Eu não me lembro como cheguei a
esta casa. Um dia, abri os olhos e despertei em uma grande cama de dossel, em
um quarto todo pintado de branco ornado com cortinas brancas e esvoaçantes que
cobriam duas grandes janelas que davam para um pátio gramado e sem horizontes.
Nada há em volta da casa. O sol nasce de manhã por trás do telhado, e deita-se
todas as tardes na frente da casa, as cores tornando-se vermelhas, alaranjadas,
rosadas e, finalmente, de um leve dourado, quando o sol encontra a linha reta e
fina entre o céu e o chão. Quando a noite chega, há um céu sem estrelas e sem
luar. Apenas o negro profundo e intransponível. Acredito que, vista de fora, a
casa aonde me encontro deve ser como um ponto de luz isolado no meio de um
grande deserto quando é noite, e uma mancha branca no meio de um extenso
gramado esmeralda quando é dia.
Às vezes eu me debruço nessas sacadas,
tentando ver além daquilo que meus olhos já viram, mas sempre encontro a mesma
paisagem desolada e vazia. Não há pássaros. Não há estradas. Não há árvores,
montanhas, rios ou qualquer sinal de presença humana ou animal.
O que há é este quarto onde durmo
e acordo todos os dias. Tão branco, tão solitário, tão triste... e há o
silêncio, entrecortado por alguns breves sussurros (ou será a minha imaginação?)
que parecem surgir dentro de minha cabeça; de repente, tenho a sensação de que
ouço meu nome sendo sussurrado: “Helga!” Mas quando começo a prestar atenção
para ouvir de novo, o som já fugiu. Penso que posso enlouquecer a qualquer
momento. Ou que já enlouqueci, quem sabe, e meu corpo esteja aprisionado em uma
cela acolchoada em algum manicômio...
Não sei que horas são, que dia é
hoje, ou há quanto tempo estou aqui. Não me lembro de nada antes disso, e não
espero por nada depois. Não sei de onde vim, quem é minha família – se algum
dia eu tive uma – ou quem são meus amigos. A simples noção do significado
destas palavras – lar, família, amigos, emprego, vida, relacionamentos – me
espanta. Sei o que significam, mas não consigo recordar-me se alguma vez já
fizeram parte de minha vida. Minha mente é tão branca quanto tudo o que me
cerca. Sei que passo longas horas (ou seriam minutos, dias, anos?) adormecida.
Quando desperto, sinto um torpor que me envolve completamente, e não consigo
ficar acordada durante muito tempo. Levanto-me meio-tonta, olho à janela o
tapete verde que se estende diante da casa cujas paredes não consigo divisar,
pois estão constantemente cobertas por uma densa neblina branca, olho para o
céu azul profundo e sem nuvens ou então totalmente negro, se for noite. Vejo o
sol erguer-se e deitar-se. Olho para a camisola branca e simples que estou
usando sobre meu corpo também branco-leitoso. Isso é tudo. Quando dou por mim,
estou coberta com um lençol branco e vaporoso. Abro os olhos e vejo a fronha
branca perto do meu rosto. Olho para cima e vejo o teto branco. Melhor dormir o
máximo que eu puder.
Não sinto tristeza ou alegria,
medo ou euforia, fome ou sede, saudades ou tédio. Não tenho memórias. Nem
sequer sei como me lembro do meu próprio nome. Não me lembro da aparência do
meu rosto ou da cor dos meus olhos. Também não sei qual a minha idade. Às
vezes, quando acordo, vejo meu cabelo castanho sobre a fronha, cuidadosamente
arrumado. Parece que alguém o escovou. E o lençol que me cobre, bem esticado e
limpo, também parece ter sido colocado sobre mim com muito cuidado. Olho minhas
pernas e braços, meu tronco, pés e mãos e vejo que sou muito magra, mas que
talvez nem sempre tenha sido assim.
Toco minha pele e não sinto qualquer
sensação de frio ou calor.
Acordei ontem, hoje ou um dia –
ou em qualquer outro local no tempo – e havia flores sobre a mesa de cabeceira.
Uma mancha colorida que divisei em meio a total brancura, ainda semi-adormecida,
entre minhas pálpebras que começavam a se abrir. Primeiro, aquela mancha de cor
não me surpreendeu, pois em algum lugar da minha memória, ela pareceu normal;
mas súbito arregalei os olhos, sentando-me na cama e esfregando os olhos: ela
ainda estava ali, agora não mais uma mancha, mas um lindo buquê de flores do
campo coloridas. Dentro de minha cabeça, compreendi que eram minhas preferidas.
Estendi a mão e segurei-as, tirando-as de dentro do vaso. Acariciei meu rosto
com elas e senti algo muito leve que roçava contra a minha pele, mas não
consegui aspirar nenhum perfume. De olhos fechados, eu consegui realmente ver
as cores, o que de alguma forma me parece estranho. Quando abro novamente os
olhos, as flores desapareceram, assim
como o vaso sobre a mesa de cabeceira.
Agora, eu às vezes ainda encontro
flores sobre a cabeceira. Certa vez, de olhos fechados, eu vi uma luz fraca e
bruxuleante no meio da escuridão, como se fosse a chama de uma vela; mas tudo
foi muito rápido, fugaz e impreciso. Ouvi também os sussurros. Pareceu-me que
alguém chorava, um soluço profundo cortando o silêncio.
Chego à janela e vislumbro a
mesma paisagem. Sinto um doce cansaço. Assisto ao por do sol, e quando chego à
fase final, logo antes de tudo tomar a agora conhecida tonalidade
dourado-suave, percebo algo a mais no céu que não vira jamais: um desenho fino
e curvo, branco-brilhante, cujo brilho aumenta de intensidade conforme
escurece. Fascinada, reconheço o luar. Uma lua crescente. Pouco a pouco, surgem
pontos coloridos e brilhantes de luz aqui e ali: estrelas. Pela primeira vez desde
que cheguei (e lembrem-se, não sei quando cheguei) sinto algo mais intenso: um
pouco de alegria. Agora, penso, não estou mais tão sozinha! Mas... eu nunca
tinha me sentido só antes! De onde vem este pensamento?
Tenho novos motivos para olhar à
janela: o céu crivado de estrelas, e a lua, que cresce como o ventre de uma
mulher grávida. Novos pensamentos vão surgindo todos os dias. Toco meu ventre,
e sei que um dia, não sei quando, eu já estive assim, grávida como a lua. Esta
certeza deixa-nos ainda mais próximas.
As flores à mesa de cabeceira
passam a estar lá toda vez que desperto. Acho também uma pulseirinha dourada,
muito fininha e delicada. Coloco-a no pulso, prendendo o fecho, e olho para ela
longamente. Alguma coisa parece querer surgir... mas sou distraída por um ruído
de asas, que atrai-me até a janela. Olho para o céu, e vejo uma garça branca
passando, logo seguida por outra e mais outra, até que um enorme bando de
pássaros surge! Encantada pela sua beleza, sinto uma lágrima rolar pelo meu rosto.
A sensação de algo molhado e quente surpreende-me. Seco-a com o dorso da mão, e
ao olhar para o meu pulso, onde havia colocado a pulseira, ela não está mais
lá. Debruço-me à janela para acompanhar o voo das garças, mas elas também
desaparecem.
Mas depois daquela primeira
aparição, há outras. Certa vez (usarei a palavra ‘vez’ a fim de definir melhor
a minha total falta de noção de tempo) desperto com o pio suave de um
passarinho pousado à janela; em outra ocasião, um colibri sobrevoa a minha cama
quando abro os olhos. Desta vez, avisto as primeiras árvores surgindo no
horizonte, e uma pequena elevação, uma colina, quando o sol toca a linha fina
do chão.
Aos poucos, a paisagem vai mudando. Eu passo também a sentir menos
cansaço.
É noite de luar. Olho para fora,
e assisto enquanto uma estrada se forma em direção à casa. Ela é estreita e
sinuosa, e logo surgem árvores e arbustos floridos ao longo dela. À esquerda,
vejo um lago que não estava ali antes... mas antes do quê? Novamente, ouço meu
nome sendo sussurrado, mas sem soluços ou choro. Quando me viro, há flores e
velas sobre a mesa de cabeceira; acostumei-me à presença delas. Sei que elas
desaparecerão assim como surgiram, e outras reaparecerão depois.
É de manhã. Acordo, e sinto um
forte impulso de caminhar até a porta e, segurando a maçaneta redonda de
cerâmica branca, girá-la. Por que nunca havia pensado nisso antes? Agora,
parece a coisa mais natural a se fazer, e não consigo entender por que não o
fizera antes. Giro a maçaneta, e a porta simplesmente se abre. Vejo um corredor
longo e vazio, e a luz forte do dia que entra por uma janela no final deste.
Debaixo dela, um lance de escadas largas e sinuosas, acarpetadas de rosa claro.
Começo a descê-las. Estou descalça, como sempre. Meus passos não produzem
qualquer ruído. Não há nada, além do silêncio e da luz que a tudo ilumina.
Chego ao sopé da escada. Olho em
volta, e vejo uma sala vazia toda branca. Há apenas um piano junto à janela, e
parece-me natural caminhar até ele e tocá-lo. Escolho um clássico: Chopin.
Enquanto toco, sinto como se alguém me observasse. Tenho certeza de que este
alguém também escuta a música, e pensa em mim. Ergo os olhos, e há flores
presas em um ramo sobre o piano. Deixo-me ficar ali, aproveitando aquelas sensações
agradáveis, até que as flores começam a desaparecer. Agora, estou de pé no meio
da sala, e não há mais piano. Olho para a porta diante de mim, do outro lado da
sala vazio. Eu a percorro silenciosamente, e ao chegar à porta, agarro a
maçaneta e abro.
Estou diante de uma luz forte e
branca. Fecho os olhos por alguns instantes, entreabrindo-os até acostumar-me à
claridade, que aos poucos, torna-se suportável e então, agradável. Piso do lado
de fora. Sinto uma brisa leve e fresca envolver meu rosto. Diante da casa, a
estrada me convida.
Começo a caminhada, parando de
vez em quando para olhar em volta. São tantas cores brilhantes que me cercam e
me encantam, pois passei tanto tempo vendo sempre quase tudo branco, que eu
paro várias vezes. Olho para baixo, e vejo que há um par de sandálias macias e
confortáveis calçando meus pés, e que visto uma túnica reta e vaporosa,
verde-clara. Mas eu não consigo lembrar-me quando troquei de roupa. Meus
cabelos estão enfeitados com flores. Passo as mãos levemente sobre eles,
tentando localizá-las, e algumas se desprendem. O dia está belíssimo, e vejo
muitos pássaros. Ouço o ruído agradável de uma cascata, e caminho em direção ao
som. Por trás de uma fileira de árvores, sob uma colina de pedras, paro diante
da rocha por onde escorre a água cristalina. Aproximo-me da cascata, e olho meu
rosto no espelho da água. Sinto uma certa apreensão, pois não sei o que vou
enxergar. Aproximo-me devagar da borda, e vejo o céu refletido no espelho da
água. Há algumas nuvens vaporosas (não havia nuvens antes). Aproximo-me mais um
pouco, e vejo na água as copas das árvores próximas. Meu rosto surge no meio
delas. O medo da estranheza logo passa, mas sei que há alguma coisa
acontecendo, pois eu sinto não sou tão jovem quanto mostra aquele espelho
d’água. Tenho certeza que minha idade é superior a cinquenta anos, mas a face
que vejo é a de uma menina de, no máximo, vinte anos. Mesmo assim, eu sei que
ela e eu somos a mesma pessoa. Fico sentada à beira da água, acostumando-me
comigo mesma. Também aproveito para apreciar a linda paisagem e o calor
agradável do sol. O barulho da cascata é muito relaxante, e o canto dos
pássaros torna tudo ainda mais calmo e maravilhoso.
Percebo a presença de outros
animais que eu ainda não vira por ali: coelhos, cães, gatos, lagartos, leões,
tigres, elefantes. Ao invés de sentir medo, a presença deles apenas me deixa
ainda mais tranquila. Sinto que eles não me farão nenhum mal, ou uns aos
outros, pois todos convivem pacificamente, e brincam com as da sua espécie.
De repente, uma emoção forte toma
conta de mim: reconheço um daqueles animais, um Cocker Spaniel dourado. Sei que
se chama Pipo, e que um dia, ele foi meu. Tenho absoluta certeza! Pela primeira
vez, abro a minha boca e a voz sai: “Pipo!!!” ele me vê, ergue as orelhas e vem
correndo em minha direção! Pula em meu colo, e nós nos abraçamos. Novamente,
sinto lágrimas escorrendo de meus olhos. Ficamos abraçados durante um longo
tempo, até que ele se afasta e olha para trás, latindo, como se me chamasse.
Compreendo que devo segui-lo, e despeço-me com pesar daquela paisagem.
Ele caminha adiante, parando de
vez em quando para assegurar-se de que eu o estou seguindo. Apesar de ter a
sensação de estar caminhando há bastante tempo, eu não sinto cansaço. Meus
passos são leves e ágeis. Meu caminhar flui sem qualquer dificuldade ou dor.
Lembro-me de que um dia senti fortes dores nos pés e nas costas, dores que me
deixavam sem poder caminhar durante semanas.
A estrada se bifurca, mas Pipo
parece não ter dúvidas sobre o caminho a seguir. Continuamos por uma rua de
paralelos, muito bonita e arborizada. Há algumas casas pequeninas e coloridas,
e Pipo me guia até uma delas, de cor azul. Ao chegar ao portão, ele late feliz.
Vejo que a portinha branca se entreabre, e uma estranha emoção toma conta de
mim. Antes de ver os rostos dos seus ocupantes, eu adivinho quem eles são: meu
pai e minha mãe! Ao me verem, eles abrem os braços felizes, e eu corro para
abraçá-los. Enquanto nos abraçamos, olho para dentro da casinha e vejo uma
lareira acesa, e dormindo junto a ela, está Giorgio, meu gato angorá. Lembro-me
que ganhei-o de presente no meu
aniversário de quinze anos. Pipo entra na casa, juntando-se a ele. Ver os dois
juntos causa-me uma certa confusão, pois adquiri Pipo muitos anos depois que
Giorgio desapareceu de casa.
Mas todos estes pensamentos e
lembranças ocorrem em uma fração de segundos, me parece. Concentro-me na
presença de meus pais, que eu sinto, estiveram ausentes de minha vida durante
muito tempo... noto que eles estão bem jovens. Nem parecem ter idade suficiente
para serem meus pais. Nós nos sentamos nas escadas da porta da frente da casa,
enquanto a tarde cai. Conto-lhes sobre a minha vida. Falo das coisas que tenho
feito, e é estranho para mim que de repente eu me lembre de tudo. Conto-lhes
sobre meu primeiro casamento, fracassado após os abortos espontâneos que tive e
também sobre meu segundo casamento com Pablo, um homem maravilhoso que me
ajudou a resgatar a minha autoestima, com quem eu finalmente tivera filhos.
Falo sobre Renato e Angélica, seus netos. Eles parecem saber tudo sobre eles,
mas mesmo assim, ouvem-me com atenção. Com orgulho, conto-lhes que Renato é
médico, e Angélica, assistente social. Sei que falamos sobre muitas outras
coisas dolorosas, mas esta parte é um tanto obscura para mim. Sempre que tento
lembrar-me das coisas que dissemos, sou acometida por uma grande tristeza. Mas
eles me disseram para que eu não me sentisse culpada ou triste por nada, pois
tudo fazia parte de um plano...
Agora, há muitas estrelas no céu.
Finalmente, eles me convidam para entrar e partilham sua casa comigo. Vejo que
tudo é muito simples e aconchegante, bem diferente da casa onde eles – nós –
morávamos antes. Mas aqui, há paz. Papai me convida para sentar-se em sua
poltrona, junto à lareira, e fico acariciando a cabeça de Pipo enquanto Giorgio
dorme em meu colo. Ouço a voz de mamãe como vinda de um transe. Ela me pergunta
como eu me sinto, e eu respondo que me sinto muito bem. Melhor do que jamais me
sentira antes. E ela me promete que um dia terei este sentimento de volta, e
que voltaremos a ficar todos juntos, mas que no momento, eu preciso dormir.
Não quero dormir.
Mas a voz de mamãe parece
conduzir-me a uma espécie de transe. Ela pede que eu confie nela, e me entregue
ao sono. Vejo, entre minhas pálpebras pesadas, que há outros rostos conhecidos
que me olham e sorriem para mim. Reconheço alguns deles: meus avós maternos.
Meu avô paterno. Meu primo, que morreu aos dez anos de idade. Minha melhor
amiga da escola, Regina, que morreu de meningite. Alguns tios e tias que
fizeram parte da minha infância. Acho estranho que eles estejam ali, mas de
repente eu me lembro que meus pais também já estão mortos há quase trinta anos!
Eu quero ficar e conversar com
todos eles. Quero saber onde estiveram, e o que estão fazendo ali. Minha mente
entorpecida parece ser feita de geleia e confusão. Eu sinto que estou indo
embora, mas faço força para ficar, pois não quero me esquecer. Grito que eu
quero ficar, mas mamãe me acaricia a testa, e diz baixinho em meu ouvido que eu
ainda não posso ficar ali. Ainda preciso voltar e viver alguns anos. Há coisas
a serem terminadas. Ela diz que dentro em breve, meu marido precisará muito de
mim. Ela sussurra em meus ouvidos: “Mais alguns anos, querida. Mais alguns anos...”
grito que quero me lembrar. Ela me promete que deixará as lembranças comigo.
Uma menina loira de olhos azuis
ainda me diz: “Se eles duvidarem, fale de Roberta e da casa amarela!” foi a
última coisa que ouvi, e que ficou ecoando em minha cabeça.
Abro os olhos novamente em meio a
um mar de dores. Há muitos tubos em volta de mim, ligados ao meu corpo. Olho em
volta, e vejo paredes cinzas, e escuto aparelhos que zumbem. A dor é
excruciante. Um homem de cabelos brancos dorme sentado em uma cadeira
desconfortável. Reconheço Pablo, meu marido. Também me lembro de que tenho
sessenta e seis anos de idade, e o peso dessa descoberta cai sobre mim como uma
pedra gigantesca. Quero dizer que estou acordada, que voltei. Não consigo
falar, pois há tubos em minha garganta. Consigo emitir um grunhido.
Imediatamente, meu marido desperta, e levantando-se, fica ao meu lado, chorando
muito e dizendo meu nome. Lembro-me dos sussurros que ouvi quando estava “lá”,
e reconheço a voz dele. Olho para a mesa de cabeceira e vejo as mesmas flores
que eu enxergava do outro lado, embora as cores não pareçam mais tão
brilhantes. Tudo parece triste, cinzento e pesado. Entram médicos na sala, e
pedem ao meu marido que saia um pouco.
Acho que durmo novamente, mas a cada vez
que desperto, fico mais tempo acordada. Mais alguns dias se passam, e eles
retiram os aparelhos aos poucos. Consigo respirar sozinha, mas ainda não posso
falar. Todo o processo é muito lento. Sinto muita sede e fome, mas eles dizem
que ainda é cedo para alimentar-me.
Após alguns dias, alguém me deixa
beber um pouquinho de água. Depois, uma sopa rala e de gosto ruim.
Fortaleço-me. Meus filhos vem me ver todos os dias. Fico muito alegre quando
eles vem, mas não consigo mover-me ainda, e meus braços estão muito inchados,
mas escuto o médico dizendo que é normal e que dentro em breve irei para um
quarto comum.
Aos poucos, vou me recuperando.
Sou transferida para o quarto, e começo a murmurar as primeiras palavras. Minha
garganta dói. Todos estão tão felizes e parecem tão surpresos ao me ver
novamente bem! Consigo perguntar ao meu marido: “Há quanto tempo?...” Ele
parece preocupado. Olha para nossos filhos. Eles balançam a cabeça,
concordando. Meu marido responde a minha pergunta: “Quase dois anos...”
Aquela revelação cai sobre mim
como uma tsunami. Eu estivera desacordada durante quase dois anos! Eles me
contam, aos poucos, sobre o acidente de carro – eu tomara um táxi para casa
após fazer compras em um shopping, e uma carreta atingiu o carro. O motorista
morrera na hora, e eu tivera sérias sequelas neurológicas. Mas o médico está
muito surpreso e otimista com meus rápidos progressos, e acredita que eu
poderei voltar a andar.
Mamãe cumpriu sua promessa: ainda
me lembro de tudo o que aconteceu. Quero contar tudo à minha família.
Alguns meses se passaram. É
véspera de natal. Faremos uma confraternização entre os membros da família mais
próximos à noite. Estou muito bem, as dores desapareceram e nem preciso mais
usar a bengala para andar de um lado para o outro da casa. Meus filhos virão. A
esposa de Renato está grávida, e Angélica ficou noiva – finalmente – e diz que
querem se casar em breve. Estamos todos muito felizes. Preparei uma ceia de
natal muito especial, com o prato favorito de cada um deles. No meio da mesa,
um vaso com flores do campo. Meu marido saiu para comprar o champanhe. Eu
ensaiei o meu relato muitas e muitas vezes, não desejando omitir nenhum
detalhe. Escrevi tudo em um caderno, que usarei enquanto contar a minha história.
Após a ceia, onde todos comemos e
nos divertimos, eu digo a eles que quero contar uma história; algo sobre o
tempo que passei ausente. Eles se entreolham, e permanecem na mesa, enquanto eu
começo a contar-lhes tudo. Quando me perco ou sou tomada pela emoção, recorro
às minhas notas no caderno. Lara, minha nora que está grávida e que é espírita,
parece ser a única a compreender-me, pois quando termino, um silêncio mais ou
menos longo paira sobre a mesa. Finalmente, Renato, que é médico, começa a
dizer que eu tivera uma alucinação por causa da medicação pesada que recebera.
Nego; não concordo. Sei que foi verdade. Meu marido nada diz, mas ateu
convicto, sei que ele não acredita em mim.
Angélica também parece duvidar, e
meio sem graça (é a primeira vez que trazia o noivo em casa e sente-se
envergonhada pelo meu relato), arremata: “Há muitos mistérios entre o céu e a
terra.” E muda de assunto. Eu insito, mas eles apenas me olham com piedade no
olhar. Nada mais dizem, mas sei que não creem em nada da minha história. De alguma
forma, eu sei que é importante que eles acreditem. Então me lembro da menina
loira de olhos azuis: “Se eles não acreditarem, falem de Roberta e da casa amarela!”
e é o que faço; grito: “E o que vocês me dizem sobre a Roberta e a casa
amarela?”
Imediatamente, um silêncio desce
sobre a sala, enquanto meu marido e meus filhos se entreolham, muito pálidos. Alguma
coisa muda. Agora, eu sei que eles acreditam em mim. Angélica começa a chorar
copiosamente, e deixa a mesa. Renato vai atrás dela. Meu genro e nora acham que
este é um assunto de família, e nem sabem do que se trata; constrangidos, pedem
licença e vão tomar vinho na varanda. Ficamos eu e meu marido sentados à mesa.
Ele me olha. Vejo vergonha e medo
em seu rosto. Sinto que ele quer falar, mas não sabe como começar. Então, ele
suspira profundamente e começa a sua história:
-Eu acredito em você agora,
Helga. E vou explicar-lhe o porquê.
“Há muito tempo, quando as
crianças eram ainda pequenas, eu fui buscá-las na escola um dia e Angélica
pediu-me se eu poderia dar carona a uma de suas coleguinhas. O nome dela era
Roberta. Ela morava em uma casa amarela. Gostei dela assim que nos conhecemos. De
alguma forma, achei que nós tínhamos muitas coisas em comum, o que descobri
durante as nossas conversas no carro, quando eu a levava em casa. Ambos
gostávamos de filmes de faroeste. Tínhamos o mesmo tique nervoso, de coçar o
queixo quando estávamos pensando no que dizer. No começo, achei que ela estava
imitando-me, mas depois percebi que era natural. Também notei que ela e
Angélica tinham algumas semelhanças físicas, e davam-se muito bem, como duas
irmãs. Um dia, ao deixá-la em casa, a sua mãe veio abrir a porta – ela não
tinha ido ao trabalho naquele dia. Eu a reconheci imediatamente: era Janice,
uma moça com quem tive um relacionamento rápido... quando você estava grávida
de Roberta. Então eu compreendi tudo: Roberta era minha filha!
Ao ver-me tão surpreso, Angélica,
que na época tinha doze anos, confessou que já sabia de tudo: que as duas eram
irmãs. A própria Roberta contara a ela. Mas prometeu-me não comentar nada com
você antes que eu mesmo criasse coragem para falar. Logo, Renato também ficou
sabendo. Era o nosso segredo.”
Eu fico estupefata. Jamais suspeitara
de nada! Penso naquele segredo pairando entre nossa família durante todos
aqueles anos. Penso em algumas vezes em que, inadvertidamente, eu entrara no
quarto das crianças e notara conversas que terminavam assim que me viam; em
algumas delas, o pai estava junto. Eles disfarçavam, dizendo que tratava-se de
um jogo de detetives. Eu acreditava. Houve um período em que os três ficaram
muito deprimidos e misteriosos, logo após um acidente que matou uma amiga de
escola que eles costumavam levar em casa. Era Roberta!
Ele continua seu relato:
-Eu ia contar-lhe tudo, Helga...
mas houve o acidente no qual ambas morreram... elas não tinham outros parentes.
Nós três achamos melhor não contar nada e esquecer o assunto. Assim,
manteríamos a família unida. As crianças tinham muito medo da sua reação, e ao
mesmo tempo, não queriam que você sofresse. Elas me pediram que não constasse
nada.
Eu estou chorando e sentindo-me
enganada. Mas ao mesmo tempo, penso nos anos felizes que vieram depois. Penso em
tudo o que eu vivi naqueles dois anos, e sei que o que aconteceu poderia ser
perdoado. Ele descobrira que tinha uma outra filha; ficou conhecendo-a, e
perdeu-a logo em seguida. Havia castigo maior? Como eu poderia pensar, sequer,
em puni-lo?
De repente, lembro-me de uma
fotografia que Angélica tirara com os colegas de classe num final de ano; corro
até lá, e pegando o porta retrato, começo a percorrer os rostos sorridentes;
identifico a menina que eu vira quando estive fora. Aponto-a e digo ao meu
marido:
-Ela é esta aqui. Eu sei, porque
eu a vi.
Ele concorda com a cabeça. Meus filhos
estão sentados na sala de estar, e escutam toda a conversa. Eles vem me
abraçar, pedindo desculpas, mas eu digo-lhes que nada tenho a desculpar-lhes. Agiram
como acharam que seria melhor para todos.
Nós terminamos a noite de natal. Meus
filhos foram embora há meia hora. Estou sozinha na sala de estar, e lembro-me
de tudo o que vivi. Lembro-me do rosto daquela menina, Roberta, e sei que
jamais conseguiria odiá-la. Compreendo que a vida é grande e infinita. Escuto novamente
as palavras de minha mãe quando ela disse que em breve estaríamos todos juntos
novamente. “Mais alguns anos...”
Oi, Ana!
ResponderExcluirGrata pela visita!
Amei a sua história! Lindo e interessante blog!
Boas e Lindas Festas para você e sua família!
Beijocas!
Boa tarde Ana.. é um longo conto, intrigante e me fez muito lembrar das regressões que já tive e nas que ajudei.. tudo se parece, cenários identicos.. sobre o quarto branco tb fiz poesias assim.. afinal só vemos o manicomio né.. mas na regressão existem salas brancas onde o espirito vai por um tempo antes de ir além.. tu escreve muito bem.. com muita vida..
ResponderExcluirtb tenho um cocker ma é pretinho.. o pentelho aquele dog..
te desejo boas festas amiga querida e até sempre
bjs
Querida amiga.
ResponderExcluirMeu desejo para os que habitam
o meu coração,
é um mergulho no tempo,
onde cada dia,
é um dia de ano novo,
e cada sonho,
uma senha a ser descoberta,
nesta caminhada rumo a alegria.
Muito obrigado por sua amizade.
Que sejamos e façamos felizes a cada dia.
ALUÍSIO CAVALCANTE JR.
Ana preciso te dizer que respiro fundo para não deixar as lágrimas que marejam meus olhos caírem, lindo, real, brigaduuuu pelos lindos momentos que aqui passei, bjos Luconi
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