terça-feira, 28 de janeiro de 2020

MADRE - CAPÍTULO 3





MADRE -Capítulo 3

A viagem continuou, mesmo debaixo do temporal que desabara durante a noite e continuava de manhã. A estrada principal estava bloqueada devido a um alagamento, então tomamos uma transversal. Para quem não sabia para onde estava indo, qualquer estrada serviria. Eu estava calada e taciturna durante a viagem, assim como os meus pais. Tinha a impressão de que quando um de nós resolvesse falar, alguma coisa se quebraria para sempre e uma tempestade emocional desabaria, tão forte e letal quanto a que caía lá fora, então eu permaneci calada, fones de ouvido ligados para não escutar a chuva. 

Meu pai dirigiu por mais de duas horas, e então conseguimos voltar à estrada principal. A manhã chuvosa dava lugar a um início de tarde ensolarado, embora um pouco frio, e as nuvens escuras se dissipavam aos poucos, varridas para algum esconderijo por trás do horizonte. Enjoada de ouvir música, abri a janela do carro e, de olhos fechados, deixei que o vento e o sol cobrissem meu rosto. 

Pensava que logo pararíamos para almoçar, o que seria bom, já que meu estômago roncava. Pensava também no meu lindo vestido verde, deixado para trás em uma casa para a qual jamais voltaríamos: o que fariam com ele? O que seria de nossa história, de tudo o que vivêramos naqueles anos? O que meus amigos pensariam quando soubessem que eu e minha família simplesmente desaparecêramos sem deixar notícias? O que seria feito das nossas roupas, móveis e objetos? Pensava em um canal no YouTube que eu assistia de vez em quando, e que mostrava casas abandonadas. Casas cheias de coisas, móveis, livros, roupas, pratos dentro da pia, como se alguém tivesse fugido de repente. Um dia, quem sabe, as nossas casas antigas estariam naqueles vídeos?

O que eu escutei foi um baque forte, e o carro escorregou para a direita. Abri os olhos de repente e vi os airbags dos bancos dianteiros se abrindo. O carro rodou  e então capotou várias vezes antes que eu desmaiasse. Não tive sequer tempo de perceber, de captar a mensagem: “Vocês estão em um acidente de carro.” Porque quando eu finalmente compreendi o que estava acontecendo, não tive tempo de formular a frase. 

Só me lembro de não conseguir abrir os olhos e de sentir um cheiro forte de fumaça. Pessoas gritando, talvez. Senti que alguém puxava meu corpo para fora com força; o engraçado é que eu estava acordada, mas não conseguia abrir os olhos, falar ou me mover. E então, nada.

E então, nada.


(CONTINUA...)




quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

MADRE - Capítulo 2






MADRE - Capítulo 2 

Fui despertada  bem cedo em uma manhã de sábado pelas vozes dos meus pais na sala do apartamento. Minha mãe dizia:
- Eu vi um homem estranho... rondava o prédio... estava tomando notas em um bloco de papel...
Meu pai respondia:
-Não, não pode ser... estamos a quilômetros de distância!
E o diálogo continuava, em vozes sussurradas:
- Precisamos ir embora agora! Ela nos encontrou!
-Mas... a festa... Aisha...
-Esqueça a festa. Vou fazer as malas. Não podemos correr nenhum risco.
-Mas Fernanda, estamos tão bem aqui!
- Não podemos ficar mais, Jairo Seremos encontrados. Não podemos esperar!
-Mas... meu emprego, tudo está indo tão bem, e... o que diremos a Aisha??? Não podemos esperar a festa? É Daqui a três dias.
-Não! Você não entende? Precisamos ir agora mesmo!

E o meu mundo que já estava quase perfeito, construído ao longo daqueles cinco anos, ruiu em menos de um minuto quando meu pai bateu à porta do meu quarto para me explicar que precisaríamos nos mudar novamente. Porém, àquela altura da vida, eu já tinha amadurecido o bastante para exigir uma explicação. Não obedeceria sem saber o que estava acontecendo, e o motivo pelo qual estávamos fugindo há tantos anos. Quem nos perseguia? Por que? Eu queria respostas, e estava disposta a lutar por elas. 

Aos trancos e barrancos, sendo praticamente arrastada para fora do apartamento por meus pais, entrei no carro sem poder sequer despedir-me de meus amigos. Nem cancelamos a festa, que já estava totalmente paga e pronta para acontecer. Todos os convites já tinham sido distribuídos, e pensei na cara dos meus amigos quando chegassem para uma festa de quinze anos na qual a debutante e seus pais estariam ausentes. Pensei na casa maravilhosa que meus pais tinham comprado, e que eu já visitara, e que estava sendo decorada naquele momento para que pudéssemos nos mudar. 

Eu odiava meus pais. Sentada no banco de trás do carro, eu tentava conter as lágrimas que caiam aos borbotões. Pensava em meus amigos, na escola, nos professores, e a cada pensamento e lembrança, eu afundava um pouco mais. Nunca mais estaria com eles. Nunca mais abraçaria minhas amigas ou iria às festinhas que elas organizavam. 

Minhas lágrimas embaçavam a paisagem lá fora, que já estava cinzenta e prenunciava uma tempestade para breve. Meus pais permaneciam calados. O silêncio que reinava no carro era quase insuportável, e a atmosfera estava tão pesada, que meus ombros doíam. 

Quando eu perguntava o porquê de estarmos fugindo novamente, minha mãe dizia que assim que encontrássemos um novo lugar (estávamos dirigindo para longe sem destino, apenas para o mais longe possível de onde estávamos, deixando para trás todas as nossas coisas), eles me contariam tudo. Lembrei-me de repente do meu vestido verde que ficara para trás, pendurado no cabide do quarto de Tina para que fosse passado. Doía ainda mais o meu coração saber que Tina nem tinha sido avisada que tínhamos partido, pois ela estava passando alguns dias no sítio de uma amiga, e lá não tinha wi-fi ou sinal de celular. Meu pai disse que entraria em contato com ela mais tarde. Ela não teria sequer onde morar quando voltasse! Eu não podia entender ou aceitar o que meus pais estavam fazendo. O que seria de Tina? O que seria dela, eu repetia incessantemente. Minha mãe prometia que mandaria passagens para que ela nos seguisse quando encontrássemos um lugar para ficar, e que eu não me preocupasse com ela, pois ela tinha uma conta reserva em um banco para situações como aquela. 

Mas que situação era aquela, afinal? Por que eles não me contavam logo? Minha mãe respondia: “Porque é uma história muito longa e deve ser bem contada. Deveríamos nos sentar e falar sobre tudo com calma, e não estressados como estávamos.”

No final da tarde, a chuva desabou. Estávamos em algum lugar entre Curitiba e Santa Catarina. Eu nem me interessei em saber direito onde estávamos. Chorara o dia inteiro. Sentia-me cansada, totalmente esgotada e fraca. Me recusara a comer qualquer coisa quando paramos em um restaurantezinho à beira da estrada. 

Apenas bebi uma garrafa de água mineral. Eu só queria morrer, sumir, e queria que meus pais fossem para o inferno por estarem fazendo aquilo comigo, mas eles só repetiam que em breve eu entenderia tudo. 
Finalmente paramos em um motel de quinta, na beira da estrada, para passar a noite, por total falta de opção. O lugar era sombrio e um tanto sujo, e fiquei com nojo de tocar no balcão da recepção, mas meus pais me asseguraram de que logo tudo mudaria, e quem sabe, poderíamos voltar à Curitiba. Aquela possibilidade me encheu de esperança, e comi o sanduíche que meu pai tinha comprado para mim no McDonald’s, há alguns quilômetros atrás. 

Lá fora, a chuva desabava e não parecia disposta a ceder. Adormeci sem perceber, o travesseiro molhado de lágrimas, sabendo que em apenas dois dias, meus amigos estarrecidos estariam em minha festa de debutante sem mim. Naquela noite, sonhei com um rosto. Uma mulher estranha, muito bonita, que me olhava de longe e parecia muito ansiosa. De repente, percebi que aquela mulher estranha estivera em vários de meus sonhos desde a infância, e que aquele rosto que tantas vezes eu tinha ignorado por achar desimportante, estivera presente em minha vida pouco antes de todas as vezes em que fugíamos. 

(continua...)







segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

MADRE - Capítulo 1





MADRE - CAPÍTULO 1



Eu me lembro de um tempo, quando eu era criança, em que meus pais andavam nervosos e suas palavras sussurradas deslizavam pelos cantos da casa, sendo abafadas para que não chegassem aos meus ouvidos: “Aisha não deve saber.”  

Eu tinha cinco anos. Vó Beatriz vinha ficar comigo, e tentava distrair-me do que quer que fosse que pudesse estar acontecendo, e que eu não entendia. Nós duas íamos lá para fora brincar entre as árvores e plantas do jardim e lá ficávamos durante muito tempo, até que ela se cansava, e  sentando-se sob o frondoso choupo e abrindo algum livro, pedia-me que continuasse a brincar sozinha um pouco. Mesmo assim, vó Beatriz ainda participava da brincadeira, erguendo os olhos das páginas quando eu a chamava, e dizendo “Ah, sim, querida, que lindo!” Sempre que eu lhe mostrava alguma coisa.

Era sempre assim: meu pai me levava à escola na parte da manhã e minha avó vinha tomar conta de mim na parte da tarde. E é claro, nós tínhamos Tina, a nossa ‘secretária do lar,’ como mamãe costumava chamá-la. Estava conosco há muito tempo, e eu não me lembro da minha infância sem ela. Tina era uma mulher de meia-idade eficiente e alegre, mas também discreta e silenciosa quando necessário. Tina não tinha familiares morando próximos a nós, e éramos, para ela, a sua família. E era ela quem cuidava de mamãe naqueles tempos sombrios. Lembro-me dela dizendo: “Coma pelo menos um pouco, Dona Fernanda. Vai precisar de forças.”

Minha avó e minha mãe não eram exatamente grandes amigas; tinham a tradicional relação de sogra e nora, suportando-se e respeitando-se o máximo que conseguiam – até mesmo uma criança como eu podia perceber que as duas não eram e jamais seriam grandes amigas. Mas havia um  segredo que ambas partilhavam, e que escondiam de mim, embora as duas discordassem sobre como mamãe deveria proceder a respeito daquilo. Minha mãe quase gritava: “Beatriz, quantas vezes eu preciso dizer que não se meta nas nossas vidas?” Minha avó respondia: “Ninguém é feliz carregando pela vida algo assim, Fernanda. Você e Jairo precisam encarar a verdade dos fatos!” E então a discussão começava, até que meu pai interferisse e as fizesse lembrar de que eu poderia estar escutando: “Vocês querem por favor baixar o tom de voz? Aisha está ouvindo, e ela entende muito mais do que ambas podem supor.”

Morávamos em uma grande casa antiga que tinha sido reformada pelos meus pais, que eram arquitetos, e eles mantiveram as características da construção original acrescentando um pouco de modernidade, como uma jacuzzi, sauna e uma cozinha ampla e moderna. Os amigos dos meus pais vinham sempre nos visitar nos finais de semana, ocasiões em que a casa ficava cheia e festiva. Costumavam trazer seus filhos, que eram meus coleguinhas de escola também, e brincávamos juntos no enorme sótão que meus pais transformaram em um quarto de brinquedos. Lembro-me daqueles tempos vivendo na casa como sendo muito prósperos e felizes, apesar das habituais discussões entre minha mãe e minha avó.

Meus pais tinham muitos amigos, e eu gostava de brincar com as crianças de seus amigos. Nos finais de semana, quando não viajávamos para algum lugar, havia sempre convidados para o almoço ou a happy hour de sábado. Aos domingos, costumávamos sair – apenas meus pais e eu.
Não conheci os pais de minha mãe, pois eles morreram antes de eu nascer, e tenho poucas memórias sobre meu avô paterno, que morreu quando eu ainda era bem pequena.

Mas um dia, as coisas começaram a se transformar sem que eu tivesse controle sobre o que estava acontecendo, o que me deixou bastante insegura. Lembro-me da nossa mudança apressada de Campos do Jordão para Belém do Pará, do outro lado do país: meus pais me tiraram do colégio de repente, sem qualquer explicação, ignorando minhas lágrimas de protesto, pois eu adorava as tias e meus coleguinhas de classe. Tive que deixar minha avó para trás, e depois daquilo, eu passei a vê-la bem pouco, o que aumentou ainda mais a tensão entre ela e minha mãe. Nós nunca a visitávamos. Era sempre ela quem vinha passar alguns dias conosco duas vezes ao ano, nos períodos de natal e nos meus aniversários.

 Felizmente para mim,Tina foi embora conosco. Tivemos que alugar um apartamento, e ela precisou abrir mão do conforto que desfrutava em nossa casa, passando a dividir o quarto comigo. Meu pai dizia que seria por pouco tempo, só até conseguirmos vender a casa, o que, acreditava ele, não demoraria muito. 

Porém, os tempos prósperos e felizes estavam terminando, e eu não desconfiava do que estava por vir.

Eu não gostava do nosso novo apartamento. Era pequeno e escuro e não tinha o quintal enorme ao qual eu estava acostumada, mas meu pai me disse que assim que conseguisse vender a nossa antiga casa, resolveria o problema. Eu sentia falta de meus coleguinhas. Sentia falta de minha avó e da nossa linda casa. Detestava o clima quente da cidade e não gostava da nova escola. Foi uma época triste para mim, mas a melhor coisa é que mamãe começou a recuperar-se aos poucos do seu  estado nervoso e retomou sua vida normal. Até que precisamos nos mudar de novo, após menos de um ano.

Desta vez fomos para uma cidade do interior de São Paulo que não tinha quase nada. Meus pais alugaram uma casa velha e feia, escondida e afastada do centro. Eu não entendia porque tínhamos que viver ali! Após dois anos, já estava quase me acostumando à nova escola, e de repente, uma outra mudança!

 Minha avó não nos visitou nenhuma vez enquanto moramos naquela casa. Quando eu reclamava, meus pais me prometiam que logo tudo estaria resolvido, e que toda aquela situação era temporária e eu conviveria com ela novamente. Certa vez, escutei uma conversa entre minha mãe e Tina, onde minha mãe dizia que era melhor que não chamássemos muita atenção e permanecêssemos incógnitos por enquanto. 

Após quase dois anos  vivendo na nova casa feia, nos mudamos para outra cidade – desta vez, uma cidade grande: Curitiba – passando a morar em outro apartamento. A cada mudança, deixávamos tudo para trás: nossos móveis, a escola, a maioria das nossas roupas. Ficamos lá por mais tempo: aproximadamente, cinco anos. Fiz novos amigos e estava começando a me acostumar com nossa nova vida. Adorava Curitiba, uma cidade agradável, bonita e próspera. Meu pai conseguiu um emprego como free lancer em uma firma de arquitetura e estávamos indo bem.

Finalmente, após quase seis anos morando no apartamento, um dia meu pai chegou em casa radiante: vendera a nossa antiga casa! Naquela noite, fomos todos jantar fora juntos – inclusive Tina – e eu pude escolher qualquer coisa que eu quisesse comer, até mesmo uma banana-split, apesar de ser inverno. Era o mês de junho e meu aniversário estava próximo; vovó chegou para ficar conosco, e como sempre, dividiu o quarto comigo, e então, naquelas ocasiões, Tina dormia no sofá da sala. 

Eu gostava da presença da minha avó. Conversávamos até mais tarde, assistíamos TV juntas nas noites de sexta-feira e ela me mimava de todas as formas possíveis, o que deixava minha mãe furiosa. Às vezes, elas acabavam discutindo, e vovó ia embora de repente, e então meus pais começavam a discutir por causa dela.

Éramos uma família boa, embora não tão equilibrada, mas éramos felizes à nossa maneira. Eu me sentia amada e protegida. Tinha orgulho dos meus pais, da minha avó e também de Tina. Crescera em um ambiente acolhedor, em um estilo de vida considerado muito bom, se comparado à maioria das pessoas. A única coisa que me incomodava, é que eu estava totalmente proibida de ter redes sociais com meu verdadeiro perfil, e meus pais diziam que era para minha própria segurança. Não podia, de jeito nenhum, postar fotos na internet ou usar meu nome verdadeiro. E esta era uma regra de ouro, que se eu tentasse burlar, ficava semanas sem poder usar o celular, pois meus pais tinham um aplicativo que vigiava todos os meus passos online.

Eu estava radiante, pois finalmente, teríamos uma casa com quintal e meu próprio quarto outra vez, e meus pais tinham me prometido que seria em Curitiba. Eu contava então quinze anos de idade, e tinha feito muitos amigos na escola onde estudava desde que nos mudáramos para Curitiba. Tinha até um crush com quem trocava olhares, e as minhas amigas diziam que com certeza ele se declararia no dia da minha festa de quinze anos, que meus pais vinham planejando há meses: eles tinham alugado um belo espaço, encomendado as comidas e bebidas, o DJ e a banda, enfim: tudo estava pronto para as comemorações do meu aniversário! 

Logo os convites começaram a serem distribuídos. Só faltava eu me decidir por um vestido – mas todos pareciam ou pomposos demais, ou simples demais. Até que finalmente eu achei o meu vestido ideal, todo verde folha, saia rodada feita por várias camadas de tule e corpete justo bordado em paetês. Quando me olhei no espelho com ele, senti que eu tinha realmente crescido e me tornado uma bela moça. Minha mãe e minha avó choraram discretamente, mas fingi não notar para não aumentar o drama.

Na escola, meus amigos não falavam em outra coisa a não ser da minha festa de quinze anos e o encerramento do ano letivo, que coincidiam ambos no final do mês de novembro.

Porém, quando faltavam apenas alguns dias para  a festa, tive uma notícia horrível.

(continua...)





A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...