A Ilha Sem barcos - Parte V
Quando Carlos abriu os olhos e olhou em volta, a tempestade havia passado, e um dia frio e nublado descansava seu peso sobre seus ombros. Sentiu no rosto e no corpo o desconforto da areia molhada, e o primeiro pensamento que lhe veio foi: "naufragamos!" Ergueu-se devagar, a fim de ter certeza de que não estava ferido, e foi a procura do jovem casal. Achou-os logo adiante, e ambos também tinham acabado de despertar e estavam um pouco confusos. A moça tinha os lábios roxos, e tremia de frio e de medo, os olhos arregalados, olhando em volta.
-Aonde estamos, que ilha é esta?
Carlos olhou em volta novamente, tentando achar um ponto de referência, mas não encontrou nenhum.
-Não sei, senhora... em todos esses anos eu conheço o arquipélago como a palma da minha mão, e nunca pisei aqui.
Décio ergue-se, passando a mão pelo corpo para sacudir a areia molhada.
-Precisamos nos aquecer. Precisamos encontrar alguma coisa para comer. Onde está o barco?
Carlos suspirou, olhando a praia:
-Não o vi. Acho que o perdemos, senhor.
De repente, Liana ergue-se, apontando para Carlos e gritando:
-A culpa é toda sua! Estamos nesta situação por sua causa! Como pode concordar em nos trazer sabendo que haveria uma tempestade?
-Mas eu pensei que ela só cairia à noite e que poderíamos navegar com segurança.
-Bem, já que você gosta de pensar, então pense em uma solução para nos tirar daqui o mais rápido possível!
Décio tentou abraçá-la para que ela se acalmasse, mas ela o empurrou:
-Pensando bem, seu pai é o culpado de tudo! Foi ele quem nos mandou para esse lugar infernal! Onde já se viu, presentear-nos com uma viagem de lua-de-mel a um lugar frio, onde só chove?! E onde vive uma louca! E agora o que faremos para sair daqui? Estou com fome e frio!
Décio e Carlos se entreolharam, enquanto Liana se afastava, caminhando rápido pela orla. Eles a seguiram a alguns metros de distância.
-Senhor, precisamos ficar calmos e permanecer juntos. Não conheço esta ilha. Não sei que perigos pode haver por aqui. Se eu fosse o senhor, diria a moça para ficar calma.
-Liana está nervosa, é só isso, e acho natural. Logo ela se acalma e pede desculpas, não se preocupe. Ela não irá longe antes de cair em si.
Minutos depois, após caminharem pela orla cercados por uma paisagem desolada de mar e areia que não mudava, Carlos achou melhor adentrar a ilha e ver o que encontrava. Pediu que Liana e Décio esperassem por sua volta.
Encontrou alguns coqueiros carregados, que lhes seriam muito úteis. Também passou por algumas moitas de amoreiras crivadas de frutos, e percebeu que havia pequenos roedores que poderiam servir-lhes de comida. Apalpou o bolso, e aliviado, constatou que seu isqueiro ainda estava lá, junto com o maço de cigarros. Embora os cigarros estivessem arruinados (jogou o maço fora com pesar) o isqueiro ainda funcionava, e seria muito útil. Sua faca também se encontrava no bolso traseiro da calça.
Caminhou por dez minutos, e chegou às ruínas de uma velha mansão. Achou-a estranhamente habitável: apesar das paredes descascadas, as janelas e portas estavam em bom estado, e o telhado ainda estava no lugar. Percorreu a casa com os olhos, e percebeu que tinha sido bonita um dia, e que seu estilo antigo era parecido com algumas casas de Pérola. Ouvira alguém na ilha dizer que eram casas Vitorianas. Bem, aquela casa também deveria ser Vitoriana. Aproximou-se, e testou a porta; estava trancada.
Com a faca, tentou abrir a fechadura, mas não conseguiu; teria que arrombar. Tomou distância, e quando se preparava para chutar a porta, esta se abriu vagarosamente, como num filme de terror. Carlos sentiu arrepios; mas decidiu entrar, pois aquela casa servir-lhes-ia de abrigo. A escuridão lá dentro fez com que ele arregalasse os olhos para ver melhor. Reparou no piso de madeira nu e sujo, mas em bom estado. Havia uma lareira bem grande na parede central, e uma poltrona velha e gasta em um dos cantos. As janelas não tinham cortinas. As paredes tinham sido brancas, mas agora estavam mofadas e enegrecidas.
Pisou devagar, testando o madeiramento do chão, que rangeu, mas continuou firme sob seus pés. Seguiu por um corredor que levou-o a uma grande cozinha muito suja, o piso de azulejos quadriculados em creme e vermelho. Ainda havia algumas panelas penduradas sobre a pia quebrada. No meio, uma mesa de madeira cercada de cadeiras muito velhas.
Voltou pelo mesmo caminho, e testando os degraus com cuidado, chegou ao segundo andar da casa, onde estava muito escuro. Havia um corredor cheio de portas fechadas que ele abriu e viu que tratavam-se de quartos vazios, mas havia uma cama com colchão em um dos quartos. Também havia um banheiro no final do corredor, muito sujo, cuja janela estava aberta, e cipós entravam por ela, grudando-se às paredes.
Novamente do lado de fora, circundou a casa e viu que havia um encanamento que entrava pelas paredes. Seguiu-o e foi parar em uma mina d'água. Ora, a casa tinha água encanada. Será que o sistema ainda funcionaria? Ficou curioso; voltou para dentro, e abriu a torneira da cozinha, que após chiar e derramar uma grande quantidade de lama e folhas secas, deixou sair água limpa. Carlos achou tudo aquilo incrível; quem teria morado ali?
Viu que uma porta na cozinha levava a três pequenos quarto, provavelmente, feito para os antigos empregados da casa. Em um deles, achou um baú; abriu-o, e viu que continha algumas roupas muito antigas, mas que estavam em bom estado. Elas seriam úteis também. Separou para si uma camiseta bege, uma blusa de lã marrom e um par de calças de lã cinza. lavou-se na cozinha e vestiu-se com elas, colocando suas roupas molhadas para secar após enxaguá-las na pia.
Voltou à praia para buscar o jovem casal. No caminho, apanhou algumas amoras que colocou em uma das panelas que achara na casa.
Décio e Liana estavam sentados sobre a areia, abraçados. pareceu-lhe que ela chorava. Os dois ergueram-se ao vê-lo se aproximar. Décio adiantou-se:
-E então? O que é isso? Que roupas são essas?
-Achei em uma casa antiga. Tem umas coisas lá que nos servirão, e ela será nosso abrigo esta noite.
Liana sorriu:
-Então a ilha é habitada?
-Acredito que não... a casa é velha, e fica numa clareira na floresta. Não há mais nada em volta. Nem sei como ela está de pé! Não imagino como alguém pode tê-la construído em um lugar como esse.
O sorriso de Liana desmanchou-se, enquanto ela aceitava as amoras que Carlos oferecia a eles. Décio perguntou:
-Mas você acha que é seguro lá dentro?
-Bem, eu acho que é melhor do que aqui fora. Ainda mais porque parece que vem aí outra chuvarada. Veja!
Apontou para o céu enegrecido, e os três caminharam juntos para a casa.
As amoras apenas serviram para despertar-lhes o apetite. Chegando à casa, eles quebraram os cocos e tomaram a água, comendo-os depois. Também beberam muita água da mina. mas continuavam com fome. Liana reclamou:
-Mas... este lugar está imundo! Como poderemos ficar aqui?
Carlos pensou no quanto a moça parecia mimada e egoísta. Décio consolou-a novamente:
-Não se preocupe, amor. Amanhã daremos um jeito de limpar um pouco.
-Mas... pode ter aranhas! Eu morro de medo de aranhas!
Carlos interrompeu-lhes:
-Acho melhor irmos lá fora catar lenha antes que a chuva comece.
-Mas eu vou ficar aqui sozinha?!
Carlos riu sarcasticamente, respondendo:
-Não... na verdade, eu acho melhor a senhora vir junto para ajudar-nos a carregar a lenha, ou não teremos o suficiente para a noite toda. E sabe, quando o fogo apaga, os animais peçonhentos se achegam...
Liana olhou para Décio, procurando por apoio:
-Mas eu vou ter que carregar lenha? Isso é um absurdo!
Décio estava pronto para intervir a favor dela, mas foi interrompido por Carlos:
-Acho que vocês dois ainda não se deram conta do que está acontecendo aqui nessa ilha: nós somos náufragos, e não estamos em um hotel de luxo. Cada um vai ter que fazer a sua parte se quiser sobreviver!
Assim, os três saíram em silêncio e recolheram a maior quantidade de lenha que puderam carregar em várias viagens, até que finalmente, a tempestade caiu.
(continua...)