terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Meu Primeiro Namorado - Parte I





25/01/2014

Eu gosto de um menino. Minha mãe não quer que eu namore, e diz que meninas de treze anos deveriam estar brincando de bonecas, mas eu prefiro ficar mexendo no meu celular. Meu pai insiste em me dar bonecas de presente, sempre que viaja me traz uma, e eu coloco em cima do armário para ele não ficar triste. Já doei a maior parte das minhas bonecas, e nunca me arrependi. Minhas amigas acham cafonas as meninas de treze anos que ainda brincam de bonecas, e eu não quero que me achem cafona.

Mas eu resolvi escrever este diário porque eu gosto de um menino, mas não posso contar isso para ninguém, porque ele é namorado de uma de minhas amigas. O nome dele é Rodney, e tem dezesseis anos. Ele é lindo! Moreno de praia, cabelos curtos e alourados (dizem que ele passa parafina, porque gosta de surfar, e sabe fazer isso muito bem, mas eu não me importo se ele não for loiro de verdade, porque muitas das minhas amigas também não são). Mas voltando ao Rodney: ele é tudo de bom! Bem, menos quando eu o vejo passeando de mãos dadas com a Vanda, a minha amiga de quinze anos... daí, eu sinto meu coração inchar e inchar cada vez mais, parecendo que vai sair pulando pela boca e cair bem em cima dos meus pés! Não aguento mais guardar esse segredo, e por isso, resolvi escrever este diário.

A propósito, meu nome é Brenda, e eu tenho 13 anos (já escrevi isso). Nunca namorei ninguém. Uma vez, durante um bailinho na casa de uma amiga, um menino da escola me chamou para dançar, e de repente, começaram a tocar uma música lenta. Continuamos dançando, ele colocou a mão em volta da minha cintura. Senti uma coisa esquisita, uns arrepios... ele era bonitinho, mas eu já gostava do Rodney, que naquela época, ainda não namorava a Vandinha. Daí, quando ele tentou me beijar, eu virei o rosto. Perdi a minha grande oportunidade de ensaiar o beijo que eu queria dar no Rodney. Depois daquilo, o tal menino nunca mais falou comigo, mas eu nem liguei, não gosto dele mesmo...

O que também me preocupa, é que todas as minhas amigas já beijaram. Eu tento mentir, fazer elas acreditarem que eu também, mas elas não acreditam, e me chamam de "Virgenzinha." Mas minha mãe me explicou que virgem é uma coisa bem diferente, e eu sei muito bem que algumas das minhas amigas não são mais virgens. Eu ainda sou, mas não sei se isso é bom ou ruim.

Tenho que ir, minha mãe está chamando para almoçar.


27/01/2014

Hoje o dia foi maravilhoso! Estamos de férias, e viajamos para a praia, onde meus pais alugaram uma casa. Vamos ficar aqui mais alguns dias. Eles deixaram eu levar uma amiga, e adivinhem só quem eu escolhi? A Vandinha! Isso mesmo! Só assim eu posso fazer com que ela fique longe do Rodney por um tempo... mas até que está sendo divertido. Ela é boa companhia.

Pena que liga para o Rodney ou fala com ele pelo Skype o tempo todo. Mas eu sei o que vou fazer: vou desconectar o wifi, assim ela não vai mais poder falar com ele pelo Skype. E então vou esconder o carregador de bateria dela, e dizer que esqueci o meu em casa. Eles não vão poder se comunicar!

Mas... peraí, que espécie de amiga você é, Brenda? Ah, eu gostaria de ser um pouquinho mais cruel... mas não consigo. Também, que idea, chamar a minha rival para vir comigo à praia! 

28/01/14

A Vandinha extrapolou (mas não sabe disso): me pediu se eu poderia pedir aos meus pais que deixassem ela convidar o Rodney para o final de semana! Nem pude dizer que não; temos um quarto vazio. Pior de tudo: meus pais deixaram! 

Ela falou com ele pelo Skype, e ele disse que vem. Adora praia, e precisa treinar para um campeonato de surf. Eu fiquei ali, ouvindo a conversa, fingindo um sorriso amarelo, dando 'tchauzinho' para ele. Que raiva. E o pior de tudo, é que com o Rodney aqui, além de ter que aturar as ceninhas de amor, vou ter que ficar muito tempo sozinha ou segurando vela. Que saco!

(noite) O Rodney chegou. Viajou hoje de manhã mesmo. Trouxe a prancah de surf. Está ainda mais gato. Parece que vai conseguir me deixar louca. Depois do jantar, nós fomos dar uma volta para tomar sorvete, todo mundo junto. Minha mãe e meu pai adoraram o Rodney, que ficou o tempo todo encantando eles... ele é mesmo encantador, sabe conversar, soa responsável e ajuizado quando quer. a A Vandinha parecia que ia babar em cima dele a qualquer momento. Os dois de mãos dadas, meus pais de mãos dadas e eu me sentindo uma pirralha seguradora de vela. 

Eu não estava feliz, e não consegui disfarçar. Quando meu pai me chamou num canto e  perguntou o motivo, eu disse a primeira coisa que me passou pela cabeça: que estava com dor de estômago. Nem sei como vai ser o dia amanhã, já que vamos todos juntos à praia!

29/01/14

É claro que o céu estava azul, havia uma brisa soprando, palmeiras, sorvetes, água de coco, gente feliz e música tocando vinda de uma barraca cheia de gente jovem. É claro que minha mãe e meu pai encontraram uns amigos e ficaram conversando com eles o tempo todo na barraca deles. É claro que a Vandinha e o Rodney foram dar uma volta, e é claro que eu fiquei sozinha na maldita barraca!

Mas aconteceu uma coisa diferente: tinha um carinha me olhando. Tinha um carinha me olhando, e ele era gato. Tinha um carinha me olhando, e ele era gato, e eu fiquei nervosa. Tentei não olhar de volta. Já pensou a confusão, se meus pais percebessem? Mas eu estava sozinha na barraca, e pensei: vai ver que ele acha que eu estou sozinha aqui. Ele ficou me filmando um tempão, e teve uma hora que eu olhei e ele sorriu pra mim. Me deu uma vontade de rir, e eu ri. E fiquei vermelha feito uma idiota. 

Ele ia levantar para falar comigo, mas naquele exato momento, meu pai veio pegar o celular, e ele sentou de novo. Mais tarde, a Vandinha e o Rodney voltaram, e eu percebi que o Rodney era gato, mas nem chegava aos pés do carinha que estava me olhando: ele é mais alto, tem uns músculos, e mesmo não sendo muito bronzeado, tem uns olhos azuis que dão vontade da gente mergulhar neles. Pena que tivemos que voltar para a casa, e ele ficou lá. Com certeza, arranjou outra mais interessante...

30/01/14

Acordei mais cedo do que todo mundo, e fui andar na praia, antes do sol sair. Não sei o que me deu. A praia ainda estava bem vazia. Deixei todo mundo dormindo, mas deixei um bilhete na mesa da cozinha dizendo que voltava logo. Peguei uma maçã e fui comendo. E quem foi uma das primeiras pessoas que eu vi na praia, sozinho também? O tal carinha, o gato.

Ele vinha andando na direção contrária. Ambos caminhávamos na areia, bem perto do mar. Eu vi quando ele me viu, e ficou me olhando. meu coração parecia que ia sair pela boca e... blá, blá, blá. Quando eu estava chegando bem perto, ele tirou os óculos escuros e disse "Oi." Eu parei, tirei os óculos escuros e surpresa com a minha ousadia, disse "Oi."  daí, ele riu, e perguntou meu nome, e disse que se chamava Pablo. Disse que estava passando férias, e eu disse que eu também. Perguntou se podia andar comiglo, e ficamos andando lado a lado, a brisa soprando, o sol começando a esquentar... nós nos sentamos na areia. Conversar com ele é tão fácil!

Mas eu me lembrei que tinha que voltar para casa logo, e disse isso para ele. Ele perguntou se poderíamos nos encontrar mais tarde, e eu disse que sim. Agora, como vamos fazer isso, eu não sei, mas a Vandinha vai ter que me ajudar!

(Noite, ou melhor, madrugada) - Falei com a Vandinha, e ela teve a ideia de me convidar para tomar um sorvete de noite com ela e o Rodney, e meus pais deixaram. Não falei sobre o Pablo, é claro. Vamos nos encontrar em uma sorveteria perto da praia daqui a uma hora!

(continua...)





segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Série SEGREDOS - Conto 6 - A verdade de cada Um





"A fama produz os aplausos, mas não a alegria. Produz o assédio, mas não elimina a solidão."

Team Bios bandido



A imagem sorridente na TV angariava não apenas fãs, mas muitos seguidores nas redes sociais. O rosto belo, de tez imaculada, as palavras que pareciam sinceras mas eram ensaiadas arduamente para que soassem como verdadeiras, as roupas da moda e a até mesmo a maneira 'natural' mostrando interesse pelo interlocutor com a qual ela se inclinava na cadeira durante as entrevistas, enfim, tudo, era ensaiado.

Mariana virou uma imagem criada pela mídia. Antes de tornar-se famosa, era apenas uma garota normal, de origem humilde, até que sua voz foi descoberta em um programa de calouros. E era através da voz que ela melhor se expressava; não quando falava, mas quando cantava. Seu maior desejo sempre fora alcançar o maior número possível de pessoas, e poder viver de cantar. Sabia que era talentosa o bastante. Só precisava de uma oportunidade.

Assim, passou horas intermináveis naquela fila, e quando estava finalmente diante dos juízes que diriam se ela entraria ou não na competição, Mariana tremia. Mesmo assim, ao sinal de um deles, soltou a voz, de olhos fechados, e quando os abriu, todos olhavam para ela, boquiabertos, aquele brilho de lágrima querendo cair. Foi unanimente aprovada, e venceu o concurso em todas as etapas. 

De repente, Mariana morreu e deu à luz à Mari Lewis. Cortaram seu cabelo, modificando-lhe  a cor, colocaram em seus dentes placas de porcelana tão branca que eles reluziam quando ela sorria; escolheram suas roupas, sapatos, maquiagem, discurso. Ela não poderia mais cantar o que gostava. Daquele momento em diante, após assinar o contrato, sua voz não seria mais sua: pertenceria aos cartolas e ao público. Modificaram até mesmo o seu passado, exagerando nas passagens tristes, e escondendo o fato de que ela já tinha sido casada uma vez. Escreveram-lhe um novo roteiro de vida.

Percebeu que a família e os amigos se distanciaram, pois sentiam que ela não pertencia mais entre eles. Quando telefonava, era tratada friamente até por sua melhor amiga. Entre os familiares, uma discussão surgiu bem na noite de natal, que ela conseguiu passar em casa após muitos sacrifícios e horas de voo,  quando alguém pediu que ela cantasse, e Mariana disse estar cansada: "Ela só canta para quem paga, gente." Após tal comentário, que Mariana tentou relevar, ela ainda cantou duas ou três canções, acompanhada pelo violão que sempre levava aonde quer que fosse. Ao terminar, a mesma pessoa comentou: "Nos shows você canta bem melhor."

Na manhã do dia 25 de dezembro, após a noite fatídica que rendeu-lhe mais alguns inimigos, ela pegou seu voo e foi fazer sua apresentação de natal, do outro lado do país. Precisava esquecer o que acontecera, e dar o seu melhor, pois seu público a aguardava.

Ao finalizar a maquiagem diante do espelho do camarim, Mari Lewis descobriu que Mariana estava morta para sempre. Não reconheceu o rosto que a olhava no espelho, e ao mesmo tempo, também não reconhecia mais a velha Mariana. Não sabia quem era. Estava rodeada de pessoas que só a queriam devido a sua fama e dinheiro, e descobrira na noite anterior que aqueles que ela pensava que a amavam pelo que ela era, a invejavam. Sentiu-se um nada entre duas pessoas que não existiam. 

Após o show e os aplausos, Mari Lewis foi encontrada morta no camarim; ninguém jamais soube explicar o motivo de sua overdose. 







terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Série Segredos - Conto 5 - O que Ninguém Jamais Soube




A morte é sempre a melhor confidente - Ana Bailune




Bernadete fechou seu diário, dando um longo suspiro. Pousou a caneta na mesinha de cabeceira e apagou a luz. Ficou deitada no escuro, não conseguindo adormecer. Aquilo que acabara de escrever sobre um antigo acontecimento de sua vida causou-lhe uma sensação estranha, pois há muito tempo decidira não mais pensar naquilo. Ninguém jamais soubera daquele fato. As pessoas envolvidas nele já tinham morrido há muito tempo. Ela mesma, às portas da morte, aos noventa e seis anos de idade, sabia que de nada valeria ao mundo a sua confissão tardia. Mesmo assim, era como redimir-se de algo que fizera e que se alimentara de metade de sua alma. Algo que a afastou das demais pessoas, pois tinha um medo absurdo de ser descoberta, mesmo que todas as evidências jamais chegassem a ela. 

Aquela tarde mudara completamente o rumo de sua vida, levando-a àquela cama de hospital onde aguardava, sozinha, a sua hora. 

Enquanto olhava para o teto, escutando os ruídos abafados dos corredores do hospital e também aqueles que entravam sorrateiramente pelas frestas da janela- grilos que cantavam no jardim, como se fossem estrelas caídas que não conseguiam voltar para casa, motores dos carros que passavam, cortando a paz da noite ao meio e distantes latidos de cães - as imagens foram se redesenhando na sua frente, pelos dedos implacáveis da memória.

De repente, ela estava de volta àquela colina, naquela tarde gelada de Junho. Podia sentir o vento cortante sobre a pele do rosto, e também ouvir a voz de Violeta ecoando enfurecida, entrecortada pelo assovio do vento, e via seus olhos injetados de ódio, enquanto esta repetia as palavras que selariam o destino de ambas:

"Você nunca vai se casar com Peter! Ele é um homem de caráter, e tenho certeza absoluta que desmanchará o noivado, assim que souber do que tenho para contar a ele!" 

Bernadete apenas esticou o braço a fim de calar Violeta; fora um gesto impensado, repentino, sem intenções realmente maléficas. Bastou ao toque da ponta de seus dedos para que Violeta perdesse o equilíbrio e despencasse colina abaixo. Não houve gritos. Apenas um olhar apavorado e suplicante, enquanto Violeta, surpresa, mergulhava no abismo. 

Bernadete olhou em volta, e não viu ninguém. A colina estava deserta. Ela chegou na ponta do penhasco, e olhou para baixo. Viu o corpo quebrado da ex-amiga, acomodado sobre uma pedra em um ângulo estranho, beijado pelas ondas. Um pequeno córrego vermelho escorria de sua cabeça, mas era quase que imediatamente lavado pelas águas do mar. Logo, a maré subiria mais um pouco, cobrindo aquela horrenda visão com seu silêncio salgado. 

Bernadete apenas virou-se de costas e tratou de se afastar dali. Não disse nada a ninguém. O corpo de Violeta foi encontrado dias depois, já parcialmente comido pelos peixes. Supusera-se que ela havia caído do penhasco, onde costumava ir sempre a fim de pintar. Dias antes, encontraram seu cavalete, algumas tintas e uma pintura recém-começada junto ao penhasco.

Bernadete casou-se com Peter, como sempre sonhara. Porém, por culpa e  medo de ser descoberta, ela caiu  em um silêncio quase mortal, um estado de distância emocional que fez com que Peter a deixasse pouco tempo depois.  Desde então, ela tornou-se uma ermitã. Aos poucos, os amigos foram se afastando, até que ninguém mais se lembrasse dela. 

Alguns acreditavam que a causa de sua depressão profunda tivesse sido a morte repentina de Violeta, sua melhor amiga. Ninguém desconfiava do que tinha acontecido naquela tarde na colina. Ninguém sabia que, junto com Violeta, morrera um horrível segredo, algo abominável que causaria repulsa em qualquer um que o descobrisse.

A manhã chegou, e Bernadete não mais vivia. Sobre a mesinha de cabeceira de ferro branco, a enfermeira encontrou um pequeno caderno. Como não tivesse a quem entregá-lo (Bernadete não tinha parentes ou amigos e jamais recebera visitas), a enfermeira atarefada jogou-o em um saco plástico sem a menor cerimônia, descartando-o junto com o lixo hospitalar.





quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

SEGREDOS - Conto 4 - JUNTO AO CORAÇÃO






"O coração do homem-bomba faz tum tum
Até o dia em que ele fizer bum!"

Zeca Baleiro



. . . .


Ela era linda, envolta em véus esvoaçantes de azul e dourado. A mecha de cabelo negro aparecia como uma faixa em volta da testa, debruando o véu. De vestido longo, sentada à mesa junto à porta do café movimentado, ela chamava a atenção de todos que entravam e saíam. 

Os homens ficavam encantados por seus olhos verdes, e as mulheres  admiravam sua beleza exótica com silenciosa inveja. Será que estaria esperando por alguém? Com certeza, uma jovem tão bonita não deveria estar sozinha em um país estranho. 

De onde estava, ela olhava as pessoas a sua volta, demorando-se nos rostos felizes das crianças e trocando sorrisos com elas, que ficavam encantadas pela moça bonita. Ela parecia absorver a atmosfera tranquila, o burburinho das conversas, os risos e vozes que se intercalavam, bebendo tudo aos golinhos junto com o seu chá. 

Ela aguardava um sinal. Apertava na mão a pequena chave dourada que lhe abriria as portas para uma vida perfeita. Junto ao coração, trazia um segredo  do qual ninguém suspeitava. Estava feliz, e emanava paz. Daqui a pouco, a bomba que estava escondida junto ao peito explodiria, transformando  tudo e todos em milhões de pedacinhos coloridos que a elevariam ao céu, onde ela era aguardada.




segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

SEGREDOS - Conto 3 - Receita de Família





"O segredo não é correr atrás das borboletas, é só usar inseticida."
 Por William Eduardo da Silva



RECEITA DE FAMÍLIA


Fátima recebera naquela manhã chuvosa de domingo a notícia de que sua avó estava hospitalizada. Clélia, a avó, era uma senhora viúva de 83 anos, embora aparentasse pelo menos dez anos a menos. Bem-cuidada, antenada, era uma avó do tipo que não gostava de croché, preferindo passar algumas horas aprendendo sobre as novidades da tecnologia, moda, os novos lançamentos em filmes e o que acontecia na vida dos famosos. 

Mas se havia alguma coisa que Clélia tinha em comum com outras avós, era o gosto pela cozinha. Portadora do caderno de receitas que estava na família há pelo menos três gerações, ela gostava de escolher o que iria preparar para as reuniões de família que aconteciam mensalmente em sua casa grande, confortável e modernamente decorada. As mulheres da família reuniam-se na enorme cozinha de Clélia, onde cada qual recebia uma tarefa na preparação das refeições, sempre seguindo as instruções de Clélia, e de modo que a receita fosse toda dividida em etapas individuais que dificultassem às mulheres descobrirem o preparo total das receitas. Aquelas eram ocasiões muito divertidas, apesar das pequenas fofocas e rivalidades comuns a todas as mulheres do mundo. 

Então, as pessoas reuniam-se à mesa entre 'hums' e 'ahs', alguns homens perguntando sobre o modo de preparo das receitas, mas Clélia sempre escondia alguns detalhes, mesmo sabendo que um dia o caderno de receitas - um livro grande e grosso, com capa de couro preta e todo escrito à mão pelas matriarcas da família a quem ele pertencera - passaria adiante. Porém, era tradição de família que antes deste momento, as receitas fossem mantidas no livro, não podendo ser copiadas. 

Além de Fátima, havia uma outra prima, Geise, que sonhava  possuir o caderno de receitas, e ela e Fátima tornaram-se grandes rivais. É claro que ambas eram rivais também por outros motivos que ficaram no passado, mas não convém falar deles neste momento... 

Fátima possuía um pequeno restaurante que não ia muito bem das pernas, e que, ela tinha certeza, poderia progredir se ao menos ela possuísse as receitas de família.

Enquanto se vestia para visitar Clélia, Fátima pensava no quanto as noites na casa da avó eram importantes para reunir a família; onde elas aconteceriam agora, caso a avó morresse? Seu apartamento não era grande o suficiente para acomodar as vinte e oito pessoas, e o de Geise, era menor ainda. A casa onde a avó morava, uma bela mansão em uma rua praticamente deserta, era alugada, embora ela já vivesse lá há mais de quinze anos, e seria devolvida aos proprietários assim que a avó morresse. Ela não acreditava que os outros parentes gostariam de assumir a responsabilidade.

Quando Fátima chegou ao hospital, de braços dado com o marido, deu logo de cara com sua prima e rival, além de alguns outros parentes. As duas fuzilaram uma à outra com o olhar, mas cumprimentaram-se educadamente. 

Após inteirar-se sobre o estado da avó, o marido de Fátima despediu-se, dizendo que precisava ir trabalhar, e pediu que se houvesse qualquer mudança, que o comunicassem. Fátima ficou sabendo que Clélia sofrera um AVC leve, e que após um pouco de fisioterapia e alguma medicação, ficaria bem.

E foi exatamente o que aconteceu! Dias depois, Clélia estava em casa novamente, pronta para mais uma reunião de família, embora todos percebessem que ela agora mancava um pouco da perna direita. 

Na noite daquela reunião, equanto desfrutavam da maravilhosa bavaroise de morango, todos foram silenciados de repente pelas batidinhas de um talher em uma taça; era Clélia que pedia a atenção de todos. Aos poucos, fez-se silêncio, e ela começou seu curto discurso:

"Meus queridos, hoje eu tenho uma importante revelação para fazer." Começou um zum-zum entre as pessoas que terminou assim que Clélia voltou a falar:

"Todos sabem que estive hospitalizada há algumas semanas devido a um AVC. Bem, seja como for, ainda estou por aqui, mas a minha estadia naquele hospital me fez refletir sobre algumas coisas. A que servirá como o assunto deste discurso, é justamente o destino do caderno de receitas da família."

Todos olharam para Fátima e Geise, que sentiram seus corações palpitando forte naquele momento. Clélia continuou:

"É de conhecimento de todos que as receitas deste livro vem sendo preparadas há muitos anos, por várias gerações de mulheres em nossa família. Mas qual é, verdadeiramente, o sentido destas receitas? Eu mesma responderei: Não é apenas a culinária em si, mas, principalmente, manter a família unida. Mas eu estou velha. Minha hora está chegando" (houve alguns protestos, que logo arrefeceram, e Clélia pode enfim continuar):

"A fim de manter a família unida, este livro deverá ser doado àquela que mais terá condições de levar nossa tradição adiante. Infelizmente, nos dias de hoje poucas possuem uma casa tão grande que possa acomodar a todos, e pensando nisto, eu me desfiz de minhas economias e comprei esta casa."

Ao ouvir a avó dizer aquilo, todos mostraram grande surpresa. Ninguém tinha conhecimento daquele fato, e imediatamente, cifrões começaram a passar diante dos olhos de algumas pessoas: quanto valeria aquela mansão, e com quanto cada família ficaria, após a venda? Mas o que Clélia declarou a seguir, fez com que as esperanças daquelas pessoas ruíssem:

"A pessoa que vou escolher hoje para seguir com a tradição de família, herdando o caderno de receitas, ficará também com esta casa, que deixarei em usofruto em testamento. E minha escolha foi baseada não em preferências pessoais, mas no que seria mais prático para todos. Escolhi alguém que possui menos responsabilidades, pois não se casou e não tem uma família própria, e além disso,  é mais jovem e tem mais energia." 

Fátima sentiu seu coração gelar. Suas esperanças de herdar o caderno estavam indo por água abaixo bem diante dos seus olhos, juntamente com as esperanças que tinha de reerguer seu restaurante, e achou a decisão da avó tão injusta, que chegou a odiá-la. Ela sequer importava-se com a casa, queria apenas o caderno. Do outro lado da mesa, logo em frente a ela, Geise a fitava com os olhos injetados de maldade e de triunfo. Clélia continuou, dizendo o que todos já sabiam:

"Minha escolhida é Geise."

Todos aplaudiram sua rival, enquanto Fátima, tentando disfarçar seu orgulho ferido, parabenizou a prima com um abraço desajeitado. Foi friamente correspondida, e ainda teve que ouvir algumas ironias ferinas.

 Muitos disseram-lhe que estavam torcendo por ela, e lamentavam, mas ela apenas agradecia-lhes com um sorriso discreto, nada dizendo, a fim de controlar o choro - que finalmente explodiu em cascatas, assim que ela entrou no banheiro e fechou a porta. No final daquela noite, Fátima foi embora sem despedir-se da avó, que morreu apenas dois dias depois. 

Geise mudou-se para  a casa grande e passou a administrar as reuniões, a cozinha... e o tão desejado livro de receitas. Fátima era obrigada a contentar-se em aceitar as tarefas que ela lhe designava, e eram sempre as mais monótonas: descascar legumes, bater claras em neve, lavar a louça. Enquanto executava suas tarefas, o ressentimento ia se tornando uma coisa amarga que ela destilava na comida pelas pontas dos dedos. Cada olhar que dirigia à prima, era cheio de imprecações mudas e desejos de que ela morresse seca e infeliz. A inveja e o ódio passaram a tomar conta de seu coração totalmente. Até mesmo as demais pessoas perceberam a mudança no caráter de Fátima. O marido passou a ser o receptáculo de suas frustrações; o pobre homem era tão maltratado, que passou a dormir no quarto de hóspedes. Finalmente, acabou saindo de casa. 

O restaurante acabou fechando - não por falta do livro de receitas, mas pela qualidade da comida, que caiu vertiginosamente, já que um chef que tempera seus pratos com ódio e ressentimento, envenena a todos. E Fátima culpava a prima Geise de tudo de ruim que lhe acontecia, achando-se vítima de sua inveja e maldade, quando o que acontecia era justamente o contrário.

Certa vez, Fátima leu no jornal um artigo um tanto estranho. Após relê-lo várias vezes, ela recortou-o, levando-o para a cama com ela, acordando várias vezes durante a noite a fim de lê-lo mais uma vez, até que o memorizou. Amadureceu a ideia por dias a fio, pensando nas consequências, vantagens e desvantagens. Estudou tudo meticulosamente. Planejou, previu erros, consertou, reajustou, até que construiu tudo com perfeição. Bastava-lhe uma simples oportunidade, e tudo o que queria seria dela. 

Um dia, ciente da amargura da prima, Geise achou que poderiam fazer as pazes. Afinal, ela já obtivera o que queria, e não via mais motivos para rivalidades. Assim, telefonou à prima. Ambas conversaram durante alguns minutos, e embora Fátima destilasse ódio pelos poros,  mantinha a voz sob controle, em tom casual e alegre, enquanto dizia à prima que rivalidades deveriam ser esquecidas, pois eram parte de uma família, e o desejo da avó (que Deus a tenha)  tinha que ser cumprido. Para selar aquele recomeço, Geise convidou a prima para tomar chá na mansão. 

Fátima chegou às seis daquela mesma tarde, ao crepúsculo. A rua estava deserta, como sempre. Vestia um terninho branco, com uma echarpe rosa-claro que fazia com que ela se parecesse com um anjo. A prima recebeu-a muito bem, e logo passaram para a sala de estar, onde a criada serviu-lhes o chá, antes de despedir-se, encerrando o dia de trabalho.

Durante a conversa, Geise confessou à prima que, no testamento da avó, havia uma cláusula determinando com quem o caderno deveria ficar se algo acontecesse a ela. Os olhos de Fátima brilharam: tinha certeza absoluta de que seria ela a contemplada!

Fátima e Geise esclareceram desentendimentos passados, e ambas perdoaram uma à outra por tudo o que as vinha afastando. Fátima fingiu chorar, e pediu à prima um copo de água com açúcar, e esta foi imediatamente à cozinha para pegá-lo. Aproveitando a ausência da prima, Fátima pegou o vidrinho dentro da bolsa. Custara-lhe muito dinheiro conseguí-lo. O vendedor garantiu-lhe que causaria uma morte sem sobressaltos, muito semelhante a um ataque cardíaco, caso a vítima fosse examinada. Pingou algumas gotas na xícara de Geise. Assim que ela voltou da cozinha, ela aceitou o copo d'água que a prima lhe estendeu. Ambas tomaram o chá em seguida.

Fátima olhava a prima com olhos injetados, enquanto sua garganta levava para dentro de seu corpo um destino que ela nem sequer imaginava. 

Quando Geise finalmente parou de debater-se, Fátima calçou um par de luvas de látex e lavou as louças do chá na cozinha, guardando tudo, e limpando suas digitais com uma flanela macia que trouxera na bolsa, queimando-a assim que chegou em casa. Antes de sair, apagou do telefone da prima os registros de chamada daquele dia. Resistiu à tentação de levar consigo o caderno de receitas, pois em breve, seria seu por direito. 

Naquela noite, Fátima deitou a cabeça no travesseiro sabendo que logo seria a mais nova proprietária do livro de receitas da família. Sendo a que mais desejava possuí-lo, além de Geise,  ela tinha certeza absoluta que a avó teria dado a ela o direito à herança, caso algo acontecesse à prima. Poderia reabrir seu negócio, e quem sabe, reconquistar seu marido. 

Alguns dias depois da morte da prima - que foi dada como ataque cardíaco - Fátima tomou conhecimento de que não era ela a escolhida pela avó. 

Passou então a fazer contas e mais contas: quantos vidrinhos daquele veneno seriam necessários para matar vinte e cinco pessoas, e quanto custariam?













quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

SEGREDOS - CONTO 2 - CIÚME










Este é o conto número 2 da série SEGREDOS.


"O ciumento passa a vida a procurar um segredo, cuja descoberta lhe destruiria a felicidade."- Axel Oxenstiern


CIÚME



Por dentro, logo atrás do sorriso despreocupado, um rio de fel. Martino achava que Linda, sua esposa, o estava traindo. 

Tudo começou durante uma reunião de amigos. Havia na casa cerca de uma dúzia de pessoas que a esposa convidara para celebrar o seu aniversário. Martino, que conversava animadamente com um amigo, viu quando o celular de Linda tocou - a tela acendeu-se, e ela imediatamente o pegou na mesa de centro, deslizando-o para dentro do bolso do casaco, dando uma desculpa para afastar-se dos convidados. Martino logo pediu licença ao seu amigo, e alegando ir até a cozinha pegar mais uma garrafa de vinho, afastou-se discretamente da reunião, seguindo a esposa em silêncio até a área de serviço, onde ficou escondido atrás da porta escutando.

Eram casados há quase vinte anos. Não tiveram filhos por opção, ambos muito dedicados às suas carreiras e também às suas longas viagens de férias, que ocorriam pelo menos duas vezes ao ano. A união tivera seus altos e baixos, mas eles resistiram, pois eram felizes e sentiam-se à vontade juntos. Tinham muitos amigos e uma vida social agradável e intensa. Quando alguém se referia a eles, era sempre no plural: Martino e Linda. Linda e Martino. Eles. Ninguém jamais imaginava um sem o outro. E nem mesmo quando Martino envolveu-se amorosamente com sua ex-secretária (um caso tórrido, pelo menos no início, que durou seis meses e resultou em uma breve separação e uma posterior demissão da moça), os amigos acreditaram que o casal iria separar-se definitivamente. 

Martino  apurou os ouvidos para tentar escutar a conversa da esposa ao telefone, mas os sons que vinham de dentro da casa, as risadas e a música, o atrapalhavam. Mas ele via o rosto de Linda pela greta da porta, entre as dobradiças, e ela ria furtivamente, caminhando de um lado ao outro, enrolando uma mecha de cabelo nos dedos da mão esquerda, murmurando coisas que apenas a imaginação dele poderiam adivinhar. Para Martino, ficara tudo bem óbvio: Linda estava tendo um caso.

Quando ela desligou o telefone, Martino voltou depressa para a sala, a fim de não ser visto, e tratou de colocar um sorriso no rosto para que ninguém notasse sua angústia - principalmente, Linda. Logo depois dele, ela entrou na sala, devolvendo o celular à mesinha despreocupadamente. Os olhares deles se cruzaram por sobre a mesinha, e Linda percebeu que algo não estava bem com o esposo. Aproximou-se, indagando sobre algum possível mal-estar; afinal, ele já tinha bebido bastante. Martino tranquilizou-a, alegando cansaço. 

Após a festa, quando todos os convidados já tinham se retirado e eles estavam sozinhos na casa silenciosa, Martino fingia ler na cama enquanto a esposa despia-se para dormir. Linda, apesar dos seus 45 anos, ainda era uma bela mulher. Ele estava acostumado aos elogios que os amigos faziam a ela. Lembrou-se de quando Linda ficara sabendo do seu caso com a secretária - que ele definiu como uma aventura desimportante devido à crise da meia-idade - mas que mesmo assim, fez com que ela arrumasse suas malas e o pusesse para fora de casa. Não houve gritos nem discussões. Aquela era  a maneira de Linda lidar com as coisas, sempre direta e objetiva. Quando ele chegou em casa e viu suas malas junto à porta, soube imediatamente que Linda descobrira tudo; sem despedir-se, pegou as malas e voltou para o apartamento da amante, com quem viveu por quatro meses. 

Os amigos comentavam o quanto lamentavam a atitude dele: será que Martino não via que Linda era a mulher da sua vida? 

Mas Martino queria voltar; assim que colocou suas escovas de dente no banheiro da amante, ela deixou de ter o sabor de aventura que o atraíra. Vê-la de manhã na cozinha, de rolinhos nos cabelos e  pantufas, folheando um jornal, sem maquiagem e sem glamour, deixou as coisas bastante claras para ele: fizera uma péssima troca. Aquela mulher não tinha sal. Não sabia conversar, era sem-graça a maior parte do tempo. Só falava de compras e de roupas. Até mesmo a cama, que antes os unia, tornara-se apenas uma obrigação. Disse ao melhor amigo: "Quer acabar com o prazer de uma relação extraconjugal? Vá morar com sua amante e faça dela sua esposa."

Finalmente, ele cedeu: foi procurar Linda. Bateu à porta de casa num sábado pela manhã, como se fosse um cão que acabara de quebrar a louça. Ela foi abrir, de pantufas e rolinhos no cabelo, e ele nunca a viu tão linda e desejável. Voltaram. Mais tarde, Martino diria ao mesmo amigo: "Quer ter uma esposa ideal? Faça dela a sua amante." Depois daquilo, houve uma nova lua-de-mel. A secretária foi demitida - única exigência de Linda. Nunca mais Martino pensou em outra mulher. A vida sexual do casal permaneceu tórrida durante algum tempo, mas logo voltou ao antigo ritmo. 

Naquela noite, em que o ciúme queimava seu estômago e esticava suas veias ao ponto extremo, enquanto a esposa se despia, Martino se perguntava o que faria. Deveria confrontá-la, perguntando com quem ela falara ao telefone mais cedo? Talvez fosse melhor segui-la no dia seguinte... 

Súbito, ele foi tomado por um desejo incontrolável de tê-la. Agarrou Linda sem nada dizer, assim que ela deitou-se ao seu lado, beijando-a apaixonadamente, deslizando as mãos pelo seu corpo como se aquela fosse a última vez (ou a primeira?). Parecendo surpresa, Linda correspondeu às investidas dele, e ambos tiveram um final de noite maravilhoso. 

Martino ainda viu sua mulher atender a telefonemas misteriosos em várias outras ocasiões, e sempre que aquilo acontecia, ele ardia de ciúmes, queimava de indignação, borbulhava de desespero, pois não sabia se queria realmente descobrir a verdade. Estaria pronto para enfrentá-la? A única coisa que ele conseguia fazer, era dar vazão ao seu ciúme através do sexo. Amava Linda como nunca fizera antes, às vezes, de forma até um pouco violenta.

E a cada vez que aquilo acontecia, Linda lembrava-se de programar seu celular para tocar em determinadas horas do dia ou da noite, e empenhava-se nas conversas onde o interlocutor era, nada mais, nada menos, que ela mesma. Linda descobrira o prazer de uma vingança bem executada.








SEGREDOS - conto 1 - O VIAJANTE





A partir de hoje estarei postando uma série de contos completos, sob o tema "Segredos." Segredos que temos, dos quais ficamos sabendo, que todos escondemos... quem não tiver um segredo, que atire a primeira pedra.



SÉRIE SEGREDOS – CONTO 1

“Às vezes, os maiores segredos só podem ser revelados a um estranho.” – Michelle Hodkin


O VIAJANTE


Naquela manhã chuvosa de sábado, Luana entregou a passagem ao motorista e entrou no ônibus, rumo a São Paulo, a fim de passar o natal com seus familiares. Morava e trabalhava no Rio de Janeiro há cinco anos, mas fazia questão de passar o natal com a família sempre que podia, pois para ela, “família fazia parte daquelas pequenas coisas que deveriam ser mais valorizadas” – uma frase que ela ouvira de uma das participante de um reality show e jamais esquecera.

Procurou sua poltrona e sentou-se em seu lugar, à janela. Minutos depois, um senhor distinto ocupou o lugar junto ao seu. Trocaram olhares e ele a cumprimentou com um “Bom dia” neutro, e ela respondeu educadamente, logo em seguida concentrando-se na paisagem à janela enquanto o ônibus deixava o terminal e pegava começava a pegar a estrada. Com o canto do olho, Luana observava a camisa de boa qualidade mas antiga, levemente puída no punho, as calças bem passadas e o  relógio de pulso barato e de marca desconhecida usados pelo seu colega de banco de ônibus. Olhou também para o dedo anelar da mão esquerda, constatando que ele não tinha aliança. Nem percebeu que o distinto senhor também a observava discretamente, e seu olhar detinha-se nos joelhos à mostra sob a saia na qual faltava tecido, de cores que ele rapidamente classificou como sendo de mau gosto, e perdia-se entre os seios que surgiam entre o decote vulgarmente generoso da blusa preta justa.

Ela pensava: “Um homem bonito assim, mas sem aliança, só pode ser gay. Ainda mais nessa idade! Deve ter uns cinquenta anos, mas é todo bem cuidado, e solteiro? É gay, com certeza!”  Ele pensava: “Uma linda jovem – talvez tenha uns vinte e cinco anos, porém não deve ter muita coisa dentro da cabeça, pois precisa expor o corpo desta maneira tão vulgar a fim de chamar a atenção. Já deve ter dado para meio mundo. Uma pena!” 

Assim, estabeleceu-se o primeiro contato entre eles e as primeiras impressões (equivocadas, como quase sempre acontece). 

Uma hora depois, Luana despertou com um solavanco do veículo para descobrir que tinha adormecido com a cabeça encostada ao ombro do distinto senhor. Imediatamente, ela desculpou-se, constrangida, alegando imenso cansaço, mas ele apenas sorriu e disse que ela não tinha do quê desculpar-se. As apresentações foram feitas: “Meu nome é Robério Gomes, às suas ordens.”  Luana disse-lhe seu nome, achando engraçada a maneira formal como o senhor se expressava. Logo, estavam conversando animadamente sobre amenidades, esquecidos da distância cultural e econômica que os separava – Luana era de família rica, porém preferia viver no Rio de Janeiro, onde, segundo explicou, a vida era mais divertida e se podia ir à praia quando quisesse. Não gostava muito de estudar, mas formara-se em psicologia e tinha um pequeno consultório em Copacabana – presente do pai, que enviava-lhe uma gorda mesada para que ela pudesse brincar de profissional independente e morar em frente ao mar. Ele escutou atentamente enquanto Luana narrava sua vida feliz, pensando no quanto ela era fútil e tão diferente de sua filha, que só pensava em estudar e ter uma carreira bem-sucedida.

Já Robério, era um humilde professor de matemática. Lecionava em algumas escolas públicas, e sua vida nada tinha de glamorosa. Morava em uma casinha no subúrbio, onde se estabelecera após o divórcio, pois a casa confortável que construíra para o casal e a filha ficara com a mulher após a partilha de bens. Solitário, tinha poucos amigos e não gostava de praia. Preferia passar o tempo livre em casa, assistindo TV. Luana ouviu seu curto relato, sem conseguir esconder sua decepção; ela gostava de homens mais velhos, principalmente os casados, que nada mais queriam que uma simples aventura e não grudavam no seu pé. Este, apesar de bonitão, era um fracassado, segundo suas avaliações. Luana gostava de homens que apreciavam uma balada após o trabalho, e que pagavam as contas dos restaurantes e motéis. Robério parecia não ter um tostão. O interesse sexual que ela havia sentido por ele imediatamente morreu.

Mesmo assim, ela tinha que admitir que Robério era culto e interessante; ele falava sobre vários assuntos que ela não conhecia e não entendia, explicando-lhe pacientemente os detalhes, quando ela fingia demonstrar interesse. Pensou que afinal de contas, Robério deveria ser um ótimo professor. E quem sabe, um bom ouvinte... 
Assim, enquanto a estrada os aproximava cada vez mais do seu destino, a conversa foi aumentando o grau de intimidade entre eles. Luana explicou o motivo de sua viagem a São Paulo, e perguntou sobre o dele, e Robério explicou-lhe que tinha sido convidado a passar o natal com um grande amigo de adolescência que já não via há anos e que reencontrara há apenas alguns dias, quando este estava em viagem de negócios pelo Rio de Janeiro. Tinham sido melhores amigos por muitos anos, mas a mudança de Robério para o Rio após seu casamento, acabara afastando os dois amigos. Aquela era uma chance de reestabelecer a amizade entre eles. 

Luana escutou, concordando com a cabeça. O silêncio caiu entre os dois durante algum tempo, e ela começou a pensar que dali a apenas algumas horas, eles se despediriam e ela nunca mais o veria. Coincidentemente, Robério pensava a mesma coisa, mas para ele, aquilo nada significava, enquanto que para Luana, o fato era visto como uma oportunidade. E foi assim que surgiram as confissões.
Luana abriu-se com Robério; contou-lhe o verdadeiro motivo de ter desejado ir embora de casa e morar longe dos pais: é que sua mãe mantinha um caso com o síndico do prédio há vários anos, e ele não era o único. O comportamento promiscuo da mãe, Luana explicou-lhe, não querendo parecer puritana ou julgadora, em nada a afetaria se esta não fizesse questão absoluta de levar seus amantes para a cama do pai assim que este saía para o trabalho, quase todas as manhãs. Ela sentia-se constrangida com a situação, pois várias vezes acordava e dava de cara com um deles no corredor. Robério tentou não demonstrar seu embaraço após aquelas confissões fora de contexto, e ouviu a moça lamentando a situação. 

Por outro lado, o pai “comia” várias de suas colegas de escola, desde que ela tinha dezesseis anos. Ela mesma já vira algumas cenas tórridas em seu próprio quarto, mas achou melhor não dizer nada a respeito. Mesmo assim, aquilo gerou uma distância enorme entre ela e o pai. Afinal, amigas eram amigas, e deveriam ser respeitadas como tal (embora as suas amigas adorassem toda aquela “atenção” e depois partilhassem com ela os detalhes sórdidos de tudo o que acontecia, e Luana, tentando não parecer puritana, ouvia e dava risadas). E para coroar toda aquela situação, Luana confessou que o pai tinha uma amante no Rio de janeiro há vários anos, uma tal Clotilde (ela notou o rosto de Robério ficando vermelho após ela mencionar o nome da amante de seus pai) que ele visitava sempre que ia tratar de negócios por lá. A mulher até se divorciara do marido para ficar à disposição dele, sustentada por ele. Como ela sabia? Ouvira várias conversas deles ao telefone, e conseguira abrir os e-mails do pai. Robério percebeu o quanto a moça tivera sua educação comprometida, e também a falta de apoio e exemplos que tivera em seu próprio lar, e entendeu o porquê do comportamento dela. Cresceu sem saber o que era o certo e o errado, e com uma visão distorcida da sexualidade. Sinceramente lamentou por tudo o que a jovem tinha passado, e censurou-se por tê-la julgado. Quanto ao nome da amante do pai de Luana, ele atribuiu o fato à coincidência. Quantas Clotildes existiam por aí, além de sua ex-mulher?

Segredos confessados, Luana sentiu um imenso alívio; afinal, jamais falara sobre aquilo com ninguém. Pouco antes de chegarem a São Paulo, ambos se desculparam por “qualquer coisa.” Mais uma vez, o silêncio caiu entre eles, entrecortado por olhares furtivos e sorrisos tímidos. O assunto acabara, a viagem estava chegando ao fim e nunca mais veriam um ao outro. 

O ônibus chegou a São Paulo, e ambos pegaram suas maletas no compartimento de bagagem. Robério colocou Luana em um táxi, e os dois se despediram. Após um café, ele mesmo tomou seu próprio táxi e dirigiu-se para o endereço do amigo, que o aguardava.

Luana chegou à casa dos pais, que estava cheia como sempre, aquele clima de festas de fim de ano onde todo mundo é feliz, risos, brindes, presentes sob a imensa árvore dourada, e a mãe, mais linda do que nunca, abraçada ao pai , foram recebe-la de braços abertos– o retrato do casal feliz e perfeito, durante o reencontro com sua linda e bem-sucedida filha. As pessoas aplaudiam.
 Alguns minutos após sua chegada, a campainha tocou, e o pai foi atender, dizendo: “Deve ser o Robério!”






A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...