava nas lojas do exterior, e elas tratavam dos negócios pessoalmente; quando ela estava na Inglaterra, falavam-se pela internet. 

O casamento de Julie durou apenas três anos, e então veio o divórcio. Alan não era o homem de sua vida, afinal. A descoberta fora dolorida, principalmente para ele, que amava Julie apaixonadamente, mas os dois terminaram tudo como amigos, e ela voltou ao Brasil. Julie acabou concluindo que Alan fora uma espécie de substituto para Marcio, que se casara um ano depois do falecimento de Celso. Ao saber do casamento dele, Julie sentiu-se muito triste. Mas o que ele poderia fazer? Esperar por ela a vida toda? Com certeza, ele fez bem em continuar com sua vida. 

Ao voltar para o Brasil, Julie teve uma surpresa: Sarah e Denise estavam pensando em abrir uma filial de sua loja de flores. Os negócios estavam indo bem, e precisavam expandir, segundo dissera Sarah. Havia uma loja para vender a alguns quarteirões dali, e Sarah não queria perder a oportunidade. Denise ainda estava um pouco relutante, mas acabou sendo engolfada pela onda de entusiasmo de Sarah. Fizeram todas as contas, e Denise e embora Julie tivessem concluído que seria melhor esperar um pouco mais, talvez um ano, Sarah estava muito entusiasmada e confiante:

-Não! Esperar o que? 

-Mas nós não temos todo esse dinheiro, Sarah! – Julie disse.

-Ora, podemos pegar um empréstimo em um banco. Falta pouco!

-Falta a metade, cherry – Denise respondeu, sem muito entusiasmo.

Sarah andou de um lado a outro da loja, em silêncio, enquanto Denise e Julie se entreolhavam. Então, ela parou, estalando os dedos no ar, e disse:

-Já sei! Vou usar a minha parte na herança de papai!

Julie exclamou:

-Mas... você não gastou? 

-Não! Está guardada no banco. 

-Não é justo, Sarah... eu gastei a minha parte, não sobrou nada! Você vai usar a sua para expandir a loja? É arriscado!

-E eu, não tenho esse dinheiro. – Denise disse.

Sarah bateu palmas, e disse;

-Não se preocupem. Vou amanhã mesmo falar com o gerente. Podem considerar o negócio feito! Eu devo isso a você, irmã.

E assim fizeram.

E tudo deu errado.

O entusiasmo de Sarah não foi suficiente para pagarem todas as contas, e elas não conseguiram pagar as prestações que restavam após darem entrada na loja. 
Julie estava muito preocupada com o que aconteceria com a irmã, pois ela pegara o empréstimo em seu nome. Ao mesmo tempo, não tinha como ajuda-la. Passou noites em claro com Denise, estudando possibilidades para que elas não perdessem a loja nova, ou ao menos tentando encontrar uma saída para Sarah. 
Foi quando o banco tomou-lhes a loja, e também a casa dos pais de Julie, que Sarah tinha dado como garantia do empréstimo sem que Julie soubesse. Denise e Julie descobriram que Sarah havia mentido o tempo todo: ela não tinha dinheiro algum no banco: convencera Norma a dar sua casa como garantia do empréstimo, por uma loja que na verdade, custava quase o dobro do que Sarah dissera-lhes que custaria. Erraram ao confiarem em Sarah mais uma vez, que lhes apresentara documentos falsos.

Aquele mau passo quase as arruinara, mas elas conseguiram se reerguer aos poucos, com a ajuda do marido de Denise e os conselhos de Alan. Mas Sarah foi convidada a retirar-se da sociedade, enquanto Norma passou a viver no apartamento de Julie. Depois daquilo, Sarah desapareceu. Ninguém soube o que aconteceu com ela. Apenas desapareceu sem deixar nenhuma pista. Norma morria de tanta preocupação. Até que alguém que viajara a uma cidade vizinha trouxe a elas notícias de Sarah: ela estava casada, e possuía uma loja de flores. Tal loja fora adquirida com o dinheiro da herança que Sarah recebera do pai, e que ela guardara, usando a casa da mãe como garantia para fechar os negócios com Denise e a irmã ao invés de usar o dinheiro.

Novamente, foi difícil para Julie recuperar-se daquele outro golpe. Mas com a ajuda da amiga, ela conseguiu. 

E então os anos foram passando. Denise perdeu seu marido, o que foi um período muito difícil em sua vida. Desta vez, foi Julie quem ficou ao seu lado, ajudando-a em tudo o que podia: tomava conta da loja, ajudava a amiga em casa, e dedicava todo o seu tempo livre a Denise. Tanto, que nem percebeu quando Norma adoeceu. 

E a doença de Norma durou cinco longos anos, durante os quais ela implorava a Julie que mais uma vez, perdoasse a irmã e a trouxesse de volta à família. E ela decidiu dar à mãe aquele último prazer. Mas Sarah recusou-se a voltar. Não queria voltar, nem mesmo ao saber da doença da mãe, que morreu sem despedir-se dela. E agora, seis meses após o falecimento de Norma, Sarah queria voltar. Dizia-se arrependida.

E então Sarah reapareceu na loja, procurando por Julie, anos depois de sumir sem deixar vestígios, sem visitar a mãe durante sua doença, sem dar qualquer satisfação por tudo o que tinha feito.

Mas era época de natal, e as lembranças dos bons momentos que passara ao lado da irmã – e Julie não podia negar que eles tinham existido – e também a memória da mãe, doente, pedindo a ela que procurasse a irmã e se reconciliasse com ela, derreteram o coração de Julie mais uma vez. 

Telefonou para Denise, agradecendo pelo convite de passar o Natal com ela, mas disse que iria procurar por Sarah e tentar mais uma vez. Denise ficou triste, mas compreendeu. Mas no fundo, ela temia que a amiga saísse ferida novamente.

*   *   *   *

Era véspera de natal, e Julie estava pronta. Explicara a Denise que iria ver a irmã. Estava comovida com o que ela dissera sobre elas terem apenas uma a outra e serem tudo o que lhes restava da família. Segurava nas mãos o papel com o endereço que Sarah deixara. 

Entrou em um táxi. A rua estava deserta, pois às seis da tarde do dia 24 de dezembro, a maioria das pessoas já está em casa com suas famílias, esperando a hora da ceia. Deu o endereço ao motorista. No rádio, um locutor fazia um discurso sobre a necessidade de ajudar os mais pobres e fracos, e sobre a nobreza em perdoar. “Natal é tempo de união, “ ele dizia. “Natal é tempo de perdão.”

De repente, Julie compreendeu que já tinha perdoado a irmã várias vezes, e todas as vezes tinham sido sinceras e de bom coração e boa vontade. Abrira suas portas para ela, que saiu batendo-as todas as vezes. Perdoara, e esquecera, e perdoara novamente. Mas cometera um único erro, que ela devia apenas a si mesma, e de cuja culpa Sarah estava totalmente isenta: 

Perdoar não significa submeter-se voluntariamente aos mesmos sofrimentos; perdoar não quer dizer aceitar que a mesma pessoa nos fira repetidamente. Perdoar não significa que, porque alguém faz parte de nossa família, tenhamos que acolhê-la em nosso seio todas as vezes que ela errar e nos ferir propositalmente. 

Ela não conseguia entender o que acontecia na mente de Sarah, o que fizera com que a irmã a odiasse tanto, errasse tanto com ela e com todos a sua volta. Ela não conseguia compreender os motivos que Sarah tinha para inventar mentiras a seu respeito, afastá-la das pessoas que poderiam fazê-la feliz ou tentar arruinar a sua vida todas as vezes que ela se reerguia. Ela jamais conseguiu compreender porque Sarah ficava tão infeliz quando notava que alguém gostava dela, e nessas ocasiões, Sarah fazia de tudo para afastar tais pessoas. E ao mesmo tempo que fazia tudo aquilo contra ela, Sarah também tentava estar sempre próxima, sempre por perto de Julie. Pedia perdão enquanto o sangue da última punhalada ainda estava jorrando, e sempre parecia sincera e arrependida. 
Julie compreendeu, finalmente, que passara a vida fazendo a pergunta errada: O que fazer para que Sarah a amasse – quando, na verdade, a pergunta que deveria ter feito, era:

 COMO POSSO AMAR MAIS A MIM MESMA?

Porque as pessoas podem não nos amar nunca da maneira que esperamos, ou então podem nos amar apenas quando lhes convém, ou até mesmo, passar uma vida inteira nos odiando ou desprezando; porém, cabe a cada um de nós observar e decidir quem deve ficar e quem deve sair do nosso círculo de relacionamentos, para que a vida não se transforme em uma dor constante. 

Julie abriu a janela do táxi, e deixou que o ar frio da noite a confortasse. Tomara uma decisão. Dirigindo-se ao motorista do taxi, ela disse:

-Por favor, me leve de volta ao local onde eu estava antes.

E assim ele o fez. Enquanto isso, Julie pegou o bilhete com o endereço de Sarah e soltou-o ao vento, pela janela do carro.








terça-feira, 13 de dezembro de 2016

MINHA VIDA, SUA VIDA – FINAL



Karen e Mafalda colocaram Edith, que desmaiara, deitada no chão, e uma almofada sob sua cabeça. 

-Ela não conseguiu suportar o susto de nos ver tão parecidas. – disse Mafalda.

-Não acha melhor chamarmos um médico? Afinal, ela não é mais uma garotinha.

-Não, olhe: ela já está acordando!

Edith abriu os olhos e deparou com as duas moças olhando para ela, preocupadas. Por um momento, não soube identificar qual delas seria a sua menina, pois ambas tinham os cabelos presos. Porém, lembrou-se de que 
Mafalda tinha a pele bem mais clara que a de Karen. 

-Você está bem, Edith?

-Sim, meu tesouro. Acho que fiquei tempo demais lá fora, no sol.

-Não foi a surpresa? A de nos ver assim, tão parecidas?

Edith tentou levantar-se, e as duas a ajudaram, levando-a para o sofá da sala. Uma das copeiras trouxe um copo de água com açúcar –e ela também levou um susto ao olhar para as meninas, dizendo que parecia que a menina Bella estava de volta. As duas riram.

Mafalda falou, apontando para Karen e para si mesma:

-Bem, como você pode ver, alguma coisa estranha está acontecendo aqui. Espero que Nono tenha uma explicação para isso. 

Edith concordou com a cabeça, e achou melhor não dizer nada. Mas seus olhos se encheram de lágrimas que ela não conseguiu segurar. Karen concluiu:

-Edith, você deve saber de alguma coisa. Nono lhe disse algo? Porque eu notei que ele ficou muito espantado quando me conheceu. 

Edith fechou os olhos.

-Não estou me sentindo muito bem... acho melhor ir me deitar um pouco. 
E ela foi para o quarto sem responder a pergunta de Karen. 
As duas moças ficaram sentadas no sofá da sala em silêncio, pensativas. Mafalda disse:

-É claro que aí tem truta. 

-O que você acha que está acontecendo, Mafalda?

-Não sei, mas desconfio que você e eu somos parentes. Ou não seríamos tão parecidas! Você é exatamente como a Bella. 

-Acho que você pode estar certa. Será que eu tenho uma família, afinal? Não, não quero criar esta ilusão dentro da minha cabeça. Não suportaria saber que não é verdade. Sabe, acho que está na hora de eu ir embora daqui, Mafalda.

-Não! Nem pense nisso. Precisamos esclarecer essa história. Amanhã o Nono virá aqui em casa, e falaremos com ele. Ele sempre vem às sextas. Eu... gostaria muito que fôssemos parentes, Karen. 

Karen olhou para ela por um longo tempo, e disse:

-Eu também. Não porque você é rica, mas porque eu gostei de você desde a primeira vez que eu a vi. E eu nunca tive ninguém.

-Eu sinto que você é a única pessoa que pode me ajudar a sair de dentro desta casa, você pode ajudar a me curar! 

-Eu queria te perguntar uma coisa, Mafalda. E também te pedir desculpas... se fui eu quem fez você ter aquela crise.

-Não, não foi você! É que eu cheguei em meu quarto naquela noite, e havia um jornal antigo com a notícia do crime que matou minha família em cima da minha poltrona. 

-Isso é horrível! Quem teria colocado aquilo ali?

Mafalda hesitou:

-Edith pensa que foi você.

-Eu?! Mas por que eu faria uma maldade dessas? Você não acha que eu...

-Não! Eu sei que foi ela. De alguma forma, ela sempre faz com que eu me lembre do que aconteceu. Toca no assunto “sem querer,” deixa o armário de Bella aberto para que as roupas dela apareçam, enfim... 

-Mas por que ela faria isso?

-Porque ela tem medo que eu fique curada e ela não seja mais necessária aqui. Você, por exemplo, representa uma ameaça para ela.

-Isso é cruel!

-Não, não é cruel. Não é esta a intenção dela. Ela só está com medo, se sentindo ameaçada.

-Mas você contou a ela que eu tentei fazer você sair da casa. Por que?

-Eu não contei nada! Ela deve ter bisbilhotado, como faz sempre. Foi assim que descobriu.

-Mas ela me disse que foi você quem contou! Nossa... não sei porque ela faz isso. Seu avô é rico, poderia dar uma casa para ela. 

-Não poderia, sem que a minha avó ficasse sabendo. Ela controla todas as finanças. E se ela descobre que a Edith existe, manda ela embora daqui. 

-Mas a casa é sua!

-Eu sei. É minha de fato, mas na verdade só será realmente minha quando meus 
avós morrerem. 

Karen pensou por algum tempo:

-Você mandaria a Edith embora daqui se voltasse a sair como antes?

Mafalda demorou a responder:

-Não sei... talvez. Ela não é problema meu, na verdade. É do Nono. E nem somos parentes. 

-Mas ela acha que é sua avó. Que estranho.

No patamar das escadas, Edith escutava toda a conversa. Lágrimas escorriam dos seus olhos. Lágrimas de orgulho ferido, amor e arrependimento. Mas também, de mágoa, ao saber que sua menina poderia manda-la embora. 

Na sexta-feira à noite, quando Nono chegou, Karen abriu a porta, e ele a beijou na testa, como faria com sua neta. Ela nada disse, e fez sinal para que ele entrasse. Enquanto isso, Mafalda o aguardava no sofá da sala. Ele pareceu confuso, e olhou para trás – onde Karen estava de pé, olhando para ele. As duas moças se uniram, ficando lado a lado na frente de Nono, que de boca entreaberta, olhava de uma para a outra.

-Mas... o que aconteceu aqui, como é que vocês duas...

-Nós pensamos que talvez você pudesse nos explicar, vovô. 

Nono sentou-se no sofá, e elas sentaram-se em poltronas, ficando de frente para eles.

-Ok, eu vou dizer o que eu sei que pode ter acontecido. É que na verdade, sua mãe teve trigêmeas, mas uma delas morreu. 

-Como assim? Então eu tinha outra irmã e vocês esconderam de mim???

Nono fez sinal para que ela se acalmasse:

-Não, ninguém escondeu nada! Eu mesmo fiz o sepultamento da minha neta. Ela se chamava July. Eu vi o corpo. Quero dizer... só se... bem, bebês prematuros são parecidos...

-Vô, você está dizendo que aquele bebê morto pode não ser a minha irmã July?
-Sim, e se isso for verdade, alguém cometeu um crime naquela noite, e provavelmente, trocou as crianças! Mas... por que alguém faria isso? Será tráfico de bebês? (virando-se para Karen) Querida, como você foi parar naquele orfanato?

-Eu não sei, as freiras diziam que alguém me deixou na porta durante a noite, e meu nome – Karen – estava bordado na gola da minha roupa. Mas... se eu não sou Karen... posso ser a July? Posso ser a sua neta?

Nono disse:

-Olhe, é preciso antes que alguns exames sejam feitos...

Mafalda precipitou-se:

-Para que, Nono? Olhe bem para ela, e depois, olhe bem para mim. E para as fotos de Bella! Ela é minha irmã!

-Sim, eu sei, mas pela lei, as coisas tem que ser feitas da maneira correta. July, digo, Karen, você poderia fazer alguns exames amanhã de manhã? Eu mesmo a levarei. Nossa... Célia vai ficar louca ao saber. Sua avó, sabe... o nome dela é Célia. E mandarei investigar quem entrou e quem saiu do hospital naquela noite. 
Quero tudo esclarecido o mais rapidamente possível. 

Karen notou que Nono parecia mais feliz do que gostaria de demonstrar, e ela ficou feliz também. A menina que não tinha ninguém, que era sozinha no mundo, de repente tinha uma irmã, avós e uma família! Quem sabe, primos, primas, tios, tias... e ela queria conhecer todos eles. 

De repente, todos olham para a porta, e veem Edith de pé, muito pálida. Nono vai até ela:

-Edith, você está bem?

Edith aceita a ajuda de Nono, segurando-se no braço dele antes de sentar-se. Ela olha a todos nos olhos antes de começar seu discurso:

-Não precisa chamar a polícia, Nono. Eu sei o que aconteceu. Só não pensei que aquele bebê voltaria a aparecer, e que aquela história teria que ser contada, um dia. 

-Edith! Você sabia de tudo?

Ela acena, cm a cabeça, concordando. 

-E quem trocou os bebês? Você a conhece?

Mafalda interrompe Nono, dizendo com raiva:

-É claro que ela conhece, e manteve segredo esses anos todos, enganado a todos nós, inclusive a você, Nono! Sabe por que? Porque deve ter sido ela mesma!

-Mafalda, não faça acusações sem antes ouvir Edith, por favor, minha neta!

Edith o interrompeu:

-Mas ela tem razão, Nono... fui eu quem trocou as crianças. Sei que eu errei, e me arrependi muito, mas fiz para tentar reparar uma injustiça. A mãe do bebê morto passava por depressão, e não suportaria saber que seu bebê morrera. Ela dizia sempre que tentara cometer suicídio algumas vezes, mas que quando soube que estava grávida, só conseguia pensar na alegria que seria ter seu bebê nos braços... ela não tinha nada! E seu filho tinha três lindos bebês saudáveis! E eram ambos duas crianças... achei que seria até bom para eles não terem que cuidar de três bebês. 

Nono olhava o chão, as mãos cruzadas sobre os joelhos. Pensava no quanto Edith o enganara, e que talvez tivesse se aproximado dele por interesse. Isto, depois de roubar uma de suas netinhas! Que espécie de ser humano era aquela mulher? Ele aprendera a amá-la, apesar de tudo; não seria fácil odiá-la de uma hora para outra, mesmo sabendo do que sabia. Mafalda disse, a voz embargada:

-E ela vem tentando me manter dentro desta casa para que ela possa continuar morando aqui, Nono! Ela deixa retratos do acidente dos meus pais e de Bella onde eu possa ver... faz coisas que me deixam triste e que me colocam em crise. Achei que era por medo de me perder e também ao senhor, mas é por medo de perder a casa e a boa vida que leva aqui! 

Nono estava arrasado. Ele olhou para Edith, e perguntou-lhe:

-É verdade, Edith?

Ela negou com a cabeça:

-Eu amo Mafalda como se fosse minha neta. Só quero o bem dela.

Sem pensar, Karen se viu perguntando:

-Como quis o meu, Edith?

Edith olhou para ela, e começou a chorar. 

-Eu não queria te fazer mal! Achei que seria feliz e que seria amada! Jamais poderia imaginar que aquela mulher a abandonaria depois de tudo o que me contou! 

-Mas ela não era a minha mãe verdadeira! Você fez com que eu passasse toda a minha vida sozinha, Edith! Eu não tive família, passei muitas dificuldades! Tive muitos problemas por isso! 

Todos ficaram em silêncio, pensando no que fariam ou diriam em seguida. 

Finalmente, Mafalda disse, em tom magoado:

-Edith, eu quero que você saia da minha casa. 

Edith sentiu o pânico tomar conta dela. Olhou para Nono, e suplicou-lhe:

-Nono, por favor me perdoe pelos meus erros! Todos vocês precisam me perdoar! Mafalda, eu sempre a amei coo se fosse minha própria neta...e Karen, quando eu a vi, quando pus meus olhos em você, logo senti que você era a chance de eu redimir meus erros do passado! Você está aqui agora, e é o que importa!

Karen olhou-a, e disse calmamente:

-Não é não, Edith. Você está se esquecendo dos anos em que eu vivi em um orfanato, sem família! Dos anos em que eu e minhas irmãs fomos separadas, e que por isso, não cheguei a conhecer Bella, ou meus pais. 

-Mas... Mafalda, você mesma me contou que seus pais não passavam de jovens mimados e imaturos! Karen, eu pensei que você teria a chance de crescer sob a guarda de uma mãe amorosa e responsável... e Nono, eu me apaixonei por você de verdade... pense em todos esses anos em que estamos juntos e felizes... eu nunca exigi nada de você! Você acha que eu passei todos estes anos fingindo?

-Lave a boca ao falar de meus pais, Mafalda! Ou melhor, você não tem o direito de falar deles!

Nono pediu:

-Por favor, Mafalda, não grite assim! Está me deixando com dor de cabeça.

Em um tom de voz quase inaudível, Mafalda repetiu:

-Eu quero que ela saia, Nono. 

Nono passou a mão sobre o rosto, como se estivesse muito cansado. De repente, parecia ter envelhecido anos em apenas alguns minutos. Olhou para Edith:

-Edith, vá arrumar suas coisas. Você vai voltar ao apartamento. Pelo menos, até conseguir outro local para você ficar. 

-Mas Nono! Você sabe que eu não tenho ninguém. Larguei meu emprego por causa de você! Não posso ser jogada na rua! Eu já tenho idade! 

-Não estou jogando você na rua, Edith. E não vou abandoná-la. Pagarei uma pensão até seu último dia de vida, ou o meu. Enquanto isso, você terá tempo de escolher um outro caminho. Dê-se por sorte por eu não resolver denunciá-la! 

Edith pegou o que ainda lhe restava de dignidade, e saiu em silêncio.

Enquanto arrumava as malas, as lágrimas mal deixavam-na enxergar o que estava fazendo. Tantos anos de dedicação àquela casa e àquela família, e agora estava sendo mandada embora! É claro que ela tinha errado, mas tinha se arrependido! E amava muito a Nono e sua neta. 

Fechou a mala, sentando-se na cama e olhando em volta. Aquele tinha sido o seu quarto durante anos, e agora, ela estava deixando tudo aquilo para trás. Acariciou a colcha e a cama onde ela e Nono se amaram tantas vezes. Pegou a mala, e desceu as escadas devagar. 

Quando chegou na sala, as meninas tinham saído. Nono olhou para ela quando a viu, dizendo:

-Pode ficar aqui, Edith. Mafalda permitiu que você ficasse. Quem vai embora é ela. 

Edith largou a mala, exclamando:

-Mas... como? Ela não pode sair, ela não consegue sair.

Nono olhou para ela, e ela percebeu que a raiva dele tinha passado:

-Ela está lá fora no jardim, caminhando com a irmã. 

Edith não pode deixar de sorrir. 

-Mesmo? Eu fico feliz que ela tenha conseguido! E estou feliz que você tenha me perdoado, Nono!

Ele olhou para ela antes de sair:

-Quem disse que eu a perdoei?


*       *        *        *

 Mafalda e July deram as mãos e entraram no táxi. Estavam saindo em uma viagem pelo mundo juntas.  Quando voltassem, o apartamento delas estaria pronto. July ficara conhecendo as avós e seu outro avô. Todos foram gentis com ela, e ficaram felizes ao saberem da verdade, mas logo voltaram à sua frieza e distância habituais, e July percebeu que eles estavam apenas sendo educados e polidos. Também soube que sua única e verdadeira família, eram Mafalda – sua irmã – que a amava realmente, E Nono.

Nono e Edith terminaram tudo. Ela ficou vivendo na casa, em companhia da copeira. Nono pagava todas as despesas, mas reduzira todos os gastos a apenas o essencial. Edith vagava pela casa sozinha, sentindo falta de Mafalda e de Nono, que não mais a visitava. Às vezes pensava em procurar por Célia e contar a ela toda a verdade, mas tinha medo de que Nono a abandonasse por completo depois que ela fizesse aquilo. E ela ainda o amava – iria amá-lo e sentir sua falta pelo resto da vida, e não existe castigo pior do que este. 

As irmãs tiveram tempo de conversar muito, colocando em dia todos aqueles anos em que estiveram separadas. Aos poucos, Mafalda deixou de tomar os medicamentos. Estava livre, para recomeçar a sua vida e deixar para trás o que tinha perdido. E quanto a July, estava livre para olhar para o futuro e finalmente, poder sonhar, ficando feliz pelo que tinha ganho. 

Durante a viagem, as moças conheceram seus futuros maridos. Casaram-se e passaram a viver em casas próximas. Nunca mais elas se separaram. 








segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

MINHA VIDA, SUA VIDA – CAPÍTULO VII






Nono entrou no carro e sentou-se no banco de trás, como fazia todas as manhãs. Logo em seguida, o motorista começou a dirigir até o escritório, como fazia todas as manhãs. Mas de repente, Nono tomou uma decisão, e ordenou ao motorista:

-Vamos fazer um desvio hoje, João. Leve-me até o cemitério. 

O motorista achou estranho, mas obedeceu às ordens, como sempre fazia. Aprendera que, para manter seu emprego, tinha que saber ver e calar – como nas muitas vezes em que Nono colocava mulheres no carro com ele, mandando que fosse até um apart hotel que mantinha alugado no centro da cidade. Também ouvia calado quando ele conduzia suas negociações não muito lícitas no banco de trás. Ele era apenas o motorista, mas estava satisfeito com seu salário e com seu trabalho, e portanto, aprendera a não ver, não ouvir e só falar quando solicitado.

Nono comprou flores de um vendedor ambulante que estava na porta. Depositou-as nas sepulturas do jazigo da família, onde descansavam sua neta, seu filho e sua nora. Há anos não fazia aquilo. Quando eles morreram, ele sentiu muita dor. Uma dor como nunca havia sentido antes. Mas os negócios esperavam por ele, Edith e Célia esperavam por ele – e também as muitas outras mulheres com quem ele fazia sexo. Afinal, ainda era um homem jovem quando perdeu os três. 
Mais jovem ainda quando ele estava naquele corredor de hospital, esperando suas netinhas nascerem. Célia não estava presente, pois não gostava de hospitais. Ele, seu filho e os pais de sua nora aguardavam ansiosos pela abertura da porta onde há horas, a menina entrara sentindo as dores do parto. Seria uma cesariana – sua nora era muito jovem, e não tinha condições físicas e muito menos psicológicas para parir gêmeas. 

Finalmente, a porta se abriu, e o médico retirou a máscara que cobria sua boca, enxugando com ela o suor do rosto: 

-Está tudo bem com a mãe e as três meninas, mas as bebês terão que ficar no hospital durante algumas semanas, até ganharem peso. 

Nono fechou os olhos, e colocando a mão sobre a tampa do túmulo onde seu filho descansava, pensou em onde ele poderia estar naquele momento – pois não podia acreditar que alguém tão cheio de vida se transformara em um feixe de ossos. 

Depois, ele se levantou com alguma dificuldade – o peso dos anos – e foi até um outro local do cemitério, há alguns metros de distância, onde havia uma pequena sepultura com uma cruz branca encimada por um anjo. Ele mesmo escolhera aquele anjo. Ele mesmo, sozinho. Célia não gostava de cemitérios, e seu filho e sua nora estavam ocupados com as duas gêmeas que sobreviveram. Uma delas, a mais miudinha, acabou morrendo semanas depois, quando os bebês estavam ainda na incubadora. 

O próprio Nono cuidou do sepultamento. Os pais não quiseram ir, pois não queriam ver o bebê morto. Célia não foi, pois não gostava nada de enterros. E quando o coveiro fechou a pequena tumba, aquela criança foi totalmente esquecida. A alegria de ter em casa as duas bebês sobreviventes, logo fez com que seus jovens pais se esquecessem da que morrera, e nunca mais falassem dela. Nunca mais mesmo. Nem sequer para as irmãs. 

Mas agora, anos depois, aqueles dias afastados voltavam a persegui-lo na imagem da estranha que estava morando com sua neta. 
Mas não era possível; ele mesmo vira o bebê morto. Aquela moça era apenas parecida com sua neta, e tudo não passava de uma coincidência. 

Na casa, Mafalda pegou a carteira de trabalho de Karen a fim de registrá-la. Ficou surpresa ao ver que tinham nascido no mesmo dia. 
Levada por um impulso inexplicável, Karen ligou para a farmácia local e encomendou uma caixa de tintura para cabelos de cor ruiva – a cor natural de seus cabelos. Passou a tarde trancada no quarto, sem ver ninguém. 

Enquanto isso, Karen passeava pelos jardins da casa, acompanhada de Edith. As duas caminhavam lado a lado, e Edith – como se fosse a dona da casa – ia mostrando tudo: sabia o nome de cada flor, e conversava com os jardineiros, dando-lhes ordens como se ela fosse a proprietária. Karen percebeu o quanto ela gostava que eles pensassem que ela era. Subitamente, Edith parou sua caminhada, segurando o braço de Karen suavemente:

-Queria dizer uma coisa a você, mas não sei como, pois não quero feri-la, Karen.

Karen sentiu-se apreensiva, mas respondeu:

-Só há uma maneira: dizendo. 

-É sobre Mafalda. Ela comentou comigo que sentiu-se mal quando você a chamou para ir até o jardim.

Karen sentiu um incômodo estranho, mas ficou calada.

-Gostaria de pedir a você que não mais fizesse tal coisa. Não é bom para ela, minha menina não pode sair de casa. Ela não consegue, entende? Por isso, desencadeou aquela crise.

Karen percebeu que a doçura daquele sorriso e daquela voz aveludada estavam cobertas por um açúcar um tanto falso. Parecia uma crosta grudenta e fora do lugar, que ela via pela primeira vez. Sentiu calafrios na espinha, mas mesmo assim, achou melhor não contestá-la:

-Tudo bem. Peço desculpas, pensei que estivesse ajudando.

-Não tem do que se desculpar, meu bem. 

Mais tarde, ela perguntaria a Mafalda o verdadeiro motivo pelo qual a crise tinha sido desencadeada. Tivera a impressão de que Edith não lhe contara a história 
toda. 

Após lavar os cabelos, e enquanto os secava com o secador, Mafalda via seu velho rosto ressurgindo. Usava os cabelos tingidos de castanho há tanto tempo, que nem se lembrava mais dele. Queria ser outra pessoa, alguém que não passara por todas as coisas que ela passara, e por isso, cortara e tingira o cabelo. Mesmo depois de notar que sua aparência exterior não poderia modificar o que ela era por dentro, resolveu manter seu cabelo daquele jeito. Na verdade, o que ela não gostava, era de olhar-se no espelho e ver sua irmã Bella. Eram idênticas. Mas lá estava ela novamente, olhando-a de volta!

Mas não; não era Bella quem estava ali, olhando-a de volta. 

Naquele momento, Karen chegou no quarto de Mafalda, e parou atrás dela. As duas imediatamente entenderam. Olharam-se através do espelho. Alguma coisa tinha acontecido. Estavam ligadas de alguma forma. Ninguém poderia negar que eram muito parecidas – quase iguais. 

Edith continuava sua caminhada pelo jardim, e parecia muito aflita. Sua doçura habitual dera lugar a uma carranca de preocupação. Pensava em Nono. Pensava no quanto o amava, e em tudo o que tinha feito de sua vida para ficar ao lado dele. Sabia que ele jamais se separaria de Célia, mas mesmo assim, ficara ao lado dele durante todos aqueles anos – mesmo sabendo que ele tinha outras mulheres além dela. Várias vezes sentira perfumes diferentes e vulgares nele, enquanto o beijava, e também encontrara, certa vez, uma peça íntima em um de seus bolsos. Pensou em deixa-la ali para que Célia a encontrasse, mas depois retirou-a sem nada dizer, pois se Célia desconfiasse de alguma coisa, provavelmente eles teriam que se separar, pois ela ficaria mais atenta. Nono não arriscaria tudo se Célia desconfiasse de sua existência: ele a mandaria embora de sua vida. 

Desde a chegada de Karen, a vida de Edith transformara-se em um verdadeiro inferno, embora ela soubesse disfarçar muito bem. A presença da moça fez com que ela desenterrasse lembranças do passado, e a maneira como ela e Mafalda imediatamente se entenderam e ficaram amigas, a incomodava. 

Edith sentou-se em um dos muitos bancos do jardim, e longe da casa, ficou admirando a construção. Nunca tivera muitas coisas na vida: um casamento fracassado com um bêbado que batia nela, e antes, pais que batiam nela quando criança e que a ignoraram depois de adulta. Aquela casa e Nono eram as primeiras coisas bonitas que Deus lhe dera. E também Mafalda, a quem ela sinceramente passou a amar como se fosse sua neta. Sua. De alguma forma, sentia-se como um membro da família, sem desconfiar que seu sentimento não era retribuído da mesma forma. Mafalda a aturava, pelo avô, a quem ela amava. 

Às vezes gostava dela, mas na maior parte do tempo, era polida porque tinha pena dela. Afinal, como não ser gentil com alguém que lhe dedicava tanta atenção e carinho? Alguém que várias vezes passara noites em claro cuidando dela durante as suas crises?

Edith olhava a casa que sentia como sua: seu lar. O lugar onde seu amado a visitava. Não queria nada mais além daquilo. Tinha a vida que desejava, era feliz, e de repente, sua felicidade estava ameaçada pela chegada daquela estranha. 
Há muitos anos, quando trabalhava de enfermeira em uma maternidade luxuosa, Edith cuidou de três bebês, que uma menina dera à luz. Uma menina rica e mimada. 

Também trabalhava, na mesma época, em um hospital público que ficava a apenas duas quadras daquele, onde mulheres muito pobres davam à luz em condições precárias, e por falta de atendimento adequado, muitos bebês adoeciam e acabavam morrendo. E isto aconteceu com uma das bebês prematuras que estava sendo cuidada por ela. A mãe também era muito jovem, e estava sozinha. Não sabia do pai da criança, e não tinha família na cidade. Amara o pequeno bebê, e dissera a Edith que aquela criança era sua esperança de dias melhores, sua força para continuar e o milagre que a fez desistir de cometer suicídio. Como Edith poderia contar a ela? 

Foi numa madrugada chuvosa que a criança morreu. Edith era a única plantonista no berçário do  hospital público naquela noite. A mãe ficara no hospital a fim de amamentar a pequena. Não era como a outra mãe, tão imatura, rica e mimada, que fora para casa, deixando suas meninas no hospital para serem alimentadas por mamadeiras. 

Edith tomou uma decisão naquela noite: embrulhou a bebê morta e saiu do hospital com ela, dizendo que voltaria logo. Chegou ao outro hospital, e trocou a bebê morta por uma das gêmeas saudáveis – a menorzinha, que tinha mais probabilidades de morrer. A outra mãe ficaria feliz, e a menina mimada ainda teria duas meninas para brincar de boneca. Não pensou nas condições financeiras da mãe que ficara no hospital público. Pensou apenas que estava fazendo a diferença na vida daquela jovem mulher, e que daria a ela as esperanças e a força que precisava para continuar com sua vida. Bebês prematuros eram sempre tão parecidos, e ninguém notaria a diferença. Além disso, os bebês, por coincidência, tinham o mesmo tipo sanguíneo. 

Deus fazia justiça por caminhos tortos, pensou ela. 
Jamais ficou sabendo o que acontecera com a bebê viva que ela trocara pela morta. Mas quando soube que os pais sequer foram ao sepultamento da própria filha, pensou ter feito a coisa certa. Pelo menos, a menininha seria amada de verdade, mesmo que sendo criada em um ambiente pobre. O que ela não soube, é que a mãe amorosa abandonou a bebê – que chamou de Karen, devido a um personagem de filme americano que ela gostara – poucos dias depois, ao ver o quanto a criança chorava de fome, e o quanto seria difícil a vida com ela, pois ninguém dava-lhe um emprego quando ficava sabendo da existência da menina. 

Mas o mundo pode ser redondo demais, e fazer com que pessoas que foram separadas no passado se juntem novamente no presente. 
Edith sabia que cometera um crime aos olhos dos homens, mas que Deus a perdoara, pois Ele próprio dera a ela aquela missão. E foi naquele mesmo hospital que ela conheceu Nono, e se apaixonou pelo jovem avô. Ela considerou aquilo um prêmio de Deus por ter ajudado aquela mãe. 

Nono tirou-a do emprego, e passou a cuidar dela. Deu-lhe coisas com as quais ela jamais sonhara. Contratou uma pessoa para ensinar-lhe boas maneiras e para ajuda-la a vestir-se melhor. Ele estava apaixonado pela linda enfermeira que conhecera. Sabia que a amava, mais do que amava a sua esposa. Mas sempre disse a ela que jamais pediria o divórcio, e Edith concordou, dizendo que dele ela só queria o que ele pudesse lhe dar. 

E ele lhe dera tudo – inclusive, uma família. Mafalda era a sua menina. 
E ela pensou, e repensou naquela história. Na verdade, ninguém poderia traçar aquela separação até ela. Ou será que poderiam? Mas ela nem estava de plantão naquela noite, e tinha tomado o cuidado de entrar quando o berçário estava vazio; fizera a troca rapidamente, saindo logo em seguida pela porta dos fundos, por onde tinha entrado. E havia também outras enfermeiras – duas delas, já falecidas – que poderiam ser as culpadas, ao invés dela, e que estavam de plantão naquela noite. Tomara o cuidado de cobrir a cabeça com um lenço que tapava suas feições, caso alguém a visse passar pelos corredores. 

De repente, ela estava se preocupando à toa; era isso. A semelhança entre as moças era apenas coincidência! Edith riu de suas fantasia loucas, e voltou caminhando para casa, após colher flores frescas para colocar no vaso sobre a mesa da sala de jantar. Sua menina adorava aquelas flores. 

Mas ela deixou cair a braçada de flores quando abriu a porta, e deu com as duas moças ruivas sentadas lado a lado no sofá da sala. 


(Continua...)





A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...