segunda-feira, 14 de outubro de 2024

A RUA DOS AUSENTES - parte 10

 





CAPÍTULO 10 –

 

TODAS AS RESPOSTAS?

 

Eduína recostou-se na poltrona, supondo que suas perguntas demorariam para serem respondidas. A primeira dela era sobre a atmosfera do lugar, e ela olhou para cima, tentando formular a pergunta da forma mais clara possível:

- Hã... Eu percebi que, ao chegar aqui, eu me tornei mais bonita de repente. Por que? Isso tem a ver com o ambiente desse lugar?

-Não. Eu desejei isso ao lançar a maldição, há muitos anos, como uma forma de compensar você. Considere como um pequeno presente.

Ela concordou com a cabeça, mas não agradeceu.

-Segunda pergunta: Como o seu gato apareceu aqui?

A bruxa sorriu quase que imperceptivelmente antes de responder:

- Félix não é exatamente um gato doméstico. Ele é  meu familiar – um espírito que eu moldei para me trazer as informações que eu preciso, mas ele está em formato de gato porque aparentemente, Guiomar adora gatos. Acho que são a única coisa que ela adora, na verdade, e eu sabia que se ele aparecesse aqui, ela cuidaria dele. A cada dez ou quinze anos, eu invento um novo gato para ela , mas na verdade, ela não desconfia que todos os... “gatos” são o mesmo.

-Mas você me disse que podia ver as coisas, mesmo estando adormecida.

-É verdade, mas elas nem sempre me surgem claramente. Mas agora que você me despertou e devolveu meu anel, meu poder aumentou muitíssimo. Talvez eu nem precise mais de Félix... (ela disse aquilo olhando para o gato de soslaio, e o pobre animal se encolheu de medo, pulando do sofá e entrando na cozinha para se esconder). Hélida riu alto. Eduína, que era muito sensível aos animais, não gostou daquela última observação, e formulou sua terceira pergunta.

- Você veio de onde? Quem é você, como surgiu nessa história?

A bruxa sentou-se mais confortavelmente, pois aquela parte seria mais longa.

-Na verdade, essa é a minha história. Desde sempre.

Eduína percebeu que seria uma longa história, e achou melhor recostar-se confortavelmente na poltrona aveludada. A outra mulher, percebendo a disposição de Eduína em ouvi-la, começou seu relato após um longo suspiro:

-Eu e minha família éramos muito ricos. Éramos a família mais rica de Lyon. Meu pai era um comerciante de tecidos e perfumes finos, e também especiarias. Minha mãe herdara dos pais uma imensa fortuna que eles amealharam fabricando e vendendo joias. Assim era a nossa família. Morávamos em um castelo e éramos uma família unida e muito famosa.

Devido aos negócios de nosso pai, eu, minha irmã Adelle e meus pais tivemos que nos mudar para a Espanha em 1670. Lá chegando, fizemos amizade com um dos antepassados desta família horrenda, um duque que aparentemente tinha o interesse de tornar-se nosso amigo apresentando-nos à sociedade. Eu tinha dezessete anos de idade naqueles tempos, e minha irmã, apenas sete anos.

Naquele momento, o rosto de Hélida entristeceu. Ela baixou os olhos, mas continuou sua história:

- Não me lembro exatamente onde morávamos... já faz tanto tempo... os detalhes se perderam. Mas sei que nos mudamos para esta mansão que ficava numa área campestre, auxiliados pelo conde, que apresentou nosso pai ao proprietário. Como tínhamos a intençao de retornar a Lyon no ano seguinte, meu pai decidiu apenas alugar a casa. Eu passava a maior parte do meu tempo andando pela floresta que circundava a casa. Ela era profundamente verde, e eu nunca havia me sentido tão bem em um lugar! Logo eu senti que alguma coisa diferente estava acontecendo comigo.

Toda vez que eu estava na floresta eu sentia que os pássaros se aproximavam cada vez mais, e havia outros animais também, como veados e guaxinins, que chegavam mais perto e me observavam. Um dia, encontrei uma senhora; ela era muito idosa e estava um tanto mal vestida para os padrões da minha família, mas parecia ser de confiança. Ela me disse que eu tinha “O Dom.” Logo ficamos amigas. A cada interação que tínhamos – passei a frequentar o seu chalé escondida dos meus pais – ela me ensinava sobre as ervas, as plantas em geral, os animais. Me mostrou seu grimório...

- O que é isso?

- Um livro de feitiços. Ela me ensinou a manipular a natureza. Parecia que eu simplesmente me lembrava das coisas, tal a rapidez com que aprendia tudo e não esquecia jamais um feitiço após aprendê-lo. Em apenas alguns meses, eu já dominava todas as práticas do grimório, deixando-a impressionada. Ela decidiu que eu estava pronta, e abrindo o armário da cozinha, pegou uma pequena caixa e tirou de lá um objeto embrulhado em veludo negro.

- O anel, suponho.

- Sim, o anel. Este mesmo anel que eu uso hoje. E ela me pediu que o usasse com sabedoria e altruísmo, e não o mostrasse a ninguém. Alertou-me para ser sempre discreta sobre os meus poderes e não contar a ninguém sobre eles – nem à minha própria família. Mas o que deveria ter sido uma bênção, logo transformou-se em uma maldição. Porque eu achei que poderia consertar o mundo e ajudar as pessoas. Mas elas são ingratas, acredite em mim!

Naquele ponto do relato, os olhos de Hélida brilharam de raiva, e ela bufou, sentando-se na ponta do sofá. Instintivamente, Hélida encolheu-se na poltrona, mas pediu:

- E o que aconteceu? Continue sua história, por favor.

-Eu usei meus poderes para curar, ajudar, guiar. Pedia às pessoas que mantivessem segrêdo, mas logo havia uma fila de miseráveis e aproveitadores à porta de nosso castelo. Todos queriam a mesma coisa: usar meus poderes para obterem algum tipo de vantagem, e nem sempre era a cura para alguma doença, mas tinha a ver com dinheiro e poder. Minha família teve que colocar guardas à porta, mas eles não foram suficientes para conter a multidão, e logo a igreja e esta família ficaram sabendo dos acontecidos. Um dos membros era um bispo importante, e eu fui presa juntamente com a minha família.

Hélida passou a andar de um lado ao outro da sala, seguida pelos olhos fascinados de Eduína.

Meus pais e minha irmã foram torturados e mortos, e meses depois, fui colocada para dormir. Meu poder é tão grande, que não conseguiram me matar – e acredite, eles tentaram. Nossos bens foram distribuídos entre o bispo e sua família.

Eduína respirou profundamente, mexendo-se desconfortavelmente na poltrona. Hélida olhou para ela, e disse friamente:-Mais alguma coisa que deseja saber?

Eduína ergueu a cabeça, dizendo:

-Se tudo o que está me dizendo é verdade, por que quando eu encontrei você e a despertei, você me olhou e disse: “Então você é filha dela?” Se eu sou apenas mais uma, alguém preparado para servir ao propósito dele, por que perguntou-me aquilo?

Hélida fitou-a nos olhos, e Eduína sentiu um pouco de tontura, mas mantevese firme. A bruxa era realmente forte!

-Eu me referi ao personagem que lhe venderam, não a você ou à sua mãe verdadeira. Para todos os efeitos, você é a filha de Viviane.

-E todos eles sabem sobre sua verdadeira origem, até mesmo Felício? Porque ele me disse que...

Hélida a interrompeu:

-Sinto muito, mas Felício, sua paixonite, é tão falso quanto todos eles. O dever dele é ganhar a sua total confiança para facilitar o ritual. Eles querem que você se apaixone por ele.

-Mas como, se você mesma disse que eu fui preparada para não ter sentimentos?

A bruxa a olhou como se estivesse falando com a pessoa mais néscia do mundo:

- Não notou nenhuma diferença na sua maneira de sentir ultimamente? Eles estão diminuindo a dose de seus medicamentos. Apenas o suficiente para que você sinta alguma coisa por ele, o que não é difícil, já que Felício pode ser bastante sedutor...

Eduína examinou seus últimos dias e teve que admitir que pensava mais em Felício do que seria necessário. De uma maneira que nunca havia pensado em Cláudio, a quem beijara e com quem fizera amor e compartilhara alguns segredos.

- Os enjoos e desmaios que você vem tendo são devidos a isso, a falta dos remédios que tomou desde sempre. Escute; estou prestes a obter a minha vingança, e você será salva desse destino horrível que prepararam para você se eu conseguir. E ainda prometo a você segurança financeira até o final da sua vida. Se me ajudar, é claro. Mas já vou avisando que não vai ser nada fácil.

Eduína pensou antes de responder, e o silêncio entre as duas durou alguns minutos antes que ela respondesse:

-Mas se você é uma bruxa poderosa, por que apenas não os destrói? Para quê precisaria de mim?

Hélida caminhou até ela, e dobrando o corpo para encará-la de frente, e pondo as mãos em cada um dos braços da poltrona em que Eduína estava sentada, aproximou o rosto do dela, fazendo com que a moça se encolhesse novamente.

-Porque se eu fizesse isso, não estaria vingando a minha família, os dias e dias de torturas aos quais foram submetidos. Eu quero que eles PAGUEM! Eu quero que me paguem da mesma forma, com os mesmos requintes de crueldade! E você nem precisa ficar para ver. Destruí-los seria realmente muito fácil, mas eu preciso de mais! Quero condená-los a uma eternidade de sofrimentos! A todos eles! Inclusive aos que ainda não voltaram!

Dizendo aquilo, Hélida se afastou, sentando-se calmamente no sofá. Eduína respirou profundamente, esperando que as batidas de seu coração voltassem ao normal, enquanto via, estupefata, o rosto da outra voltando à calma. Parecia uma tempestade que passava, voltando às profundezas do mar.

-E quantos são eles, ao todo? De quantos você está falando em se vingar?

A bruxa virou a cabeça vagarosamente para olhá-la:

-São ao todo trinta e cinco. Por isso preciso de ajuda, isso não vai acontecer muito rapidamente. Vai levar algum tempo até que eu conjure cada um deles de volta à vida ao mesmo tempo.

-E quando você vai começar a fazer isso?

-Já comecei. Amanhã de manhã Viviane voltará. Serão trinta e cinco dias. Um para cada pessoa.

 

 (continua)

 

 

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