A tarde tinha sido quente, e o sol se punha entre as cores fortes do horizonte, o canto insistente das cigarras e os piados dos sabiás se recolhendo para dormir. Georgia brincava nos degraus que de sua casa que davam para a cozinha, alheia ao canto modorrento das cigarras e a tudo o mais que acontecia em volta dela. Sua mãe estava no banho.
Rapidamente, a noite tomava o espaço. Georgia ergueu a cabeça ao ouvir ruídos de passos vindos da lateral da casa, e ao ver o avô, que parou junto à parede e abriu os braços, ela correu na direção dele, largando sua boneca nova sobre o degrau. O avô enfiou a mão no bolso do paletó, e retirou-a cheia de balas que a menina recolheu na saia do vestido, indo depositá-las na mesa da cozinha enquanto o avô a seguia.
No fogão, a panela de pressão chiava no fogo baixo. O avô depositou sobre a mesa um pacote, onde havia um doce de leite que era metade de chocolate, geleia marmorizada e algumas maçãs perfumadas. Georgia estava feliz ao ver o avô, que não aparecia muito, pois morava longe. Ao mesmo tempo, ela sabia que alguma coisa estava errada, embora não soubesse dizer o quê.
O avô e a menina conversaram durante algum tempo. Ele perguntou sobre as coisas da escola, e ela mostrou a ele a sua boneca nova, sentando nos joelhos do avô. A conversa ia bem, enquanto lá fora o canto dos sabiás e cigarras tinha sido substituído pelo cricrilar dos grilos. Dentro da casa só havia luz, mas a porta da cozinha que dava para o quintal dos fundos estava aberta, mostrando a escuridão intensa e aveludada que se acumulara.
Georgia percebeu que, aos poucos, a escuridão se aproximava dos degraus, subindo um a um. Ela se sentia segura na presença do avô, entretanto. Mas de repente, ele ficou sério, dizendo:
-Georgia, minha querida, eu não posso ficar muito tempo.
Ela não entendeu nada, pois a mãe sequer tinha terminado o banho, e ele nunca ia embora tão rápido.
- O avô não vai dormir aqui hoje?
Ele sorriu tristemente, dizendo que não, e acrescentou:
- Só vim para me despedir de vez. Estive esse tempo todo olhando por vocês, mas agora eu preciso ir embora.
Georgia sentiu que estava crescendo aos poucos no colo do avô, e foi sentar-se em uma cadeira que arrastou para ficar bem em frente a dele, de onde ela podia olhá-lo melhor. Ela só então notou que ele não parecia mais tão velho. O avô segurou as duas mãos da agora moça, dizendo:
-Antes de ir, preciso alertar a você: algo muito ruim está para acontecer no mundo.
Georgia ficou confusa:
-Mas... eu e a mamãe ficaremos bem?
O avô olhou-a profundamente antes de responder:
- Não se preocupe, sua mãe já está comigo há alguns anos. Você não se lembra, Georgia?
E ela se lembrou. Não havia ninguém tomando banho, e nem poderia haver, pois sua mãe já estava morta há treze anos.
Ao olhar novamente para o avô, percebeu que ele estava um pouco transparente em algumas partes, o que a deixou bastante desconfortável, pois lembrou-se que o avô morrera quando ela tinha oito anos de idade, há mais de vinte anos. Ele ainda pôde dizer:
- Pegue todo o dinheiro que você tiver, e compre comida e água. Compre enlatados, coisas que duram, pois estão chegando tempos em que será muito difícil comprar certas coisas. Compre velas, querosene, remédios, e consiga uma arma para se proteger. Avise ao seu marido. Considere plantar alguma coisa, você tem um quintal grande.
E então Georgia se lembrou que era casada.
Havia muitas perguntas que ela gostaria de fazer ao avô, mas não havia mais tempo.
A escuridão começou a entrar pela porta da cozinha cada vez mais rápido. Ela pensou em fechar a porta, mas estava paralisada. Fechou os olhos por um curto espaço de tempo, e ao abri-los novamente, o avô tinha desaparecido e ela estava completamente cercada pela escuridão, que acariciava sua pele de maneira mórbida e com dedos extremamente gelados e ásperos.
Georgia despertou no sofá da sala de seu apartamento, o coração disparado. Lá fora, os sabiás e cigarras cantavam.
Sobre a mesa, havia algumas balas iguais às que seu avô costumava levar para ela quando a visitava.