quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XIV







As outras vidas de Ofélia chegaram de repente, misturadas umas às outras; ela viu-se como um homem, pai de uma menina que reconheceu como sendo Anselmo, e estava casado com uma bela mulher maltratada pela dureza da vida, que reconheceu como Viviam. Os papéis se invertiam vertiginosamente. Em todas aquelas vidas, a existência deles tinha sido miserável, e eles morreram cedo demais, vítimas de maus tratos, pobreza extrema, doenças não tratadas, escravidão, fome e guerra. Seus papéis de pai/mãe/filho ou filha alternavam-se, e embora aquilo acontecesse rapidamente, Ofélia compreendia cada história e revivia a dor de cada uma delas. 
Até que chegando a uma daquelas vidas, o relógio do tempo começou a andar mais devagar, parando em uma determinada cena:

Era o ano de 1415. A família estava de pé no meio de um grande pátio ao ar livre, as mãos amarradas atrás dos seus corpos, tentando protegerem as retaguardas uns dos outros. O frio noturno era intenso e cruel, e seus lábios estavam roxos. Criaturas ricas e bem vestidas os rodeavam, observando e apontando. Ofélia era então a mulher, a mãe. Ela compreendeu que a partir daquela vida, tudo mudaria para eles. 

As pessoas se aproximaram, puxando Anselmo para mais perto deles e para longe dela. Os gritos de pavor não pareciam afetar aquelas pessoas de olhares frios e distantes; pelo contrário, deixavam-nas ainda mais sedentas e excitadas. Um dos homens deixou aparecerem suas presas, aproximando-as do pescoço forçosamente esticado de Anselmo, e fincando nele as presas afiadas, alimentou-se, passando- para os outros, que se serviram. Ofélia previa o terrível futuro próximo, impotente para proteger a sua pequena filha e a si mesma. 

De repente, ela ouviu ruídos de cavalos que se aproximavam, e vislumbrou uma armada ao longe. Homens carregavam tochas no meio da noite, e ela notou que logo estariam perto deles. As pessoas fugiram ao grito de uma delas, que dizia que a armada trazia estacas de madeira e estavam acompanhadas pelo Bispo em pessoa. Anselmo ficou quase morto no meio do pátio.

Depois que eles se foram, Ofélia pensou no destino de sua família: assim que aqueles homens chegassem, matariam Anselmo para que ele não se transformasse, e depois, deixariam ela e a filha à mercê do destino, se não decidissem matá-las também a fim de não deixar testemunhas. Com muito esforço, Ofélia conseguiu soltar-se e à menina, ajudando Anselmo a se levantar. Os três se esconderam atrás de um muro, sob um monte de feno, e Ofélia deu ordens para que Viviam não fizesse nenhum barulho, tapando com a mão a boca da menina. Os três ficaram escondidos ali, ouvindo a conversa :

-Eles se foram. Nós os perdemos mais uma vez!

-Acho que levaram suas presas com eles. Não há nem sinal deles por aqui. Vejam o sangue no chão!

-Se um deles foi mordido, precisamos encontrá-lo!

-Matem também os outros que estiverem com eles. Não queremos testemunhas causando pânico entre o povo.

Ofélia ouviu passos que se aproximavam do local onde se encontravam. Apavorada, ela conseguia escutar as batidas do próprio coração. Ela sentiu uma grande pedra solta sob sua mão, e teve uma ideia: sem pensar duas vezes, pegou a pedra e jogou-a com força para o outro lado do pátio, o que fez com que os homens corressem naquela direção. Enquanto isso, os três se embrenharam na escuridão e conseguiram fugir para a floresta, onde se esconderam sobre a copa de uma grande árvore até que os cavaleiros fossem embora. Ninguém sabia, na vila onde moravam, que eles tinham sido pegos, então seria seguro voltar para lá e continuar vivendo a vida como se nada tivesse acontecido.

E foi o que a família fez. Caminharam a noite toda e chegaram em casa ao amanhecer. As ruas ainda estavam vazias, e puderam entrar em casa sem serem vistos. Imediatamente ao chegarem, Ofélia fez o marido febril deitar-se na cama, despindo-o e lavando as roupas sujas de sangue imediatamente. Também fez com que a filha se aquecesse, acendendo o fogão e colocando um velho cobertor sobre os ombros da menina após fazê-la comer um prato de mingau de aveia. Ela também tinha fome e frio, mas havia coisas a fazer antes que pudesse, finalmente, descansar e comer. Lavou e estendeu as roupas de Anselmo junto ao fogo para secá-las; tentou fazê-lo comer, mas em seu delírio, ele jogou longe a tigela de mingau com um safanão. 

Três dias se passaram, e Anselmo só piorava. Ela disse à filha que não comentasse com ninguém sobre a saúde do pai, mas que se alguém na vila perguntasse por ele, que ela dissesse que ele tinha saído em viagem até a próxima cidade, onde venderia algumas peles. Ofélia sabia que Anselmo estava sofrendo a transformação. Sabia também o que aquilo significava: ela o perderia para sempre.

A não ser que pedisse a ele que a transformasse, e também à filha. 

Na noite do quarto dia, ela despertou e deparou com uma silhueta masculina velando seu sono. Era Anselmo, não apenas recuperado da febre, mas também com aparência saudável e forte, um homem transformado, realmente belo e com um forte apelo sensual. Ofélia sentiu um arrepio na coluna ao vê-lo daquela forma. Olhou para a menina magrinha, de aparência frágil e muito pálida que dormia aconchegada a ela, e vislumbrou também a miséria do cômodo onde viviam há anos. Anselmo murmurou:

- Tenho sede. Mas é uma sede estranha. 

Ofélia compreendeu que a transformação havia terminado, mas que ele ainda não tinha consciência de sua nova vida e aparência. Afastando os cabelos do pescoço, ela virou-se de lado na cama, e disse:

-Mate a sua sede, meu amor. Você agora é um deles. Transforme-nos também. Beba de nós, mas não até a última gota. Matará a sua sede, isto é certo, mas estaremos condenados a uma outra sede, que apesar de eterna, é a nossa única chance de sobrevivência. Mas se você não o fizer, teremos que nos separar para sempre. O tempo nos afastará, pois eu envelhecerei e morrerei, mas você será sempre jovem e forte. 

Ao ver a pele alva oferecendo-se a ele, Anselmo não teve dúvidas sobre o que deveria fazer, e obedeceu a esposa. 

Logo, em uma noite de lua nova, os três abriram as portas do casebre, e caminharam para fora, respirando o ar puro da noite, e prontos para recomeçarem sua nova e eterna vida. Os outros da sua espécie logo os encontraram, cuidando para que fossem recebidos entre eles. Grandes riquezas lhes foram dadas, e a família, que passou a ser respeitada por todos, tornou-se dona de um grande castelo em um país longe dali, onde se instalaram como ricos imigrantes

(continua...)




domingo, 23 de setembro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XIII





Não. Ela não seria capaz de fazer o que Anselmo estava lhe pedindo. Aterrorizada, Ofélia olhava a menina adormecida em seu colo, enquanto acompanhava emocionada o descer e subir daquele peito pequenino e ornado de rendinhas brancas. Não saberia mais viver sem a presença de Vivian. Precisava do som daquele sorriso pela casa, do som daqueles passos pequeninos correndo pelo pátio enquanto as duas brincavam no jardim. Precisava também daquele par de olhos que a fitavam do outro lado da sala, de pé junto à lareira. Precisava até mesmo daquele estranho brilho que eles emanavam e que causavam medo e fascínio ao mesmo tempo.

Mas ela não poderia fazer o que Anselmo estava pedindo a ela que fizesse. 

Se ele lhe pedisse que cortasse o próprio punho, ou que pusesse fogo na casa com ela dentro, Ofélia o faria; se ele tivesse pedido que ela se jogasse de cabeça pela janela, ou que ela se afogasse na piscina de água sujas que ficava nos fundos da casa, ela o teria feito de bom grado, e sem pestanejar; se ele tivesse  pedido a ela que se trancasse para sempre naquela casa, entre aquelas paredes, e ficasse lá até morrer de fome, ela o faria, se isso significasse ficar para sempre ao lado de seu marido e de sua filha. 

Mas aquilo, não. Ela não seria capaz. 

Ofélia colocou a menina adormecida no sofá da sala. Anselmo caminhou até ela:

-Nós não temos muito tempo, minha querida.

Ofélia desvencilhou-se daquele toque que tanto amava, caminhando até a janela, não tendo certeza de mais nada. Por um breve segundo, ela pensou que se ela se virasse de repente para olhá-lo, ele não mais estaria ali, e que tudo aquilo seria apenas fruto de sua imaginação. Como seria tão mais fácil se fosse daquela forma! Devagar, ela virou-se lentamente, e deparou com aquele par de olhos examinando sua alma. Anselmo era real. Ele estava lá, e pedia a ela que fizesse o inominável. Tudo em nome daquele amor e de sua permanência juntos. 

Anselmo caminhou até ela novamente, desta vez, segurando-a pelas mãos antes que ela pudesse fugir, obrigando-a a encará-lo:

-Ofélia, eu e Vivian precisamos de você. Nós temos que ficar juntos, mas só existe um jeito. Talvez você esteja tão amedrontada porque não se lembra mais de quem você realmente é, de quem nós realmente somos! 

Ofélia tinha medo de lembrar.

-Olhe para mim, minha amada! Sou eu, aquele por quem você disse ter esperado toda a sua vida! No fundo, você sabe! 

Ofélia olhou-o dentro dos olhos. O fascínio que ele exercia sobre ela era inebriante. Os olhos dele eram como lagos aonde ela mergulhava e afundava cada vez mais, e não tinha vontade de voltar à tona. 

-Você precisa desbloquear as suas lembranças... 

-Eu não posso, Anselmo. Eu... não quero!

Ela tentou fugir, mas ele a abraçou com força, fazendo com que deitasse a cabeça em seu peito. E ela se deixou ficar ali, aspirando o cheiro dele, sentindo o arfar do seu peito que subia e descia, mas não conseguia ouvir as batidas do seu coração. Achou aquilo estranho, mas o que não era estranho naquela história? 

-Ouça, Ofélia...

A voz dele soou dentro dela vinda do peito, como de uma caixa de som. Imagens começaram a se formar diante dos seus olhos fechados. Ofélia mais uma vez tentou fugir, mas Anselmo segurou-a firme. 

-Ouça e sinta, meu amor. 

Ela sentiu que entrava em um transe, e de repente, passava por um túnel negro raiado de cinza e roxo. Um tom azul surgiu em espiral, levando-a para o fundo, cada vez mais para o fundo. Ela fechou os olhos de medo, enquanto seus ouvidos zuniam cada vez mais alto. Ela teve vontade de gritar para que aquele som parasse, aquele zumbido hipnótico que a levava cada vez mais para o fundo de algo que não desejava ver. Quando pensou que não mais aguentaria, o silêncio atingiu-a feito uma parede, e Ofélia sentiu uma brisa fria em seu rosto. Abriu os olhos, mas não conseguia enxergar nada. A cor negra era aveludada e envolvente. Ela soltou um pequeno grito, e o som voltou para ela imediatamente, e Ofélia notou que estava dentro de uma caixa.

O pânico tomou conta dela enquanto ela erguia a mão, tentando abrir a caixa que a mantinha prisioneira. Felizmente, não precisou fazer qualquer esforço; a caixa se abriu sem nenhuma dificuldade. Ela olhou em volta: parecia estar no porão de algum castelo antigo. As paredes eram de pedra, e havia archotes iluminando o local. Através de uma pequena janela perto do teto, Ofélia vislumbrou a lua cheia em um céu azul-marinho. Uma coruja cantou lá fora. 

Olhou para si mesma: vestia roupas antigas, talvez medievais. Instintivamente, ela soube que era o ano de 1666.  Logo, Ofélia notou que estava dentro de um caixão, e sentou-se depressa, apavorada demais até mesmo para gritar. Jogou-se para fora do caixão, caindo no chão de pedra, mas surpreendeu-se por não sentir qualquer dor. Surpresa, ela percebeu que na verdade, nunca se sentira tão bem em toda a sua vida; sentia-se forte, e ao dar o primeiro passo, este foi tão leve que ela quase flutuou. Deu mais alguns passos pelo chão de pedra, e apesar de estar descalça, o frio não penetrou pelos seus pés. Ela passou a pular, e viu que não ficava ofegante, nem suava. 

À sua direita, Ofélia viu uma escadaria de toras de madeira que conduziam a uma porta pesada também de madeira, e ela pensou em subi-la. Simplesmente pensou em subi-la, e se viu flutuando escada acima. Ela sorriu, e o medo que sentia passou, pois viu que ele não tinha razão de ser: ela era a senhora daquele castelo. 

Agora, as memórias daquela vida voltavam rapidamente. Conforme Ofélia avançava, sentia-se cada vez mais segura sobre quem era naquela vida, e da influência ela sobre as pessoas que viviam naquele castelo. 

Ela empurrou a porta, e várias pessoas muito bonitas e bem vestidas que estavam reunidas em um enorme salão luxuosamente decorado e também iluminado por velas e archotes, onde conversavam, e dançavam, olharam para ela. Ofélia sentiu que os conhecia, e pouco  pouco, lembrou-se de todos os seus nomes. Reuniu-se a eles, como quem se une a velhos amigos que não vê há muito tempo. Ela estava feliz e tranquila. 

Um serviçal chegou com uma bandeja, na qual estavam copos dourados - seriam de ouro? Ela pegou um deles, dando um gole na bebida cor de vinho, que desceu pela sua garganta e fez com que seus sentidos se tornassem mais aguçados. De repente, Ofélia conseguia escutar uma coruja farfalhando as asas sobre uma árvore, e tudo o que tinha que fazer, era prestar atenção. As cores tornaram-se mais intensas, e Ofélia sentiu-se mais forte ainda. O líquido era quase pastoso, e tinha um sabor metálico. Não era delicioso, mas ao mesmo tempo, era a melhor coisa que já provara. 

Ela ouviu um grito, e olhou para trás. As pessoas também olharam, mas logo voltaram a conversar e rir. Ofélia viu uma jovem que era trazida até o centro do salão, levada por dois copeiros que a seguravam pelos braços. Apavorada, a menina relanceava os olhos para todos eles, tentando desvencilhar-se, mas os copeiros a mantinham presa sem dificuldades. Um deles puxou de uma grande faca , e enquanto o outro segurava o pescoço da moça, passou a lâmina sobre a pele de forma precisa, fazendo com que um jato de sangue espirasse e fosse imediatamente aparado por um terceiro criado, que o direcionou para dentro de uma jarra. 

Os convidados da festa se aproximaram daquela cena conversando normalmente, sem  qualquer sinal de surpresa ou exaltação, e quando a menina finalmente parou de se agitar e de gorgolejar, eles ergueram suas taças na direção da jarra, e foram servidos. Ofélia achou natural fazer o mesmo. 

Um vento forte começou a soprar, e Ofélia foi erguida no ar, saindo por uma das janelas do castelo e entrando novamente no túnel escuro, que a conduziu, daquela vez, a um belíssimo palácio. Ao passar pela fachada, ela leu a data na parede: 1879. Ofélia entrou pela parede, e encontrou as mesmas pessoas que estavam no castelo, em uma nova reunião. Ela juntou-se a eles, e notou que as roupas eram diferentes. Seu olhar dirigiu-se ao outro lado do salão, e ela soube de antemão o que iria encontrar: Anselmo a olhava. Ela compreendeu que fora ali que eles se conheceram. Ela olhou para dentro do copo que segurava, e viu o mesmo líquido grosso e vermelho. Imediatamente, ela soube, sem qualquer susto, que se tratava de sangue humano. 

O salão começou a rodar em volta dela. As paredes se moviam. Os rostos sorridentes se alternavam diante dela. Os sons de copos e brindes a deixavam tonta. Ela fechou novamente os olhos, insegura, e quando os abriu, estava em uma casa de fazenda. Ela sabia, porque conhecia bem o lugar. Em volta dela, as mesmas pessoas conversavam, mas as roupas eram diferentes, mais modernas - talvez tivessem sido usadas nos anos 20. Ofélia estava lá, entre eles. Ela mesma também estava ricamente vestida. Ela segurava Vivian pela mão. 

A mesma cena passada no castelo se repetiu. Uma menina foi trazida ao centro da sala, e igualmente sacrificada naquela festa, e seu sangue, servido entre os convidados. Ofélia viu a si mesma estendendo a sua taça. 

Mas antes daquelas três vidas, ela sentiu que houvera uma outra. Talvez, outras. E não tinham sido tão glamourosas. 



(continua... )




quinta-feira, 6 de setembro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XII





Bruno chegou ao portão da casa e olhou para dentro, através das grades pesadas de ferro. Há dias não via Ofélia. Ela simplesmente sumira de sua vida, e também recusava-se a atender às suas ligações. Ele esticou o pescoço, tentando ver os fundos da casa. Notou que havia marcas de pneus no caminho para carros arenoso. Bruno não teve dúvidas: as marcas dos pneus mostravam que um carro havia entrado lá, mas não tinha saído. Ficou preocupado com Ofélia. Tocou a campainha várias vezes, sem obter resposta.

De repente, ele ouviu um ruído distante de algo que se quebrava dentro da casa, talvez um objeto de vidro. Não teve dúvidas: escalou o portão e entrou. Ao tentar abrir a porta da frente, esta se encontrava trancada, então ele deu a volta na varanda que rodeava toda a casa, e olhou através das vidraças. Viu um pequeno vaso de flores no chão; por trás dele, do outro lado de onde ele se encontrava, havia uma janela aberta por onde o vento entrava, balançando as cortinas. Bruno descobriu o porquê do vaso estar quebrado. 

Correu ao outro lado, entrando na casa pela janela. 

Tudo estava silencioso. A casa, imaculadamente limpa, era um poço ameaçador de silêncio. A luz da tarde entrava pelas vidraças, mas nem mesmo a claridade amenizava aquela atmosfera de que alguma coisa pesada estava presente ali. Ele chamou por Ofélia; lá em cima, um farfalhar chamou sua atenção, e Bruno subiu até o quarto onde Ofélia costumava dormir. Ao chegar lá, mal pode acreditar no que viu:

Deitada na cama, Ofélia, de olhos fechados, estava muito pálida; tão pálida, que ele pensou que o pior pudesse ter acontecido a ela. Vestia uma camisola branca, e estava mais magra do que quando se conheceram. Assustado, Bruno sentou-se na cama, pegando a mão dela, que estava gelada, mas ele viu que ela estava respirando, e deu um suspiro de alívio. Bruno pensou nas histórias sobre a Bela Adormecida que sua mãe contava quando ele era ainda bem pequeno. Achou que se a beijasse, Ofélia despertaria daquele sono estranho. Assim ele o fez.

Aproximou o rosto do dela, beijando-a na boca levemente. Ofélia estremeceu, e abriu os olhos. Bruno sorriu para ela:

-Olá, Bela Adormecida! Se esqueceu mesmo de mim, hein? 

Ela esfregou os olhos:

-Bruno... o que você está fazendo aqui? 

Ofélia sentou-se na cama, mas sentiu-se tonta, e Bruno a segurou em seus braços. 

-Você está bem?

Ela concordou com a cabeça:

-Sim... acho que dormi demais... só isso.

-Ofélia... há quanto tempo você está aqui na casa, sozinha?

Ela respirou profundamente, desvencilhando-se dele e sentando-se na cama, as mãos segurando fortemente a beirada do colchão, e disse:

- Eu não lhe devo satisfações, Bruno. Só porque nós...

Ele a interrompeu:

-Você está muito magra e muito pálida. Há quanto tempo não come? Precisa comer alguma coisa.

Ela concordou com ele:

-E vou fazer isto agora mesmo. Vamos até a cozinha.

Ofélia calçou seus chinelos de pelo, macios e quentes, e agradeceu mentalmente por eles estarem ali. Ela sentia frio, muito frio; pegou sobre a cadeira o seu casaco, vestindo-o e aconchegando-se a ele. Bruno seguiu-a até a cozinha, enquanto Ofélia começou a preparar uma macarronada. Ela andava feito um zumbi, pegando os ingredientes nos armários e colocando os pratos, copos e talheres sobre a mesa.  Bruno notou que ela estava muito diferente - quase apática. Notou também os cabelos desgrenhados e a pele do rosto ressecada. Enquanto ela se movia lentamente pela cozinha, a luz do sol entrava pela janela e batia sobre a grande mesa de madeira. Bruno pensou que aquela seria uma cena bucólica, se não fosse a situação esquisita que ele estava presenciando. Tentou falar com ela novamente:

-Ofélia... eu senti sua falta.

Ela não o olhou, mas respondeu:

-Bruno, você precisa entender que o que tivemos foi passageiro. Bom, mas acabou. Não faz sentido. Não podemos ficar juntos. Você é anos luz mais jovem que eu, e além disso, eu não estou nem nunca estive apaixonada por você.

Ele se sentiu um idiota romântico. Entrara ali com ares de príncipe salvador, mas estava sendo repelido pela sua princesa adormecida. Zangado, ele disse:

-Ok, Ofélia, tudo bem. Se é assim que você quer... mas precisa me dizer o que está acontecendo. Você não está bem, e isso é gritante. Passou por muita coisa. Precisa conversar com alguém. 

-Mas não com você. 

Ela falava as coisas sem gritar ou expressar qualquer tipo de emoção. Não parecia a mesma pessoa que tinha feito amor com ele apaixonadamente. Não tinha mais aquele brilho de curiosidade e vida nos olhos. Bruno achou que a casa estava fazendo aquilo com ela. 

Segurando um feixe de massa de macarrão, ela o olhou pela primeira vez:

-Vai ficar para comer?

-Você está me convidando?

Ela encolheu os ombros:

-Acho que sim. Mas não pense nada além disso: é só um convite para almoçar. 

Ele riu, tristemente, e concordou com a cabeça:

-Eu aceito. 

Ela andou até o fogão, onde uma panela de água fervia, e colocou o macarrão dentro dela. Ficou olhando a água borbulhar e o macarrão afundar aos poucos. Bruno disse:

- Por que não se senta aqui um pouco, enquanto a massa cozinha? 

Ofélia sentou-se à mesa, diante dele, os olhos circundados por olheiras. Bruno pensou em estender as mãos e segurar as dela, que estavam sobre a mesa, mas desistiu da ideia. 

-Me diz o que está rolando, Ofélia. 

Ela o encarou, os olhos sem vida:

-Se eu te disser, vai achar que eu estou louca. 

-Não depois de tudo o que eu vi acontecendo nesta casa. Desembucha logo, vai!

Ofélia começou a contar a ele tudo o que estava vivenciando. Falou-lhe sobre seus encontros com Anselmo e Vivian, e do quanto aquilo a estava deixando confusa, pois ao mesmo tempo que parecia ser a coisa certa estar junto deles, ela não entendia o medo que sentia de, justamente, estar junto deles. Bruno escutou sem interrompê-la. 

Mais tarde, enquanto comiam em silêncio, ele disse com urgência:

-Você precisa sair desta casa. Precisa sair, Ofélia. 

Ela o olhou apaticamente durante algum tempo, antes de responder:

-Não. Preciso chegar ao final dessa história. Preciso entender o que Anselmo quer que eu faça. Eles são a minha família, Bruno, e eu quero muito poder estar com eles. Deus, você não sabe o quanto eu sentia a falta deles... e só descobri isso depois que eu os conheci. Depois que os vi de novo.

-O final desta história não pode ser bom. Pode ser o final da sua história! Venha comigo, vamos sair daqui! Se não quiser me ver mais, não tem problema; mas eu queria saber um dia que você ficou bem. 

Bruno percebeu que de nada adiantaria argumentar com ela; ele tinha perdido Ofélia para um fantasma. Desanimado, ele disse:

-Que pena, e que desperdício de vida. Você é uma bela mulher, tão cheia da grana... tem um futuro bacana pela frente... e fica aqui, presa a um fantasma! É lamentável. 

Pela primeira vez, ela demonstrou alguma emoção: fúria. Erguendo a voz, Ofélia gritou: 

-Não fale deles assim! 

Bruno largou os talheres e levantou-se:

-Se cuida, Ofélia. Se precisar de mim, sabe como me encontrar. Eu vou embora agora. Essa história me cansou. 


(continua...)







domingo, 2 de setembro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XI







Durante o dia, Ofélia andava pelos cômodos da casa, olhando em volta e tentando fazer com que alguma resposta caísse em seu colo. Às vezes, Anselmo ia vê-la, mas eram breves momentos.  Durante a noite, que sempre era muito intensa, ela passava suas horas em companhia de Anselmo e Vivian. Eram momentos muito intensos e felizes, e ela tentava não dar muita atenção, enquanto sentava-se com eles sobre o gramado do jardim e olhava para a silhueta da casa contra o céu estrelado, a alguma coisa por trás da razão que dizia que tudo aquilo estava errado, e que ela teria que acabar com tudo um dia.

Tentava dedicar-se a conhecer novamente sua filha e seu marido. Anselmo era um homem sisudo e sombrio, mas envolvente e apaixonante. Um homem misterioso, de sorriso enigmático, palavras econômicas e cheias de intensidade, olhar penetrante que variava entre amoroso e prescrutador. Ofélia sentia nele uma certa insegurança, às vezes. Um dia, ele confessou a ela que temia que ela não resistisse e descumprisse a promessa feita a ele há tantos anos. 

-Estamos ligados por um destino que é muito mais forte do que a morte, minha querida Ofélia. 

Quando ele dizia coisas como aquela, Ofélia sentia um aperto no peito. Tudo o que ela queria, era abraçar Vivian e não largá-la nunca mais, e estar com Anselmo. Gostaria de poder levá-los para o seu mundo e ficar lá com eles, mas Anselmo já lhe dissera que aquilo não era possível. Havia existências separando-os. A única maneira de estarem juntos, seria naquela espécie de limbo, onde o tempo jamais avançava. Ela perguntou:

-Você vai esperar até que a minha vida se cumpra, Anselmo? Para que assim possamos ficar juntos para sempre?

Ele apenas suspirava e a abraçava com ternura, mas nada respondia, até que um dia ele a olhou nos olhos:

-Você realmente não se lembra, não é?

Ofélia ficou confusa. Vivian que brincava ali por perto, parecia não estar prestando atenção À conversa deles. Ofélia sentiu as próprias sobrancelhas sendo franzidas, enquanto o rosto de Anselmo ia ficando mais tenso. 

-Não temos muito tempo, Ofélia. Este momento  é apenas temporário. logo, eu e Vivian teremos que partir, se você não cumprir a promessa que nos fez.

-Você me assusta, meu amor. Sempre me fala de uma promessa que eu devo cumprir, mas eu não me lembro dela! Não sei do que você está falando!

-É porque as existências, ao se sucederem, apagam as memórias. Mas elas estão aí, dentro de você, esperando para que você as acesse e se lembre delas totalmente. Você sabe do que eu estou falando, minha querida. E logo precisará tomar uma decisão muito importante. Você vai se lembrar de quem realmente é, e de quem nós somos. Você vai se lembrar de tudo. E terá que deixar de lado convenções e ideias pré-concebidas arraigadas à sua personalidade através das suas novas existências. Há muitos conceitos que terão que ser desaprendidos para que você possa estar conosco para sempre. 

- Mas... se eu passei por outras existências, por que o mesmo não aconteceu a você e à Vivian? Por que ficaram presos aqui?

-Porque esta é a única forma de ficarmos todos juntos novamente. Nós esperamos por você há tanto tempo, minha querida... 

Naquele momento, Vivian veio correndo em direção a ela, sentando-se em seu colo. Ofélia a abraçou, aninhando-a para que pudesse adormecer. Ela podia sentir o perfume de alfazema dos cabelos da filha. Aquilo era tão familiar! Começou a acariciar de leve a cabeça da menina, deixando que suas mãos escorregassem pelo bracinho da criança, que já começava a dormir. Foi então que ela viu a pequena marca no pulso da menina: uma tatuagem. Passou os dedos sobre o desenho, que estava em alto relevo. Era um símbolo desconhecido, dentro de um círculo. 

Anselmo ergueu a manga do casaco, mostrando a ela o mesmo símbolo tatuado em seu próprio pulso. Ele disse:

-Eu e Vivian cumprimos a nossa promessa. Esta tatuagem é o símbolo daquilo que fizemos, a nossa missão mágica, que nos trará enormes poderes. Mas a trindade deve ser cumprida. Você deve agir para que receba também esta mesma marca, minha querida, e então, nós três juntos, seremos invencíveis. Poderemos fazer coisas que você sequer imagina. 

Novamente, Ofélia sentiu um arrepio na nuca e um desconforto no plexo solar. Anselmo continuou:

-Vivian está ligada a nós por outras existências. Em outras vidas, nossos papéis foram invertidos - eu era a mãe, ela o pai, e você, a filha. Depois, você foi o pai, ela a mãe, e eu, a filha. Devemos cumprir este ciclo; devemos voltar novamente ao seu mundo, minha querida, novamente como somos: eu o pai, você a mãe e ela, a filha. 

Ofélia estava confusa, e não sabia o que dizer. Amava demais aquelas criaturas, e sentia que era amada por eles. Aquilo era tudo o que importava. Passara toda a sua existência presente sentindo-se deslocada, desconfortável na vida das pessoas que conviviam com ela e muito infeliz. Tinha sempre a sensação amarga de que não pertencia a elas, e não queria pertencer. 

Ela respirou profundamente; a menina adormecera. Olhou para o rosto dela, a pele tão clara e macia, os cabelos loiros, as pálpebras levemente rosadas. Sentiu a respiração da menina contra o seu próprio corpo, e amou-a ainda mais fortemente. Mas de repente, o rosto dela transformou-se no rosto de um homem adulto, e logo em seguida, no rosto de uma mulher. Ambos os rostos nada tinham daquela inocência e leveza; havia algo de muito ruim neles. Ela sentiu uma energia densa e pesada entrando dentro de seu corpo, e tal energia causou-lhe um mal-estar. 

Ofélia quase gritou, mas logo a inocência voltou ao rosto da filha, e ela pensou ter sido vítima de uma alucinação. Abraçou-a com força. Anselmo pôs a mão em seu ombro, e a mão dele pareceu pesada. 


(continua...)






A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...