segunda-feira, 31 de março de 2014

A Ilha Sem Barcos - Final




Na Ilha de Pérola, Rosalba sentiu um vento novo a agitar-lhe os cabelos, e então compreendeu que era hora de recolocar seu barquinho no mar. E ela o fez, o olhar navegando no balanço das ondas, os braços erguidos numa bênção.

Na manhã seguinte, na ilha abandonada, Carlos estava pescando o café da manhã, quando avistou, longe no mar, vindo em sua direção, o seu barco perdido. Prontamente, acordou os outros dois para dar-lhes a novidade.

 Ambos vieram correndo, e decidiram embarcar naquele mesmo dia, claro e ensolarado. Após colocarem no barco algumas provisões, já prontos para irem embora da ilha, Liana lembrou-se que esquecera suas sandálias na casa, e voltou para pegá-las; mas quando chegou lá, não havia casa alguma. Na clareira, apenas os alicerces em ruínas de algo que um dia, tinha sido uma cabana de madeira, quem sabe, utilizada por algum pescador ou náufrago. Os três ficaram intrigados, e durante certo tempo, ainda tentaram encontrar a casa, mas não conseguiram.

Depois daquela noite inusitada, muitas coisas mudaram dentro dos nossos personagens. Carlos, um homem totalmente sem fé, passou a crer que existe algo mais além do que se pode ver, e mudou totalmente seu pensamento e sua maneira de agir. 

Liana e Décio compreenderam que seu casamento tinha sido um erro, e decidiram seguir suas vidas sozinhos de comum acordo. Liana também passou a ser uma pessoa mais compreensiva e menos preconceituosa, e Décio finalmente compreendeu que era preciso pegar as rédeas de sua vida e fazer o que desejava, aprendendo a dizer 'não' quando necessário.

Na Ilha de Pérola, na mesma manhã em que o barco chegava, Cecília correu para o quarto a fim de dar a Nina as boas notícias, mas ela já não acordou mais... foi um dia de lágrimas de tristeza e de alegria. Cecília decidiu que iria embora da ilha com Genaro, para recomeçar a vida em outro lugar. Deixou para trás suas dores e segredos do passado que a haviam trazido àquela ilha, a fim de finalmente recomeçar uma nova vida, pois aprendeu que quem arrasta o passado atrás de si, carrega um peso morto que impede de avançar e ser feliz. Todo aquele tempo que passara na ilha, ficara levando, no fundo de seu pensamento, as coisas que deixara para trás: a vida com o falecido marido, as saudades dos pais, os sonhos abortados.

Antes de partir, Cecília e Genaro casaram-se em uma linda cerimônia à beira-mar, assistida por todos.

Décio voltou para casa com Cecília e o pai, decidido a abandonar o escritório de advocacia (profissão escolhida por sua mãe) e sair pelo mundo em uma longa viagem, por tempo indeterminado, a fim de repensar sua vida. Assim, Antônio e sua filha Liana tiveram a ideia de assumir a administração do hotel. Ambos chegaram à conclusão de que deveriam chamar Rosalba para morar com eles no hotel, e desta vez, ela aceitou, feliz da vida. Um psicólogo e um professor foram contratados para ajudá-la, e Rosalba fez muitos progressos, tornando-se camareira do hotel; mas isto durou pouco, pois logo Antônio resolveu adotá-la. Teve de Liana toda a aprovação.

Nenhum dos três falou sobre o acontecido na ilha. Não houve qualquer acordo entre eles de não tocarem no assunto; mas cada um deles decidiu que seria melhor respeitar os segredos dos que não mais viviam.

Meses após o naufrágio, Carlos e Liana tentaram achar a décima-sexta ilha, a fim de mostrá-la a Antônio. Tentaram durante vários dias, e nem mesmo de helicóptero conseguiram localizá-la. Na prefeitura local, ao perguntarem sobre a existência da ilha, foram informados de que naquele arquipélago havia apenas quinze ilhas, todas elas habitadas e conhecidas atrações turísticas.

No verão, durante a temporada em que os hotéis das quinze ilhas enchiam-se de turistas, Liana encontrou o amor de sua vida - o verdadeiro.


FIM


Desejando ler os primeiros capítulos, basta descer o cursor até o final do blog; eles estarão lá, entre outras histórias.


terça-feira, 25 de março de 2014

A ILHA SEM BARCOS - Capítulo IX



Nina estava recostada em um confortável encosto de travesseiros que Cecília preparara para ela, e relia um livro de poemas que sempre trazia consigo, desde a juventude. De repente, não conseguindo mais concentrar-se na leitura - mesmo que já soubesse, de cor, todos os poemas do livro- ela o pôs na mesinha de cabeceira e puxou as cobertas até o pescoço. Quase vinte e cinco dias, e nem sinal dos náufragos. Mas ao mesmo tempo, de todos aqueles acontecimentos ruins, algo bom resultara: o romance entre Genaro e Cecília. "Minha amiga ainda é muito jovem", pensava; "Tem todo o direito de resgatar sua felicidade. E Genaro também. Espero que eles possam ser realmente felizes juntos. Mas... será que Cecília o convencerá a permanecer na ilha? Porque conforme o próprio Genaro nos explicou, ele tem muitos negócios no continente. Será que Cecília irá embora com ele quando tudo isto terminar? E se ela for, o que será do hotel? Não tenho mais ninguém na vida... o que será de mim?"

Com aqueles pensamentos, Nina teve a compreensão de que seus dias no mundo estavam terminando. Talvez a sua missão - a última - fosse chegar àquela ilha para servir de companhia para Cecília. Agora, poderia ir em paz. A idade já lhe pesava, e não havia mais nada que a segurasse ali. Seu dinheiro estava quase no final, pois gastara-o para manter-se hospedada no hotel, e também com as várias instituições que ajudava. Talvez só lhe restasse o suficiente para mais um ano ou dois, se economizasse bastante. Quando o dinheiro acabasse, o que faria?

Sua mente dava voltas. Chegou a desejar que não durasse mais muito tempo.

* * * *


Na praia da Ilha de Pérola, Antônio caminhava sozinho, e pensava em sua vida. Sentia saudades das filhas. Também sentia muitas saudades de Rosa, sua esposa também  falecida. A solidão que o abraçava era maior que tudo. Pensava nos anos vazios que o aguardavam, e em como seria a sua vida sem a última criatura que amara.

Um grito de gaivota trouxe-o de volta ao presente, e ele se viu diante de Rosalba, que o olhava timidamente a alguns metros de distância. Ele estancou, comovido: mais uma vez, lembrou-se de Diana, e lágrimas vieram-lhe aos olhos. Rosalba percebeu-lhe a emoção, e aproximando-se dele, tocou-lhe gentilmente o antebraço, fazendo uma leve carícia:

-Por que o moço chora?...

Antônio não conseguiu mais conter-se: as lágrimas agora rolavam pela sua face. Ele a olhou, comovido, e deixou escapar um sorriso triste ao responder:

-Choro pela vida. Pela minha vida triste. Choro pelas minhas filhas.

-O moço tem filhas? Tem? Como é o nome delas?

Ele secou as lágrimas com as costas da mão:

-Elas se chamavam Diana e Liana. Eram lindas. Eram gêmeas. Diana parecia-se com você...

Ela sorriu. Antônio percebeu um brilho em seus olhos quando sua face se animou, e ela, batendo palmas de alegria, exclamou:

-Ela é como eu? Como Rosalba? Eu nunca vi ninguém como eu!

-Antônio balançou a cabeça, tristemente:

-Ela era como você.

-Mas... não é mais?

-Não, não é. Ela morreu. Não está mais neste mundo.

Rosalba pareceu pensar por um longo tempo, antes de perguntar:

- Ela morreu... como papai e mamãe. Mas... e a outra filha? Onde ela está? Ela é como eu?

Ele balançou a cabeça:

-Não. Ela é bem diferente de você, querida.
-E o que aconteceu com ela?
-Ela foi embora em um barco, e não voltou mais.

Rosalba arregalou os olhos. Percebeu de quem ele estava falando. Pareceu sem-graça. Baixou os olhos, e pensou que aquele homem era gentil. Não merecia estar sofrendo tanto. Pensou no barquinho que fizera, e deixara escondido entre as pedras na praia, longe do mar e das marés altas. Mas sabia que ainda não era hora de trazê-los de volta. Mesmo assim, tentou consolar Antônio, e sorriu-lhe novamente:

-Não chore, moço, ela está bem. Eles estão todos bem, e vão voltar. Acredite. Eu sei.

Antônio lembrou-se que Cecília também vivia dizendo a mesma coisa. Parecia que elas sabiam o que tinha acontecido com sua filha e seu genro. Gostaria de poder acreditar nelas, mas as esperanças se enfraqueciam dia após dia, quando  o barco de busca e o helicóptero que Genaro contratara voltavam sem notícias. Logo, ambos teriam que ir embora da ilha e retomar suas vidas sem os filhos. Afinal, a vida continuava sempre...

* * * *

Ao depararem com os visitantes do outro mundo, O jovem casal não conseguiu deixar de demonstrar pânico. A emoção tomou conta de Décio e Liana, e Carlos, intrigado, perguntava aos dois quem eram aquelas pessoas, de pé diante da janela.

Vitória aproximou-se deles, e Décio deu um passo para trás diante da imponência da figura da mãe. Não conseguia tirar os olhos dela. Tinha medo de que, se piscasse, ela desapareceria, pois se estava ali, certamente havia um bom motivo. Vitória olhou para Liana demoradamente, e a moça sentiu como se a sua falecida sogra a estivesse lendo por dentro:

-Meu filho já falou sobre mim, eu suponho.

Liana balbuciou:

-Claro... eu a reconheci pelas fotos que ele me mostrou. Mas como...
-Não me interrompa quando eu falo, garota. Você...

Vitória começou a caminhar em volta de Liana:

-Você é como eu: autoritária, exigente. Mas sabe conseguir o que quer com muito mais suavidade. Eu não; simplesmente esticava a mão e pegava o que queria.

Dirigindo-se ao filho:

-Parabéns! Você conseguiu uma cópia quase perfeita de sua mãe!

Décio engoliu em seco: pela primeira vez, olhou para a esposa com olhos críticos, e percebeu que até mesmo alguns traços físicos - a cor dos olhos e do cabelo, a postura altiva e o porte sempre empertigado de Liana - faziam lembrar sua mãe. De repente, o amor que estava em seu coração foi substituído por um grande vazio. Décio teve medo. Não conseguiu replicar a mãe. Liana olhava para ele, boquiaberta, compreendendo imediatamente a situação. Naquele instante, ela também percebeu que vira em Décio alguém que ela poderia manipular: não o amava verdadeiramente.

Diana aproximou-se da irmã:

-Liana, eu estou aqui para te ensinar que as pessoas... as pessoas são todas diferentes umas das outras, e que estas diferenças podem ser temporárias. Eu nasci em um corpo deficiente, que tinha uma mente deficiente, mas veja: agora que estou livre, eu voltei ao meu estado normal. As pessoas são colocadas juntas porque precisam ensinar e aprender umas com as outras. Você falhou em sua missão comigo, mas ainda há tempo de recuperar-se.

Liana tinha os olhos rasos d'água:

-Eu peço que você me desculpe, Diana. Mas eu estava cega... meu Deus, o quanto eu a feri! Eu deveria ter ajudado meus pais a tomar conta de você...

-Está tudo bem, Liana. Mas existe alguém que você ainda pode ajudar: Rosalba. Você deve ajudá-la a melhorar suas condições de vida, a estudar. Ela tem muito potencial, mas vive abandonada naquela ilha, sozinha...

Liana baixou os olhos molhados, concordando com a cabeça. Lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Enquanto tudo aquilo acontecia, Carlos, de um canto do cômodo, a tudo observava, atônito. Teria muitas histórias a contar quando voltassem... mas... quem acreditaria nelas?

Vitória chegou bem perto do filho, olhando-o nos olhos:

-Eu e você fomos colocados juntos para que eu o ensinasse a ser forte, mas acho que falhei em minha missão, pois na minha ansiedade em torná-lo forte, acabei me sobrepondo a você, e tornei-o frágil e amedrontado, meu filho. Critiquei-o demais, não o incentivei, não o ensinei a ser independente. Eu queria que você fosse como eu... Mas os pais às vezes falham.

-Mãe, a culpa foi minha...
-Não, e pare de se justificar sempre! Está na hora de você retomar seu caminho na vida, e de uma forma mais independente.

Ela olhou para Liana, e Décio compreendeu o que ela queria dizer: não precisava dela em sua vida. Não a amava. Apenas queria alguém que lhe dissesse o que fazer e como agir, pois não se sentia forte o suficiente para decidir.

Naquela noite, ninguém dormiu. Depois que elas se foram, Carlos, Décio e Liana (não mais um casal- apenas bons amigos) conversaram sobre tudo o que tinham experimentado naquela ilha.




domingo, 23 de março de 2014

A Ilha Sem barcos - Parte VIII




Na Ilha, Liana pensava no sonho que tivera com sua irmã há alguns dias. Lembrou-se de  Diana, e do quanto ela fora um obstáculo em sua vida. lembrou-se - não sem uma certa culpa- do alívio que sentira quando ela, após uma doença prolongada, finalmente morrera. Só então Liana pode ver-se livre de seu fantasma e dos embaraços que ela lhe causava, e ainda mais: ter para si a atenção dos pais. Pena que sua mãe morreu logo depois da irmã. 

Um sol pálido flutuava no céu, e ventava frio. Liana caminhava pela praia, e ao fazer as contas, descobriu que já estavam perdidos naquela ilha há quase vinte dias. Conseguiram sobreviver graças à presteza de Carlos (pensava em dar-lhe uma recompensa financeira assim que fossem salvos).

 E ali, naquele lugar ermo e deserto, teve a chance de ficar mais tempo perto do marido. Começou a perceber o quanto ele lhe era fiel, jamais questionando suas vontades e fazendo de tudo para que ela fosse sempre poupada dos trabalhos mais pesados, mesmo tendo que trabalhar mais que o dobro para ajudar Carlos nas tarefas de caçar, pescar, colher frutos, juntar lenha, cozinhar e limpar a casa. No começo, toda aquela atenção e dedicação deixaram-na muito confortável, mas com o tempo, Liana começou a sentir-se entediada. Conviver com Décio era o mesmo que conviver com sua própria sombra. Jamais discutiam, pois ele sempre cedia às suas vontades, sem nunca questioná-las. Pensou que se estavam naquela situação, a culpa tinha sido dele, pois concordara com ela em viajar mesmo com a ameaça de tempestade.

Estava perdida em seus questionamentos quando percebeu - e desta vez, não estava sonhando - que Diana caminhava logo atrás dela. Como no sonho, tentou sair correndo, mas a outra a seguiu de perto, até que finalmente, agarrou-a pelo ombro, obrigando-a a parar e olhar para ela. Liana estava apavorada! Mas quem não ficaria, ao estar cara a cara com a irmã morta?! Arfando, Liana desvencilhou-se da mão firme da irmã, e soltou um grito de pavor com toda a força de seus pulmões. Lá na casa, Décio e Carlos a ouviram, e correram na direção dela. Quando viram, ao longe,  a moça parada junto a ela, os dois estancaram.

Diana sorriu para a irmã. balbuciou com a mesma voz fraca que tivera:

-Diana perdoa Liana. Liana precisa contar a verdade ao Décio! Se Liana não conta, Diana vi contar.
-Não! Vá embora! Você não existe!

A outra pareceu triste, o sorriso morrendo aos poucos:

-Diana existe! Mas Liana sempre gostou de fingir que não. Eu sou sua irmã, e você é parte de mim. Não pode esconder Diana para sempre. Nós somos iguais, lembra? Papai dizia. Mamãe dizia.

Diana estendeu a mão e acariciou o rosto de Liana suavemente. Ela desmaiou.

Décio e Carlos despertaram-na com a água fria do mar jogada em seu rosto. Liana abriu os olhos, e viu os dois debruçados sobre ela. Olhou em volta, sentando-se de repente. Carlos perguntou-lhe:

-Quem era quela moça? Parecia-se com você... de onde ela veio? Simplesmente sumiu no ar! 
Décio olhava em volta, tentando encontrar pegadas ou qualquer sinal da outra. nervosa, Liana murmurou:

-Vocês a viram também? Então não estou louca!

Décio abraçou-a, mas ela desvencilhou-se dele. Surpreso, ele ficou olhando para ela, esperando qualquer dica sobre como deveria agir. Com a voz insegura, perguntou:

-Quem é ela, Liana? E como ela chegou aqui? Aonde ela está?

Liana suspirou fundo. 

-Vocês não acreditariam se eu contasse. Mas mesmo assim, eu vou tentar. Ela é... ela foi minha irmã gêmea, Diana.

Décio ficou boquiaberto. Carlos escutava a conversa, tentando entender melhor.

-Não sabia que você tinha uma irmã. Muito menos, uma gêmea. Por que nunca me contou?

Carlos cortou-o:

-Espere aí... você disse que ela foi sua irmã? Como assim?

-Ela... Diana tinha deficiência mental. Morreu há alguns anos.

Os dois se entreolharam. Carlos parecia incrédulo, e não tentou esconder sua incredulidade, sacudindo a cabeça e dando um leve sorriso sarcástico. Décio deu um passo na direção de Liana, e ela deixou-lhe segurar sua mão. Ele olhava para ela como quem olha para uma pequena e frágil flor que a qualquer momento pode ser levada pelo vento. Aquela condescendência pareceu irritá-la, pois ela virou o rosto, evitando encará-lo.

-Explique esta história melhor, Liana. 

-Eu nunca lhe contei pois tive medo que você não quisesse se casar comigo. Como meu ex-noivo. mas acho que agora isso não é tão importante; o que importa é descobrirmos quem está se fazendo passar por minha irmã, e porquê. Pois a minha irmã está morta.

-Então... foi por isso que você teve aquela reação intempestiva ao ver Rosalba! Agora eu finalmente compreendi...

A cabeça de Décio dava mil voltas. Acabara de descobrir um segredo importante sobre a vida da esposa, e ainda não tinha conseguido digerir aquela informação. Nem sequer pensava no que a esposa tinha acabado de dizer sobre alguém estar se passando pela sua irmã falecida.

Eles foram caminhando devagar pela areia, abraçados. Carlos seguia adiante deles. Pensava que estava farto daqueles dois riquinhos problemáticos e cheios de mania. Pensava também que no dia seguinte começaria a construir uma jangada que os tirasse dali. 

Mas ao chegarem à casa, tiveram uma chocante surpresa: de pé, junto à janela, esperavam por eles Vitória (mãe de Décio) e Diana.

* * * *

Na Ilha de Pérola, Cecília e Genaro almoçavam juntos. Nina não estava se sentindo muito bem, e ficara no quarto, tomando a sopa que Cecília lhe preparara. Antônio tinha saído para uma caminhada pela praia. Todos estavam preocupados com ele, pois conforme os dias passavam e não havia notícias, mais calado e arredio ele se tornava. Na noite anterior, porém, ele falara-lhes sobre a filha morta. Todos entenderam então a aversão que Liana sentira quando vira Rosalba.

Após o almoço, Cecília abriu uma garrafa de vinho tinto e eles foram sentar-se junto à lareira. Genaro finalmente rendera-se ao fato de que gostava muito da companhia de Cecília, e que ela o atraía como mulher. Ela, por sua vez, não tentava mais disfarçar a paixão que sentia por ele. Toda aquela espontaneidade culminou em uma tarde na cama, enquanto a chuva batia na vidraça. À noite, eles anunciaram à Nina e Antônio que estavam juntos.

* * * *

(continua...)



terça-feira, 18 de março de 2014

ILHA SEM BARCOS - PARTE VII





Quando Décio abriu os olhos, levou um susto, pois viu-se de volta em sua cama, em seu quarto de adolescente. Sentou-se na cama, o coração aos pulos, e olhou em volta: suas flâmulas de times de futebol na parede, o velho computador, os livros da escola sobre a escrivaninha e a colcha com motivos espaciais ao pé da cama. Um raio de sol entrava pela greta da cortina, e passarinhos cantavam lá fora. Décio esfregou os olhos: como podia ser? Só poderia estar sonhando! Pulou da cama e olhou-se no espelho, deparando com seu rosto aos dezessete anos de idade. Passou a mão pela barba ainda rala, reparando nos cheiros do perfume que usava naquela época ainda em sua pele.

Lembrou-se de que naquela época, Vitória, sua mãe, ainda vivia, e que seus pais já eram divorciados. Sentiu um estranho enjoo na boca do estômago, e seu coração acelerado fazia com que respirasse mais depressa que o normal; tudo aquilo era demais para ele. Se era um sonho, era real demais. Olhou no relógio: seis da manhã. Com certeza, sua mãe ainda dormia (se estivesse viva). Era hora de aprontar-se para ir à escola; seu amigo passaria de carro para apanhá-lo em trinta minutos. Mas não. Ele não iria a lugar algum, pois sabia que naquele momento, ele não tinha dezessete anos, e sim vinte e oito; era casado com uma linda jovem e ambos eram náufragos em uma maldita ilha deserta.

Lembrou-se que a melhor maneira para saber se alguém estava ou não sonhando, era um bom beliscão. Tentou, e sentiu que doeu de verdade. Não era um sonho. Talvez algum tipo de realidade alternativa?

Vestiu-se, escolhendo uma calça jeans (a sua favorita nos tempos de adolescente, velha, desbotada e bastante puída, que fazia com que sua mãe brigasse com ele sempre que a vestia) e uma camiseta branca simples - tinha uma dezena delas no armário. Calçou seus sapatênis marrons muito gastos, escovou os dentes e passou a mão pelos cabelos, ajeitando-os antes de descer as escadas.

Tudo era inusitado demais. Parou no sopé da escada, olhando para baixo, e viu, na névoa de poeira da manhã, entrecortada pelos raios de sol, sua antiga casa. De repente, lembrou-se de sua mãe. Resolveu ir até o quarto dela, pois se ele estava ali, vivendo aquele momento, ela também deveria estar, pois só veio a falecer cinco anos mais tarde. Encaminhou-se à porta do quarto, empurrando-a devagar. Achava que estaria pronto para o que veria, mas na verdade, não estava; afinal, não é todo dia que se deparar com a mãe morta há mais de seis anos, calmamente adormecida em sua cama. Décio deixou escapar um grito de horror ao vê-la.

Vitória sentou-se na cama, muito assutada:

-Mas... o que aconteceu, meu filho? Que gritaria é essa?

Décio não conseguia falar. Seus olhos apavorados fitavam a mãe morta - agora, viva - enquanto ela se levantava da cama e caminhava até ele.

-Mas... o que deu em você, menino? Responda! Perdeu a língua? E o que está fazendo em meu quarto a essa hora da manhã?

A voz dela era ríspida como sempre, e Décio lembrou-se do quanto ele fazia tudo para tentar agradá-la e corresponder às suas expectativas quanto a ele, todas sempre muito altas. Temia aborrecê-la, pois detestava ter que ouvir aquela voz alterada e magoada em seus ouvidos. Passara a infância e adolescência tentando achar uma maneira de agradar a mãe, sempre fazendo tudo o que ela mandava sem jamais questionar - sua única rebeldia, as calças jeans velhas, para as quais ela estava olhando naquele momento:

-E vá já tirar esse lixo! Não gastei uma fortuna com advogados para conseguir uma pensão decente de seu pai para vê-lo mal-vestido assim. Quando as tiver trocado, traga-as para mim. Vou jogar essas calças no lixo agora mesmo. E vá tomar seu café, pois senão ficará atrasado para a escola. 

Ela falava alto, a voz cortante e autoritária rasgando a manhã ao meio. Aproveite e calce sapatos decentes, pois os sapatos que alguém calça demonstram sua condição social e seu esmero e cuidado consigo mesmo. Já mandei você jogar fora esses sapatos! Calce os pretos de verniz, e por favor, ponha uma camisa decente. Você parece um mendigo!

Enquanto ia de volta para o quarto, Décio recordou-se da época da doença da mãe - que ao invés de enfraquecer sua vontade de ferro, só fez aumentar sua tirania sobre ele. Nos dois últimos meses, como ela se recusara a ir para um hospital, Décio passara a dormir no quarto dela, limpando-a, alimentando-a (ela não aceitava ser tocada por estranhos) e satisfazendo cada uma de suas vontades, enquanto ela descarregava toda a sua dor física e moral sobre ele. Ela dizia que ele tinha a obrigação de filho de cuidar muito bem dela, e quando ele sugeria que contratassem uma enfermeira (dinheiro não lhes faltava para aquilo) ela desandava a esbravejar e a ameaçar deserdá-lo. Ficava tão alterada, que Décio precisava chamar o médico, que sempre terminava a consulta administrando a ela um calmante forte (momentos de paz que Décio sempre ansiava) e dizendo a ele que tivesse paciência, pois ela não podia ser contrariada. 

Com remorsos, Décio recordou-se dos momentos em que desejou de verdade que ela morresse. E quando seu pedido finalmente foi atendido, viveu um período de culpa e remorsos longo demais. Seu pai precisou levá-lo a um psiquiatra, e durante anos, Décio fez análise e uso de medicamentos para aliviar sua culpa. Finalmente, seu pai vendeu a casa e convidou-o para morar com ele e sua nova jovem esposa - da qual viria a divorciar-se dois anos mais tarde.

Na faculdade, Décio conheceu Liana, e apaixonou-se imediatamente pela beldade de cabelos loiros e olhos verdes. Ela era doce, frágil e delicada. Às vezes ficava um pouco irritada quando ele a contrariava, mas bastava ceder aos seus desejos e ela se transformava novamente em uma gatinha manhosa e submissa. Que ele amava!

Envolto em suas memórias passadas e presentes, Décio foi trazido de volta à realidade daquele sonho quando Vitória gritou atrás dele:

-Está esperando o que? Ainda não fez o que eu mandei?

Despertou com o rosto suado na velha casa da ilha, os ecos da voz de Vitória ainda em seus ouvidos. Sentou-se no colchão enxugando o suor do rosto com as palmas das mãos. Sentiu alívio por estar ali, náufrago, em uma casa velha, longe de todos. Liana dormia docemente ao seu lado, e Carlos, de costas para ele, avivava o fogo da lareira com um galho.

* * * *

Liana caminhava pela praia deserta. Era um lindo dia ensolarado, e a areia branca parecia estar de caso com o azul do mar. Tudo era perfeito. Ela via algumas conchas peroladas no chão, que brilhavam lindamente, e ela as recolhia e levava-as ao ouvido. Depois, atirava-as de volta ao mar. De repente, ela avistou alguém ao longe; uma menina caminhava em sua direção. Seus passos eram desconexos, e ela, de vez em quando, abria os braços e rodopiava, rindo muito. Liana apertou os olhos para ver melhor, e levou o maior susto de sua vida quando reconheceu na estranha, a sua irmã gêmea, Diana, morta há seis anos.

Liana tentou fugir. Saiu correndo pela praia, e enquanto corria, vinham-lhe à mente lembranças de quando a irmã era viva. Sentiu novamente a vergonha que ela lhe causava; lembrou-se da festa de aniversário das duas, quando Diana, ao soprar as velas do bolo, teve um acesso de tosse e vomitou groselha sobre ele. Viu novamente as faces chocadas de seus amigos, e seus pais vindo em auxílio da irmã doente, levando-a para longe, secando-lhe as lágrimas e deixando Liana sozinha na sala de estar, sem saber o que fazer a respeito dos convidados e do bolo arruinado junto com sua festa.

Lembrou-se de Jonas, seu primeiro namorado. Liana era totalmente apaixonada por ele. Ambos estavam sempre juntos, e eram motivo de inveja de suas amigas, pois formavam o par mais lindo entre eles. Viu novamente o dia em que Jonas convidou-a para conhecer seus pais, e do encanto que sentiu ao ver-se diante deles - pessoas finas da alta sociedade. A mansão onde moravam parecia uma daquelas casas que Liana via nos filmes de Hollywood. E eles a adoraram imediatamente!

Liana decidiu não falar ainda sobre sua irmã doente; não queria estragar os bons momentos que viviam naquela época de sonhos e felicidades. Concordou em apresentar Jonas à sua família, contanto que tudo fosse feito em um restaurante, e sem a presença de Diana ou a menção de seu nome. Dizia que gostaria de ter mais tempo para contar sobre a irmã. Enquanto isso, apaixonava-se cada vez mais por Jonas. Tinha apenas quinze anos, mas sabia que tinha encontrado o grande amor de sua vida.

Certa vez, perto da Páscoa, Jonas apareceu de surpresa em sua casa, e ao ver Diana de costas, sentada em um banco no jardim, pensou tratar-se de Liana. Aproximou-se devagar, cobrindo seus olhos com as mãos. A menina assustou-se e começou a gritar e chorar, deixando-o atordoado, pois não entendia o que estava acontecendo. Logo, vieram Liana e seus pais, e então ela teve que contar-lhe a verdade. Desde então, Jonas tornou-se cada vez mais frio, até que finalmente, rompeu o namoro.

Liana foi até a casa dele para tentar conversar, mas foi recebida pela ex-sogra:

-Sinto muito, Liana, mas Jonas não deseja mais vê-la. Não queremos nosso filho envolvido com uma moça que tem histórico de deficiência mental na família. Sentimos muito, e esperamos que você entenda.

Enquanto todas aquelas lembranças voltavam, Liana corria. Mas de repente, Diana apareceu bem na frente dela, barrando-lhe o caminho. As duas ficaram se olhando, os rostos bem juntos. Liana podia sentir o hálito cheirando a remédios da irmã.

* * * *

Bem longe dali, na praia da ilha de Pérola, Rosalba brincava com um pequeno barquinho feito por ela, que era uma cópia quase exata do barco à vela de Carlos. Colocou-o sobre um pequeno monte de areia, entre alguns rochedos longe do mar aonde a maré raramente chegava. Olhou para ele, satisfeita:

-Daí você só sai quando eu quiser.
Virou-se de costas e foi caminhando para longe, sem olhar para trás.

(continua...)


segunda-feira, 17 de março de 2014

A Ilha Sem Barcos - Parte VI




A noite fora longa. Há dias procuravam pelo barco de Carlos,desaparecido com o jovem casal a bordo, mas apesar da dedicação e do esforço da guarda costeira e dos pescadores locais, não havia nem sinal deles. Sequer destroços do barco tinham ido dar na praia, como geralmente acontecia quando havia algum naufrágio. 

Quatro dias se foram. Cecília levava uma bandeja de chá para Nina e seus novos hóspede, Genaro, pai de Décio e Antônio, pai de Liana. Antônio aceitou a xícara que lhe foi estendida, enquanto Genaro recusou-a com um breve agradecimento e um gesto de cabeça. Sentia-se culpado por tê-los mandado àquela ilha. Ouvira a história contada por Nina e Cecília várias vezes, e tentava entender o porquê daquela atitude intempestiva de sua nora. Já percebera que Liana era uma moça mimada e volúvel, mas ao mesmo tempo, gostava dela pela sua doçura. Não conseguia imaginá-la maltratando pessoas. Já Antônio entendia muito bem a atitude da filha em relação a Rosalba, que já conhecera de vista, pois a vira rondando o hotel e Nina a apontara para ele. Quando olhou para ela, Antônio entendeu imediatamente a reação da filha. Entretanto, decidiu calar-se, pois sabia que Liana não gostava de tocar naquele assunto. Mas lembrou-se com carinho e saudade de Diana, a gêmea de Liana, que nascera com problemas mentais, e que morrera aos quinze anos de idade.

Estava perdido em seus pensamentos, quando a voz de Nina despertou-o de seus devaneios:

-Você está bem, Antônio? Precisa de alguma coisa?

Ele suspirou:

-Estou bem, obrigado. Apenas angustiado, muito angustiado.

Ele se levantou, e foi sentar-se na varanda, olhando o mar que jogava sua espuma cinzenta contra a areia. Onde estaria sua filha? Estaria viva? Lágrimas vieram-lhe aos olhos, mas ele conseguiu contê-las. De nada adiantaria chorar; só conseguiria afligir os demais.

Nina e Genaro observavam Antônio, enquanto Cecília recolhia as xícaras de chá e as levava de volta à cozinha. Nina de vez em quando olhava Genaro com o canto do olho, tentando perceber melhor seus sentimentos.  Genaro estava calmo, apesar de triste, e não demonstrava a mesma ansiedade de Antônio. Ambos eram viúvos, e não tinham outros filhos. Ela notara que Cecília corava toda vez que Genaro falava com ela. Em todos aqueles anos, nunca vira a amiga agir daquela forma, quase como uma adolescente nervosa quando Genaro estava por perto. Mas ele  tratava Cecília com cortesia e distância. Ela sabia que aquela não era a ocasião propícia para que sua amiga e seu hóspede começassem um romance, mas ela sentia que havia algumas fagulhas entre os dois, e que fossem outras as circunstâncias, certamente os dois se envolveriam. Nina era muito experiente em assuntos de amor - tivera cinco maridos - e sabia reconhecer uma mulher apaixonada, e Cecília mal conseguia disfarçar.

Sua amiga Cecília ainda era uma bela mulher, e ela e Genaro formariam um belo casal.

Nina pediu licença a Genaro, e foi até a cozinha falar com a amiga:

-Como você consegue, Cecília?

Distraída com as xícaras que enxugava e guardava, Cecília exclamou:

-Hum?...O que?
-Ficar sozinha todos esses anos.
-Ora... por que a pergunta agora, Nina?
-Curiosidade... jamais indaguei sobre sua vida particular, mas eu ás vezes penso que você tem algum segredo do passado...

Cecília sorriu:

-Eu?! Mas não tenho mesmo... minha vida sempre foi comum... quero dizer, eu sempre fui uma mulher rica e tive dinheiro para gastar à vontade na minha juventude. Mas não tenho nenhum segredo. talvez você esteja achando isso porque tenho andado um tanto ausente ultimamente. Mas é por causa dos últimos acontecimentos. 

-Não, não é. Aliás, você está muito tranquila quanto ao destino daqueles três. Acha que estão vivos?

Cecília guardou a última xícara, dizendo:

-Tenho certeza absoluta... não me pergunte como, mas sei que eles estão vivos, e estão bem. Gostaria de poder dar a Antônio e Genaro esta mesma certeza, isso os acalmaria. Mas como dizer-lhes?... "escutem, não se preocupem com seus filhos, eles estão bem. Eu sei porque tenho um pressentimento?" Eles com certeza achariam que estou zombando deles.

-Realmente... melhor não dizer nada mesmo. Mas acho que você poderia ajudá-los de outra forma, quero dizer... pelo menos, ajudar Genaro. 
-Mas como?
-Aproxime-se dele. Ele parece ser mais frio que Antônio, mas no fundo, acho que é só fachada. Aproxime-se, converse com ele. Tente deixá-lo mais tranquilo.

Cecília sorriu, olhando a amiga com o canto do olho, a mão na cintura:

-Ora, você hein? O que está sugerindo, Dona Nina?

-Eu? Nada... mas confesse que você tem uma quedinha por ele...

Cecília corou, baixando os olhos e estendendo a mão sobre a mesa, para segurar as mãos de Nina:

-Ele é um homem atraente... sim, confesso que faz meu tipo. E que desde que cheguei aqui, ele foi o único homem que realmente me despertou esse tipo de ... sentimento.

Nina olhou-a firme nos olhos:

-Invista! Dê a si mesma mais uma chance!
-Não é o momento. Ele só consegue pensar no filho e na nora.
-Fique por perto. Estenda-lhe a mão. Não fuja. Agora vá lá.

Cecília olhou bem nos olhos de Nina, que estava muito séria. Depois, levantou-se e encaminhou-se para o salão, onde Genaro ainda estava sentado pensativo, o queixo na mão. Ela respirou fundo, ajeitando os cabelos com a mão, e foi sentar-se em frente a ele. Genaro saiu de seu transe apático, olhando para ela e dando um leve sorriso que derreteu-lhe o coração. 

-Gostaria de poder ajudá-los. Não sei o que dizer. Gostaria de conversar?

Genaro olhou-a por alguns instantes antes de responder:

-Essa angústia... nem mesmo os homens que contratei conseguem algum sinal de vida. Você, que conhece bem essas ilhas... acha que eles estão vivos ainda?

Cecília pensou antes de responder, tentando escolher bem as palavras:

-Bem... eu não sei como dizer-lhe isso, mas... 

Ela olhou para ele, procurando coragem para concluir seus pensamentos.

-Continue...
-Eu sei que eles estão bem. Estão vivos, e bem.

Alguma coisa no olhar dela acendeu nele uma chama forte de esperança, e Genaro sentiu seu coração aquecer-se de repente. Ao mesmo tempo, ao olhá-la melhor, percebeu o quanto era bonita. Encantou-se por seu corpo ainda esguio, e reparou nos lindos olhos azuis de Cecília, encantando-se com seu sorriso.

-Não sei o motivo, Cecília, mas eu acredito em você. 

Ela sorriu. Ficaram se olhando durante um tempo, e por alguns segundos, Genaro esqueceu-se de sua dor. Naquele momento, Antônio entrou, esfregando as mãos:

-Está gelado lá fora!

Cecília levantou-se, dizendo:

-Vamos acender a lareira.

Genaro seguiu-a com o olhar.

* * * * 

Na ilha, Carlos observava o casal adormecido sobre o colchão. Chovia lá fora, e ele tinha acendido um fogo na velha lareira da casa. Tinham limpado um pouco o lugar, tornando-o pelo menos habitável. Ele pescara alguns peixes e caranguejos, e Décio colhera cocos, bananas e amoras. Percebia que Décio fazia de tudo para que Liana não precisasse trabalhar, protegendo-a como se ela fosse uma criança, e Liana deixava-se ser tratada assim, sem fazer a menor questão de colaborar com nada. Carlos pensava no quanto Décio era manipulado pela jovem e linda esposa, e que aquilo não poderia acabar bem... 

Acreditava que em breve alguém os encontraria naquela ilha, e não estava preocupado. Mas Liana estava sempre choramingando, assustada e mau-humorada. E agora dera para ter pesadelos e acordar chorando no meio da noite, despertando todos. Falava de visões com uma menina. Décio tentava acalmá-la, até que ela adormecia novamente nos braços dele.

As noites envolviam a casa, e outros personagens circulavam por ali, além deles. Personagens que em breve conheceriam pessoalmente.

(continua...)


quarta-feira, 12 de março de 2014

A ILHA SEM BARCOS - PARTE V




A Ilha Sem barcos - Parte V


Quando Carlos abriu os olhos e olhou em volta, a tempestade havia passado, e um dia frio e nublado descansava seu peso sobre seus ombros. Sentiu no rosto e no corpo o desconforto da areia molhada, e o primeiro pensamento que lhe veio foi: "naufragamos!"  Ergueu-se devagar, a fim de ter certeza de que não estava ferido, e foi a procura do jovem casal. Achou-os logo adiante, e ambos também tinham acabado de despertar e estavam um pouco confusos. A moça tinha os lábios roxos, e tremia de frio e de medo, os olhos arregalados, olhando em volta.

-Aonde estamos, que ilha é esta?

Carlos olhou em volta novamente, tentando achar um ponto de referência, mas não encontrou nenhum.

-Não sei, senhora... em todos esses anos eu conheço o arquipélago como a palma da minha mão, e nunca pisei aqui.

Décio ergue-se, passando a mão pelo corpo para sacudir a areia molhada.

-Precisamos nos aquecer. Precisamos encontrar alguma coisa para comer. Onde está o barco?

Carlos suspirou, olhando a praia:

-Não o vi. Acho que o perdemos, senhor.

De repente, Liana ergue-se, apontando para Carlos e gritando:

-A culpa é toda sua! Estamos nesta situação por sua causa! Como pode concordar em nos trazer sabendo que haveria uma tempestade?
-Mas eu pensei que ela só cairia à noite e que poderíamos navegar com segurança. 
-Bem, já que você gosta de pensar, então pense em uma solução para nos tirar daqui o mais rápido possível!

Décio tentou abraçá-la para que ela se acalmasse, mas ela o empurrou:

-Pensando bem, seu pai é o culpado de tudo! Foi ele quem nos mandou para esse lugar infernal! Onde já se viu, presentear-nos com uma viagem de lua-de-mel a um lugar frio, onde só chove?! E onde vive uma louca! E agora o que faremos para sair daqui? Estou com fome e frio!

Décio e Carlos se entreolharam, enquanto Liana se afastava, caminhando rápido pela orla. Eles a seguiram a alguns metros de distância.

-Senhor, precisamos ficar calmos e permanecer juntos. Não conheço esta ilha. Não sei que perigos pode haver por aqui. Se eu fosse o senhor, diria a moça para ficar calma.
-Liana está nervosa, é só isso, e acho natural. Logo ela se acalma e pede desculpas, não se preocupe. Ela não irá longe antes de cair em si.

Minutos depois, após caminharem pela orla cercados por uma paisagem desolada de mar e areia que não mudava, Carlos achou melhor adentrar a ilha e ver o que encontrava. Pediu que Liana e Décio esperassem por sua volta. 

Encontrou alguns coqueiros carregados, que lhes seriam muito úteis. Também passou por algumas moitas de amoreiras crivadas de frutos, e percebeu que havia pequenos roedores que poderiam servir-lhes de comida. Apalpou o bolso, e aliviado, constatou que seu isqueiro ainda estava lá, junto com o maço de cigarros. Embora os cigarros estivessem arruinados (jogou o maço fora com pesar) o isqueiro ainda funcionava, e seria muito útil. Sua faca também se encontrava no bolso traseiro da calça.

Caminhou por dez minutos, e chegou às ruínas de uma velha mansão. Achou-a estranhamente habitável: apesar das paredes descascadas, as janelas e portas estavam em bom estado, e o telhado ainda estava no lugar. Percorreu a casa com os olhos, e percebeu que tinha sido bonita um dia, e que seu estilo antigo era parecido com algumas casas de Pérola. Ouvira alguém na ilha dizer que eram casas Vitorianas. Bem, aquela casa também deveria ser Vitoriana. Aproximou-se, e testou a porta; estava trancada.

Com a faca, tentou abrir a fechadura, mas não conseguiu; teria que arrombar. Tomou distância, e quando se preparava para chutar a porta, esta se abriu vagarosamente, como num filme de terror. Carlos sentiu arrepios; mas decidiu entrar, pois aquela casa servir-lhes-ia de abrigo. A escuridão lá dentro fez com que ele arregalasse os olhos para ver melhor. Reparou no piso de madeira nu e sujo, mas em bom estado. Havia uma lareira bem grande na parede central, e uma poltrona velha e gasta em um dos cantos. As janelas não tinham cortinas. As paredes tinham sido brancas, mas agora estavam mofadas e enegrecidas.

Pisou devagar, testando o madeiramento do chão, que rangeu, mas continuou firme sob seus pés. Seguiu por um corredor que levou-o a uma grande cozinha muito suja, o piso de azulejos quadriculados em creme e vermelho. Ainda havia algumas panelas penduradas sobre a pia quebrada. No meio, uma mesa de madeira cercada de cadeiras muito velhas. 

Voltou pelo mesmo caminho, e testando os degraus com cuidado, chegou ao segundo andar da casa, onde estava muito escuro. Havia um corredor cheio de portas fechadas que ele abriu e viu que tratavam-se de quartos vazios, mas havia uma cama com colchão em um dos quartos. Também havia um banheiro no final do corredor, muito sujo, cuja janela estava aberta, e cipós entravam por ela, grudando-se às paredes. 

Novamente do lado de fora, circundou a casa e viu que havia um encanamento que entrava pelas paredes. Seguiu-o e foi parar em uma mina d'água. Ora, a casa tinha água encanada. Será que o sistema ainda funcionaria? Ficou curioso; voltou para dentro, e abriu a torneira da cozinha, que após chiar e derramar uma grande quantidade de lama e folhas secas, deixou sair água limpa. Carlos achou tudo aquilo incrível; quem teria morado ali?

Viu que uma porta na cozinha levava a três pequenos quarto, provavelmente, feito para os antigos empregados da casa. Em um deles, achou um baú; abriu-o, e viu que continha algumas roupas muito antigas, mas que estavam em bom estado. Elas seriam úteis também. Separou para si uma camiseta bege, uma blusa de lã marrom e um par de calças de lã cinza. lavou-se na cozinha e vestiu-se com elas, colocando suas roupas molhadas para secar após enxaguá-las na pia.

Voltou à praia para buscar o jovem casal. No caminho, apanhou algumas amoras que colocou em uma das panelas  que achara na casa.

Décio e Liana estavam sentados sobre a areia, abraçados. pareceu-lhe que ela chorava. Os dois ergueram-se ao vê-lo se aproximar. Décio adiantou-se:

-E então? O que é isso? Que roupas são essas?

-Achei em uma casa antiga. Tem umas coisas lá que nos servirão, e ela será nosso abrigo esta noite.

Liana sorriu:

-Então a ilha é habitada?
-Acredito que não... a casa é velha, e fica numa clareira na floresta. Não há mais nada em volta. Nem sei como ela está de pé! Não imagino como alguém pode tê-la construído em um lugar como esse.

O sorriso de Liana desmanchou-se, enquanto ela aceitava as amoras que Carlos oferecia a eles. Décio perguntou:

-Mas você acha que é seguro lá dentro?

-Bem, eu acho que é melhor do que aqui fora. Ainda mais porque parece que vem aí outra chuvarada. Veja!

Apontou para o céu enegrecido, e os três caminharam juntos para a casa.

As amoras apenas serviram para despertar-lhes o apetite. Chegando à casa, eles quebraram os cocos e tomaram a água, comendo-os depois. Também beberam muita água da mina. mas continuavam com fome. Liana reclamou:

-Mas... este lugar está imundo! Como poderemos ficar aqui? 

Carlos pensou no quanto a moça parecia mimada e egoísta. Décio consolou-a novamente:

-Não se preocupe, amor. Amanhã daremos um jeito de limpar um pouco.
-Mas... pode ter aranhas! Eu morro de medo de aranhas!

Carlos interrompeu-lhes:

-Acho melhor irmos lá fora catar lenha antes que a chuva comece.

-Mas eu vou ficar aqui sozinha?!

Carlos riu sarcasticamente, respondendo:

-Não... na verdade, eu acho melhor a senhora vir junto para ajudar-nos a carregar a lenha, ou não teremos o suficiente para a noite toda. E sabe, quando o fogo apaga, os animais peçonhentos se achegam...

Liana olhou para Décio, procurando por apoio:

-Mas eu vou ter que carregar lenha? Isso é um absurdo!
Décio estava pronto para intervir a favor dela, mas foi interrompido por Carlos:

-Acho que vocês dois ainda não se deram conta do que está acontecendo aqui nessa ilha: nós somos náufragos, e não estamos em um hotel de luxo. Cada um vai ter que fazer a sua parte se quiser sobreviver!

Assim, os três saíram em silêncio e recolheram a maior quantidade de lenha que puderam carregar em várias viagens, até que finalmente, a tempestade caiu.

(continua...)





segunda-feira, 10 de março de 2014

A Ilha Sem Barcos - Parte IV





E "eles" mandaram o vento, como Rosalba havia pedido. 

O mar enfureceu-se, e a pequena embarcação singrava as ondas com violência, enquanto Liana, apavorada, arrependia-se de sua escolha. Décio tentava acalmá-la, mas ele mesmo estava quase perdendo a cabeça. Olhou para a costa já muito distante, e viu que de nada adiantaria voltarem. Perguntou a Carlos, erguendo a voz acima do vento e do barulho das ondas, se ainda faltava muito para chegarem à Fiorde. Carlos olhou-o e respondeu que ainda tinham trinta minutos ou mais pela frente, dependendo de se as águas acalmariam ou não. Ele parecia sereno, acostumado que estava aos ventos e humores do mar. Sabia que uma tempestade se aproximava, mas preferiu não dizer nada aos seus passageiros, pois não queria causar-lhes pânico. Achou que chegariam à ilha bem antes da tempestade, e poderia passar a noite por lá, retornando na manhã seguinte à Pérola.

Mas seus cálculos de velho lobo do mar mostraram-se totalmente equivocados quando, de repente, um vento mais forte literalmente ergueu o barco sobre as ondas, e ele caiu novamente sobre águas duras como pedra. Décio e Liana usavam coletes salva-vidas, e quando ambos foram erguidos e arremessados de volta ao fundo do barco com toda força e ela gritou, ele lembrou-a de que mesmo se caíssem, estariam seguros - embora ele mesmo não acreditasse no que dizia. O rosto de Carlos mostrava toda a preocupação que sentia; já não conseguia disfarçar sua apreensão.  Nunca vira uma tempestade chegar tão de repente. Tentava controlar o barco, mas a tarefa tornava-se cada vez mais difícil. Apesar de experiente, Carlos não estava preparado para aquela tempestade infernal que viera bem  mais cedo e bem mais forte do que esperava.

Os dedos de Décio e Liana estavam brancos devidos à força com que seguravam-se na beirada do pequeno barco. Uma das malas caiu no mar, e Liana viu suas melhores roupas navegarem para longe dela para sempre. Décio, de olhos arregalados, tentava ver atrás de si o que Carlos estava fazendo a fim de controlar o barco, mas não atrevia-se a largar a beirada na qual se segurava. Rajadas violentas de água atingia-lhes em cheio, e ambos estavam encharcados e quase congelando de frio.

* * *


Enquanto isso, no Hotel Miramar, Nina olhava pela janela a chuva torrencial que caía, e sabia que as preocupações e preces de Cecília não eram exageradas. 

* * *


Em sua casinha, Rosalba escutava a tempestade que caía lá fora, e tendo enchido uma bacia d'água que pusera no meio da sala, colocou dentro dela um pequeno barquinho de madeira que ela mesma confeccionara, e com o qual brincava. Agitava as águas com uma das mãos, e com a boca, imitava o ruído do vento. De vez em quando, ela ria alto, um riso de puro sarcasmo. Seus olhos injetados mal piscavam; ela parecia estar em transe sob a luz fraca das velas acesas. O vento entrava pelas gretas, e ela o convidava para brincar com ela.


* * *

Cecília pensava na precipitação e infantilidade de Liana, querendo, à todo custo, deixar a ilha assim tão de repente por causa de um incidente com uma moça que não tinha controle sobre o que fazia ou pensava. Mais ainda, lamentava a decisão de Décio ao concordar com a esposa, cedendo aos seus caprichos e mimando-a como se ela fosse uma criança ranheta. Achava que ele deveria tê-la confrontado; afinal, iriam embora na manhã seguinte. Não era necessário que saíssem tão de repente. 

Mas mesmo tendo estes pensamentos, ela não conseguia deixar de temer por eles, lamentando o perigo que corriam e tentando imaginar o quanto Liana, que ela percebera ser uma jovem mimada, imatura e voluntariosa, poderia estar apavorada naquele mesmo instante. Só restava-lhes rezar e confiar na experiência de Carlos - apesar de achar que ele fosse um pescador um tanto atrevido que vivia arriscando-se em alto mar sem a menor necessidade. Cecília tentava não pensar em sua última visão. Pensando bem, o que ela havia visto? Apenas dois rostos apavorados, além de ouvir  a voz de Ian gritando. E nem era Ian que estava pilotando o barco, e sim, Carlos.

* * *

Rosalba anda brincava com seu barquinho. Com as mãos molhadas, afastou do rosto uma mecha de seu cabelo desgrenhado. Murmurou os seguintes versos :

"Quinze ilhas no arquipélago
Todas elas habitadas
Mas há a décima sexta,
Onde não existe nada...

"Uma moça bem malvada,
E seu príncipe encantado
Navegaram para o mar,
E lá ficaram encalhados...

"Na décima-sexta ilha
Há muitos séculos perdida
Ninguém pisa há tanto tempo,
Que ela já foi esquecida...

"Nem no mapa ela se encontra,
De tão assombrada que é...
Para lá levam as ondas
Tudo aquilo que não é...

E de repente, com um gesto brusco das mãos, Rosalba agitou a água da bacia com toda força, afundando o barco. Minutos depois, ela enxugou as mãos e deitou-se em sua cama, cobrindo-se com suas cobertas sujas e velhas.





quinta-feira, 6 de março de 2014

A ILHA SEM BARCOS - PARTE III




Na manhã seguinte, parecia que um milagre ocorrera durante a noite: o dia amanhecera claro e ensolarado, um convite para uma boa caminha da na praia - já que a temperatura subira alguns graus e o vento amainara. Após despedirem-se do jovem casal que deixava o hotel, Liana e Décio foram dar uma volta pela praia. Ambos estavam descalços, ele, com as pernas da calça dobradas até os joelhos, e ela, de saias de comprimento médio, e aquecida por um xale azul-claro. Caminhavam e apostavam pequenas corridas, parando de vez em quando para olhar o mar, abraçados. 

Rosalba os observava sem ser vista. Nascida na ilha, jamais saíra dali, nem mesmo para visitar outras ilhas do arquipélago. Seus pais, já falecidos, tiveram-na já tarde na vida, o que fez com que ela nascesse com um certo grau de retardamento mental, mas que não a impedira de aprender o suficiente para sobreviver; ela ajudava os pescadores a costurar suas redes e fazia bonecos de madeira que vendia aos turistas. Também ajudava as donas de casa locais em pequenos trabalhos de faxina, que eram-lhe concedidos por pura caridade, já que Rosalba não trabalhava com muito afinco. Era uma jovem calada e solitária. Às vezes, falava sozinha. Dizia conversar com "eles." Vivia em uma pequena cabana sem eletricidade  que herdara dos pais, próxima à praia, e ninguém jamais conseguira convencê-la a ir para outro lugar. Ela mantinha as coisas funcionando por ali o melhor que conseguia; catava lenha para cozinhar sua própria comida e fabricava as vassouras que usava para manter o piso de madeira mais ou menos limpo. 

Ela observava o jovem casal que divertia-se na praia, e seus olhos percorriam as roupas e o cabelo de Liana, e ela sorria quando a outra sorria. Escondida atrás da pedra, Rosalba brincava de fingir que era Liana, e que o jovem moço bonito a abraçava e beijava. Via a si mesma vestida com as roupas da outra, e quase podia sentir a barra das saias de Liana roçando seus tornozelos. E ela ria, ria... de repente, correu para a praia e passou a seguir o casal. Eles logo deram-se conta da presença dela, e também de sua condição mental. Décio, em um gesto protetor, aproximou-se da esposa e passou um braço em volta dela ao ver que Rosalba se aproximava. Liana teve um leve estremecimento de medo, mas tentou sorrir e ser sociável. Ao mesmo tempo, olhou a distância que já haviam caminhado, tentando calcular se conseguiria correr de volta ao hotel caso fosse necessário. Não sabia como lidar com pessoas como Rosalba, e não sabia se ela era agressiva. Olhou o rosto quase bonito da jovem, mas pálido e sujo, entre as mechas de cabelos desgrenhados, as roupas esfarrapadas. Teve mais medo.

Rosalba chegou mais perto, parando diante do casal, olhando-os dos pés às cabeças. Sorria para eles. Estendeu a mão e entregou à Liana uma concha que tinha escondida na palma da mão. Liana estendeu a mão e a segurou, agradecendo ao mesmo tempo que engolia em seco. A outra levantou o braço e tentou fazer-lhe uma leve carícia no rosto, o que fez com que Liana, sem querer, desse um passo para trás a fim de esquivar-se. Na mesma hora, o sorriso no rosto de Rosalba desapareceu, sendo substituído por um olhar magoado e furioso. Ela soltou um grito de dor. Décio tentou proteger a esposa, mas não foi rápido o suficiente para evitar que Rosalba a segurasse pelos cabelos, puxando-os com toda força, enquanto Liana caía de joelhos, tentando soltar-se.

Os próximos minutos foram confusos: Décio segurava nas mãos de Rosalba, tentando acalmar seus gritos e soltar Liana, que chorava de medo e de dor. Mas os dedos furiosos da moça fecharam-se firmemente sobre as mechas do cabelo de  sua esposa. Felizmente, Pepe, que caminhava por ali, viu a cena e já corria em seu auxílio. Aproximou-se e, devagar, conseguiu convencer Rosalba a largar Liana, dando tapinhas consoladores em seu ombro, enquanto a puxava delicadamente para longe dizendo palavras de conforto. Lágrimas sujas escorriam no rosto dela. Depois, mandou que ela fosse para casa:

-Vá para casa agora, Rosalba... assim, isso mesmo. Depois eu digo à Flora para levar um pedaço de bolo para você.

Nos braços de Décio, Liana tentava arrumar o cabelo, ainda sentindo no couro cabeludo a dor da mecha arrancada que ficara nas mãos de Rosalba.

-Quem é essa louca, Pepe?

-Calma, senhor Décio... eu não sei o que aconteceu, ela nunca agiu assim antes. Seu nome é Rosalba, ela mora em uma cabana aqui perto. Tem problemas mentais, coitadinha... nunca agrediu ninguém antes.

Liana, ainda chorando, retrucou:

-Ela deveria ser trancada em uma casa de saúde! É perigosa! Onde já se viu, sair por aí atacando as pessoas?

Décio pediu-lhe que se acalmasse:

-Calma, querida, a moça tem problemas...

Assim, despediram-se de Pepe, agradecendo-lhe pela ajuda, e voltaram ao hotel. Liana estava visivelmente abalada e mal-humorada, e Décio tentava acalmá-la. Sabia que as variações de humor de Liana podiam durar um longo tempo, e não desejava desperdiçar a viagem. Ao chegarem na varanda do hotel, Nina os interceptou, preocupada:

-O que aconteceu?

Uma Liana zangada respondeu-lhe, a voz alterada e chorosa:

-Fui atacada por uma louca na praia. De repente, ela surgiu do nada e tentou arrancar-me os cabelos!

-Rosalba?!

Décio concordou com a cabeça, ainda tentando acalmar a esposa.

-Mas ela nunca fica agressiva! É sempre tão calada e amistosa! Rosalba ama as pessoas...

-Posso ver que sim. Essa maluca deveria ser trancafiada em uma cela acolchoada, isso sim! Décio, vamos arrumar as malas, pois eu não fico nessa ilha nem mais um dia!

-Como assim, Liana?! Acalme-se! Não vamos estragar nossa lua-de-mel por causa de um incidente...
-Incidente?! Ora... eu fui agredida, e deveria ir à polícia!

Nina observava a cena, sem saber o que fazer. Percebeu que tivera uma impressão errada a respeito de Liana, que demonstrava ser mais uma ricaça mimada que se achava melhor que todos. Sentiu pena de Décio.

O céu escurecia, como se estivesse submetido ao mau-humor de Liana, e o vento voltou a soprar, estragando a manhã ensolarada. 

-Escute, Liana, não há como sairmos da ilha hoje. Ian foi levar o casal ao continente, e só voltará amanhã, para levar-nos à Fiorde, nossa próxima ilha. Acalme-se. De qualquer maneira, nós iríamos embora amanhã. A tal moça não virá até aqui. Você está segura.

Nina interferiu:

-Na verdade, há Carlos, um pescador que tem um barco à vela que poderia levá-los a Fiorde...

Décio fez sinal para que ela silenciasse, sem que Liana visse.

Naquele momento, Cecília aproximou-se, atraída pelos gritos de Liana, e já interada sobre o que estava acontecendo. Trazia uma xícara de chá de camomila, que entregou à Liana:

-Sente-se, meu bem... eu sinto muito... tome este chá, irá acalmá-la. Rosalba é apenas uma pobre coitada que vive sozinha, e tem tantos problemas... eu sinto muito pelo que aconteceu, jamais pensaríamos que ela um dia agiria desta forma.

De alguma maneira, Cecília teve um efeito positivo sobre Liana, que tomou o chá e acalmou-se. Finalmente, concordou em esperar a chegada de Ian para continuar a viagem como programada.

O incidente passou, e quando parecia que o problema havia sido resolvido e estavam todos sentados à mesa para o café da manhã, de repente Pepe adentra o hotel, trazendo Rosalba pela mão.:

-Ela queria pedir desculpas... peça desculpas, Rosalba.

No mesmo instante, Liana ergueu-se da mesa, gritando:

-Leve essa louca para longe de mim!

Aquilo fez com que Rosalba começasse a chorar e ficasse furiosa novamente. Soltou a mão de Pepe, e pegando uma xícara de café que estava sobre a mesa, atirou-a sobre Liana, errando por centímetros. Todos ficaram atônitos, mas Cecília correu para Rosalba e carregou-a para a cozinha, de onde seus gritos podiam ser ouvidos.  Novos pedidos de desculpas. Nova crise de Liana, que pediu a Pepe que chamasse o pescador Carlos com o barco à vela para levá-los embora. Décio percebeu que seria inútil tentar fazê-la mudar de ideia.

Apesar do vento forte, embarcaram naquela mesma manhã para Fiorde.

Da varanda do hotel, Cecília sentia uma angústia crescente ao ver o casal partir daquela maneira. Rosalba brincava no chão, conversando com algumas conchas que Nina providenciara para acalmá-la. Ninguém ouvia que ela murmurava baixinho:  "Sim, manda o vento, manda o vento..."


(continua...)





terça-feira, 4 de março de 2014

A Ilha Sem Barcos - parte II





A Ilha Sem barcos - Parte II


O almoço transcorreu com muita tranquilidade. Cecília sentou-se à mesa a convite dos seus novos hóspedes, juntamente com Nina e o casal que partiria na manhã seguinte, Mara e Luiz. Formaram um grupo animado, e quando o almoço terminou, passava das três da tarde. Lá fora estava escuro, e o vento passava cantando pelas gretas das vidraças. 

Nina olhava Cecília, como quem tenta ler em seus olhos e gestos o que a deixara tonta enquanto preparava o almoço, já que ela recusara-se a comentar. Teria sido mais uma de suas visões? Nina sabia que as visões de Cecília quase sempre concretizavam-se, embora elas se tornassem mais raras a cada dia, conforme o tempo avançava. Também lembrava-se de quando chegara ao hotel Miramar, há nove anos, e pela primeira vez, tivera a chance de constatar o quanto Cecília era sensitiva: naquela época, houve um naufrágio na costa no qual vários pescadores pereceram. Cecília tivera uma visão sobre ele, e embora houvesse tentado avisar aos pescadores, eles apenas riram de sua angústia e partiram para o mar, deixando Cecília de pé na praia, enrolada em seu xale negro, o olhar ansioso para as ondas, a mão apertando a própria garganta.

 A notícia chegou à noite. Homens com tochas andavam pela praia, entre destroços e corpos. Cecília, amparada por Nina, entre olhares preocupados e espantados de hóspedes e moradores da ilha, era consolada por Nina na cozinha do hotel com xícaras de chá quente e calmantes.

Depois daquilo, houvera outras ocasiões nas quais Cecília tivera suas visões; o mais angustiante, é que as pessoas não acreditavam nela, e o povo da vila começou a tecer comentários  a respeito dela alegando que era uma bruxa, o que fez com que se calasse sobre suas visões. Quando as tinha, tentava interferir nos acontecimentos ruins sem falar delas, mas raramente conseguia mudar o rumo dos acontecimentos.

Liana deixou escapar um leve bocejo enquanto tomavam café no salão. A lareira crepitava docemente, e apesar da conversa animada, o jovem casal passara muito tempo em viagem para chegar até Pérola. estavam visivelmente cansados, e às seis e trinta da tarde despediram-se e foram para o quarto. Mara e Luiz, o casal que partiria na manhã seguinte, também recolheu-se, pois Ian viria buscá-los na manhã seguinte bem cedo para levá-los ao continente. 

Na cama, Liana e Décio conversavam sobre o dia. 

-O que achou de Nina, Décio?
-Hum... não sei. Parece-me simpática. 
-E quanto a Cecília?
-Gosto dela. Mas ela tem um certo ar de mistério.
-Concordo.

Liana suspirou:

-Deve ser solitário, viver aqui. Quero dizer, para Nina.
-Lembre-se que o hotel ferve em época de temporada. Além disso, Nina já tem bastante idade, e os mais velhos preferem os lugares calmos e silenciosos, onde podem entregar-se às suas lembranças.

-Nossa, você está filosófico!

Ele riu, enquanto ela beijava-lhe o rosto.

-Bem, é que me parece óbvio que ela é uma velha milionária - afinal, a diária do hotel não é nada 'baratinha' - que não deve ter família, ou se tem, não se dá bem com eles. Com certeza, veio para a ilha a fim de passar seus últimos anos em paz.
-E com o que paga aqui, com certeza não deixará muita herança para ninguém... mas olhe como estamos maldosos! Discutindo sobre a vida de pessoas que nem conhecemos direito.

Eles se abraçaram.

-O que faremos amanhã, Décio? Se o tempo não melhorar e não pudermos ir à praia?
-Bem... eu tenho uma excelente sugestão: faremos o que viemos aqui para fazer.
-O dia todo?
-O dia todo!

Eles riram. Exaustos como estavam, logo adormeceram nos braços um do outro.

A noite caiu sobre o hotel silencioso. No corredor, apenas o velho carrilhão marcava as horas, entrecortando o ruído distante do mar e do tamborilar da chuva no telhado. Sombras projetavam-se nas paredes do hotel, quem sabe, espectros de tempos antigos. Em sua cama, Cecília revirava-se sem conseguir conciliar o sono. Tivera uma de suas visões, e sempre ficava muito angustiada naquelas ocasiões, principalmente quando a visão não estava clara. Ela só conseguia lembrar-se que era alguma coisa sobre os novos hóspedes. Ouvira o barulho do vento, e vira seus rostos flutuando no ar. A voz de Ian. Um grito. Ela virou-se novamente na cama. Precisava decidir o que fazer.
Não podia dizer-lhes simplesmente: "Olhem, sou uma mulher solitária que tem visões esquisitas, e vi algo sobre vocês que não sei o que significa." Teria que pensar. Quem sabe, quando a ocasião propícia se apresentasse, ela compreenderia melhor o que tinha visto?

Levantou-se da cama, e foi preparar uma xícara de chá de camomila. Ao chegar na cozinha, deparou com Nina sentada à mesa, e duas xícaras de chá quente. Ela sorriu:

-Você sempre se adianta. Como sabia que eu viria? Afinal de contas, sou eu quem tem as visões por aqui.
-Eu a conheço, Ceci. Sabia que precisava conversar. O que você sentiu?
-Não sei bem...

Cecília sentou-se, mexendo o chá com a colher, concentrada no movimento em espiral.

-Eu vi o rosto dos dois pairando no ar, em meio a muito vento. Uma grande ventania.
-Algum acidente? Mortes?...

Ela sentiu um calafrio, mas disse:

-Um acidente, talvez. Mas não haverá mortes. Posso afirmar com certeza.

Nina sorveu um gole do chá, aliviada.
-E o que você vai fazer a respeito?
-Ainda não sei...
-Ceci... se me permite uma opinião... acho que o destino de cada um é algo no qual não se deve interferir. A vida é o que é, e cada um passa pelas experiências que precisa passar.
-Mas você não acha que essas visões, esse dom que eu não sei de onde veio e que começou quando coloquei os pés nessa ilha, existem por algum motivo? Quero dizer... se eu as tenho, se elas me foram dadas, talvez por Deus, não seria para tentar prevenir acontecimentos ruins?
-Quem sabe?... Se você realmente crê que as suas visões lhe foram dadas, por que acredita que esse alguém que as deu a você não tenha ele mesmo o poder de interferir em seus próprios assuntos?
-Ora, eu sei que você é agnóstica, Nina.

Nina sorriu-lhe, estendendo a mão sobre a mesa para segurar a mão da amiga:

-Sim, é verdade. Não tenho uma religião, mas sei que o universo não é obra do acaso. Já vi muitas coisas nesses meus setenta e cinco anos para ser tão tola a ponto de acreditar que as coisas não fazem nenhum sentido. Mas quem sabe, essas visões sejam um dom seu, para que você use em seu próprio favor?

-Como assim? Eu nunca consegui ver nada sobre mim mesma.
-Talvez porque você lute muito contra elas. Deixe que venham!

Aquelas palavras bateram fundo em Cecília; era verdade. Ela lutava contra aquelas visões, ao ponto de repeli-las com todas as forças quando sentia que elas iriam chegar. Tinha medo delas. Não pelo que ela poderia ver a respeito dos outros, mas a respeito dela mesma. Desde que chegara à Pérola como proprietária do hotel, deixara para trás muitos acontecimentos tristes e pessoas das quais preferira fugir. O Arquipélago de Hidra era o seu refúgio. Ali, ninguém poderia encontrá-la. Ali, seus segredos do passado ficariam sempre adormecidos.

Olhou para a amiga, apertando-lhe a mão novamente.

-Bem, é tarde. vamos dormir.


(continua...)



A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...