segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

LIMBO



Eu não me lembro como cheguei a esta casa. Um dia, abri os olhos e despertei em uma grande cama de dossel, em um quarto todo pintado de branco ornado com cortinas brancas e esvoaçantes que cobriam duas grandes janelas que davam para um pátio gramado e sem horizontes. Nada há em volta da casa. O sol nasce de manhã por trás do telhado, e deita-se todas as tardes na frente da casa, as cores tornando-se vermelhas, alaranjadas, rosadas e, finalmente, de um leve dourado, quando o sol encontra a linha reta e fina entre o céu e o chão. Quando a noite chega, há um céu sem estrelas e sem luar. Apenas o negro profundo e intransponível. Acredito que, vista de fora, a casa aonde me encontro deve ser como um ponto de luz isolado no meio de um grande deserto quando é noite, e uma mancha branca no meio de um extenso gramado esmeralda quando é dia.

 Às vezes eu me debruço nessas sacadas, tentando ver além daquilo que meus olhos já viram, mas sempre encontro a mesma paisagem desolada e vazia. Não há pássaros. Não há estradas. Não há árvores, montanhas, rios ou qualquer sinal de presença humana ou animal.

O que há é este quarto onde durmo e acordo todos os dias. Tão branco, tão solitário, tão triste... e há o silêncio, entrecortado por alguns breves sussurros (ou será a minha imaginação?) que parecem surgir dentro de minha cabeça; de repente, tenho a sensação de que ouço meu nome sendo sussurrado: “Helga!” Mas quando começo a prestar atenção para ouvir de novo, o som já fugiu. Penso que posso enlouquecer a qualquer momento. Ou que já enlouqueci, quem sabe, e meu corpo esteja aprisionado em uma cela acolchoada em algum manicômio...

Não sei que horas são, que dia é hoje, ou há quanto tempo estou aqui. Não me lembro de nada antes disso, e não espero por nada depois. Não sei de onde vim, quem é minha família – se algum dia eu tive uma – ou quem são meus amigos. A simples noção do significado destas palavras – lar, família, amigos, emprego, vida, relacionamentos – me espanta. Sei o que significam, mas não consigo recordar-me se alguma vez já fizeram parte de minha vida. Minha mente é tão branca quanto tudo o que me cerca. Sei que passo longas horas (ou seriam minutos, dias, anos?) adormecida. Quando desperto, sinto um torpor que me envolve completamente, e não consigo ficar acordada durante muito tempo. Levanto-me meio-tonta, olho à janela o tapete verde que se estende diante da casa cujas paredes não consigo divisar, pois estão constantemente cobertas por uma densa neblina branca, olho para o céu azul profundo e sem nuvens ou então totalmente negro, se for noite. Vejo o sol erguer-se e deitar-se. Olho para a camisola branca e simples que estou usando sobre meu corpo também branco-leitoso. Isso é tudo. Quando dou por mim, estou coberta com um lençol branco e vaporoso. Abro os olhos e vejo a fronha branca perto do meu rosto. Olho para cima e vejo o teto branco. Melhor dormir o máximo que eu puder.

Não sinto tristeza ou alegria, medo ou euforia, fome ou sede, saudades ou tédio. Não tenho memórias. Nem sequer sei como me lembro do meu próprio nome. Não me lembro da aparência do meu rosto ou da cor dos meus olhos. Também não sei qual a minha idade. Às vezes, quando acordo, vejo meu cabelo castanho sobre a fronha, cuidadosamente arrumado. Parece que alguém o escovou. E o lençol que me cobre, bem esticado e limpo, também parece ter sido colocado sobre mim com muito cuidado. Olho minhas pernas e braços, meu tronco, pés e mãos e vejo que sou muito magra, mas que talvez nem sempre tenha sido assim. 

Toco minha pele e não sinto qualquer sensação de frio ou calor.
Acordei ontem, hoje ou um dia – ou em qualquer outro local no tempo – e havia flores sobre a mesa de cabeceira. Uma mancha colorida que divisei em meio a total brancura, ainda semi-adormecida, entre minhas pálpebras que começavam a se abrir. Primeiro, aquela mancha de cor não me surpreendeu, pois em algum lugar da minha memória, ela pareceu normal; mas súbito arregalei os olhos, sentando-me na cama e esfregando os olhos: ela ainda estava ali, agora não mais uma mancha, mas um lindo buquê de flores do campo coloridas. Dentro de minha cabeça, compreendi que eram minhas preferidas. Estendi a mão e segurei-as, tirando-as de dentro do vaso. Acariciei meu rosto com elas e senti algo muito leve que roçava contra a minha pele, mas não consegui aspirar nenhum perfume. De olhos fechados, eu consegui realmente ver as cores, o que de alguma forma me parece estranho. Quando abro novamente os olhos, as flores  desapareceram, assim como o vaso sobre a mesa de cabeceira.

Agora, eu às vezes ainda encontro flores sobre a cabeceira. Certa vez, de olhos fechados, eu vi uma luz fraca e bruxuleante no meio da escuridão, como se fosse a chama de uma vela; mas tudo foi muito rápido, fugaz e impreciso. Ouvi também os sussurros. Pareceu-me que alguém chorava, um soluço profundo cortando o silêncio.

Chego à janela e vislumbro a mesma paisagem. Sinto um doce cansaço. Assisto ao por do sol, e quando chego à fase final, logo antes de tudo tomar a agora conhecida tonalidade dourado-suave, percebo algo a mais no céu que não vira jamais: um desenho fino e curvo, branco-brilhante, cujo brilho aumenta de intensidade conforme escurece. Fascinada, reconheço o luar. Uma lua crescente. Pouco a pouco, surgem pontos coloridos e brilhantes de luz aqui e ali: estrelas. Pela primeira vez desde que cheguei (e lembrem-se, não sei quando cheguei) sinto algo mais intenso: um pouco de alegria. Agora, penso, não estou mais tão sozinha! Mas... eu nunca tinha me sentido só antes! De onde vem este pensamento?

Tenho novos motivos para olhar à janela: o céu crivado de estrelas, e a lua, que cresce como o ventre de uma mulher grávida. Novos pensamentos vão surgindo todos os dias. Toco meu ventre, e sei que um dia, não sei quando, eu já estive assim, grávida como a lua. Esta certeza deixa-nos ainda mais próximas.
As flores à mesa de cabeceira passam a estar lá toda vez que desperto. Acho também uma pulseirinha dourada, muito fininha e delicada. Coloco-a no pulso, prendendo o fecho, e olho para ela longamente. Alguma coisa parece querer surgir... mas sou distraída por um ruído de asas, que atrai-me até a janela. Olho para o céu, e vejo uma garça branca passando, logo seguida por outra e mais outra, até que um enorme bando de pássaros surge! Encantada pela sua beleza, sinto uma lágrima rolar pelo meu rosto. A sensação de algo molhado e quente surpreende-me. Seco-a com o dorso da mão, e ao olhar para o meu pulso, onde havia colocado a pulseira, ela não está mais lá. Debruço-me à janela para acompanhar o voo das garças, mas elas também desaparecem.

Mas depois daquela primeira aparição, há outras. Certa vez (usarei a palavra ‘vez’ a fim de definir melhor a minha total falta de noção de tempo) desperto com o pio suave de um passarinho pousado à janela; em outra ocasião, um colibri sobrevoa a minha cama quando abro os olhos. Desta vez, avisto as primeiras árvores surgindo no horizonte, e uma pequena elevação, uma colina, quando o sol toca a linha fina do chão. 

Aos poucos, a paisagem vai mudando. Eu passo também a sentir menos cansaço.
É noite de luar. Olho para fora, e assisto enquanto uma estrada se forma em direção à casa. Ela é estreita e sinuosa, e logo surgem árvores e arbustos floridos ao longo dela. À esquerda, vejo um lago que não estava ali antes... mas antes do quê? Novamente, ouço meu nome sendo sussurrado, mas sem soluços ou choro. Quando me viro, há flores e velas sobre a mesa de cabeceira; acostumei-me à presença delas. Sei que elas desaparecerão assim como surgiram, e outras reaparecerão depois.

É de manhã. Acordo, e sinto um forte impulso de caminhar até a porta e, segurando a maçaneta redonda de cerâmica branca, girá-la. Por que nunca havia pensado nisso antes? Agora, parece a coisa mais natural a se fazer, e não consigo entender por que não o fizera antes. Giro a maçaneta, e a porta simplesmente se abre. Vejo um corredor longo e vazio, e a luz forte do dia que entra por uma janela no final deste. Debaixo dela, um lance de escadas largas e sinuosas, acarpetadas de rosa claro. Começo a descê-las. Estou descalça, como sempre. Meus passos não produzem qualquer ruído. Não há nada, além do silêncio e da luz que a tudo ilumina.

Chego ao sopé da escada. Olho em volta, e vejo uma sala vazia toda branca. Há apenas um piano junto à janela, e parece-me natural caminhar até ele e tocá-lo. Escolho um clássico: Chopin. Enquanto toco, sinto como se alguém me observasse. Tenho certeza de que este alguém também escuta a música, e pensa em mim. Ergo os olhos, e há flores presas em um ramo sobre o piano. Deixo-me ficar ali, aproveitando aquelas sensações agradáveis, até que as flores começam a desaparecer. Agora, estou de pé no meio da sala, e não há mais piano. Olho para a porta diante de mim, do outro lado da sala vazio. Eu a percorro silenciosamente, e ao chegar à porta, agarro a maçaneta e abro.

Estou diante de uma luz forte e branca. Fecho os olhos por alguns instantes, entreabrindo-os até acostumar-me à claridade, que aos poucos, torna-se suportável e então, agradável. Piso do lado de fora. Sinto uma brisa leve e fresca envolver meu rosto. Diante da casa, a estrada me convida.

Começo a caminhada, parando de vez em quando para olhar em volta. São tantas cores brilhantes que me cercam e me encantam, pois passei tanto tempo vendo sempre quase tudo branco, que eu paro várias vezes. Olho para baixo, e vejo que há um par de sandálias macias e confortáveis calçando meus pés, e que visto uma túnica reta e vaporosa, verde-clara. Mas eu não consigo lembrar-me quando troquei de roupa. Meus cabelos estão enfeitados com flores. Passo as mãos levemente sobre eles, tentando localizá-las, e algumas se desprendem. O dia está belíssimo, e vejo muitos pássaros. Ouço o ruído agradável de uma cascata, e caminho em direção ao som. Por trás de uma fileira de árvores, sob uma colina de pedras, paro diante da rocha por onde escorre a água cristalina. Aproximo-me da cascata, e olho meu rosto no espelho da água. Sinto uma certa apreensão, pois não sei o que vou enxergar. Aproximo-me devagar da borda, e vejo o céu refletido no espelho da água. Há algumas nuvens vaporosas (não havia nuvens antes). Aproximo-me mais um pouco, e vejo na água as copas das árvores próximas. Meu rosto surge no meio delas. O medo da estranheza logo passa, mas sei que há alguma coisa acontecendo, pois eu sinto não sou tão jovem quanto mostra aquele espelho d’água. Tenho certeza que minha idade é superior a cinquenta anos, mas a face que vejo é a de uma menina de, no máximo, vinte anos. Mesmo assim, eu sei que ela e eu somos a mesma pessoa. Fico sentada à beira da água, acostumando-me comigo mesma. Também aproveito para apreciar a linda paisagem e o calor agradável do sol. O barulho da cascata é muito relaxante, e o canto dos pássaros torna tudo ainda mais calmo e maravilhoso.

Percebo a presença de outros animais que eu ainda não vira por ali: coelhos, cães, gatos, lagartos, leões, tigres, elefantes. Ao invés de sentir medo, a presença deles apenas me deixa ainda mais tranquila. Sinto que eles não me farão nenhum mal, ou uns aos outros, pois todos convivem pacificamente, e brincam com as da sua espécie.

De repente, uma emoção forte toma conta de mim: reconheço um daqueles animais, um Cocker Spaniel dourado. Sei que se chama Pipo, e que um dia, ele foi meu. Tenho absoluta certeza! Pela primeira vez, abro a minha boca e a voz sai: “Pipo!!!” ele me vê, ergue as orelhas e vem correndo em minha direção! Pula em meu colo, e nós nos abraçamos. Novamente, sinto lágrimas escorrendo de meus olhos. Ficamos abraçados durante um longo tempo, até que ele se afasta e olha para trás, latindo, como se me chamasse. Compreendo que devo segui-lo, e despeço-me com pesar daquela paisagem.

Ele caminha adiante, parando de vez em quando para assegurar-se de que eu o estou seguindo. Apesar de ter a sensação de estar caminhando há bastante tempo, eu não sinto cansaço. Meus passos são leves e ágeis. Meu caminhar flui sem qualquer dificuldade ou dor. Lembro-me de que um dia senti fortes dores nos pés e nas costas, dores que me deixavam sem poder caminhar durante semanas.
A estrada se bifurca, mas Pipo parece não ter dúvidas sobre o caminho a seguir. Continuamos por uma rua de paralelos, muito bonita e arborizada. Há algumas casas pequeninas e coloridas, e Pipo me guia até uma delas, de cor azul. Ao chegar ao portão, ele late feliz. Vejo que a portinha branca se entreabre, e uma estranha emoção toma conta de mim. Antes de ver os rostos dos seus ocupantes, eu adivinho quem eles são: meu pai e minha mãe! Ao me verem, eles abrem os braços felizes, e eu corro para abraçá-los. Enquanto nos abraçamos, olho para dentro da casinha e vejo uma lareira acesa, e dormindo junto a ela, está Giorgio, meu gato angorá. Lembro-me que ganhei-o  de presente no meu aniversário de quinze anos. Pipo entra na casa, juntando-se a ele. Ver os dois juntos causa-me uma certa confusão, pois adquiri Pipo muitos anos depois que Giorgio desapareceu de casa.

Mas todos estes pensamentos e lembranças ocorrem em uma fração de segundos, me parece. Concentro-me na presença de meus pais, que eu sinto, estiveram ausentes de minha vida durante muito tempo... noto que eles estão bem jovens. Nem parecem ter idade suficiente para serem meus pais. Nós nos sentamos nas escadas da porta da frente da casa, enquanto a tarde cai. Conto-lhes sobre a minha vida. Falo das coisas que tenho feito, e é estranho para mim que de repente eu me lembre de tudo. Conto-lhes sobre meu primeiro casamento, fracassado após os abortos espontâneos que tive e também sobre meu segundo casamento com Pablo, um homem maravilhoso que me ajudou a resgatar a minha autoestima, com quem eu finalmente tivera filhos. Falo sobre Renato e Angélica, seus netos. Eles parecem saber tudo sobre eles, mas mesmo assim, ouvem-me com atenção. Com orgulho, conto-lhes que Renato é médico, e Angélica, assistente social. Sei que falamos sobre muitas outras coisas dolorosas, mas esta parte é um tanto obscura para mim. Sempre que tento lembrar-me das coisas que dissemos, sou acometida por uma grande tristeza. Mas eles me disseram para que eu não me sentisse culpada ou triste por nada, pois tudo fazia parte de um plano...

Agora, há muitas estrelas no céu. Finalmente, eles me convidam para entrar e partilham sua casa comigo. Vejo que tudo é muito simples e aconchegante, bem diferente da casa onde eles – nós – morávamos antes. Mas aqui, há paz. Papai me convida para sentar-se em sua poltrona, junto à lareira, e fico acariciando a cabeça de Pipo enquanto Giorgio dorme em meu colo. Ouço a voz de mamãe como vinda de um transe. Ela me pergunta como eu me sinto, e eu respondo que me sinto muito bem. Melhor do que jamais me sentira antes. E ela me promete que um dia terei este sentimento de volta, e que voltaremos a ficar todos juntos, mas que no momento, eu preciso dormir.
 Não quero dormir.

Mas a voz de mamãe parece conduzir-me a uma espécie de transe. Ela pede que eu confie nela, e me entregue ao sono. Vejo, entre minhas pálpebras pesadas, que há outros rostos conhecidos que me olham e sorriem para mim. Reconheço alguns deles: meus avós maternos. Meu avô paterno. Meu primo, que morreu aos dez anos de idade. Minha melhor amiga da escola, Regina, que morreu de meningite. Alguns tios e tias que fizeram parte da minha infância. Acho estranho que eles estejam ali, mas de repente eu me lembro que meus pais também já estão mortos há quase trinta anos!

Eu quero ficar e conversar com todos eles. Quero saber onde estiveram, e o que estão fazendo ali. Minha mente entorpecida parece ser feita de geleia e confusão. Eu sinto que estou indo embora, mas faço força para ficar, pois não quero me esquecer. Grito que eu quero ficar, mas mamãe me acaricia a testa, e diz baixinho em meu ouvido que eu ainda não posso ficar ali. Ainda preciso voltar e viver alguns anos. Há coisas a serem terminadas. Ela diz que dentro em breve, meu marido precisará muito de mim. Ela sussurra em meus ouvidos: “Mais alguns anos, querida. Mais alguns anos...” grito que quero me lembrar. Ela me promete que deixará as lembranças comigo.

Uma menina loira de olhos azuis ainda me diz: “Se eles duvidarem, fale de Roberta e da casa amarela!” foi a última coisa que ouvi, e que ficou ecoando em minha cabeça.
Abro os olhos novamente em meio a um mar de dores. Há muitos tubos em volta de mim, ligados ao meu corpo. Olho em volta, e vejo paredes cinzas, e escuto aparelhos que zumbem. A dor é excruciante. Um homem de cabelos brancos dorme sentado em uma cadeira desconfortável. Reconheço Pablo, meu marido. Também me lembro de que tenho sessenta e seis anos de idade, e o peso dessa descoberta cai sobre mim como uma pedra gigantesca. Quero dizer que estou acordada, que voltei. Não consigo falar, pois há tubos em minha garganta. Consigo emitir um grunhido. Imediatamente, meu marido desperta, e levantando-se, fica ao meu lado, chorando muito e dizendo meu nome. Lembro-me dos sussurros que ouvi quando estava “lá”, e reconheço a voz dele. Olho para a mesa de cabeceira e vejo as mesmas flores que eu enxergava do outro lado, embora as cores não pareçam mais tão brilhantes. Tudo parece triste, cinzento e pesado. Entram médicos na sala, e pedem ao meu marido que saia um pouco.

 Acho que durmo novamente, mas a cada vez que desperto, fico mais tempo acordada. Mais alguns dias se passam, e eles retiram os aparelhos aos poucos. Consigo respirar sozinha, mas ainda não posso falar. Todo o processo é muito lento. Sinto muita sede e fome, mas eles dizem que ainda é cedo para alimentar-me.
Após alguns dias, alguém me deixa beber um pouquinho de água. Depois, uma sopa rala e de gosto ruim. Fortaleço-me. Meus filhos vem me ver todos os dias. Fico muito alegre quando eles vem, mas não consigo mover-me ainda, e meus braços estão muito inchados, mas escuto o médico dizendo que é normal e que dentro em breve irei para um quarto comum.

Aos poucos, vou me recuperando. Sou transferida para o quarto, e começo a murmurar as primeiras palavras. Minha garganta dói. Todos estão tão felizes e parecem tão surpresos ao me ver novamente bem! Consigo perguntar ao meu marido: “Há quanto tempo?...” Ele parece preocupado. Olha para nossos filhos. Eles balançam a cabeça, concordando. Meu marido responde a minha pergunta: “Quase dois anos...”
Aquela revelação cai sobre mim como uma tsunami. Eu estivera desacordada durante quase dois anos! Eles me contam, aos poucos, sobre o acidente de carro – eu tomara um táxi para casa após fazer compras em um shopping, e uma carreta atingiu o carro. O motorista morrera na hora, e eu tivera sérias sequelas neurológicas. Mas o médico está muito surpreso e otimista com meus rápidos progressos, e acredita que eu poderei voltar a andar.

Mamãe cumpriu sua promessa: ainda me lembro de tudo o que aconteceu. Quero contar tudo à minha família.

Alguns meses se passaram. É véspera de natal. Faremos uma confraternização entre os membros da família mais próximos à noite. Estou muito bem, as dores desapareceram e nem preciso mais usar a bengala para andar de um lado para o outro da casa. Meus filhos virão. A esposa de Renato está grávida, e Angélica ficou noiva – finalmente – e diz que querem se casar em breve. Estamos todos muito felizes. Preparei uma ceia de natal muito especial, com o prato favorito de cada um deles. No meio da mesa, um vaso com flores do campo. Meu marido saiu para comprar o champanhe. Eu ensaiei o meu relato muitas e muitas vezes, não desejando omitir nenhum detalhe. Escrevi tudo em um caderno, que usarei enquanto contar a minha história.
Após a ceia, onde todos comemos e nos divertimos, eu digo a eles que quero contar uma história; algo sobre o tempo que passei ausente. Eles se entreolham, e permanecem na mesa, enquanto eu começo a contar-lhes tudo. Quando me perco ou sou tomada pela emoção, recorro às minhas notas no caderno. Lara, minha nora que está grávida e que é espírita, parece ser a única a compreender-me, pois quando termino, um silêncio mais ou menos longo paira sobre a mesa. Finalmente, Renato, que é médico, começa a dizer que eu tivera uma alucinação por causa da medicação pesada que recebera. Nego; não concordo. Sei que foi verdade. Meu marido nada diz, mas ateu convicto, sei que ele não acredita em mim.

Angélica também parece duvidar, e meio sem graça (é a primeira vez que trazia o noivo em casa e sente-se envergonhada pelo meu relato), arremata: “Há muitos mistérios entre o céu e a terra.” E muda de assunto. Eu insito, mas eles apenas me olham com piedade no olhar. Nada mais dizem, mas sei que não creem em nada da minha história. De alguma forma, eu sei que é importante que eles acreditem. Então me lembro da menina loira de olhos azuis: “Se eles não acreditarem, falem de Roberta e da casa amarela!” e é o que faço; grito: “E o que vocês me dizem sobre a Roberta e a casa amarela?”

Imediatamente, um silêncio desce sobre a sala, enquanto meu marido e meus filhos se entreolham, muito pálidos. Alguma coisa muda. Agora, eu sei que eles acreditam em mim. Angélica começa a chorar copiosamente, e deixa a mesa. Renato vai atrás dela. Meu genro e nora acham que este é um assunto de família, e nem sabem do que se trata; constrangidos, pedem licença e vão tomar vinho na varanda. Ficamos eu e meu marido sentados à mesa.
Ele me olha. Vejo vergonha e medo em seu rosto. Sinto que ele quer falar, mas não sabe como começar. Então, ele suspira profundamente e começa a sua história:

-Eu acredito em você agora, Helga. E vou explicar-lhe o porquê.
“Há muito tempo, quando as crianças eram ainda pequenas, eu fui buscá-las na escola um dia e Angélica pediu-me se eu poderia dar carona a uma de suas coleguinhas. O nome dela era Roberta. Ela morava em uma casa amarela. Gostei dela assim que nos conhecemos. De alguma forma, achei que nós tínhamos muitas coisas em comum, o que descobri durante as nossas conversas no carro, quando eu a levava em casa. Ambos gostávamos de filmes de faroeste. Tínhamos o mesmo tique nervoso, de coçar o queixo quando estávamos pensando no que dizer. No começo, achei que ela estava imitando-me, mas depois percebi que era natural. Também notei que ela e Angélica tinham algumas semelhanças físicas, e davam-se muito bem, como duas irmãs. Um dia, ao deixá-la em casa, a sua mãe veio abrir a porta – ela não tinha ido ao trabalho naquele dia. Eu a reconheci imediatamente: era Janice, uma moça com quem tive um relacionamento rápido... quando você estava grávida de Roberta. Então eu compreendi tudo: Roberta era minha filha!
Ao ver-me tão surpreso, Angélica, que na época tinha doze anos, confessou que já sabia de tudo: que as duas eram irmãs. A própria Roberta contara a ela. Mas prometeu-me não comentar nada com você antes que eu mesmo criasse coragem para falar. Logo, Renato também ficou sabendo. Era o nosso segredo.”

Eu fico estupefata. Jamais suspeitara de nada! Penso naquele segredo pairando entre nossa família durante todos aqueles anos. Penso em algumas vezes em que, inadvertidamente, eu entrara no quarto das crianças e notara conversas que terminavam assim que me viam; em algumas delas, o pai estava junto. Eles disfarçavam, dizendo que tratava-se de um jogo de detetives. Eu acreditava. Houve um período em que os três ficaram muito deprimidos e misteriosos, logo após um acidente que matou uma amiga de escola que eles costumavam levar em casa. Era Roberta!

Ele continua seu relato:
-Eu ia contar-lhe tudo, Helga... mas houve o acidente no qual ambas morreram... elas não tinham outros parentes. Nós três achamos melhor não contar nada e esquecer o assunto. Assim, manteríamos a família unida. As crianças tinham muito medo da sua reação, e ao mesmo tempo, não queriam que você sofresse. Elas me pediram que não constasse nada.

Eu estou chorando e sentindo-me enganada. Mas ao mesmo tempo, penso nos anos felizes que vieram depois. Penso em tudo o que eu vivi naqueles dois anos, e sei que o que aconteceu poderia ser perdoado. Ele descobrira que tinha uma outra filha; ficou conhecendo-a, e perdeu-a logo em seguida. Havia castigo maior? Como eu poderia pensar, sequer, em puni-lo?

De repente, lembro-me de uma fotografia que Angélica tirara com os colegas de classe num final de ano; corro até lá, e pegando o porta retrato, começo a percorrer os rostos sorridentes; identifico a menina que eu vira quando estive fora. Aponto-a e digo ao meu marido:

-Ela é esta aqui. Eu sei, porque eu a vi.

Ele concorda com a cabeça. Meus filhos estão sentados na sala de estar, e escutam toda a conversa. Eles vem me abraçar, pedindo desculpas, mas eu digo-lhes que nada tenho a desculpar-lhes. Agiram como acharam que seria melhor para todos.

Nós terminamos a noite de natal. Meus filhos foram embora há meia hora. Estou sozinha na sala de estar, e lembro-me de tudo o que vivi. Lembro-me do rosto daquela menina, Roberta, e sei que jamais conseguiria odiá-la. Compreendo que a vida é grande e infinita. Escuto novamente as palavras de minha mãe quando ela disse que em breve estaríamos todos juntos novamente. “Mais alguns anos...”




domingo, 22 de dezembro de 2013

NATAL NO SÓTÃO




Ela andava pela casa, escutando passos no sótão. Já era quase dezembro, e a velha árvore de natal, com todos os seus enfeites, continuava no sótão, esperando ser montada na sala de estar, como em todos os anos. Mas não havia o espírito natalino para tal coisa...

Ela sentou-se no sofá, ligando a TV: propagandas de natal. Pessoas sorridentes, unidas em volta de árvores, ou em salas aconchegantes semi-iluminadas pelas pequenas luzes do natal... pessoas fazendo compras nos shoppings... papais-noéis, duendes... irritada, desligou a TV e foi até a janela.

As luzes de natal brilhavam e piscavam na casa do vizinho; fechou as cortinas.

Naquele ano, não haveria natal, e pronto. As coisas ficariam lá no sótão, enfiadas em sacos plásticos. Não queria montar a árvore e dar de cara com as lembranças de outros natais que vivera, quando estavam todos presentes! Quem sabe, os passos que ela ouvia lá no sótão não fossem ratos imensos, que dariam conta daquela velharia toda?

Foi dormir cedo, e rolou na cama até quase a madrugada. Acordou quase ao meio-dia, sentindo uma ressaca horrorosa, como se tivesse bebido muito na noite anterior. Ainda de pijamas, foi até a cozinha e preparou uma xícara de café preto. Depois, quando ia subir as escadas de volta ao quarto, percebeu uma estranha luz na sala de estar, que piscava.

Mal pode acreditar no que vira: a árvore de natal estava lá, montada, com todos os enfeites! Sob ela, um envelope vermelho, que ela abriu:

"Você sempre dedicou os enfeites de natal a cada um de nós, ao montar a árvore, durante todos esses anos. Hoje, nós os dedicamos a você."



quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O Cavalo e o Menino - Final






Dormimos durante muitas e muitas horas, eu acho. Dormimos sob as estrelas, com o vento quente beijando nossas faces. Eu às vezes olhava para a lua e tinha a impressão de que ela estava se aproximando, ou que eu estava cavalgando até ela com o menino e o pai em meu dorso. Havia algumas pessoas vestidas de branco nos olhando, e pensei que eram socorristas que vinham para nos salvar daquela vida seca.

Quando abrimos os olhos, na manhã seguinte, tudo estava inexplicavelmente diferente: o asfalto negro era ladeado por milhões de árvores muito frondosas, de onde pendiam frutos dos mais variados sabores - eu esticava o pescoço e conseguia colhê-los, sua pele fina partindo-se entre meus dentes e revelando um sumo doce e refrescante. O sol brilhava intensamente, mas não queimava; menino e pai se levantaram e olharam em volta, maravilhados. O caminhão tombado sob o qual nos abrigáramos havia desaparecido. A estrada revelava-se reta e tranquila, e muitas pessoas caminhavam sobre ela, indo e voltando, e sorriam ao passar por nós. Pai e menino deram-se as mãos, enquanto conduziam-me com eles em direção à um belo prédio que vislumbrávamos ao longe, no final daquela estrada. 

De repente, passei por um rosto que julguei conhecido: era o mesmo rosto que eu vira morto, caindo para fora do caminhão! Relinchei de surpresa. Olhei para o pai e o menino, tentando saber se eles também tinham visto a mesma coisa, mas eles olhavam em volta, maravilhados com tanto verde e tantas flores perfumadas e coloridas que salpicavam arbustos e ladeavam o caminho. Uma bela fonte surgiu, de onde jorrava abundantemente a água mais pura e mais fresca, e corremos até ela, onde saciamos nossa sede de dias com apenas poucos goles. Tudo era belo! E apesar de ter absoluta certeza de que jamais estivera ali, ao mesmo tempo, sentia como se, no fundo de minha memória, eu já tivesse cavalgado por aqueles verdes prados que se estendiam a perder de vista, sob aquele sol que não queimava, mas apenas aquecia suavemente a pele.

De repente, andando em nossa direção, vi uma moça de cabelos cacheados penteados para trás, que usava um vestido cor de rosa suave. Quando pai e menino a enxergaram, ela abriu-lhes os braços. Vi quando o menino boquiaberto gritou "Mãe!" Correndo na direção dela. O pai acompanhou-o. Os três se abraçaram, chorando muito.

Enquanto eles estavam juntos, esqueceram-se de mim, e pude olhar melhor em volta e trotar um pouco sozinho. Reconheci uma bela égua branca, a que me amamentara quando eu nasci; e uma outra, cujos olhos eu mirara pela última vez quando eles estavam baços e sem vida, mas agora, eles me olhavam cheios de vivacidade e saúde.De repente, olhei em volta e percebi que muitos dos animais da fazenda que haviam perecido na seca, passeavam por ali. Achei tudo muito estranho, mas cavalos não fazem perguntas: apenas aceitam a realidade que vivem. 

Assim, a nossa jornada se concluiu. Ainda hoje moramos nesse lugar maravilhoso, e somos felizes. Nunca mais ouvimos falar ou ficamos sabendo de Corisco, e nem desejamos saber. As cicatrizes que ele me infligira desapareceram misteriosamente. Meu pelo hoje cresce bonito e sedoso. Não sinto mais fome ou sede. 

Mas o que eu mais gosto, é que as histórias que o menino costumava contar sobre nossos reinos encantados, hoje são reais. Eu o levo a cavalgar por verdes campos floridos, e descansamos à margem de riachos encantadores. Não há dragões ou princesas, mas há muitos castelos, e nós entramos neles juntos, acompanhados por dezenas de crianças que correm junto conosco e jamais se cansam. Brincamos todos juntos. Entre eles, está a menina dos milagres, aquela, que salvou o irmãozinho. Hoje, ele também está entre nós.

E assim termina a nossa história: a história de um menino e um cavalo que se conheceram e ficaram amigos.




segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O CAVALO E O MENINO - PARTE V




O sol era tão forte, que doía tudo: a pele, os olhos, o casco. Mesmo acostumado ao clima quente, eu me arrastava pela paisagem árida, sabendo que de mim dependiam a vida daqueles dois amigos, que seguiam ao meu lado, em silêncio e passos trôpegos. O pai decidiu que era melhor caminharmos ao final da tarde, e descansar durante o dia. Agora, só havia metade da garrafa de água, e não me deram de beber ou comer, pois mal tinham para eles mesmos. Foi-se a última laranja, dividida ao meio entre os dois. Minha boca seca ansiava por um pequeno pedaço daquela fruta, mas eles consumiram-na toda, inclusive, cascas e caroços. Aquele foi o último jantar que tiveram. Eu, que já passara o dia apenas com um pequeno gole de água, deitei-me à sombra de uma grande pedra, com vontade de morrer.

O menino achegou-se a mim, choroso, e dizendo que eu não desanimasse, pois com toda certeza, no dia seguinte Deus nos guiaria com segurança até a próxima vila. O pai falava de uma bifurcação na estrada, há dois dias, e achava que já deveríamos ter chegado àquela altura, e que com certeza, escolhera a estrada errada. Já eram oito dias de viagem. O pai dissera que a vila ficava a apenas quatro. Sim, tive que concordar com ele: tomáramos o caminho errado.

A estrada desaparecera, e seguíamos pelo deserto sem saber se era norte ou sul. Areia quente, vento quente, sol quente, carcaças de animais, algumas serpentes que se arrastavam por ali. Nem mesmo os abutres nos seguiam.

Naquele entardecer, o pai suspirou fundo mais uma vez, e foi acordar o menino. Sua voz era pastosa. O menino esfregou os olhos, dirigindo-os para as milhares de estrelas acima de nós. Levantou-se e puxou-me pelo cabresto. Mas eu não consegui me levantar. Ele insistiu. O pai foi por trás de mim, empurrando meu flanco. Gemi de dor e cansaço. O menino chorava, dizendo que se tivesse que morrer ali, morreria, mas que não me deixaria. O pai pegou o cabresto, e puxou-me com toda força que lhe restava, e eu finalmente, tirando forças de alguma parte de mim que eu desconhecia, consegui ficar de pé. E fomos seguindo pelo deserto. O menino apontou uma estrela, e andamos na direção dela, até que a noite terminou. 

Não havia esperança para nós. Naquela manhã, o menino veio deitar-se em meu flanco, enquanto tentávamos proteger-nos dos raios inclementes de sol. O pai distribuiu a água, dando-me um gole, pois precisava de mim para carregá-los quando não mais aguentassem andar. Também pegou uma porção pequena da ração que ainda restava, e mastiguei-a devagar, a boca e a garganta secas dificultando o engolir. Enquanto isso, o pai cortou um pedaço de cacto, e tirando os espinhos, dividiu-o em três e nós comemos. Uma serpente passou, e os olhos do menino brilharam, e ele ganhou novas forças: perseguiu-a sorrateiramente, mais sorrateiro do que ela mesma, e erguendo o facão devagar, atirou-o sobre ela, cortando-a ao meio. O pai toirou o couro da serpente morta, e eles a comeram crua, em pedacinhos. Depois, dormimos.

Mais uma noite, e fomos caminhando devagar. Andávamos como que em um sonho, entorpecidos pela fome, sede e cansaço. Ninguém falava mais, e o menino não mais se atrevia a contar nossas aventuras ao pai. Era preciso poupar forças. Eu sentia que íamos morrer. As estrelas iam perdendo o brilho, e a paisagem, ficava cada vez mais embaçada. Meus olhos secos já quase não enxergavam mais. Se eu ainda não desistira, era pelo menino. E naquela noite, o pai caiu.

O menino bateu-lhe no rosto, desesperado, gritando "Pai, pai!" Procurou nas sacolas se ainda havia alguma coisa que pudesse oferecer-lhe que lhe levantasse as forças, mas ao sacudi-la sobre a areia, caíram apenas o facão, um último pedaço mal-cheiroso de carne seca, uma caixa de fósforos, alguns grãos de ração - que eu devorei sofregamente. Na garrafa, apenas um ou dois goles, que ele derramou nos lábios do pai. Este tentou recusar-se a beber, mas o menino abriu-lhe a boca, até que o pai engolisse.

Depois, cuspindo em um pedaço de pano, para umedecê-lo, passou-o na testa do pai. Eu sabia que precisávamos continuar, mas apesar de eu cutucar o menino com meu focinho, relinchando baixinho, tentando alertá-lo da necessidade de continuar, ele me olhou com tristeza, dizendo: "Acabou, amigo Cavalo." Pateei na areia, e dobrando as patas, ofereci-me para levar o pai. Ele me olhou de novo, boquiaberto, e disse: "Mas você não aguenta... vai morrer também, e eu ficarei sozinho!" Insisti, permanecendo na mesma posição, e o menino, com muito esforço, acomodou o pai sobre mim. Levantar-me com o peso dele foi muito difícil, mas reuni todas as  forças que eu tinha, e consegui. Assim, fomos caminhando, até que o dia começou a clarear. O pai moribundo sobre meu flanco às vezes murmurava coisas ininteligíveis. 

Mas a luz da manhã trouxe uma esperança. Chegamos à beira de uma estrada. O asfalto negro brilhava e se estendia à nossa frente. O menino me olhou, sorrindo, e chamou pelo pai, que ergueu a cabeça. "Olha, pai! Uma estrada! Nós vamos conseguir!" O pai murmurou: "Graças ao bom Deus!" 

Nós seguimos por aquela estrada por onde ninguém passava por horas e horas, debaixo do sol, pois era nossa única chance de salvar o pai: encontrar ajuda e dar-lhe água. O menino tinha olheiras profundas, e seu rosto macilento deixava claro que ele também não aguentaria mais tempo. Minhas forças estavam acabando também, mas eu sabia que era a única esperança deles, e continuei.

De repente, após uma curva fechada, avistamos algo no meio da estrada, poucos metros adiante. O menino sombreou os olhos com as mãos para ver melhor, e gritou: "É um caminhão, pai!" Ele me puxou pelo cabresto para que eu andasse mais rápido, causando-me muitas dores. Finalmente, após minutos que pareceram, horas, chegamos ao caminhão tombado. O motorista jazia morto, e metade do corpo tinha sido devorado por abutres. Pela minha experiência com mortes, adivinhei que ele morrera há apenas um dia. 

Mas o menino nem se importou com o cadáver, indo à procura de algo para comer ou beber. Após vasculhar a boleia do caminhão tombado, entrando pela janela do carona, voltou com um saco de plástico, cujo conteúdo derramou no chão: havia pão, algumas laranjas e bananas, um pedaço grande de mortadela e uma garrafa grande de água mineral. Ele imediatamente levou a água até o pai, esquecendo-se até mesmo de beber. O pai bebeu grandes goles, logo sentindo-se melhor. Somente quando o pai fez-lhe sinal para que o menino bebesse, ele obedeceu. Os dois foram abrigar-se do sol sob o caminhão tombado. O menino deu uma banana ao pai, e este a devorou. Nenhum dois dois falava, apenas comiam e bebiam. Relinchei, caminhando até eles. O menino derramou água em uma vasilha, e deu-me uma banana. Comi e bebi, e quando terminei, minha fome e minha sede ainda eram imensas.

Mas precisávamos poupar comida e água, pois não sabíamos se demoraríamos a chegar a algum lugar.

Ignorando o cheiro do corpo que se decompunha, ficamos ali até a noite chegar, dormindo profundamente. 

(continua)



quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O CAVALO E O MENINO - PARTE IV




Com as mãos na cabeça, em uma postura desesperada, o pai ficou algum tempo olhando a estrada por onde o caminhão tinha ido embora. Ele não sabia o que fazer. E ficou daquela maneira, até que o menino caminhou até ele, e segurando a sua mão, perguntou:  "E agora, pai?"
Ele olhou para o menino. Uma lágrima descia. Passou a mão na cabeça do filho, que olhava para cima, esperando uma resposta do pai. Após um longo suspiro, o pai tirou o chapéu e limpou a testa com as costas da mão, recolocando o chapéu de volta. "Agora somos só nós três: você, o cavalo e mais eu."

Voltamos para casa caminhando devagar, e lá chegando, o pai pegou um saco onde tinha guardado comida para a viagem - ainda bem que Corisco não se lembrou de carregá-lo! Tinha carne-seca, mandioca , pão duro, alguns sacos de arroz cru, farinha, umas poucas laranjas, alguns litros de água. Depois, foi até o celeiro e pegou um saco grande de ração para cavalos - o último. Arrumou aquilo tudo nas minhas costas, e nós partimos daquela cidade fantasma. Seguimos a mesma direção por onde o caminhão tinha ido, o menino puxando-me pelo cabresto e o pai seguindo logo atrás. Nós andávamos devagar, pois precisávamos economizar nossas forças. O caminho era longo. Talvez levássemos muitos dias para chegar até a próxima vila, onde - segundo ouvi das conversas entre pai e filho - as condições eram melhores. Quem sabe, o pai e Pedrinho arranjassem algum trabalho. Mas o sonho do pai era ir para o sul, para alguma cidade grande onde houvesse água e comida abundantes, escola para o menino e emprego para ele.

Ninguém tocou mais no nome de Corisco, mas eu sabia que ele tornara-se uma dor em seus corações. Uma lembrança triste, uma mágoa desesperada - e inesperada - que eles carregariam e que pesaria em seus ombros durante aquela viagem e pelo resto de suas vidas, principalmente, para o pai. Mesmo assim, o pai tentava até sorrir, para alegrar um pouco o filho. Contava histórias do tempo e que a mãe vivia, quando, em volta de uma fogueira, nós acampávamos na beira do caminho, sob um céu crivado de estrelas. Os olhos do menino brilhavam. E o menino contava ao pai as histórias bonitas que ele inventava para nós dois. Falava dos castelos e princesas, dragões e reis, colinas verdejantes e bosques maravilhosos onde vivíamos. O pai ficava encantado ouvindo o menino, igualzinho as crianças da vila. No fim, sempre dizia: "Você tem jeito para contar histórias, Pedrinhos. Fala tão bonito!" E eram aquelas histórias que os dois contavam que reabasteciam as nossas esperanças... mas conforme os dias nasciam e iam esquentando, e a água e a comida tornando-se mais escassas, as esperanças iam diminuindo. Meu peso ia ficando cada vez mais leve, o coração, mais pesado, e a estrada, cada vez mais longa.

Logo, os dois passaram a alimentar-se dos meus grãos de ração. Levavam à boca os pedaços secos e, para eles, sem qualquer sabor. Minha porção diária reduziu-se ao que cabia em uma palma de mão. Todos estávamos perdendo peso. A pele do menino tornou-se ressecada e muito queimada, feia como a do irmão. O pai envelheceu muito naqueles poucos dias.

Certa noite, enquanto os dois estavam sentados diante da fogueira, famintos, sedentos e desanimados, passou uma estrela cadente. Tão grande ela era, que fez um chiado ao cruzar o céu. O menino levantou-se, apontando-a, e dizendo que era um sinal. Quem sabe, não fosse a menina morta dizendo que ficaria tudo bem? O pai tentou sorrir, mas seu sorriso era só uma careta de tristeza. 

A água restante estava toda dentro de uma garrafa de plástico; "Apenas um litro," eu ouvi o menino dizer ao pai. Um dia, olhei para cima e vi uns pássaros negros voando logo acima de nossas cabeças. Já tinha visto aquelas aves muitas vezes, e sabia o que elas significavam, pois elas só pousavam onde havia morte. O pai sacudiu o chapéu, tentando espantá-las para longe. O menino gritou de medo, abraçando-se ao meu pescoço. Em volta de nós, apenas terra seca e rachada, e algumas árvores mortas. Acima, os pássaros negros e o sol escaldante, pendurados como um arremedo zombeteiro da vida, em um céu tão azul que doía os olhos.

(continua...)



quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O CAVALO E O MENINO - PARTE III

retrato de João Cândido com Cavalo - Portinari - 1941



O CAVALO E O MENINO - PARTE III


E naquele ano, a seca foi feia. A pior de todos os tempos. Campos e plantações estendiam-se por quilômetros de vazio e plantas secas. Riachos desapareciam como se jamais tivessem existido. Até mesmo o mandacaru tornara-se escasso. Caminhões chegavam com pipas de água suja, que era disputada à socos e arranhões entre os moradores da vila. Às vezes, devido às brigas, muita água preciosa era derramada e prontamente absorvida pelas rachaduras do chão poeirento, desaparecendo nas entranhas da terra sedenta. 

Lá à sombra da minha baia, eu via passarem os enterros. Um grupo de gente magra, suja e cabisbaixa seguia em fila atrás de um caixão de madeira tosca, e ninguém sabia qual deles seria o próximo. Certa vez, vi quando o cavalo que carregava o féretro tombou, derrubando o caixão cuja tampa se abriu, deixando rolar para fora o morto.
As pessoas estavam tão fracas que resolveram enterrá-los ali mesmo, à beira da estrada, e nem sequer marcaram o chão com uma cruz. Mais tarde, os que restavam daquela família também morreram.

As velhas rezavam seus terços, desperdiçando o líquido precioso de suas lágrimas. Acho que o Deus dos humanos estava ausente, lá longe, em algum outro lugar. Cavalos não tem deuses. Cavalos aceitam o destino que os humanos lhes impõe. Nascemos, crescemos, carregamos o peso da vida, morremos e somos esquecidos. Eu acho melhor assim. Não sofremos tanto pelo que é inútil. Não temos fé em nada, a não ser no capim que nos alimenta. Seguimos o curso da natureza. Não nos preocupa saber se existe um outro lugar para onde vão os cavalos quando morrem. Não ficamos a sofrer quando um de nós se vai, pois sabemos e aceitamos que este é o nosso destino. Não construímos templos para rezar e chorar por aquilo que não temos; vivemos o dia que se apresenta diante de nós, com alegria ou tristeza conforme for a ocasião. Cavalos não sentem rancor, não desejam ser perdoados pelos seus pecados porque cavalos simplesmente não tem pecados, e se  tem, os desconhecem completamente. Cavalos não desejam ser salvos. Cavalos não desejam nada, muito menos, ser como outros cavalos.

Cavalos querem apenas ser cavalos, viver como cavalos e morrer como cavalos. Cavalos não acreditam em milagres. E depois de tanta desgraça e sofrimento, a pouca fé que tinha nascido em meu coração de cavalo, murchou.

Durante aquela seca, o pai tomou uma decisão muito difícil: teve que vender a fazenda. Apesar do pouco dinheiro que conseguiu com as terras, ficou feliz, pois com aquele dinheiro, conseguiu comprar nossos lugares no pau de arara para ir embora daquele lugar de morte. Fui eu quem levei Pedrinho, Corisco e o pai  para comprar nossos lugares, e havia esperança nos seus olhos. Naquela noite, todos dormimos felizes, sabendo que na manhã seguinte, poderíamos ir embora. O pai guardara o resto do dinheiro para a viagem dentro de um saco de estopa e eu vi, pela janela, quando ele o colocou sobre a  mesa de cabeceira. Quase todas as pessoas já tinham deixado a vila, e nós éramos quase os últimos.  

O dono do caminhão era um sujeito mal encarado  e quase tão cruel quanto Corisco. Eu assisti quando ele se negou a dar lugar no caminhão para uma senhorinha e seu neto, únicos sobreviventes de uma família, pois ela não tinha dinheiro suficiente para pagar a passagem. Mas o pai, sempre bondoso, cobriu o valor que faltava, e disse a ela que ficasse tranquila, pois dividiríamos com eles a comida. Corisco protestou, mas o pai mandou que ele se calasse.

Mas na manhã seguinte, enquanto a estrela D'alva ainda brilhava no céu, despertei com um grito agudo: era o pai. Ele dizia que tinha sido roubado. Vi-o correr para o quarto dos meninos, onde apenas Pedrinho dormia. Corisco tinha ido embora e carregado o restante do dinheiro com ele. O pai montou-me e corremos para a cidade, a tempo de ver o caminhão sumir na estrada...

Agora, não tínhamos mais nada: não havia comida, não havia água, dinheiro, caminhão, fazenda. Nem esperança. Apenas uma cidade deserta e seca, por onde o vento soprava poeira.

(continua...)

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O CAVALO E O MENINO - PARTE II





Uma das coisas que eu mais adorava fazer era levar o menino à escola. Principalmente nas épocas de chuva, quando as colinas verdejantes se estendiam feito tapetes diante dos meus olhos, e nós as cruzávamos bem cedinho, antes dos sol despontar no horizonte, quando o galo da fazenda não tinha ainda cantado. Às vezes, as últimas estrelinhas ainda brilhavam no céu. Era bem mais fresco, e acredito que fosse por esta razão que começávamos a nossa jornada tão cedo; o menino queria poupar-me. Além de evitarmos o calor forte, podíamos percorrer nossa jornada bem devagar, e ainda havia tempo para darmos uma passadinha pelo riacho, onde eu bebia antes de continuar a jornada. Sei que o menino às vezes chegava cedo à escola, antes de seus colegas, pois queria que eu esperasse por ele sob a sombra de uma árvore bem frondosa - uma das mais disputadas pelos outros meninos e seus cavalos. Quem chegasse primeiro, ficava com ela. Geralmente, eu tinha esse privilégio.

Mas às vezes, Corisco acordava cedo e dizia: "Deixe esse cavalo idiota aí, e vá à pé para a escola, pois preciso dele para ir à vila levar os legumes e verduras para vender." Naqueles dias, o menino Pedrinho me olhava com tristeza, suspirando fundo. Acariciava meu flanco e meu focinho. Despedia-se de mim com um abraço apertado. E eu sabia que passaria o dia todo levando chicotadas, cusparadas e pontapés. Mas eu tinha pena de Corisco. Ele era um rapaz extremamente feio, e apesar de bem jovem, faltavam-lhe alguns dentes. Era magro, e a pele e o cabelo ressecados davam a impressão de que ele fosse bem mais velho. Não era um menino bonito como Pedrinho, que tinha todos os dentes muito branquinhos, olhos verdes como as copas das árvores em tempos de chuva, e lindas pintinhas sobre o nariz. 

Corisco não tinha sorte com as garotas. Às vezes, ele sorria para algumas delas, que passavam por ele. Elas riam zombeteiramente, e e depois o ignoravam. naqueles momentos, ele pegava seu chicote e me batia.

Mas o pai era bom. Ele não me maltratava, e sempre que via Corisco judiando de mim, o repreendia severamente; mas aquilo apenas aumentava o ódio de corisco por mim.  Quando ninguém estava olhando, ele gostava de torturar-me. 

Certa vez, eu estava em minha baia mastigando meu capinzinho, quando eu o vi aproximar-se, as mãos escondidas atrás das costas. Olhava para mim com os olhos injetados e um sorriso maldoso. Parou junto à minha baia, e ergueu a mão para meu focinho, fingindo uma carícia. Mas eu tinha meus instintos de cavalo, e relinchei de medo, empinando o corpo, o que só serviu para deixá-lo ainda mais enfurecido. Mais que depressa, ele revelou que por trás das mãos escondidas nas costas, ele tinha um ferro em brasas. E usou-o contra mim, marcando-me em várias partes do meu corpo. A carne queimava e assoviava, enquanto Corisco ria. Eu não conseguia sair, e a dor sentida era uma das maiores que já passei. Finalmente, ele ouviu a voz do pai chamando: "Corisco, o que você está fazendo, moleque?" O pai veio correndo, e tomando das mãos dele o pedaço de ferro em brasa, derrubou-o no chão com um forte tapa no rosto. Corisco saiu correndo, mas não sem antes olhar o pai nos olhos com o mesmo ódio que tinha quando me olhava, soltando uma grossa cusparada no chão.

O pai gritou por Pedrinho, que chorou quando viu minha carne queimada. Os dois desinfetaram minhas feridas e trataram-nas com um unguento para evitar que as moscas pousassem. O pai dizia: "Não sei o que tem na cabeça desse meu filho, criei os dois da mesma forma e ele é tão mau..." lágrimas rolavam dos olhos do pai e dos olhos de Pedrinho. As marcas ficaram para sempre, como manchas onde o meu pelo jamais voltou a crescer.

Eu via Corisco maltratando outros animais da fazenda. Não podia ver um cão sem passar por ele e dar-lhe um chute, mesmo que o pobrezinho estivesse dormindo em algum canto. Tinha uma espingarda de chumbinho que usava para atirar nos passarinhos, e nem o Urutau escapava! Quando conseguia acertar um deles, dançava triunfante, pois o Urutau é um pássaro difícil de se ver, fingindo-se de galho de árvore durante o dia. Se via uma serpente, ele a capturava, e amarrando sua cabeça e cauda a pedaços de madeira, de forma a deixar a cobra bem  esticada, ele pegava uma faca afiada e ia cortando-a toda, os olhos brilhando de ódio. 


urutau


Também zombava dos meninos pequenos, tomando-lhes a merenda no caminho da escola. Corisco não estudava. Não ia à igreja, não tinha amigos. Os outros meninos se afastavam quando ele chegava, e as mães puxavam seus pequenos, abrigando-os de encontro às saias dos vestidos quando Corisco passava. Fumava um cigarro que ele enrolava em um papel e que tinha um cheiro nauseabundo. Às vezes, ao cavalgar-me, apagava a chama em brasa do cigarro contra minha pele, debaixo da cela, onde machucaria mais.

Pedrinho conversava comigo. Uma vez, ele me contou que a mãe morrera ao cair de um cavalo, que se assustou com uma cobra no caminho. Ela estava indo buscar farinha na venda da vila, e bateu com a cabeça em uma pedra. Corisco era pequeno, um menino de  oito anos, e Pedrinho, um bebê de apenas dois anos.  Pedrinho disse que Corisco amarrou o cavalo a uma árvore, correu até em casa e pegou um facão, matando o cavalo à sangue frio. Agora eu sabia porque ele tanto odiava cavalos! 

Depois daquela surra dada pelo pai, Corisco deixou-me em paz por muitos dias, e Pedrinho, apesar de não poder cavalgar-me devido aos meus ferimentos de queimadura, levava-me com ele para a escola todos os dias, pois temia deixar-me em casa sozinho com o irmão mais velho. Amarrava-me à sombra da árvore frondosa, onde deixava um balde d'água, e de onde podia me ver através da janela da sala de aula. Sob os olhos do menino, eu me sentia protegido.

Quando fiquei curado das feridas, levei Pedrinho a passear, correndo como o vento, e naqueles momentos menino e cavalo tornavam-se um só. Os amigos de Pedrinho zombavam dele: "Como você pode gostar tanto desse cavalo cheio de cicatrizes, faltando pelo em tantos lugares? Ele é feio!" Mas Pedrinho explicava a eles que eu era encantado, e que tinha vindo de uma terra de mágicas e lendas. Os meninos riam. Mas Pedrinho era ótimo contando histórias, e logo os meninos estavam todos sentados à nossa volta, os olhos arregalados, enquanto Pedrinho contava a eles sobre as nossas aventuras por reinos encantados onde salvávamos princesas de perigosos dragões - por isso, as marcas de queimaduras.

Mas aqueles dias verdes estavam contados. Sempre estavam. A seca chegou. As chuvas cessaram, e pouco a pouco, a paisagem foi mudando. O nível dos rios descia todos os dias. As plantações começavam a morrer, e as colheitas se perdiam. O gado passava a ser novamente alimentado com o mandacaru, e minha porção de ração era parca, até que eu também passava a comer capim seco e mandacaru. Animais começavam a morrer, e novamente, suas carcaças iam tornando-se brancas, lixadas pelo vento e pela areia, transformando a paisagem antes verdejante em um cemitério tristonho e aterrador.

(continua...)

domingo, 8 de dezembro de 2013

O Cavalo e o Menino - Parte I




Não me lembro de muitas coisas a meu respeito. Sei que nasci em uma pequena fazenda. Desde que abri os olhos pela primeira vez nesse mundo, percebi que as cores que me cercavam eram apenas variações sobre um mesmo tom cor de terra seca, às vezes, entremeadas por algum verde desanimado, daqueles que tentam sobressair-se em meio à quase monocromática cor da morte. Minha mãe se foi durante o meu parto, e só sobrevivi porque fui criado por uma outra mãe, uma égua branca que acabou morrendo alguns meses depois, junto com sua cria. Também me lembro de ter ficado em pé, assim que nasci, e ao olhar para baixo, deparar com o corpo de minha pobre mãe - uma égua castanha, cujos ossos apontavam sob a pele ressecada; quando procurei pelos olhos dela, já os encontrei baços pelo véu da morte. E tem sido assim desde que eu nasci: à minha volta, a morte e seus olhos baços, seus diferentes tons secos, suas nuances de ossos pontiagudos e brancos no meio da areia do deserto, entre mandacarus e aves de rapina. Acostumei-me ao sol implacável, que dói quando bate no dorso. Acostumei-me ao desapego de ver morrerem os animais da fazenda, um a um, pouco a pouco, uma morte lenta e dolorida de fome e de sede, crivada de moscas vorazes que deixam a carne pontilhada de vermelho.

Se houve uma alegria na minha vida, ela aconteceu quando conheci o menino. Eu ainda era um potro magrela, que ficava solto no cercado. Um dia, ele, menino pequeno, franzino e barrigudo, aproximou-se da cerca, e estalando os lábios, chamou minha atenção. Caminhei devagar até ele. Eu já conhecia o outro menino maior, seu irmão, e sabia que quando ele se aproximava com sua vara, gostava de testá-la em meu dorso, arrancando de mim uma dor ardida. Sabia que ele gostava de cuspir uma saliva grossa sobre minha cara. Por isso, quando me aproximei do outro menino, eu o fiz com muita desconfiança. Nossos olhos se prenderam durante um tempo mais ou menos longo. Eu o observava vagarosamente. Mas quando vi que ao invés de uma cusparada e uma chicotada ele mostrava um sorriso, estendendo-me as mãos vazias e magrinhas, aproximei-me e deitei a cabeça em suas perninhas, que estavam penduradas sobre a cerca. Ele me tocou a cabeça, acariciando-me devagar. Ali, ficamos amigos.

Assim, crescemos juntos, o menino e eu. Ele fazia de tudo para livrar-me das surras do seu irmão mais velho, que enfurecido pela fome e pela desesperança, encontrara em mim um tipo de válvula de escape. A dor que ele sentia pela sua vida triste, ele descontava em mim. Sempre que o pai pedia-lhe que fosse buscar água no ribeirão lamacento, Corisco, o mais velho, pegava algumas vasilhas e colocava sobre mim, arrastando-me sob o sol escaldante; a ida era sempre mais fácil, mas voltar com os pesados cântaros machucando minha carne, que se abria de encontro aos meus ossos, sangrando, era muito difícil. Ele não compreendia meus relinchos de dor, e brandindo o chicote, fazia com que ele estalasse sobre minhas pernas para que eu andasse mais rápido, causando ainda mais dor. Quando chegávamos à fazenda, Pedrinho, o mais novo - meu amigo - vinha correndo para livrar-me do peso, e depois, limpava-me as feridas com um pedaço de pano umedecido, desinfetando-as com suas lágrimas de dó. 

A vida na fazenda era difícil para todos, pessoas e animais. Não sei como sobrevivi; às vezes, eu escutava as pessoas falando sobre alguém chamado Deus, que providenciava tudo, que criava a vida e mandava a morte. Um Deus que gostava de ser adorado e respeitado, sem jamais ser contestado em seus propósitos (que até hoje, não descobri quais são). Um Deus forte, que criou todas as criaturas, humanos e animais, plantas e pedras, sol e chuva. Um Deus que morava lá longe no céu, e que às vezes mandava um milagre para que todos soubessem que Ele ainda estava lá, zelando por suas criaturas, e por causa desses milagres - que aprendi, eram coisas que aconteciam quando ninguém mais acreditava que elas fossem acontecer - Ele ainda tinha muitos seguidores.

O primeiro milagre que eu ouvi falar aconteceu na pequena vila  perto da fazenda; Havia uma menina chamada Maria, muito fraca e doente. Magrinha e barriguda como todas as outras criaturas. Um dia, ela morreu. Vi quando o cortejo passou. Dias depois,  seu irmão menor perdeu-se no deserto enquanto brincava. Foram vários dias de procura. Eu mesmo fui montado por Corisco, e vagamos pelo deserto durante três dias e três noites de muito sofrimento para mim, pois ele não me deixou descansar e nem me deu de beber ou comer. Mesmo assim, não conseguimos achar o pequeno.

Quando voltamos à vila, eu estava cansado e faminto, além de sentir uma sede que ia além de todas as sedes que eu já sentira na minha curta vida de cavalo, e fiquei aliviado quando vi Pedrinho se aproximando com um balde de água e algumas cenouras murchas que ele guardara para mim escondido do pai. Ele me abraçou o pescoço e alimentou-me, levando-me de volta para a fazenda, onde cuidou de minhas feridas, lavou meu pelo com um pouquinho de água e levou-me para descansar à sombra do curral. Corisco zombava sempre quando via o irmão cuidar de mim; dizia: "Por que você está desperdiçando água com esse cavalo tonto? Desgraceira de moleque!" Mas o pai dizia que eu era o único que podia transportar água, agora que o boi teve que virar carne seca, e que portanto, eu tinha que ser bem cuidado.

Cinco dias mais tarde, o menino sumido apontou lá longe, no meio da poeira da cidade, caminhando tranquilamente  em direção às pessoas que se encontravam reunidas na praça. Era de tardinha, e nunca me esqueci da imagem do menino, primeiro pequenininha e desfocada pela poeira, e depois ficando cada vez mais nítida à medida que ele se aproximava de nós. Acho que eu fui o primeiro a vê-lo. Relinchei para chamar a atenção, sendo calado pelo chicote de Corisco. Mas quando o menino chegou mais perto, seus pais o viram e correram em sua direção, abraçando-o e chorando. 

As pessoas perguntavam como ele havia achado o caminho de volta, e como era possível que ele não tivesse morrido após tanto tempo perdido naquele deserto escaldante. O menino, tranquilo e sorridente, apenas respondeu: "Maria me trouxe! Maria me deu de beber e de comer!" Todos caíram de joelhos no meio da praça, e naquela noite, houve romaria. 

Há muito tempo que não aparecia um padre por aquelas bandas, mas a igrejinha caiada de branco era limpa e consertada por Seu Cândido, um velhinho que morava na casinha dos fundos, um local que chamavam de sacristia. Mas naquela noite, o padre veio, e todos rezaram para agradecer pelo milagre. A igreja branquinha estava toda iluminada pelas velas, e eu, lá da porta, escutava as vozes e os cantos. 

Logo depois, o céu tornou-se negro e as nuvens fecharam o azul-marinho como se fossem enormes portais de algodão cinzento, escondendo as estrelas e a lua. Caiu chuva. Muita chuva. Eu nunca tinha visto água caindo do céu. Aprendi logo que Deus existia, e que Ele realmente podia fazer milagres, e que o maior deles, chamava-se chuva. Até eu passei a acreditar! Era muito bom sentir aquela água toda caindo sobre meu corpo dolorido! Era tão refrescante! As pessoas estavam felizes, e dançavam e cantavam, as mãos estendidas para o céu, algumas de joelhos no chão onde pequenas poças começavam a se formar. Até mesmo Corisco estava feliz, e esquecera-se de torturar-me.

Em pouco tempo, a paisagem cobriu-se de verde, e as pessoas começaram a plantar e colher. Um raio de esperança chegou até a vila. O pai e os meninos conseguiram comprar comida para eles e ração para mim. O capim era rico e gorduroso, e pela primeira vez, eu não sentia fome ou fraqueza. Foram épocas muito felizes, nas quais o menino e eu cavalgávamos juntos pelas colinas verdejantes sob o sol mais brando, e eu o levava para nadar no riacho, onde eu ficava bebendo à vontade à sombra de árvores frondosas. A paisagem agora era colorida. Havia flores amarelas, vermelhas, brancas. Os tons de verde eram muitos. A água dos rios refletiam o céu azul, e formavam lindos anéis quando a chuva caía. Gosto de lembrar-me daqueles dias de glória... tão felizes e prósperos! 

(continua...)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A MENINA E A ÁRVORE DE NATAL



Quando passei pelo corredor a fim de chegar até a cozinha, ela veio atrás de mim. Pendurou-se na bainha de meu vestido, pedindo, os enormes olhos castanhos grudados nos meus:

-Tia, me faz uma árvore de natal?

Eu já tinha decidido que este ano, não teríamos uma árvore de natal em casa. Houve morte. Houve acontecimentos tristes. Geralmente, lá para meados de novembro, a árvore está lá na sala, montadinha, com todas as luzes. Mas apesar de ela ter sido descida do sótão e estar me esperando no quarto de hóspedes, passo por ela e pelos enfeites empacotados e finjo não ver... olhei para a menina, respondendo:

-Olha, esse ano, não vai dar...
-Por que, por que, por que? - Ela me perguntou, sacudindo a barra de meu vestido, que soltei-lhe das mãos delicadamente, enquanto continuei em meu trajeto até a cozinha.

-Porque não. 

Ela fez beicinho, cruzando os braços:

-Gente grande é tudo a mesma coisa! Sempre falam assim com a gente: "Porque nãããão!"

Ralhei com ela, mas de forma delicada:

-Olha, seja uma boa menina, e vá para a sala assitir TV. OK? Estou muito ocupada agora.

Mas ela não se deu por vencida, já iniciando uma pirraça: "Aaaahhh! Me faz uma árvoreeeee!"

Respondi, desta vez, zangada:

-Já disse que não! Agora vá assitir TV como eu mandei, e não me enche mais a paciência!

Ela me olhou de boca aberta por alguns instantes, e saiu, batendo o pé. Quando passei por ela novamente, ela estava sentada no sofá, vermelha de raiva, fingindo que assitia Tom & Jerry. Olhou para mim de rabo de olho enquanto eu passava, mas não disse nada. Apenas continuou olhando a TV, enrolando no dedo uma mecha de seu cabelo negro e liso.

Pensei: 'Finalmente, ela vai me deixar em paz. Criança esquece rápido, acaba sempre se distraindo com outra coisa!"

Mas, uma hora depois, como não ouvisse nem o som de seus passinhos no assoalho, fui ver o que ela estava fazendo; encontrei-a chorando baixinho, enquanto segurava em suas mãozinhas um papai Noel de plástico, todo melado de brigadeiro. Sentei-me perto dela:

-O que foi agora?

-Você tinha prometido... lá na outra casa, a gente nem sempre podia ter uma... árvore... de ... natal! , Ela disse, entre soluços.

-Mas olha, haverá outros natais... e eu prometo que no próximo ano, a gente...

Ela me interrompeu:

-Você vive prometendo e não cumpre! Eu queria uma neste... (snif..snif...) natal! A gente nem sabe se vai estar aqui de novo no ano que vem...

Suspirei profundamente. Olhei para aquela menina destruída, apenas porque eu lhe dissera que não haveria uma árvore de natal esse ano. Segurei seu queixo, obrigando-a a olhar para mim e vi seu rosto banhado em lágrimas.

-Tá bem, então. Vamos fazer uma árvore amanhã de manhã. 

Imediatamente, ela sorriu, o maior sorriso que já vi:

-Promete?

-Prometo!

Então, a menina (que mora dentro de mim) saiu correndo para brincar no jardim.



A RUA DOS AUSENTES

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...