segunda-feira, 29 de agosto de 2016

FEITIÇOS DE AMOR - PARTE III





Depois que saí da casa de Dora, estava decidida a procurar Vó Duda e perguntar a ela imediatamente sobre o resto daquela história entre mamãe e Maya, mas quando cheguei em casa, mamãe nos advertiu que vovó não se sentia muito bem e que estava descansando no quarto, e que não deveríamos perturbá-la. Mamãe tinha o semblante cansado, olheiras profundas e cabelos descuidadamente amarrados com um elástico na forma de um rabo-de-cavalo mal feito. Olhei para sua pele e vi que ela estava pálida. Sem pensar duas vezes, cruzei a sala em direção a ela e abracei-a com carinho. Surpresa pelo meu gesto, ela ficou parada por alguns segundos e então me abraçou também, com força, e senti que seu corpo tremia enquanto ela chorava lágrimas há muito reprimidas. Ela disse:

-Minha querida Eleanor... me desculpe por estar fazendo vocês passarem por tudo isso...

Eu não entendi as palavras dela; afinal, a doença de vovó não era culpa de ninguém. Apenas alguns dias mais tarde, quando Tia Maya finalmente se juntaria a nós, eu descobriria do que ela estava falando naquele momento. Puxei-a em direção ao sofá, e segurando suas mãos, decidi tocar no assunto bem devagar, para não irritá-la; enquanto falava, fui testando seus limites:

-Mamãe... eu estou muito confusa, e Flora também. 

Ela não compreendeu:

-Oh, eu sei, minha filha... é muito difícil pensar na possibilidade de não termos mamãe aqui conosco um dia.

Fui cuidadosa:

-Sim, mãe, é muito difícil mesmo. Ela é quase tão nossa mãe quanto você, sempre cuida da gente. De todo mundo... mas não é só isso que está nos deixando preocupadas.

Naquele minuto, Flora entrou na sala, e quando percebeu para onde a conversa estava se encaminhando, sentou-se à mesa da sala de jantar e ficou escutando a nossa conversa, fingindo que estava ouvindo música no celular (mas eu notei que ela usava apenas um dos lados do fone de ouvido).

-Mas o que está deixando você angustiada, minha querida?

Fui mais direta daquela vez. Aprumei o corpo, e olhando-a nos olhos, soltei:

-Essa história entre você e Tia Maya. Gostaria de saber o que realmente aconteceu. Você e papai não tocam no assunto, vó Duda também não... e acho que a sua história faz parte da nossa. Eu queria – eu e Flora queríamos – saber da verdade.

Mamãe soltou minhas mãos, cruzando as suas sobre o colo. Notei que ela estava constrangida, e que tinha se fechado. Mas eu insisti:

-Mãe, você sempre nos ensinou que não devemos mentir ou esconder nada de você e do papai. Por que esconde as coisas de nós? 

Aquela observação surtiu efeito, e ela me encarou, desarmada. Levantou um pouco a voz, e chamou:

-Flora! Venha até aqui, por favor.

Eu sabia que ela ia nos contar a história toda. Lá fora começou a chover, e a sala estava acolhedora. 

Nós três estávamos sentadas juntas no sofá, mamãe no meio. Eu e Flora tínhamos virado o corpo na direção dela, que de vez em quando, parava seu relato para olhar para nós. 

-Vocês já sabem que Maya não é minha irmã, e sim, minha prima, mas que fomos criadas juntas depois que ela perdeu os pais em um acidente de carro. Éramos bem pequenas ainda. 

Nós duas concordamos com a cabeça. Eu queria que ela pulasse a parte que já conhecíamos, mas contive minha ansiedade. Ela continuou:

-Eu tinha apenas sete anos, e de repente, vi que entrava em nossa família uma outra menina, que meus pais passaram a mimar e proteger. Senti muitos ciúmes de Maya... como se ela estivesse me tomando meu lugar naquela casa. Acho que mamãe a protegia demasiadamente a fim de compensá-la pela perda dos pais, não sei... eu tive que dividir meu quarto com ela. E também alguns dos meus brinquedos. Era difícil aceitar... na escola, as minhas coleguinhas passaram a rodear Maya, talvez seguindo instruções da professora, e elas a protegiam, brincavam com ela o tempo todo e me ignoravam – pelo menos, era o que eu pensava. 

Mamãe deu uma pausa, e pelo jeito dela, percebi que ela estava revendo aqueles momentos distantes em sua mente. 

-E Maya era sempre tão... doce! Todos a adoravam. Era só ela chegar que os adultos a rodeavam, mimavam, protegiam. E eu era sempre esquecida em um canto; eu, que tinha sido sempre a queridinha de todos. Sem contar que ela era linda! Maya tinha cabelos negros e olhos verdes. Era muito mais bonita do que eu. Quando ficamos mocinhas, era difícil estar ao lado dela, pois todos os olhares se dirigiam a ela: alta, morena, cabelos negros e lisos, compridos até a cintura, olhos verdes... 

Eu e Flora nos entreolhamos, sem compreender direito, pois mamãe era e tinha sido muito bonita quando jovem. Tínhamos visto nas fotografias de família. Tia Maya era muito bonita também, mas não tanto quanto mamãe. Pensei no quanto a visão de mamãe sobre tia Maya tinha sido distorcida pelo ciúme. Não era nada fácil constatar que  a minha própria mãe tinha uma história tão pesada que nós desconhecíamos, pois ela era um ícone para as pessoas daquela vila, ajudando-as com seus chás e ervas, conselhos e cartas de tarô. Achei que deveríamos nos ater às palavras de Tia Joana, acreditando que ela mudara com o tempo, mas a perspectiva de receber tia Maya na nossa casa a deixava desesperada – o que com certeza, era sinal de que sua insegurança não tinha sido superada. Lá fora, um trovão forte ribombou, e as luzes do abajur piscaram. Flora se encolheu, aconchegando-se mais à mamãe. Ela sempre tivera medo de tempestades e raios. Mamãe confortou-a, passando um braço em volta dela, e continuou:

-Quando terminamos a escola, mamãe pensou que seria melhor se Maya fosse concluir seus estudos em uma faculdade distante; assim, teríamos tempo de amadurecer nossas desavenças... digo, minhas desavenças com ela, e quem sabe, sentiríamos saudades uma da outra. Confesso que quando ela se foi, alguns dias depois, senti falta dela... sabe, não brigávamos o tempo todo, realmente, houve momentos de paz nos quais eu, Joana, mamãe, papai e Maya íamos ao cinema, ou viajávamos para a casa de praia. A ausência dela, a sua cama vazia no quarto, o fato de não ter a quem contar as coisas que me aconteciam, fez com que eu sentisse falta dela. Foram quatro longos anos, e nas férias que ela passava em casa, nós até nos dávamos bem. Talvez porque eu soubesse que ela logo iria embora novamente, e eu voltaria a “reinar”. (ela fez um sinal de aspas com os dedos). Flora aprumou-se, e perguntou:

-Mas por que você tinha ciúmes dela? Sempre nos ensinou que ciúmes são coisa ruim...

-E são, querida... mas naqueles tempos, eu não tinha maturidade para perceber. Maya tinha perdido tantas coisas: sua casa, seus pais, sua vida. Eu não enxergava nada daquilo, apesar de mamãe e papai terem tentado conversar comigo tantas vezes. 

Naquela altura de sua narrativa, mamãe fungou e enxugou uma lágrima furtiva. Não pude me conter:

-Mas mamãe... se é assim, por que a senhora ficou tão furiosa quando Vó Duda quis trazê-la para casa?

Ela se levantou, e eu e Flora continuamos no sofá, enquanto víamos a silhueta de mamãe andando pela sala de um lado para o outro. Por trás dela, raios e relâmpagos se intercalavam, e a chuva batia pesadamente na vidraça. 

-Esta é a pior parte, meninas. Eu fiz algo terrível. Ter que encará-la novamente é como ter que encarar o que eu fiz. Nem sei por onde começar.

Flora, inadvertidamente, declarou:

-Pode pular a parte na qual você tomou o papai dela, mãe. Esta a gente já conhece.

Desferi-lhe uma cotovelada, mas era tarde demais: a “sutileza” de Flora estragara tudo. Mamãe demonstrou surpresa:

-Como vocês sabem?

Olhei para Flora, zangada, e disse:

-Explique você, Flora.

Ela enrubesceu:

-É que... a gente perguntou à Tia Joana... acabamos de vir de lá.

-E ela ... como ela se atreveu a tocar neste assunto, passando por cima de mim?

Resolvi intervir e tentar salvar a situação:

-Ora, a gente quase encostou ela na parede. Foram duas contra uma, mãe. E você e vovó não nos contam nada! A gente tinha que saber de alguma forma, tia Joana não teve culpa.

-E o que ela lhes contou?

-Ela só contou até esta parte, na qual você tinha tomado o papai de tia Maya, e disse que o resto era para você contar, se quisesse.

Mamãe suspirou aliviada, ajeitando o cabelo num gesto nervoso:

- Pelo menos isso. Acho que é tudo o que precisam saber. 

Eu e Flora protestamos ao mesmo tempo:

-Não, nada disso. Não vamos nos contentar mais com meias-verdades, mamãe. Se a senhora não contar, vamos procurar saber de outra forma. Eu vou perguntar à Tia Maya.

Ela sentou-se, as mãos nos joelhos, vencida. Lá fora, a chuva parou, dando lugar a um lindo entardecer, e víamos o sol se pondo entre nuvens coloridas. Tutti e Greco entraram correndo pela sala, pulando no sofá e ajeitando-se sobre nossas pernas. Logo, estavam ambos adormecidos. Eu e Flora ficamos acariciando suas cabeças. 

-Está bem – ela disse, após um longo silêncio. – Eu vou contar tudo.


(CONTINUA...)




segunda-feira, 22 de agosto de 2016

FEITIÇOS DE AMOR - PARTE II



Os dias que seguiram àquele foram um tanto tensos. Eu chegava da escola e encontrava vó Duda na cozinha, terminando o almoço com a ajuda de mamãe, como sempre. Mas não havia mais a conversa animada entre as duas, nem o rádio ligado sobre a geladeira, tocando música antiga; elas trocavam apenas as palavras que fossem necessárias entre elas, sobre as coisas da casa. Eu e Flora almoçávamos, e logo depois nos trancávamos em nosso quarto para fazer os deveres da escola, ou então eu e Flora íamos à casa de Dora. Parecia que por lá todo mundo já sabia sobre o clima pesado lá de casa. Os tios Nestor e Joana nos perguntavam como estavam as coisas, embora não tocassem diretamente no assunto, e se entreolhavam enquanto respondíamos – também sem tocar no assunto. 

Até que um dia, enquanto todos estávamos sentados no quintal dos fundos ouvindo Dora nos mostrar sua nova canção, Flora interrompeu-a:

-Tia Joana, você sabe alguma coisa do motivo porque mamãe e Tia Maya brigaram?

Imediatamente, o ar cobriu-se de tensão, e Dora largou o violão no canto da parede, dando a impressão de que até ela sabia – menos nós. Tia Joana hesitou:

-Bem, eu não sei se devo tocar nesse assunto com vocês, Flora. 

Flora afirmou:

-Mas vó Duda disse que nós precisávamos saber, e ninguém nos conta nada.

Eu concordei com Flora – o que era raro de acontecer.

Tia Joana hesitou:

-Bem, se é assim...

 Tio Nestor, coçando a cabeça, levantou-se e foi saindo, dizendo:

-Bem, eu vou ao mercado fazer umas compras. Não quero me meter neste assunto.

Tio Nestor não gostava de assuntos complicados, e sempre fugia deles. Era um homem quieto, jamais falava mal – aliás, jamais falava – de ninguém. Eu me senti bem mais confortável sem a presença dele ali entre nós, assim poderíamos tratar daquele assunto sem nos sentirmos constrangidas ou sem achar que estávamos remexendo ossos enterrados.

Dora piscou para mim, tentando aliviar a tensão, mas fingi não perceber. Eu e Flora tínhamos os olhos presos em Tia Joana, que finalmente começou:

-O que houve aconteceu há muitos anos, meninas, quando seus pais ainda moravam em São Paulo. Eu não sei se vocês sabem que antes de namorar a mãe de vocês,  Berto namorava Maya.

Eu e Flora nos entreolhamos de olhos arregalados, dizendo quase ao mesmo tempo:

-Não!

-Pois é. Os dois estavam namorando há algum tempo. Tinham se conhecido na faculdade, quando Maya foi estudar engenharia. Namoravam há quase três anos. Até que eles terminaram os estudos, e Maya voltou para São Paulo, levando Berto para apresentar aos avós. Por favor, não quero que vocês julguem sua mãe... certas coisas apenas acontecem, e ninguém sabe bem o motivo.

Eu mal conseguia respirar, não desejando perder nem um simples detalhe daquela história, enquanto Dora brincava de enrolar um fio de capim no dedo, despreocupadamente. Eu tive certeza de que aquela história era muito familiar até mesmo para ela, e que apenas eu e Flora tínhamos sido poupadas da verdade. Tia Joana continuou:

-Foi bater os olhos em Berto, e sua mãe apaixonou-se por ele. Eu bem que tentei tirar Berto da cabeça de Agnes, mas ela não me escutava! Eu achava que era apenas algo passageiro, fruto da eterna rivalidade entre Agnes e Maya.

-Elas brigavam desde pequenas? – perguntou Flora.

-Sim, ou seja, mais ou menos, pois Maya nunca brigava com sua mãe. Porém... Agnes tinha ciúmes doentios da relação dela com papai e mamãe. Achava que ela tinha vindo tomar seu lugar naquela casa. Nossos pais acharam melhor não tomar nenhuma atitude, achando que aquilo tudo, ou seja, toda aquela rivalidade ia acabar passando, mas só piorou com o tempo. Chegou a um ponto em que acharam melhor mandar Maya estudar em outra cidade a fim de poupá-la das agressões de Agnes.

Imaginar minha mãe como alguém que, um dia, tinha sido uma pessoa agressivamente ciumenta, era difícil para mim, pois eu a tinha como a mulher mais equilibrada que eu conhecia. Ela aconselhava as pessoas, ajudando-as em suas dificuldades. Flora também parecia estar muito avessa a acreditar naquela história, embora nós duas soubéssemos que Tia Joana não mentiria para nós.

-Você está nos dizendo que nossa mãe... era uma pessoa ciumenta, a ponto de agredir alguém da própria família?

-Sim, meninas, infelizmente isso é verdade. Mas isso foi há muito tempo, e tenho certeza de que Agnes mudou. Sou testemunha disso.

Flora agitou-se, respondendo:

-Então você deveria ter visto a reação dela quando Vó Duda disse que queria que ela convidasse Tia Maya para passar uns tempos conosco! Não foi, Eleanor?

Dora interrompeu, abrindo a boca pela primeira vez, tentando dar um tom dramático às suas palavras. Imaginei-a pensando em uma letra para outra de suas canções, tendo como tema, a história de mamãe e Maya:

-É... a gente sempre carrega o passado nas costas, embora tentemos disfarçar...

Tia Joana concordou com ela, e continuou:

- Mas lembre-se de que não devemos julgar ninguém, filha! Todas nós amamos Agnes, e se ela cometeu erros no passado, todos cometemos e cometeremos também. 

Nós todas concordamos, como se aquilo fosse nos redimir do que estava por vir. Tia Joana continuou:

-Então... quando Maya e Berto anunciaram o noivado, Agnes ficou desesperada. Tentou de tudo para dissuadi-lo, dizendo que Maya não era a pessoa certa para ele, mas Berto a amava, e nenhuma das palavras de Agnes o atingiram. 

-E tia Maya não fez nada?

Bem, aquela foi a única ocasião que eu me lembro de vê-las realmente brigando. E falo de briga física também. As duas se engalfinharam um dia, e papai teve que se meter para separá-las. Depois daquilo, elas simplesmente deixaram de se falar. O dia do casamento se aproximava, e Maya já se ocupava com o vestido e os convites. Berto procurava por um apartamento onde ambos pudessem começar a vida, e Agnes procurava por uma maneira de separar os dois. E nada que eu, mamãe ou papai dissessem, tinha qualquer poder de convencê-la a esquecer aquela história.

Tia Joana ficou em silêncio. Parecia estar muito pensativa. De repente, até Dora percebeu que havia uma parte daquela história que até ela desconhecia, e olhou para a mãe, intrigada, jogando fora o fio de capim que antes enrolava nos dedos, sentando-se aprumada. Eu a incentivei, após um período de silêncio que pareceu longo demais:

-E então?

-Eu... não sei se deveria tocar nesse assunto com vocês. Daqui adiante, acho melhor que vocês perguntem a Agnes o que aconteceu. 

Dizendo aquilo, ela começou a se levantar. Nós três protestamos, mas tia Joana simplesmente entrou em casa e trancou-se no banheiro, dizendo que precisava tomar um longo banho. Eu olhei para Dora:

-O que acontece agora, Dora? Parece que você já conhecia essa história.

Ela arregalou os olhos, o que fez com que seu rosto se arredondasse ainda mais:

-Sim, quero dizer... só que não. 

Flora protestou:

-Como assim?

-Assim mesmo. Não sei de mais nada, mas com certeza, mamãe deixou bem claro que há mais para sabermos. A única coisa que eu sabia – juro – era que tia Agnes tinha roubado o namorado de Tia Maya, e que por isso, elas não se falavam mais. Daí em diante, eu não sei de mais nada.

Eu e Flora suspiramos de frustração quase ao mesmo tempo. Flora se despediu, dizendo:

-Bem, tchau para quem fica. Vou para casa, ver se escuto alguma coisa.

Assim, eu e Dora ficamos sozinhas. Ela pegou seu inseparável violão, e começou a dedilha-lo ao acaso. Eu estava muito aflita, e passei a andar de um lado para o outro. Ela explodiu:

-Pare com isso, Eleanor! Está me deixando maluca.

-Dora, tente se lembrar: o que mais você sabe?

-Juro que não mais do que mamãe acaba de contar. Agora sossegue, pois acho que essa história está chegando ao fim. Sua mãe já convidou Tia Maya para vir?

-Não sei, mas acho que não... está ‘enrolando’ vovó. 

-Por que você não pergunta à Vó Duda sobre o que aconteceu depois? Se foi ela mesma que disse que vocês deveriam saber da verdade...

Aquela ideia me pareceu genial. Por isso eu gostava tanto de Dora!

-Dora... você é um gênio!


(continua)





segunda-feira, 15 de agosto de 2016

FEITIÇOS DE AMOR - PARTE I







FEITIÇOS DE AMOR – CAPÍTULO I

Eu tinha quinze anos quando minha avó Eduarda – ou vó Duda, como todos a chamavam, inclusive seus não-netos – adoeceu. A presença de vó Duda naquela casa e na nossa comunidade era fortíssima. Desde que eu me lembro de mim, ela, viúva, já morava conosco, e eu nunca soubera o que era chegar em casa e não encontrá-la. Ela ralhava comigo e com minha irmã Flora, um ano mais nova que eu, se demorássemos a trocar o uniforme da escola; não deixava que nos sentássemos à mesa do almoço sem lavar as mãos, e antes de comer, dávamos graças; coisas de avó.

Porém, Vó Duda não tinha nada daquelas avós dos sonhos, gorducha, cabelos brancos, rosto gentil e pele rosada; sua voz não era a de uma pessoa velha, e nem seus modos, apesar da idade avançada - ninguém sabia, ao certo, quantos anos ela tinha, nem mesmo mamãe, e ela não comentava o assunto de jeito nenhum. Vó Duda era alta, esguia e elegante. Usava os longos cabelos grisalhos sempre presos em um coque, e eu não me lembro de tê-los visto soltos nem uma única vez, a não ser após a doença, período no qual ela passava a maior parte do tempo em sua cama. Ainda me lembro dos seus vestidos, todos indo até o tornozelo e de mangas três quartos, mesmo no mais calorento verão! Todos confeccionados por ela mesma, que costurava muito bem e tinha sido modista e dona de uma loja de modas quando jovem. Os tecidos que escolhia eram todos caros e de boa qualidade: veludos, sedas peroladas, brins acetinados, crepes finíssimos, estampas – quando presentes – sempre discretas e pequenas. Lembro-me de Vó Duda como uma mulher enérgica, respeitada por todos, e temida também, devido à sua mania de sempre dizer o que pensava, doesse a quem doesse. Seus olhos verdes como esmeraldas eram perscrutadores, e acho que ela podia até adivinhar pensamentos! 

Ninguém conseguia mentir para Vó Duda, e sabendo disso, eu nem sequer tentava.

Como no dia em que me atrasei da escola para o almoço, e quando cheguei, ela já tinha arrumado a cozinha e guardado a comida. Eu estivera namoricando um menino da escola, e quando ela me perguntou o motivo do atraso, a mentira que eu tinha prontinha na ponta da língua escorregou até o chão, só dela me olhar. Contei a verdade, pensando que ia ouvir um sermão horroroso – afinal, eu tinha apenas treze anos naquela época – mas Vó Duda, me olhando de lado, disse apenas:

-Vá trocar o uniforme e lavar as mãos para almoçar. Seu prato está no forno.

Eu sabia que se tivesse mentido, passaria o dia todo de castigo e sem almoço.

Era muito comum que ela às vezes tomasse o lugar de mamãe, nos dando as broncas, conselhos e elogios que achava que merecíamos. E mamãe nunca ia contra nada do que ela dizia.
Naquela casa, vivíamos eu, minha irmã Flora, minha mãe Agnes, meu pai Berto e Vó Duda – e também os cães Cocker Spaniel, Tutti e Greco, que pertenciam, respectivamente, a mim e à minha irmã, mas que no fim, eram de todo mundo.

Nossa casa era simples, espaçosa e rústica; as cortinas tinham sido todas confeccionadas por minha avó, em chitão florido, e também as almofadas de tricô que ficavam sobre os sofás de xadrez vermelho e verde da sala. Sobre a lareira, um quadro pintado por papai, que além de ser dono de uma pequena venda no centro da nossa cidadezinha, também era pintor, e conseguia vender alguns quadros para turistas. Mamãe era formada em Literatura, mas optara por ficar em casa e cuidar de nós, virando esposa e mãe em tempo integral. Papai era engenheiro formado, mas tanto ele quanto mamãe cansaram-se da vida agitada da cidade grande e decidiram, enquanto mamãe ainda estava grávida de minha irmã, viver em estilo ‘slow life.’  Quando Vó Duda ficou sabendo do sonho deles, vendeu sua enorme casa em um dos bairros mais chiques de São Paulo, entregando-lhes o dinheiro para que realizassem seu sonho; e assim minha família veio parar em Rio Verde, uma pequena cidade nas montanhas, muito fria no inverno e fresca no verão.

Voltando a falar de nossa casa, as paredes tinham sido pintadas com tintas naturais, e por isso, tinham cores manchadas em tons pastel. Os tapetes da casa eram feitos à mão em uma roca por minha mãe, e tinham lindos desenhos intrincados. Eu dividia o quarto menor com Flora, meus pais ocupavam o quarto maior no sótão e Vó Duda ocupava o segundo maior quarto, em frente ao nosso. As janelas da casa tinham sido feitas por meu pai, em madeira pesada e vidro. Também a mesa estilo mineira da cozinha, com oito cadeiras, a arca onde guardávamos os mantimentos e alguns banquinhos. Pode-se dizer que a nossa casa era artesanal.

A lareira, que ficava bem no centro da parede principal da sala, era da altura de uma pessoa de pé. Era feita de madeira e pedra, sólida e aconchegante. Todos que nos visitavam pela primeira vez percorriam os cômodos da casa entre ‘Ahs’ e ‘Ohs’ de admiração, desfiando elogios e dizendo o quanto era confortável e aconchegante a nossa casa.

Eu era feliz, e me sentia segura. A solidez da nossa casa representava a solidez da união de nossa família. Meus pais davam-se bem, eram amorosos. Fazíamos sempre coisas juntos, como viajar nas férias, assistir a filmes, acampar ou fazer piqueniques no parque da cidade, sob os pinheiros e abetos.
Vó Duda também costurava para nós, e tínhamos os mais lindos vestidos. Quase não precisávamos comprar roupas, a não ser algumas calças jeans e alguns pares de tênis. As amigas nos olhavam com inveja toda vez que aparecíamos com um vestido ou bata novos. Vó Duda copiava os modelos das revistas da moda que nós escolhíamos, mas os mais bonitos, eram sempre os que ela mesma criava. 

Ela dizia que éramos as suas modelos preferidas.

Minha mãe, ao contrário de Vó Duda, era uma mulher silenciosa e solitária. Passava muitas horas escutando CDs de meditação ou lendo sobre assuntos místicos. Era bonita, tinha cabelos ruivos lisos e longos, e apesar de ser pequena, seu corpo era bem moldado. Ela às vezes ficava estranha, quando tinha uma de suas premonições. As pessoas da vila vinham até a nossa casa pedir a ela que deitasse as cartas do Tarô para eles, ou que fizesse pomadas, óleos ou remédios naturais. Acho que ela poderia ter ganho muito dinheiro com suas criações e poções de beleza, porque elas realmente funcionavam, mas minha mãe não cobrava por seus serviços nunca, embora às vezes pedisse que as pessoas comprassem o material que seria usado neles. Certa vez perguntei-lhe onde aprendera  a ler as cartas, e ela disse que um dia recebera pelo correio um baralho de tarô. Não havia remetente, apenas as cartas em uma caixinha de madeira, e um pequeno livro ensinando como usá-las. Desde então, foi como se ela apenas olhasse para as cartas e as escutasse, repetindo ao consulente o que elas diziam.

Meu pai era um homem alto e forte. Quando ele e mamãe estavam juntos, ela mal alcançava os ombros dele; pareciam A Bela e a Fera. O rosto de meu pai era grande, ele tinha a testa larga, os olhos penetrantes e negros, as mãos enormes, os braços muito musculosos, e media quase dois metros. Sua voz parecia um trovão ribombando pela casa! Porém, seu caráter era gentil e doce, sempre bem-humorado e disposto a ajudar qualquer um que precisasse dele. Eu amava meu pai apaixonadamente. Via nele a minha proteção, meu porto seguro. Passávamos horas só conversando, enquanto ele se recolhia na garagem (transformada em estúdio) para dedicar-se às suas pinturas; eu me enroscava em uma velha poltrona no canto do cômodo, e as conversas surgiam, varando o dia. 

Minha irmã Flora tinha mais afinidades com mamãe, e estava aprendendo a ler as cartas, embora não tivesse o mesmo dom. Flora era bem diferente de mim: eu tinha cabelos loiros, ondulados  e longos, e ela, cabelos escuros e escorridos, cortados na altura dos ombros, num corte Chanell moderno que dava a ela um ar de seriedade. Eu gostava de conversar e tinha muitos amigos, enquanto ela era mais reservada. Eu era ótima em Línguas, História, geografia e Literatura, enquanto ela adorava matemática, Química e Física. E ela era mais popular entre os meninos do que eu, mesmo sendo um ano mais nova. Havia sempre alguns garotos apaixonados por Flora, mesmo que ela não os levasse à sério. Já eu, tinha meus amores platônicos. Estava sempre apaixonada por um menino que não queria nada comigo.

Éramos felizes e unidos, e tínhamos uma vida despreocupada e tranquila. As pessoas da vila eram excelentes vizinhos, e vivíamos perto dos nossos tios Nestor e Joana (Joana era irmã mais velha de nossa mãe) que tinham se mudado para lá na mesma época que meus pais. Eles eram os pais de nossa querida prima Dora, uma menina alegre, levada e talentosa de dezesseis anos que era como uma irmã para mim. Eu passava mais tempo com ela do que com Flora. Dora sabia tocar violão e estudava canto. 

Queria ser cantora e compositora, e tinha uma linda voz. Escrevia poesias que transformava em músicas muito bonitas que ela tocava para nós nas noites de verão, quando estávamos todos reunidos na varanda da nossa casa. Dora não era muito bonita, mas seu talento compensava sua falta de atributos físicos. Ela era um pouco gordinha, tinha cabelos castanhos e encaracolados cortados curtos. Seu rosto era redondo, e nada delicado. Mas seus olhos azuis continham tanta beleza, que quem olhasse para eles a acharia linda! E como ela deixava todos calados e extasiados quando pegava em seu violão e começava a tocar! Não havia quem não fizesse silêncio para prestar atenção. Eu amava Dora. Eu amava Rio Verde. Eu amava nossa vida.

Tudo começou a ficar diferente quando vovó sentiu-se mal um dia, durante o jantar. Apesar de dizer que estava bem, que não passara de um mal ligeiro, todos vimos quando seu rosto ficou muito branco e ela deixou o talher cair, apoiando a cabeça em uma das mãos. Vó Duda tentou endireitar-se rapidamente, mas todos percebemos e ficamos preocupados. Ela não terminou seu jantar, e foi deitar-se. No dia seguinte, mamãe foi com ela ao médico.

Duas semanas de exames depois, descobrimos que Vó Duda tinha câncer na vesícula, e poderia ter que passar por uma cirurgia delicada. Doutor Fábio deixou claro que as chances não eram muitas, e que ela poderia ter complicações durante a cirurgia, mas que se sobrevivesse, sua perspectiva de vida poderia ser mais longa do que se ela não fosse operada. Vó Duda optou por não operar. Deram-lhe alguns meses de vida. Mamãe estava arrasada. Todos estávamos. Mas Vó Duda aceitou seu destino, e na medida do possível, continuou levando sua vida evitando tocar no assunto, e em pouco tempo, era como se a doença dela tivesse sido esquecida por todos, socada para algum canto inacessível das nossas mentes – mas ela estava lá, e nos lembrávamos quando estávamos sozinhos, antes de dormir.

Certa noite, durante o jantar, nós falávamos das coisas da escola, e também sobre os acontecimentos corriqueiros da casa e das vizinhanças, e Vó Duda apenas escutava enquanto beliscava seu jantar. Greco e Tuti estavam deitados soba mesa, aos nosss pés, como faziam todas as noites durante o jantar. Nós pisávamos em ovos, tentando manter a atmosfera leve e não deixar transparecer a ela a nossa preocupação, quando Vó Duda pediu-nos silêncio. Todos nos aquietamos imediatamente.

Ela nunca perdia seu ar altivo e digno. Tinha mandado cortar seus cabelos bem curtos, o que lamentamos; um dia, ela foi à cidade e voltou sem eles, para surpresa de todos nós e indignação de mamãe. Eu olhava para ela – todos olhávamos – esperando que ela falasse. Eu tinha a impressão de que Vó Duda estava procurando as palavras certas. Ela largou o guardanapo sobre a mesa, num gesto quase brusco, e disse:

-Bem, todos aqui sabem que eu não vou durar muito tempo.

Houve protestos de todos nós, mas ela sacudiu a mão num gesto de desprezo, pedindo silêncio:

-Não vamos fingir que está tudo bem. Todos sabemos que minha hora está chegando. Eu tenho um pedido a fazer.

Dizendo aquilo, ela olhou para mamãe.

-E tem a ver com você, Agnes. E com você também, de certa forma, Berto.
Vi o rosto de mamãe empalidecer, e notei que ela já sabia qual seria o pedido de vó Duda. Papai estendeu a mão sobre a mesa, colocando-a sobre a dela, como se lhe pedisse para ter calma e não dizer nada. Pelo visto, ele também sabia.

-Somos uma família unida e feliz, Graças a Deus... Fui – sou – muito feliz vivendo aqui com todos vocês. Mas há uma pessoa que eu gostaria muito de ver antes de ir embora deste mundo, e sei que ela só virá se o convite partir de você, Agnes. E gostaria que isso acontecesse antes que minha doença se agravasse, pois quero ter um pouco de tempo para passar com ela.

Mamãe, num gesto inesperado, acabou dando uma cotovelada no copo de água, derrubando seu conteúdo sobre  a mesa. Papai pegou um guardanapo de papel e pôs-se a secar tudo, o rosto vermelho.

Eu também soube, e Flora idem, de quem Vó Duda estava falando: Tia Maya. Eu e minha irmã a tínhamos visto  apenas uma vez, no velório de vovô, quando ainda éramos pequenas. Mamãe não falou com ela, e papai cumprimentou-a entre os dentes, ficando desconfortável em sua presença, enquanto ela abraçava e consolava Vó Duda. Lembro-me de que ela parou um instante diante de Flora e de mim, dando um sorriso tímido, mas mamãe puxou-nos com força, passando os braços em volta de nós e nos segurando como se estivéssemos em perigo.

Tudo o que eu e Flora sabíamos era que o nome dela nunca deveria ser mencionado naquela casa, e que ela e mamãe tiveram um desentendimento no passado. Também soubemos, através de papai, que Tia Maya era prima de mamãe, e que ambas tinham sido criadas como irmãs desde que os pais de Maya (o pai de Maya era irmão de Vó Duda)  tinham morrido em um acidente de barco quando ela tinha seis anos, e mamãe, cinco. Vovô e vovó a acolheram e cuidaram dela. Estas eram as únicas coisas que sabíamos sobre ela.

Minha mãe fechou os olhos, e respirou fundo. Vó Duda não se intimidou:

-Agnes, eu quero que você convide Maya para passar algum tempo conosco. Nesta casa.

-Mamãe, o que você está me pedindo é absolutamente...

-Não quero mais desculpas, Agnes. Você e sua irmã precisam se entender.

-Nós não somos irmãs, mamãe. Somos primas.

Vó Duda socou a mesa, elevando o tom de voz, e meu coração deu um pulo. Olhei para Flora, e vi que ela engolira em seco, deixando cair o garfo no prato. Tutti e Greco saíram de sob a mesa, indo procurar abrigo na cozinha.  Papai mantinha a cabeça baixa, tendo o rosto vermelho, e os olhos de mamãe se encheram de lágrimas. Vó Duda esbravejou:

-Chega! Não vou admitir mais desculpas! Vendi tudo o que eu tinha para que vocês pudessem fugir do passado e vir parar nesta cidade, comprar esta casa e o negócio de Berto, e começarem uma vida nova. Achei que estava fazendo a coisa certa afastando vocês duas, mas eu errei, e quero consertar meu erro – e o de vocês. Banimos a presença de Maya desta família, como se ela tivesse feito algo errado, quando todos sabemos quem errou, Agnes!

Mamãe ergueu um braço:

-Pare, por favor,  as crianças...

Vovó nos olhou, respirando profundamente, baixando o tom de voz.

-Elas precisam saber da verdade.

Eu e Flora não nos atrevemos a questionar o que estava acontecendo. Não era uma boa ideia interromper vó Duda. Papai nos olhou de rabo de olho, tentando esboçar um sorriso. Sua tensão era gritante. As lágrimas de mamãe finalmente caíram. Ela olhou para vó Duda com um olhar magoado, e disse:

-Faremos o que você quer, mamãe. Nós sempre fazemos, não é mesmo?

Vó Duda a encarou:


-Nem sempre.

(CONTINUA...)

sábado, 13 de agosto de 2016

Para Aqueles que Desejam Ler as Minhas Histórias...








Às vezes as pessoas tem dúvidas quanto ao funcionamento do blog. Todas as minhas histórias aqui deixadas estão completas. Os capítulos aparecem postados em ordem decrescente - é só ir 'descendo' até achar o capítulo I e ir depois subindo até o último capítulo.

A fim de ler os capítulos, basta ir até o final da página e encontrar os links - eles estão separados por ano e mês. Geralmente, uma história escrita, por exemplo, no mês de abril terá sido terminada dentro do próprio mês ou nos meses seguintes, maio ou junho. É fácil encontrar!

Navegar no blog é fácil depois que a gente pega o jeitinho. Basta seguir os links.

Divirta-se, e grata pela leitura.





terça-feira, 2 de agosto de 2016

A RESENHA DO MAL – Capítulo XVII - FINAL








Do outro lado do mundo, em uma cidade africana conturbada e paupérrima na qual as pessoas viviam em meio a guerras e violência, Sophie começou sua nova vida. Apenas escreveu aos tios na França comunicando-os de sua decisão, e eles responderam-lhe o e-mail dizendo-se felizes por ela. Depois daquilo, nunca mais se comunicaram.

 No início, ela mal conseguia olhar para tantas crianças famintas e sem esperanças, e pensou que sua infância, apesar de tudo, tinha sido bem melhor que a delas. Depois, ela foi se acostumando e sempre ajudava as que estavam perto. Sabia que se tentasse enviar caminhões com suprimentos ou remédios, eles seriam interceptados pelas milícias e seu conteúdo, roubado. Assim, Sophie passou a comprar e distribuir, ela mesma, toda a comida e remédios que podia em um jipe velho que ela adquirira. Muitas vezes, corria risco de morte, mas ela não tinha medo. Morrer, ela pensava, era o menor dos males da vida. E ninguém se importaria ou sentiria saudades dela, portanto, Sophie não se preocupava. Certa vez, ao ter seu carro interceptado por um homem negro armado com um fuzil, Sophie teve uma reação inesperada: quando ele mandou que seus homens começassem a descarregar o carro, ela pôs-se entre eles, impedindo-o, e dizendo que se quisesse fazê-lo, teria que passar sobre seu corpo morto. Ela mesma não soube explicar o motivo pelo qual aquele homem não a fuzilou ali mesmo! Imediatamente, ele fez sinal para que os homens se afastassem e Sophie prosseguiu viagem. Algo nos olhos dela comoveu-o de alguma forma. Quem sabe, a coragem daquela mulher tão bela, que poderia estar em qualquer parte do mundo levando sua vida, mas que preferia estar ali para ajudar a cuidar daquelas pessoas.

Sophie tinha se tornado uma mulher muito rica após a  morte da mãe e o recebimento da herança de família. Mesmo assim, gastava tanto que seus recursos se esgotavam rapidamente. Aplicava quase todo o seu salário na compra de medicamentos para as crianças que encontrava nos hospitais. 
E foi justamente em um hospital, em meio à morte, doenças, choros e muita infelicidade, que ela conheceu Zaki. Ele movia-se rapidamente entre camas e tubos de soro, usando um jaleco branco encardido. Fazia parte dos Médicos Sem Fronteiras, atuando em seu próprio país. Zaki era negro como ébano, alto e esguio como os membros da tribo a qual pertencia. Sophie apaixonou-se por ele em questão de poucas horas, e foi correspondida ao mesmo tempo. 

A história de Zaki era muito triste, e ele contou-a para ela enquanto estavam sentados à mesa de um bar coberto de poeira vermelha, diante de dois copos de gim, horas após se conhecerem:

- Quando eu tinha oito anos, nossa casa foi invadida pela milícia. Meus dois irmãos mais novos foram mortos, pois eram pequenos demais para que eles os levassem. Durante horas, eu e meus pais passamos pelas mais hediondas formas de tortura e humilhação. Eu não conseguia entender o porquê de minha família estar sendo dizimada daquela forma. Mesmo tendo crescido sempre em meio ao medo, eu preferia acreditar que aquelas histórias horríveis que ouvíamos todos os dias diziam respeito apenas às outras pessoas, nossos vizinhos e conhecidos, até que nós nos tornamos protagonistas de uma delas. 
Minha mãe foi estuprada várias vezes, diante de mim e de meu pai. Ela não resistiu e acabou morrendo. 
Naquela noite, na escuridão do quarto onde estávamos presos, eu escutava o choro e os gemidos de dor de meu pai, e não sabia o que fazer para aliviá-los, já que eu mesmo estava cheio de dor e de medo, e também de ódio pelos homens que fizeram aquelas coisas à minha mãe, irmãos e também a nós. Foi a madrugada mais apavorante e triste de toda a minha vida; depois daquilo, entendi que eu seria capaz de passar por qualquer coisa – qualquer uma – e sobreviver. Eu nem suspeitava o que estava para acontecer na manhã seguinte...

Zaki fechou os olhos antes de continuar, e Sophie colocou a mão sobre a dele. Ele deixou-a ficar. O contraste de sua mão pequena e tão branca sobre a mão tão grande e negra de Zaki pareceu-lhes um arranjo perfeito. Zaki continuou:

-De manhã cedo, eles nos arrastaram para fora, e puseram fogo na casa. Os corpos de meus irmãos e de minha mãe ficaram lá dentro, e eu chorava, pensando que talvez pudessem estar vivos ainda, mas meu pai me consolava, assegurando-me de que eles nada mais podiam sentir. Olhei para o rosto do meu pai, e notei que faltava alguma coisa; sua alma não estava mais lá. Ele tinha parado de chorar, e a secura de seus olhos vermelhos denotavam indiferença. Os homens nos cercaram, e entregaram-me um fuzil, ensinando-me como usá-lo. Quando perceberam que eu tinha aprendido a atirar, mandaram que eu atirasse em meu pai; disseram-me que se eu não o fizesse, teria que assistir enquanto eles o torturavam e cortavam seus pedaços ainda vivo. Olhei para meu pai: ele apenas assentiu com a cabeça, fechando os olhos. Eu sabia que se eu pensasse muito, não teria coragem de fazer o que tinha que fazer, e então eu atirei. Depois daquilo, eles me sequestraram e me obrigaram a segui-los e a tornar-me um deles.
Nas nossas viagens, eu matei muitas pessoas. Atirei em crianças e em mulheres, mas jamais consegui cometer estupro. Eu fazia o que tinha que fazer porque era a única maneira de sobreviver. Eu sentia medo o tempo todo, e eles sabiam que de alguma forma, eu não era um deles, e então me vigiavam o tempo todo.
Até que um dia, após uma noite de muita comida e bebida alcoólica, eles dormiram pesadamente. Eu passara a noite toda fingindo que estava bebendo também, pois eu tinha um plano: matar todos eles. Assim, quando eles finalmente se cansaram e dormiram de tanta bebida, eu peguei uma metralhadora e matei-os todos enquanto dormiam. Ninguém sobreviveu. 

Ele olhou para Sophie. A mão dela ainda estava sobre a dele, encorajando-o:

-Eu nunca contei essa história a ninguém. Não sei por que eu a estou contando a você, Sophie. 

Ela disse:

-Termine sua história, e logo saberá por que. 

- Passei a perambular pelas ruas da cidade, apavorado e doente, onde passei fome e sede durante dias até que uma equipe dos Médicos Sem Fronteiras me resgatou. Eu tinha quinze anos então. Eles me colocaram em um hospital e trataram de minha desnutrição e dos meus ferimentos. Eu cresci naquele lugar, e logo manifestei meu desejo em ser médico como eles. Mark, um médico americano negro cujo pai tinha uma grande fortuna, escreveu à sua família, e eles me acolheram em sua casa nos Estados Unidos, onde financiaram meus estudos e me hospedaram como se eu fosse filho deles. Pela primeira vez na vida, eu me senti seguro e protegido. Meu destino mudou desde então. Enquanto morei nos Estados Unidos, compreendi que era possível me tornar feliz e resgatar a minha alma de todas as atrocidades que tinha sido forçado a cometer. 

-Você nunca falou com eles – seus pais americanos – sobre elas, não é?

-Nunca, pois tive medo de que me rejeitassem. Eu tinha planos de terminar os estudos e permanecer nos Estados Unidos durante algum tempo, e só então voltar à África. Era como se eu estivesse tirando férias. Porém, dois meses depois que terminei a faculdade, Mark foi morto, e eu voltei à África com os pais dele. Não sei bem o motivo, mas eles decidiram me adotar depois daquilo. Sabe, eu tive muita sorte. 

-E onde eles estão hoje?

-Voltaram os Estados Unidos, e vivem na Flórida. Sempre nos falamos, e uma vez por ano, vou visita-los. Bem, esta é minha história. Qual é a sua?

Após ouvir a história da vida de Zaki, Sophie compreendeu o motivo de sua atração por ele: eram almas gêmeas. Ambos tinham sofrido muito quando ainda eram crianças, e tinham cometido atrocidades em nome da própria dignidade. Na África, enquanto ajudavam outras pessoas, tinham a chance de lavar suas almas e expulsar os fantasmas que os perseguiam. Sophie se deu conta de que desde que começara a ajudar outras pessoas, sua vida deixara de ser sempre tão pesada. Já não tinha mais pesadelos, e os fantasmas da família Damata literalmente não a perseguiam mais. 

Depois que Zaki ouviu a história dela, eles se beijaram, e tudo foi perfeito. Casaram-se meses depois. Com a herança de Sophie, fundaram um centro de reabilitação para crianças amputadas. Também compraram uma pequena casa na qual Sophie deu à luz ao filho deles, que foi batizado como Taú em homenagem ao pai de Zaki. Ela continuou seu trabalho como fotógrafa, e recebeu muitos prêmios.

Um ano e meio após todos aqueles acontecimentos, Décio finalmente lançou seu livro, “A Resenha do Mal,” que tornou-se um best-seller. Poucas horas antes da noite de autógrafos, enquanto Rafaela se arrumava no quarto e ele a aguardava na sala, Brian aproximou-se dele tirando do bolso do terno uma revista dobrada:

-Achei que você gostaria de saber, mano.

Décio olhou a capa, na qual viu Sophie e sua nova família em uma reportagem. Ela acabara de vencer o prêmio Pulitzer de fotografia. 




FIM






















A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...