terça-feira, 28 de abril de 2015

AS RUAS DAS ÁRVORES QUE CHORAM - HISTÓRIAS EM PETRÓPOLIS





Havia a Rua da Feira. Nunca soube, e até hoje não sei, o nome daquela rua. Só sei que era lá que eu ia com minha mãe uma ou duas vezes por semana, bem cedinho, quando o dia mal amanhecera. Saíamos de casa com nossas bolsas de feira coloridas feitas de couro sintético. A minha era pequena, com quadrados verdes e vermelhos, e eu carregava nela as verduras mais leves: alface, couve, cheiro-verde. Mal chegávamos à feira, e aquele mundaréu de gente carregando sacas enormes, cheiros misturados de flores, peixes, verduras e coisas em decomposição, cães abandonados, os sons dos pregões dos feirantes, tudo ia entrando pelos meus olhos, ouvidos e nariz. Uma confusão de cores, sons e cheiros.

Começávamos ali no início da feira com as sacas vazias. Minha mãe escolhia os tomates, as batatas, as cenouras, as maçãs. Pechinchava com os feirantes. Reclamava quando achava que estava caro. Eu ficava com medo de me perder no meio daquele monte de gente, e ficava praticamente grudada na barra da saia dela. De repente, uma voz atrás da gente: "Dona, deixa eu carregar?" Era um garoto pequeno, pouco mais velho que eu, e eu me perguntava se ele aguentaria carregar aquela saca enorme cheia de legumes. Minha mãe deixava ele pegar em uma das alças, só para dar a ele uns trocados mais tarde. Ele nos seguia por toda a feira, até que acabássemos de comprar tudo, e nos levava ao ponto de táxi ou de ônibus. Hoje, seríamos acusadas de escravizar uma criança!

Eu gostava quando minha mãe ia às compras com minha irmã mais velha, aos sábados, e eu, já adolescente, ficava com a casa só para mim: eu escrevia em meu diário, fumava cigarros "Charm" e escutava música no último volume. Também gostava quando íamos todos juntos às compras: eu (criança), minhas duas irmãs (a outra irmã e o irmão mais velho estavam no trabalho) e nossos pais. Entrávamos no antigo supermercado ENSA - que mais tarde, virou CB, e depois, ABC, e depois EXTRA, e mais tarde, Princesa, e hoje eu nem sei mais. A gente circulava pelo mercado tentando lembrar as regras: "Não peçam nada!" Minha mãe às vezes tinha pena, porque eu ficava olhando os iogurtes caros que não podíamos comprar, e ela pegava um, dizendo: "Termine antes de chegarmos ao caixa!" E eu comia com a mão, passando o dedo no fundo do pote.

As compras de roupas aconteciam uma ou duas vezes ao ano. Meu pai nos levava à loja Mona Modas e fazia um crediário gigante. Comprava um vestido para minha mãe e algumas roupas para nós, crianças. Tínhamos excelentes lojas em Petrópolis, como a antiga Casa Sloper, que vendia de tudo, desde roupas e sapatos a brinquedos, bijuterias e cama e mesa. Era uma loja grande e luxuosa, bem no centro da cidade. Eu adorava comprar lá, mas isso raramente acontecia. Tínhamos a Sapataria da China, a Sapataria Moderna, a Schetini... comprar sapatos era um evento! Eu chegava em casa e ficava andando pelo quintal, olhando meus sapatos novos, com cuidado para não arranhá-los. A vida era difícil. Logo minha mãe ralhava: "Vá tirar esses sapatos, que são de sair!"

Meu pai comprava tudo a crediário: nossa geladeira demorou dois anos para ser totalmente paga. Os móveis de cozinha, as camas, colchões, a TV... tínhamos uma preto-e-branca, daquelas de válvula, que precisava esquentar um pouco antes da imagem aparecer. Ela ficava tão quente, que se tocássemos nela, queimávamos a mão. Meu pai a desligava durante os comerciais, "para esfriar." Um dia, ela queimou. Ao levá-la ao conserto, meu pai exclamou: "Mas eu não sei o que houve! Até desligava na hora dos comerciais, para esfriar!" O técnico riu, e disse: "Foi por isso que ela queimou! Esse liga/desliga/liga/desliga..." Nunca mais ele desligou na hora dos comerciais, mas comprou um estabilizador que pesava uma tonelada e esquentava feito o inferno. Quando ele chegava do trabalho, colocava a mão rapidamente sobre o estabilizador, e se estivesse quente, ele brigava: "Vocês ficam vendo TV o dia todo! Vai acabar queimando, e depois, o ferrado sou eu!" Assim, desligávamos alguns minutos antes que ele chegasse... eu me lembro de ter assistido à suposta chegada do homem à lua, em 1969, aos quatro anos de idade, naquele aparelho de TV...

Quando a TV dos vizinhos queimava, era comum que a família inteira aterrissasse de para-quedas na nossa sala de estar e ficasse lá até tarde da noite. Meu pai ficava furioso, mas não queríamos ofender ninguém, então, quando ele achava que estava na hora dos vizinhos irem embora, ele dava boa noite a todos, e dando a volta por fora da casa, ia até o local da antena e a virava, para que os canais saíssem do ar. Ele fazia aquilo sempre. Não sei como eles não desconfiavam...

Acho que uma das poucas lojas da cidade que resistiram até hoje, é a filial das Lojas Americanas. Quando eu saía do colégio, geralmente ia até lá com alguns colegas. Eles vendiam balas à varejo, e era comum todo mundo pegar uma ou duas quando passava por elas. Todos faziam aquilo, adultos e crianças, e ninguém considerava aquilo como roubo, mas uma vez, sem querer, acabei 'roubando' um caderno: coloquei-o no meio dos outros para pagar quando saísse. Minha mãe pegou um outro caderno, sem reparar que eu já havia pego um. Ela pagou por ele. Ficamos algum tempo fazendo compras, e esqueci-me totalmente do caderno que estava comigo. Só percebi quando chegamos em casa.

Infelizmente, as boas lojas de Petrópolis fecharam. Hoje, o que mais se vê por aqui são drogarias e lojas de 1,99, a não ser na Rua 16 de Março, onde ainda se pode comprar alguma coisa. Fico pensando: Por que será que todas as lojas que abrem por aqui hoje em dia acabam fechando? Parece que alguém enterrou uma cabeça de burro em algum lugar... quanto às tentativas de shopping centers, elas sempre falham. Acho que petropolitanos não gostam de shoppings. Preferem andar pela rua ao fazer suas compras, mesmo debaixo de chuva ou com frio. Os petropolitanos adoram novidades; quando abre um novo restaurante, loja ou clube, fazem fila na porta; depois de algum tempo, desaparecem, e o negócio acaba falindo por falta de clientes. Não dá para entender!

Temos fama de sermos ricos. Se chegamos a alguma outra cidade e dizemos que somos de Petrópolis, todo mundo nos olha com uma certa reverência ou inveja: "Hum, você é de Petróópolis?!?!" A fama que a Família Imperial deixou por aqui permanece até hoje, e acho que eles pensam que todo mundo aqui tem sangue nobre. Muito pelo contrário: Petrópolis hoje é uma cidade que sofre devido à invasão de suas encostas, desmatamento, uso indevido da água, explosão demográfica - basta dar uma olhada em Itaipava o número absurdo de condomínios que estão sendo construídos, e  eu não sei como essa gente vai circular por aqui quando todos estiverem prontos e ocupados, ou se vai ter água para tanta gente. 

Mesmo assim, ainda desfrutamos de boa qualidade de vida por aqui, na maioria dos bairros.

(continua)








segunda-feira, 20 de abril de 2015

AS RUAS DAS ÁRVORES QUE CHORAM - HISTÓRIAS EM PETRÓPOLIS





"Midnight, not  a sound from the pavement. Has the moon lost her memory? She's smiling alone..."

Ao som desta canção e sob uma lua cheia fantasmagórica, eu fui atraída para fora de casa em um anoitecer frio. Minha mãe veio atrás de mim, para saber de onde vinha a canção. Vinha da casa vizinha. Barbra Streisand cantando "memories."  Nós ficamos escutando aquela música linda no quintal, enquanto o luar branqueava a superfície brilhante das folhas de bananeiras. Quando a música terminou, ficamos algum tempo ainda mudas, como que encantadas por alguma espécie de magia. 

Eu às vezes caminhava pelas ruas invernais de Petrópolis com músicas na minha cabeça, as mãos nos bolsos do casaco marrom de capuz que chegava aos joelhos, os olhos grudados na calçada. Na minha cabeça, como se fosse uma play list, iam surgindo as letras musicadas de Supertramp, Queen, Barbra Streisand, Elton John, Peter Frampton - a galera que fazia sucesso naqueles tempos. Eu às vezes erguia os olhos e olhava para os carros passando, as pessoas, as árvores, o céu. Criava vídeo clipes em minha mente.

Certa vez me perguntaram, enquanto caminhávamos pela Rua Paulo Barbosa em uma sexta-feira movimentada: "Por que você anda olhando para o chão?" Não sabiam que eu via tudo, menos o chão. Mas a partir daquele dia, com medo de que me achassem esquisita, passei a andar de cabeça erguida, olhando para frente. E não vi mais nada. Muitas pessoas reclamavam e me perguntavam por que eu não as cumprimentava. É que eu ia focada naquilo que eu precisava fazer, eu respondia. Tentando não parecer esquisita, eu parecia mais esquisita do que antes.

Eu amava ir ao cinema sozinha nas tardes de sábado. Sentava-me nas cadeiras do balcão do cinema Casablanca, que fica em um hotel que, naquela época, era luxuoso. Não tinha quase ninguém no cinema. Eu ficava ali, totalmente envolvida pela história que rolava na tela, como se fizesse parte dela. Uma vez, estava tão absorvida que nem percebi quando alguém sentou-se ao meu lado. Só notei quando senti uma mão atrevida sobre o meu joelho.

Aquilo foi chocante... acho que eu tinha apenas doze ou treze anos. Olhei para o lado com o canto do olho, e vi que era um homem que fingia estar assistindo ao filme enquanto tentava me bolinar. Ergui-me de repente da cadeira, assustada, e acho que o assustei mais ainda, pois ele levantou-se e saiu, de cabeça baixa, sem olhar para trás.  Nunca contei aquilo para ninguém, pois temia que meus pais nunca mais me deixassem ir ao cinema, mas aprendi que, em um cinema vazio, toda vez que alguém senta-se ao nosso lado, devemos levantar e ir embora o mais rápido possível.

E um dia, cantando "Bohemian Rhapsody," do Queen, entrei na loja onde uma de minhas irmãs trabalhava. Me perguntaram que música era aquela, e eu repeti o que havia aprendido traduzindo a letra com um dicionário. Me disseram que a música era horrível, ridícula, e aprendi que a gente não deve sair por aí falando das coisas que gosta com qualquer um, pois corremos o risco de ser ridicularizados. 

Caminhando pelas ruas de Petrópolis, aprendi a olhar muito, imaginar muito, pensar muito e falar bem pouco. Adolescente, eu às vezes ia sozinha às palestras do Centro de Cultura. Certa vez, assistia a uma palestra sobre racismo, onde a palestrante era uma moça negra muito bonita, mas com o cabelo esticado para ficar como o de uma branca. De repente, ela convidou a platéia a fazer perguntas. Meu coração batia na garganta. E eu me vi abrindo a boca e perguntando a ela por que ela esticava o cabelo, pois se ela se orgulhava de ser negra, não deveria esticar o cabelo. Eu estava tão nervosa que nem me lembro da resposta que ela me deu. Meus ouvidos taparam-se. Só sei que algumas pessoas da plateia se viraram para me olhar, e ao constatarem a minha pouca idade (deveria ter uns quatorze anos), apenas balançaram a cabeça em desaprovação. Aprendi que não se deve fazer perguntas embaraçosas durante palestras.

Eu saía para andar sozinha. Quando tinha dinheiro, comprava algum disco de vinil, e amava andar com meus discos debaixo do braço e levá-los aonde quer que eu fosse. Literalmente, Petrópolis me viu crescer com trilha sonora. Havia uma loja chamada A Musical, que deixava a gente escutar trechos dos discos antes de decidirmos se queríamos realmente comprá-los. Eu ficava sempre muito tempo por lá. Adquiri um gosto eclético, pois escolhia os discos pelas capas, pedia para ouvir e muitas vezes, descobria verdadeiras pérolas. Foi assim que conheci alguns compositores clássicos, e também o Aerosmith, Rick Springfield ( a capa me atraiu porque havia uma foto dele e eu o achei bonito demais), Bee Gees, Pink Floyd e muitos outros. A música era a minha vida. Não fazia nada sem que houvesse uma trilha sonora. Até quando eu sonhava acordada, punha uma musica ou a imaginava. 

Tantas e tantas vezes, lá no meu bairro, nós levávamos o aparelho de som para a rua e cada um levava um disco diferente! Ficávamos lá, escutando música após fazermos ligação direta da caixa de luz de um vizinho... conversávamos, dançávamos, tomávamos Coca-cola com rum e fumávamos escondido. Organizávamos festas de São João incríveis... cada um contribuía com alguma coisa. Eu adorava morar naquele bairro. Hoje, quando vou lá, vejo que quase nada mudou, e fico feliz de ter saído.

(continua...)





terça-feira, 14 de abril de 2015

AS RUAS DAS ÁRVORES QUE CHORAM - Histórias em Petrópolis

O ipê próximo à Praça da Liberdade


Cresci na Petrópolis das baixas temperaturas. No inverno, às vezes elas atingiam quase zero. A cidade era bem mais úmida, o que favorecia o crescimento das hortênsias que pintavam as ruas de vários tons de azul. Minha avó paterna morava em um bairro chamado Duchas. A casa dela ficava no topo de uma ladeira, de frente para a rua, e havia na lateral da casa um morro coberto de Marias-sem-vergonha brancas. Estas flores também são conhecidas como Impacient (já ouvi um jardineiro dizendo “impachent”). Eram muito comuns em Petrópolis, especialmente na subida da Serra, onde proliferavam na beira das estradas em cores que variavam entre branco, laranja, vermelho, rosa-claro, lilás, roxo, rosa-choque e vinho. Com a mudança do clima, hoje são bem mais raras. Crianças, brincávamos de ‘pintar as unhas’: passávamos água nas unhas e colávamos as pétalas sobre elas. Durava pouco, mas era divertido... havia muitas moitas destas flores lá em casa, e minha mãe era uma defensora feroz delas. Quando meu pai capinava o terreno, ela ia olhar toda hora para ver se ele não as estava arrancando. Minha mãe gostava de olhar da rua para a casa e ver as flores espalhadas pelo caminho. 

Mais tarde, as hortênsias foram sendo substituídas por lírios amarelos. Os canteiros da cidade passaram a apresentar estas flores. As hortênsias sumiram, praticamente desapareceram, e a alcunha de Cidade das Hortênsias deixou de ter sentido. Hoje eu as tenho em meu jardim, e adoro abrir a janela de manhã e deparar com elas, plantadas junto ao muro.

Na época da quaresma – e isto acontece até hoje, graças a Deus – Petrópolis cobria-se de amarelo e roxo. As quaresmeiras e manacás-da-serra em flor são uma coisa linda de se ver! A gente olha para as florestas e, entre as muitas espécies de árvores, vemos aquelas manchas coloridas de flores. Em setembro, são os ipês... rosas, amarelos e roxos. Árvores enormes - ou bem pequenas ainda, como as que foram plantadas no centro histórico - proporcionam um espetáculo inesquecível que dura apenas uma semana. Próximo à Praça da Liberdade existe um ipê famoso. Fica no jardim de um prédio, bem na entrada, e a floração é tão abundante e magnífica, que todo mundo para a fim de fotografar e admirar. Eu mesma tenho várias fotos dele. 

Cresci entre as hortênsias, Impacients, quaresmeiras, manacás-da-serra, lírios amarelos e Ipês. Quando comecei a trabalhar, acordava nas manhãs geladas de inverno, bem cedo, tomava banho e me vestia para ir ao trabalho, e enquanto caminhava eu via a minha respiração e as das outras pessoas acumulando-se diante dos nossos rostos feito nuvens brancas. 
A luz da manhã é sempre linda no inverno. Adoro ver quando ela começa a dissolver a névoa ainda sonolenta que descansa sobre as montanhas e ruas! Aos poucos, o dia branco transforma-se em um dia de céu azul límpido como não existe em nenhum outro lugar do país. O céu de Petrópolis é o céu mais azul que eu já vi; quando ele cisma de ser azul, nada o supera. É tão bom sentar-se ao sol de inverno e sentir como ele aquece sem esquentar demais, sem invadir ou incomodar! Sentir o vento frio deixando o rosto rosado é delicioso, e a pele esticada parece até ficar mais jovem. Eu amo o frio e o inverno, e lamento profundamente que o clima tenha mudado tanto nos últimos anos. 

Quando criança, eu podia brincar com várias espécies de besouros coloridos, alguns nacarados, e outros, listrados, que comiam as folhas dos bambuzais, e com as joaninhas coloridas que se alimentavam das vassourinhas (arbusto baixo que antigamente era amarrado em feixes e usado para varrer). Havia também muitas espécies de lagartas vermelhas, cor-de-laranja, verdes e pretas. Dizem que elas queimam muito, mas felizmente, nunca toquei em uma delas. Também havia aquelas de pele muita fria e lisa, verdes, amarelas, listradas, azuladas, algumas muito grandes, que eu deixava passear sobre os meus braços. Havia muitas espécies de insetos que já não se vê mais por aqui. 

E os vaga-lumes... eram tantos, que pareciam estrelas descansando sobre o capim e as árvores. Eu gostava de pegá-los e coloca-los dentro de um vidro. Amava vê-los acender e apagar. Mas sempre os soltava logo depois. As noites Petropolitanas eram cheias dessas criaturinhas, piscando e piscando, em luzes azuladas, amareladas, verdes e brancas. Hoje em dia, dificilmente eu vejo algum. Às vezes eles aparecem por aqui no verão, e eu os vejo na mata em frente à casa. Raramente um deles aventura-se pelo jardim. E as joaninhas e besouros também são bem mais raros... 
Eu morava no bairro Caxambu, rua Flávio Cavalcante. A rua tinha este nome em homenagem a um grande apresentador de TV daqueles tempos. Ele era nosso vizinho. Muitas vezes, quando brincávamos na rua, ele passava em seu carrão com motorista, e acenava para nós, crianças, que precisávamos interromper o nosso jogo de bola toda vez que passava um carro. As pessoas gostavam de fazer turismo na chácara de Flávio Cavalcante, e as visitas eram permitidas. Ele era uma pessoa simples e acessível. Quando eu era bem pequena, fui com minha família, mas acho que eu era tão pequena que não me lembro. Quando ele foi embora, o terreno onde ele morava foi loteado e algumas casas de luxo foram construídas por lá. Não sei como se encontram, ou quem mora nelas hoje em dia; mas ficou o Morro do Flávio. Adolescente, fazíamos excursões para o morro. Chegávamos lá em cima e tínhamos diante dos olhos a vista do nosso bairro e cidade, cercada de montanhas azuis.

Certa vez, na ocasião da passagem do Cometa de Halley, meu então namorado, eu e algumas pessoas organizamos uma subida ao Morro do Flávio à noite para ver o cometa passar. Estava muito frio. Subimos tudo no escuro, à luz de nossas lanternas e com muita neblina. Chegando lá, nós no sentamos cobertos por um enorme plástico preto para evitar de ficarmos molhados pela neblina gelada, e aguardamos. Mas tudo o que vimos, foi a neblina. Após algumas horas, descemos o morro, frustrados e quase congelados. 

Eu também subi algumas vezes o Morro do castelinho, no Bairro Morin. A subida era cansativa, mas valia a pena, pois a trilha era linda, cercada de árvores e pequenos riachos. Lá em cima, podíamos ver a Bahia de Guanabara. Venta muito por lá, e o tempo todo, e por isso, nos agasalhávamos bem. Certa vez, cismei em calçar um par de tênis novos para fazer a subida. Cheguei lá com os pés cheios de bolhas, mas para não dar o braço a torcer, aguentei tudo calada. Dizem que hoje é perigoso subir o castelinho, e que há muito lixo nas trilhas. Infelizmente, nada fica para sempre. Parece que aonde quer que o ser humano chegue, em breve só resta destruição. 

(continua...)




domingo, 12 de abril de 2015

As Ruas das Árvores que Choram - Histórias em Petrópolis




AS RUAS DAS ÁRVORES QUE CHORAM – PARTE II

Caminhar pelas ruas arborizadas de Petrópolis, sem pressa. Olhar bem os casarões antigos, as mansões bem conservadas que ficam ao longo da Avenida Koeller, Rua Ipiranga, Santos Dumont, D. Pedro, Barão do Rio Branco, Rua da Imperatriz. Muitas delas foram transformadas em pontos comerciais, devido ao alto custo de manutenção e o tombamento pelo Patrimônio Histórico. Caminhar pelo centro da cidade, e ver os poucos sobrados históricos que sobraram e conservaram-se como eram originalmente. Visitar pontos turísticos como o Museu Imperial,  A Encantada( casa onde viveu Santos Dumont) o Museu de Cera, O Palácio da Princesa Isabel, O Trono de Fátima, o Palácio de Cristal... percorrer o burburinho da Rua Teresa, ficar engarrafado no trânsito da Rua do Imperador, tomar café nas padarias, lanchonetes e casas de chá da Rua Dezesseis de Março depois de fazer compras nas lojinhas, e finalmente, sentar-se para descansar em um dos bancos da Praça D. Pedro, enquanto se observa as pessoas e carros passando. 

Uma cidade pequena. Uma cidade planejada – a primeira cidade planejada do Brasil, embora haja controvérsias. Mas o planejamento há muito “desplanejou-se” com a invasão das encostas, a superpopulação e a construção desenfreada de prédios e condomínios de luxo em áreas que deveriam estar preservadas. 

Mas eu quero falar de uma outra Petrópolis, uma cidade que foi planejada, antes de tudo, no céu. A cidade onde as árvores choram. Não sei se elas choram também em outros lugares, mas sempre que alguém senta-se sob uma das árvores de Petrópolis, ou permanece sob elas durante algum tempo, se ficar atento logo perceberá que está sendo espargido de leve por um líquido misterioso. Não sei se é seiva ou chuva acumulada nos galhos, mas mesmo em épocas de seca, quando eu fico no jardim de casa sob meu pé de laranja, sinto um leve borrifo que faz a pele arrepiar. Eu não quero saber se o mesmo acontecesse nas outras cidades, com outras árvores. Quero acreditar que somente as árvores Petropolitanas choram. Prefiro erguer os olhos para as copas verdejantes e ver a água borrifada de repente, assim do nada, e acreditar que alguma fada invisível está sentada em um dos galhos espargindo seu perfume. 

Nestas ruas eu escrevi a minha história. As casas são testemunhas da passagem do tempo sobre a cidade e seus habitantes. Muitas das pessoas que conheci, e com quem convivi, já não mais fazem parte desta paisagem, mas é como se os seus passos tivessem ficado marcados nas calçadas, e seus olhos permanecesse entre as copas das árvores, e eles me veem enquanto eu passo. Me perdoem se um dia vocês por acaso (ou por vontade própria) vierem parar aqui e não conseguirem enxergar nada do que eu digo; se a magia e a beleza que eu vejo e sinto em Petrópolis não chegar até o coração de vocês, eu peço desculpas. É que eu nasci aqui. A primeira coisa que eu enxerguei quando vim ao mundo, foi o céu Petropolitano pela janela do quarto onde fui parida, num 29 de setembro obscuro. Meus primeiros passos foram dados aqui, e minhas primeiras palavras – lidas e escritas – foram proferidas aqui. E é enxergando esse mesmo céu que me recebeu que eu pretendo fechar os olhos, quando chegar a minha hora. 

(continua...)



sexta-feira, 10 de abril de 2015

As Ruas das Árvores que Choram - Histórias em Petrópolis






As Ruas das Árvores que Choram  Parte I


Quando caminhei por aqui pela primeira vez, foi segurando a mão de minha mãe. Eu era bem pequena. Minha mãe gostava de passear à pé pela cidade, e assim, acabei passando grande parte da minha infância entre o casario antigo, as ruas ornadas de magnólias e hortênsias, cruzando praças e atravessando pontes, ao mesmo tempo em que ouvia as histórias que minha mãe contava:

-Está vendo esta casa? Eu já morei aqui quando pequena. (E ela apontava para um enorme casarão branco de dois andares, janelas verdes, na Avenida Presidente Kenedy, bem em frente à descida da Rua Montecaseros. E ela continuava:)

-Eu era pequenininha, e minha mãe trabalhava de empregada doméstica nesta casa. Mas não ficou muito tempo, porque ela logo adoeceu e morreu quando eu tinha quatro anos de idade. Meu pai costumava vir me visitar aqui, e os donos desta casa deixavam que a gente se encontrasse nos fundos, na cozinha.

Às vezes, entrávamos pela Presidente Kenedy, e ela apontava uma ruazinha adjacente, uma espécie de vila bem estreita:

-Aqui mora a minha prima.

E de vez em quando, nós íamos tomar café na casa da tal prima. Para os nossos padrões de vida naqueles tempos, era uma casa grande, bonita e luxuosa, mas se eu a visitasse hoje, talvez a achasse bem menor e menos glamourosa. A prima de minha mãe era uma mulher tremendamente bela. Tinha o rosto bem emoldurado por cabelos loiro-escuro cacheados, maxilares largos que abrigavam um sorriso lindo de dentes muito alvos e, compondo o rosto belíssimo, um par de olhos azuis. Era casada e tinha quatro belas crianças, e eu tinha uma paixonite platônica pelo mais velho, embora eu fosse apenas uma criancinha. Todos eram lindos e tinham olhos azuis. Lembro-me de algumas festas as quais comparecemos naquela casa, e do quanto dava gosto de ver aquela gente bonita se movimentando: parecia um comercial de margarina! Ela era a prima que dera certo na vida.

Minha mãe e eu também caminhávamos muito pela Avenida Koeller, parando para admirar as enormes mansões. Ao final da rua, nós atravessávamos para a Praça da Liberdade, onde eu passava algum tempo feliz, esquecida de qualquer desejo, a não ser o de balançar bem alto, até que as pontas dos meus pés quase tocassem as pontas verdes das copas da árvore. Ali, eu não tinha tempo para pensar nas canetinhas coloridas que eu não tinha para usar nas aulas de desenho da escola, ou na boneca Amiguinha do meu tamanho que eu jamais ganharia, nas roupas bonitas que desejava. Ali naquele balanço, olhava lá de cima as outras crianças que aguardavam que eu me cansasse para que elas mesmas tivessem a sua vez de balançar bem alto, e eu me sentia superior a elas. E eu só desistia quando minha mãe parava ela mesma o balanço, arrancando-me dele enquanto eu, aos prantos, gritava e esperneava, vendo o 'meu' balanço sendo ocupado por outra criança. E minha mãe dizia, irritada:

-Todo mundo está olhando! Olha que coisa feia! Nunca mais eu trago você.

Mas ela sempre me levava naquela praça. E eu sempre gritava e esperneava na hora de sair do balanço. Íamos para casa ao crepúsculo, quando as luzes dos postes começavam a acender e a garoa fria de Petrópolis começava a cair. Tomávamos o ônibus e eu adormecia no colo de minha mãe, que me acordava quando chegávamos em casa. Ela ainda precisava preparar o jantar, e como sempre, meu pai reclamava pelo atraso quando chegava do trabalho.

Eu adorava caminhar pela Rua Ipiranga, que na minha infância, era bem pouco movimentada. Lá estavam as mansões de veraneio, casas tão velhas e tão mágicas, que pareciam guardar muitos mistérios. Eu parava na frente da Casa dos Sete Erros e a imaginava assombrada, e estranhamente, apesar do medo que sentia, desejava entrar nela, o que só aconteceu quando ela virou ponto turístico, e eu já era casada. Subíamos a Ipiranga e descíamos pela Rua Dom Pedro, uma outra de casas também antigas e muito bonitas.

Cresci caminhando entre estes casarões e inventando histórias na minha cabeça sobre o que se passava dentro deles. Passei por jardins inacessíveis onde, com certeza, moravam fadas e outras criaturas mágicas, e eu os recriava em nosso pequeno quintalzinho ao chegar em casa: recortava das revistas e livros infantis imagens de fadas e as espalhava pelos galhos da figueira plantada por meu avô. Fingia que elas eram reais. Passava horas brincando sozinha, pois para mim, não era (nunca foi) muito fácil fazer amizades. minhas amigas eram as da escola, ou então as irmãs mais novas das amigas de minha irmã mais velha. Eu gostava de brincar sozinha, tomar todas as decisões, escolher os finais das minhas histórias sem ter que pedir a aprovação de ninguém ou entrar em acordo com os gostos das outras meninas. minhas histórias, eu mesma criava e encenava - com a ajuda de minhas inseparáveis bonecas.

Lembro-me da Petrópolis de quando eu era criança e as temperaturas no inverno chegavam, às vezes, a atingir números negativos. A gente saía de manhã cedo para ir à escola ou a o trabalho, e os vidros dos carros estacionados ao longo da Avenida XV de novembro - hoje Rua do Imperador - estavam cobertos por fina camada de gelo. Também andei muito através da neblina gelada, branca e densa, tão densa, que quando alguém falava tinha a impressão de estar falando dentro de uma caixa. Nada se via. E assim como aparecia, ela ia sendo dissipada conforme o sol se erguia.

Sentada à mesa de madeira da cozinha, eu fazia meus deveres de casa e escutava as muitas histórias de quando minha mãe era criança como eu. E ela me contava que crescera em um colégio interno - o Colégio Nossa Senhora do Amparo - depois que sua mãe morrera quando ela tinha apenas quatro anos de idade. Ela me falava das freiras boas e das freiras más. Dos banhos de água gelada que as crianças eram obrigadas a tomar às seis da manhã. Um dia, ela me contou que achou uma barata em sua comida, no caldo do feijão. Coisas assim eram comuns. Ela chamou a freira e mostrou a ela. a freira mandou que ela tirasse o inseto e continuasse a comer. E foi o que ela fez, pois era o que todas as crianças faziam.


A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...