segunda-feira, 22 de agosto de 2016

FEITIÇOS DE AMOR - PARTE II



Os dias que seguiram àquele foram um tanto tensos. Eu chegava da escola e encontrava vó Duda na cozinha, terminando o almoço com a ajuda de mamãe, como sempre. Mas não havia mais a conversa animada entre as duas, nem o rádio ligado sobre a geladeira, tocando música antiga; elas trocavam apenas as palavras que fossem necessárias entre elas, sobre as coisas da casa. Eu e Flora almoçávamos, e logo depois nos trancávamos em nosso quarto para fazer os deveres da escola, ou então eu e Flora íamos à casa de Dora. Parecia que por lá todo mundo já sabia sobre o clima pesado lá de casa. Os tios Nestor e Joana nos perguntavam como estavam as coisas, embora não tocassem diretamente no assunto, e se entreolhavam enquanto respondíamos – também sem tocar no assunto. 

Até que um dia, enquanto todos estávamos sentados no quintal dos fundos ouvindo Dora nos mostrar sua nova canção, Flora interrompeu-a:

-Tia Joana, você sabe alguma coisa do motivo porque mamãe e Tia Maya brigaram?

Imediatamente, o ar cobriu-se de tensão, e Dora largou o violão no canto da parede, dando a impressão de que até ela sabia – menos nós. Tia Joana hesitou:

-Bem, eu não sei se devo tocar nesse assunto com vocês, Flora. 

Flora afirmou:

-Mas vó Duda disse que nós precisávamos saber, e ninguém nos conta nada.

Eu concordei com Flora – o que era raro de acontecer.

Tia Joana hesitou:

-Bem, se é assim...

 Tio Nestor, coçando a cabeça, levantou-se e foi saindo, dizendo:

-Bem, eu vou ao mercado fazer umas compras. Não quero me meter neste assunto.

Tio Nestor não gostava de assuntos complicados, e sempre fugia deles. Era um homem quieto, jamais falava mal – aliás, jamais falava – de ninguém. Eu me senti bem mais confortável sem a presença dele ali entre nós, assim poderíamos tratar daquele assunto sem nos sentirmos constrangidas ou sem achar que estávamos remexendo ossos enterrados.

Dora piscou para mim, tentando aliviar a tensão, mas fingi não perceber. Eu e Flora tínhamos os olhos presos em Tia Joana, que finalmente começou:

-O que houve aconteceu há muitos anos, meninas, quando seus pais ainda moravam em São Paulo. Eu não sei se vocês sabem que antes de namorar a mãe de vocês,  Berto namorava Maya.

Eu e Flora nos entreolhamos de olhos arregalados, dizendo quase ao mesmo tempo:

-Não!

-Pois é. Os dois estavam namorando há algum tempo. Tinham se conhecido na faculdade, quando Maya foi estudar engenharia. Namoravam há quase três anos. Até que eles terminaram os estudos, e Maya voltou para São Paulo, levando Berto para apresentar aos avós. Por favor, não quero que vocês julguem sua mãe... certas coisas apenas acontecem, e ninguém sabe bem o motivo.

Eu mal conseguia respirar, não desejando perder nem um simples detalhe daquela história, enquanto Dora brincava de enrolar um fio de capim no dedo, despreocupadamente. Eu tive certeza de que aquela história era muito familiar até mesmo para ela, e que apenas eu e Flora tínhamos sido poupadas da verdade. Tia Joana continuou:

-Foi bater os olhos em Berto, e sua mãe apaixonou-se por ele. Eu bem que tentei tirar Berto da cabeça de Agnes, mas ela não me escutava! Eu achava que era apenas algo passageiro, fruto da eterna rivalidade entre Agnes e Maya.

-Elas brigavam desde pequenas? – perguntou Flora.

-Sim, ou seja, mais ou menos, pois Maya nunca brigava com sua mãe. Porém... Agnes tinha ciúmes doentios da relação dela com papai e mamãe. Achava que ela tinha vindo tomar seu lugar naquela casa. Nossos pais acharam melhor não tomar nenhuma atitude, achando que aquilo tudo, ou seja, toda aquela rivalidade ia acabar passando, mas só piorou com o tempo. Chegou a um ponto em que acharam melhor mandar Maya estudar em outra cidade a fim de poupá-la das agressões de Agnes.

Imaginar minha mãe como alguém que, um dia, tinha sido uma pessoa agressivamente ciumenta, era difícil para mim, pois eu a tinha como a mulher mais equilibrada que eu conhecia. Ela aconselhava as pessoas, ajudando-as em suas dificuldades. Flora também parecia estar muito avessa a acreditar naquela história, embora nós duas soubéssemos que Tia Joana não mentiria para nós.

-Você está nos dizendo que nossa mãe... era uma pessoa ciumenta, a ponto de agredir alguém da própria família?

-Sim, meninas, infelizmente isso é verdade. Mas isso foi há muito tempo, e tenho certeza de que Agnes mudou. Sou testemunha disso.

Flora agitou-se, respondendo:

-Então você deveria ter visto a reação dela quando Vó Duda disse que queria que ela convidasse Tia Maya para passar uns tempos conosco! Não foi, Eleanor?

Dora interrompeu, abrindo a boca pela primeira vez, tentando dar um tom dramático às suas palavras. Imaginei-a pensando em uma letra para outra de suas canções, tendo como tema, a história de mamãe e Maya:

-É... a gente sempre carrega o passado nas costas, embora tentemos disfarçar...

Tia Joana concordou com ela, e continuou:

- Mas lembre-se de que não devemos julgar ninguém, filha! Todas nós amamos Agnes, e se ela cometeu erros no passado, todos cometemos e cometeremos também. 

Nós todas concordamos, como se aquilo fosse nos redimir do que estava por vir. Tia Joana continuou:

-Então... quando Maya e Berto anunciaram o noivado, Agnes ficou desesperada. Tentou de tudo para dissuadi-lo, dizendo que Maya não era a pessoa certa para ele, mas Berto a amava, e nenhuma das palavras de Agnes o atingiram. 

-E tia Maya não fez nada?

Bem, aquela foi a única ocasião que eu me lembro de vê-las realmente brigando. E falo de briga física também. As duas se engalfinharam um dia, e papai teve que se meter para separá-las. Depois daquilo, elas simplesmente deixaram de se falar. O dia do casamento se aproximava, e Maya já se ocupava com o vestido e os convites. Berto procurava por um apartamento onde ambos pudessem começar a vida, e Agnes procurava por uma maneira de separar os dois. E nada que eu, mamãe ou papai dissessem, tinha qualquer poder de convencê-la a esquecer aquela história.

Tia Joana ficou em silêncio. Parecia estar muito pensativa. De repente, até Dora percebeu que havia uma parte daquela história que até ela desconhecia, e olhou para a mãe, intrigada, jogando fora o fio de capim que antes enrolava nos dedos, sentando-se aprumada. Eu a incentivei, após um período de silêncio que pareceu longo demais:

-E então?

-Eu... não sei se deveria tocar nesse assunto com vocês. Daqui adiante, acho melhor que vocês perguntem a Agnes o que aconteceu. 

Dizendo aquilo, ela começou a se levantar. Nós três protestamos, mas tia Joana simplesmente entrou em casa e trancou-se no banheiro, dizendo que precisava tomar um longo banho. Eu olhei para Dora:

-O que acontece agora, Dora? Parece que você já conhecia essa história.

Ela arregalou os olhos, o que fez com que seu rosto se arredondasse ainda mais:

-Sim, quero dizer... só que não. 

Flora protestou:

-Como assim?

-Assim mesmo. Não sei de mais nada, mas com certeza, mamãe deixou bem claro que há mais para sabermos. A única coisa que eu sabia – juro – era que tia Agnes tinha roubado o namorado de Tia Maya, e que por isso, elas não se falavam mais. Daí em diante, eu não sei de mais nada.

Eu e Flora suspiramos de frustração quase ao mesmo tempo. Flora se despediu, dizendo:

-Bem, tchau para quem fica. Vou para casa, ver se escuto alguma coisa.

Assim, eu e Dora ficamos sozinhas. Ela pegou seu inseparável violão, e começou a dedilha-lo ao acaso. Eu estava muito aflita, e passei a andar de um lado para o outro. Ela explodiu:

-Pare com isso, Eleanor! Está me deixando maluca.

-Dora, tente se lembrar: o que mais você sabe?

-Juro que não mais do que mamãe acaba de contar. Agora sossegue, pois acho que essa história está chegando ao fim. Sua mãe já convidou Tia Maya para vir?

-Não sei, mas acho que não... está ‘enrolando’ vovó. 

-Por que você não pergunta à Vó Duda sobre o que aconteceu depois? Se foi ela mesma que disse que vocês deveriam saber da verdade...

Aquela ideia me pareceu genial. Por isso eu gostava tanto de Dora!

-Dora... você é um gênio!


(continua)





2 comentários:

  1. Ana, segredos de família, são sempre catastróficos, às vezes é melhor nem saber...
    Já começou a minha agonia, pelo que possa acontecer...
    Gratidão, Ana, felizes dias, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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  2. Ana,
    Mais uma bela obra por si criada.
    No mesmo estilo das anteriores, ou seja com a sua marca.
    Leio devagar para tornar o post maior...
    Boa coisa não terá a Agnes feito - aguardemos.
    Cumprimentos, e bom Domingo.
    Dilita

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