quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica - FINAL





Estar vivo ou estar morto; tudo uma questão de tempo! Se estamos do lado de lá, significa que voltaremos para o lado de cá a qualquer momento; se estamos do lado de cá, também podemos voltar para o lado de lá quando menos esperamos, e esta é a única verdade comprovada sobre a vida. Ninguém fica pra semente. Ir é apenas uma questão de estar. Nada há que possamos fazer a respeito: o corpo envelhece, fica cansado e desgastado, e precisa ser despido feito uma roupa velha e gasta. Mas por dentro dessa roupa velha, existe uma essência que nunca envelhece, nunca se desgasta. 

Não tenho o apego de ficar por aqui tempo demais, e Deus sabe quando será minha hora. Mas existem algumas coisinhas que eu gostaria de deixar acertadas antes de ir. E não pensem que sou melancólica; sou apenas prática. Depois de tantos anos de vida indo a funerais e missas de sétimo dia, tive tempo de observar o quanto essas cerimônias são chatas e extremamente cruéis para os parentes de quem morre. Não sei quando elas começaram, mas por que manter uma tradição que só causa dor? E de nada adianta para o morto, que já "está em outra" e nem se interessa pelo que pode acontecer ao corpo já em decomposição que vai ficar por aqui... portanto, já tomei algumas providências que eu gostaria que ficassem bem claras para os meus parentes. E nem se atrevam a não atender os meus últimos desejos, ou voltarei e puxarei as pernas de vocês enquanto eu for morta!

Vivi uma vida longa e muito feliz. Tive meus filhos, curti meus netos, morei em várias casas, viajei o mundo todo, tive muitos amigos - alguns eu dispensaria com alegria, mas tudo é aprendizado - aprendi muitas coisas. Tive uma vida muito boa, sim. Ainda tenho, e espero continuar a ter enquanto estiver por aqui. Adoro as tardes de biriba às quintas feiras com as amigas. Amo passear pelo meu jardim e observar a natureza, aprendendo com ela. Adoro ler, passear, almoços e jantares em família. Gosto da vida! Mas olhem, eu não me apego a nada. Nem mesmo a ela. E as minhas decisões - que espero, sejam respeitadas - são as seguintes:

Doei meu corpo à medicina. Que façam o que desejarem com aquilo que sobrar de mim, já que meus órgãos estão velhos demais para que possam servir a alguém. Façam experiências, ou então, dissequem e usem nas aulas de medicina. Não quero que sobre nada que justifique um velório, pois eu não quero ter um velório. Quem quiser fazer-me algum tipo de homenagem, embora não seja preciso, digam uma oração por mim e lembrem das coisas boas que vivemos juntos, e isso pode ser feito durante um jantar de família, com boa música de fundo e muitas flores em vasos enfeitando a casa.

Da mesma forma, esqueçam as missas de sétimo dia e missas para 'salvar' a minha alma de morta. Minha alma não precisa de padres e nem de sacerdotes de religião nenhuma! Dispenso alegremente a intervenção destas criaturas. Eles não sabem de nada, e acham que podem salvar almas e absolver-nos de nossos pecados. Tenho certeza de que o fim é só outro começo, e quem estiver esperando por mim lá do outro lado, o fará sem julgamentos e condenações ao fogo do inferno ou emanações de enxofre. Serei acolhida com generosidade e amor, assim como todas as almas que se vão deste mundo. Pois se existe um Deus julgador e punidor, não desejo encontrá-lo, pois o desprezo. Deus só pode ser bom e justo. De uma bondade e justiça que ninguém aqui é capaz de conceber - muito menos os religiosos, seus dogmas repetitivos e suas palavras vazias de sentidos, pronunciadas automaticamente com pompa e frieza. Para vocês, aqui ó! Uma banana bem grande!

Minha casa e meus poucos bens podem ser vendidos e distribuídos entre vocês, e não faço questão de determinar quem herdará o quê, pois estas coisas, conforme a minha hora vai chegando, significam apenas peso e inconveniência para mim. Divirtam-se com elas!

Não chorem por mim. É bobagem chorar por quem já morreu, pois eu tenho certeza de que a vida é assim, é um eterno encontrar-se, despedir-se, e encontrar-se novamente para despedir-se de novo. Por que chorar? Lembrem-se de mim, se assim o desejarem, como alguém que fez parte da vida de vocês, errou e acertou, tentou fazer o melhor, cumpriu sua missão e se foi. Continuem com suas vidas, e se algo de bom ficou da minha, guarde dentro de vocês como uma lembrança querida, algo para ser assunto de conversas ao pá da lareira nas noites de inverno. 

Minhas roupas e sapatos, doem aos necessitados, e não guardem nada, nadinha! Nem um lenço sequer. E façam-no sem culpas, pois eu quero que seja assim. Esvaziem todos os meus armários! Joguem fora toda a tralha acumulada durante minha vida ( o que sobrou dela, pois já doei quase tudo), e doem, doem, façam alguém feliz! Depois, se quiserem, encham tudo com as coisas de vocês, coisas novas, bonitas, com cheirinho de loja! Aproveitem bastante, pois chegará o dia em que alguém também terá que esvaziar seus armários. Não deixem suas melhores roupas para usar em dias de festa; usem sempre o que tiverem de melhor, em qualquer ocasião! Gastem tudo, aproveitem tudo, e depois, enquanto ainda estiverem em boas condições de uso, doem. Doem sempre. E comprem tudo novo. Respeitem o ciclo. Não retenham nada.

E lá no final, quando chegar a hora, vão em paz, sem olhar para trás, sem culpas, sem medos e sem saudades. E pelo amor de Deus, sem velórios.


FIM



segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica - Parte VII




Nunca pretendi viver tanto... se cheguei até aqui, foi por obra do destino. Também não tenho aquele medo de morrer que a maioria das pessoas tem - principalmente, alguns idosos, que transformam a ideia da morte em fobia. Tampouco tenho aquela pena de deixar este mundo, da qual falou o comediante Chico Anísio. Na  minha hora de ir, fecharei os olhos e irei, simplesmente. Não levo culpas, arrependimentos, ansiedades ou saudades. Sei muito bem que os que ficam tem muito o que viver, e por isso, logo serei esquecida.

O que há do outro lado? Outra questão que também não me preocupa muito... sabem, já passei por algumas experiências um tanto esquisitas e incomuns... já vi e ouvi certas coisas que não se deve partilhar, principalmente, quando se chega à minha idade, ou as pessoas dirão que você está vendo coisas... elas me bastam. Sei que existe alguma coisa depois disso aqui, embora eu não saiba o que é, e nem esteja preocupada em saber. E se as coisas que eu experimentei tiverem sido apenas alucinações, então, também é um motivo para não me preocupar de jeito nenhum, pois se nada houver, nada sentirei, nada verei, nada serei.

Existe uma ansiedade tão grande, uma urgência em se prolongar a vida, em se parecer mais jovem hoje em dia. Fico pensando: para quê? Os idosos não são respeitados! melhor seria se as pessoas se preocupassem em tornar a vida melhor para nós, enquanto estivermos aqui, ao invés de ficarem tentando prolongá-la! Viver mais para que? Qual a vantagem? Os jovens nos ignoram, nos desprezam, riem da nossa experiência, não nos querem por perto! Nos aposentamos ganhando misérias! O plano de saúde dos idosos custa uma fortuna, e quem fica dependendo da saúde pública sofre todo tipo de desrespeito e humilhação. Viver mais, nestas condições?

As pessoas olham para fora dentro do ônibus ou fingem que estão dormindo para não terem que ceder lugar para nós; motoristas passam direto no ponto quando vê que só há um idoso fazendo sinal. Os mais jovens ignoram nossas opiniões e querem que a gente dê o fora quando estão conversando e tomando decisões importantes - algumas delas, relativas às nossas vidas! Viver mais para quê?! Em um mundo onde ser velho é ser desrespeitado, esquecido, ridicularizado!?

Não me agarro a esta vida; não mesmo! Mas enquanto eu estiver aqui, farei questão de não viver da maneira como 'eles' querem que eu viva; serei dona do meu nariz! Farei as coisas que eu gosto. Me recuso a agir como a maioria das pessoas da minha idade, ou seja, tentando não incomodar, não falar demais, contentando-me em ficar no quartinho dos fundos e em sorrir, satisfeita, toda vez que alguém olhar para mim e disser "Que gracinha a sua vovó!" Eu não sou uma gracinha, sou uma pessoa adulta, sã e capaz! Exijo respeito.

Também já não vou mais à igreja há muito tempo, pois sinto que os religiosos nos consideram estúpidos e incapazes de raciocinar. Acho um absurdo, as coisas que ouço quando vou à igreja! Eles pegam a Bíblia e a detonam de todas as formas, distorcendo as passagens para que caibam em suas concepções preconceituosas e absurdas. Várias vezes, sinto que aqueles padres nem sabem o que estão dizendo, apenas repetem automaticamente aquilo que escutaram ou leram em algum lugar. Nem sinto que eles mesmos acreditam no que estão dizendo. As missas são repetitivas; há mais de dois mil anos, as mesmas coisas são ditas, nada muda, nada evolui. Pra mim, chega. Como diz minha neta, "Já deu!" Na última vez que estive em uma missa, vi um cartaz enorme na entrada, com a lista dos dizimistas, e os nomes e sobrenomes dos que haviam pago o dízimo, ao lado dos nomes dos devedores! Achei aquilo absurdo e humilhante. Também tive que aturar o padre falando mal de outras religiões durante (contei no relógio) dezessete minutos! Já vivi demais para ter que engolir aquelas baboseiras. Não vou mais à igreja. Nem faço questão que rezem missas pela  minha alma quando eu me for. Quem gostar de mim, que faça uma oração silenciosa.

A evolução total do mundo não será quando o homem conseguir viver cento e cinquenta anos, mas quando conseguir viver cinquenta anos bem vividos, de forma a não prejudicar seu semelhante, respeitando os direitos alheios, considerando os idosos e sua sabedoria, tratando bem dos animais e do planeta. Isso sim.



quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica - Parte VI





Quem nunca chocou-se ao ver um casal idoso em atitudes românticas? Porque  para a sociedade em que vivemos, amar é coisa de jovens! Velhos já 'passaram do ponto,' 'tiveram seu tempo,' e ficam ridículos em cenas de amor. 

Ontem, assistindo à minha novela, vi o escândalo que a personagem sentiu ao saber que sua mãe idosa iria passar a  noite na casa do namorado. Antes que ela saísse, deitou-lhe um verdadeiro questionário, como se fosse ela a mãe e a mãe, a filha! Mas a senhora não deixou por menos: pegou sua bolsa e saiu, deixando bem claro que já era adulta e que portanto, não devia satisfações de sua vida.

E quando cenas de amor entre idosos acontecem em público, sempre surgem questionamentos e até mesmo comentários como: "Mas que safadinhos!" "Que ridículo!" Ou até mesmo "Mas que nojo!" Como se pessoas idosas não tivessem mais direito a amar! 

Precisamos deixar claro que estamos vivos, e às vezes, é cansativo lembrar as pessoas o tempo todo deste fato. Precisamos mostrar que ainda somos pessoas adultas e independentes, donas de nossas vidas, que não voltamos a ser crianças e nem ficaremos contentes ao nos recolhermos a um cantinho da casa, fazendo tricô ou assistindo televisão o dia todo. Somos pessoas! Será que é tão difícil assim nos deixarem em paz?

Um dia eu sei que poderá aparecer alguém que balance novamente com as minhas estruturas. E tenho certeza absoluta que a minha família ficará escandalizada com este fato: o de que eu estou viva, tenho sangue correndo nas veias e um coração que pulsa intensamente. Ai de quem fizer algum comentário engraçadinho a respeito disto! Estrei pronta para responder à altura, pois não levo e  nem nunca levarei desaforo para casa. Humpf!

As pessoas se esquecem de que um dia, elas ficarão velhas também. Acham que juventude é coisa que dure, e que velhice é algo que acontece apenas com suas tias e avós. Deixem elas... seu dia chegará, e será tão de repente, que elas nem perceberão; apenas abrirão os olhos, e alguém as chamará de 'senhoras' e 'senhores,' ou torcerá o nariz quando, durante uma conversa de família, elas derem alguma opinião. Haverá aquele silêncio constrangedor, as pessoas se entreolhando e pensando: "Mas quem foi que pediu a opinião dela? Será que vamos ter que escutar suas histórias novamente?" 

E antes mesmo que possam perceber, começarão a ganhar camisolas, peças de roupas cinzas ou pretas, talcos, sabonetes e chinelos de presente de natal. Porque os 'jovens' pensam que estes presentes dizem melhor aos velhos os lugares que lhes cabem dentro de uma casa e de uma família. E se não tomarmos cuidado, logo estaremos ocupando a velha cadeira de balanço, envoltos em chales e linhas de  bordar, e quando as visitas chegarem, dirão às crianças: "Vá cumprimentar a vovó!", o que elas farão à contragosto. E passadas as obrigações sociais, os 'jovens' irão para a sala de estar conversar, esperando que o velho não os siga. 

E quando insistimos em mostrar-lhes que estamos vivos, ouvimos comentários pelos corredores da casa, tipo: "Mamãe não aceita a idade!" Mas isto não é verdade; quem não aceita a nossa idade, são vocês!




segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Confissõs de Uma Idosa Cínica - Parte V



Ah, os golpistas!... 

Há alguns dias, fui parada na rua por um senhor muito distinto, que parecia estar em grandes dificuldades. Abordou-me com gentileza, parecendo apressado, e pediu-me se eu poderia trocar uma nota de cinquenta reais para ele em notas de dez reais. Precisava tomar o ônibus, e não tinha trocado.

Na maior gentileza, peguei algumas moedas que tinha em minha bolsa, já que eu não tinha como trocar o dinheiro, e entreguei-as a ele, que me agradeceu com um sorriso amarelo. Nisto, entrei na drogaria a fim de comprar algumas coisas que eu precisava. Quando saí, vi que o homem continuava ali no ponto de ônibus,  e passei a observá-lo melhor. Ele aproximou-se de uma outra idosa, fazendo-lhe o mesmo pedido. Vi quando ela abriu a bolsa na maior inocência, e contou cinco notas de dez reais que entregou ao homem, que passou para ela a nota de cinquenta. Ele começou a conferir o dinheiro, e disse:

-A senhora se enganou. Aqui só tem quarenta reais.

Ela respondeu:

-Como? Não é possível, eu contei, o senhor viu!

-Minha senhora, aqui só tem quarenta reais, veja...

E ele contou as notas, e só tinha quarenta reais. Logo percebi a jogada dele, e enquanto a senhora, muito constrangida, abria a bolsa e começava a procurar por mais uma nota de dez reais para pagar o homem, aproximei-me, dizendo:

-Ora, o senhor não tomou o ônibus? Por que?

Ele sorriu:

-Acabei perdendo.

Apontei para o ônibus, ainda parado no ponto:

-Corra, ele ainda está ali.

E ele, com certa impaciência:

-Assim que esta senhora pagar-me o dinheiro que me deve.

Tirei minha sombrinha da bolsa, dizendo:

-O senhor é um golpista, e se não der o fora agora mesmo, vai ver só o que eu vou aprontar!

A outra senhora nos olhava, atônita, sem entender nada. Ele engoliu em seco, e afastou-se de nós, resmungando. Expliquei a ela que ele era um golpista, e ela, aliviada, agradeceu-me.

Se você é idoso, não deve jamais abrir sua bolsa ou carteira perto de estranhos, e muito menos, fazer coisas tão estúpidas quanto trocar dinheiro para alguém. Nós, os idosos, somos sempre vítimas destas pessoas inescrupulosas, que provavelmente não tem mães ou pais, e aproveitam-se de nossa aparência frágil e de nossa boa vontade! Infelizmente, o mundo mudou bastante desde o tempo em que éramos jovens e podíamos confiar nas pessoas.

Foram-se os tempos em que as pessoas eram verdadeiras, tinham honra, e a palavra dada era lei. 

Não se pode mais confiar em ninguém, e isto pode ser verdadeiro até mesmo quanto às pessoas mais íntimas.

Dia desses meu neto mais novo veio fazer-me uma visitinha. estranhei, já que desde que nasceu, ele nunca veio sozinho visitar-me, e quando em companhia dos pais, sempre demonstra bastante tédio, checando as horas repetidamente, só parecendo feliz na hora de despedir-se. E de repente, o moleque de dezesseis anos bate à minha porta em uma tarde de sexta-feira, dizendo que sentiu saudades... bem, abri-lhe a porta e recebi-o bem, com uma grossa fatia de bolo de chocolate. Mas fiquei, como se diz hoje em dia, "na minha," esperando para ver o que ia acontecer...

E então ele me falou que precisava de um computador novo:

- Sabe, vó, para fazer as lições da escola.
-Mas seu pai não lhe deu um no ano passado?
-Pois é, mas já está ultrapassado, e o HD está com defeito. 
-E por que você não fala com ele e pede um novo?
-Eu bem que tentei, vó, mas ele disse que não vai me dar... 

Ao mesmo tempo que eu me senti usada e tola, achei que o moleque precisava de uma lição. Tomei mais um gole do meu chá, deliberando o que deveria fazer.

-Sabe, meu filho... ando precisando de alguém que me dê uma mãozinha por aqui. A garagem precisa ser pintada, a cerca viva precisa ser aparada, a área de serviço merece uma boa lavada, e algumas lâmpadas da casa tem que ser trocadas; além disso,  o jardineiro não veio esta semana, e o gramado está 'dessa altura!' E também necessito de alguém que faça as compras do mês para mim, já que não ando me sentindo muito bem...  e talvez, se uma alma gentil fizesse uma boa faxina - a casa precisa ser encerada, sabe, e também tem algumas coisas que preciso separar em caixas para doação...

-Eu ajudo a senhora, vó! faço tudo, tudo o que a senhora pedir!

E meu desinteressado netinho passou a semana toda aqui em casa, fazendo tudo para mim.

No sábado à tarde, quando ele terminou, a casa estava um verdadeiro brinco! Nós tomamos café na varanda, e ele devorou um bolo de cenoura quase inteiro, feliz da vida, embora cansado. Quando ele acabou de comer, agradeci e abri a porta da frente. Ele ficou me olhando... despedi-me novamente.

-Mas vó... a senhora não está esquecendo de nada?
-Eu?! Do que? Ah, sim! O porão precisa ser limpo!
-Não vó, não é isso... o dinheiro... sabe, para o computador novo?...
-E quem disse que eu vou dar dinheiro para você comprar computador novo?
-Mas...
-Mas... mas... ora, menino! Você nunca vem visitar-me! Acha que vou lhe comprar um computador só porque fez uns servicinhos aqui em casa? 

Ele ficou me olhando, de boca aberta.

-Sabe, agora você sabe exatamente como alguém se sente quando descobre que está sendo usado! Agora, vá para casa, meu filho.

Ele baixou os olhos, e saiu. Fiquei à porta olhando-o caminhar cabisbaixo, até que desapareceu na esquina.





quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica - Parte IV





Alguns conselhos para os quase velhos e para os velhos  (ou idosos, se preferirem; quem sabe, vocês prefiram , ao meu ver, o pejorativo termo "membros da terceira idade." Ou o mentiroso "membros da melhor idade:):

-Seja independente. Cultive a independência, tanto financeira quanto física e emocional. Cuide bem de sua saúde para que na velhice você tenha a melhor mobilidade física possível, e esteja livres de doenças crônicas, como diabetes e artrites. Exercite-se; faça caminhadas, consulte o médico periodicamente.

-Aprenda a apreciar a solidão, através da criação de momentos mágicos, como o apreciar da chuva, ou do nascer do sol, um passeio à pé por um belo jardim, um bom livro, boa música. Abra um blog; aprenda a usar a internet, compre um computador, e dê asas à imaginação. Quem sabe, você não possa tornar-se um exímio fotógrafo ou poeta? Enfim, crie alguma coisa que te traga momentos de lazer preciosos. Se preferir, entre para um daqueles grupos da terceira idade, que se encontram para jantares dançantes ou excursões - embora eu não tenha conseguido adaptar-me a eles.

-Aprenda a fazer-se respeitado! Os mais jovens tem a mania de pensar que somos inúteis ou incapazes de cuidar de nós mesmos. Querem mandar nas nossas vidas!

-More em sua própria casa, nem que seja um pequeno apartamento, mas evite loucuras, como subir em escadas para trocar lâmpadas, por exemplo. Preste atenção para não deixar o fogão aceso, e evite os chuveiros à gás. Melhor exercitar sua memória fazendo palavras cruzadas, ou se preciso, tome um medicamento para evitar esse tipo de coisa! Mas prefira viver sozinho. Por mais encantadores que seus filhos sejam, quando eles o convidam para viver com eles, é porque sentem-se obrigados a isso, e não porque querem realmente conviver com você. Assim que você realmente precisar da ajuda deles, eles se esquecerão dos tempos em que você limpava-lhes as bundas, alimentava-os, levava-os à escola, lia histórias para que dormissem e dedicava todo o seu tempo a cuidar deles. Assim que você tornar-se o que eles consideram  um velho inútil, aqueles que antes brigavam pela sua companhia estarão brigando para ver quem segurará a barra de ficar com você. Eles o empurrarão uns para os outros como se você fosse um velho cão sarnento. Portanto...

-Tenha um plano de saúde. Nem que você precise dar uma grande parte de sua aposentadoria para pagar um! Se não tiver, correrá o risco de, quando precisar, ter que fazer uso dos 'serviços' de um hospital público, pois seus filhos não terão dinheiro para pagar-lhe um tratamento. Já viram quanto custa um dia de UTI?!

-Se viver sozinho tornar-se difícil, escolha você mesmo para qual tipo de instituição você quer mudar-se. Jamais aceite viver com seus filhos, pois eles o tratarão como um inútil cuja opinião não faz a menor diferença para ninguém. Eles o legarão ao quartinho dos fundos, e adorarão que você permaneça lá a maior parte do tempo. Vão querer controlar seus gastos, determinando o que você pode ou não comprar. Vão desejar entupir-lhe de medicamentos que vão acabar com seu estômago e sua boa disposição física. Mas tudo com a melhor das intenções, é claro!

-Mas se a sua única saída for morar com um dos filhos, evite dar opiniões, sejam elas quais forem. Fique lá no seu quartinho a maior parte do tempo, seja gentil, faça tudo o que eles mandarem, não se intrometa nas decisões ou brigas de casal, não queira interferir na educação de seus netos e evite até mesmo regar um vaso de plantas sem antes perguntar se é permitido fazê-lo. A não ser que você queira ver seu pimpolho transformar-se em um monstro em questão de segundos!

-Não deixe que falem de você como se você não estivesse presente! Geralmente, os filhos - e até as pessoas que não pertencem à família - gostam muito de fazer esse tipo de coisa. Ficam discutindo sua vida sem pedir a sua opinião. Não permita que isso aconteça! Nem que você precise berrar um palavrão para que a ouçam. A última decisão sobre a sua vida deve ser sempre sua. Não perca sua dignidade como ser humano!

-Torça para que, depois de impor a sua vontade, eles não queiram internar você em uma clínica psiquiátrica...





domingo, 13 de outubro de 2013

Confissões de uma Idosa Cínica - Parte III




Os cientistas fazem questão de desenvolver métodos, remédios e mais uma porção de tranqueiras a fim de prolongar a vida das pessoas. Antigamente, uma pessoa era considerada velha aos quarenta anos, e idosa aos cinquenta. Alguém que vivesse até os sessenta, setenta, era um milagre! Por causa disso, as pessoas casavam-se muito cedo. Minha bisavó conheceu meu bisavô aos doze anos, e casou-se - virgem - aos treze, tendo doze filhos. Hoje em dia, ela seria considerada vítima de pedofilia!

As pessoas mudam, os tempos mudam, os conceitos mudam...

No meu tempo de juventude, a comida não fazia mal à saúde, e se fizesse, ninguém ficava sabendo; apenas adoecia e morria. Viver e morrer eram coisas naturais. Nos funerais, a gente se sentava e conversava sobre a vida. Marcava encontros e reuniões - afinal, a gente não se via há tanto tempo! Depois, na hora do 'enterro', cada um jogava no caixão seu punhado de terra, dava seu suspiro, derramava sua lágrima e seguia com a vida...  hoje, morrer é sinal de derrota e fracasso! Os médicos se sentem fracassados quando alguém morre, a família não se consola. Cultua-se o morto como se ele tivesse virado santo só porque morreu. E se ele cometeu alguma falta, ninguém falará sobre ela.

Estive em um velório recentemente; mais um. É incrível como, de repente, o evento principal na vida de alguém passa a ser ir a velórios. Até que o o show principal somos nós. Enfim: a viúva aturou aquele cabra por mais de quarenta anos, humilhando-a, pisando nela, impedindo-a de ser quem queria (seu grande sonho era ser poeta, publicar seus poemas em livros), diminuindo-a diante dos amigos e da família, talvez porque isso o fazia sentir-se melhor em relação a si mesmo. Ela nunca fazia uma escolha sozinha, nem mesmo quando ia a um restaurante. Ele não deixava. Decidia tudo por ela. Um dia, encontrou seus cadernos de poesia, e queimou-os todos, só pelo prazer de vê-la destruída. Vivia gabando-se de sustentar a casa e não deixar faltar nada a ela e aos filhos, que cobria de dinheiro e a quem satisfazia todas as vontades a fim de receber deles o apoio que precisava. Bem, talvez ele deixasse faltar apenas uma coisinha sem importância: respeito! Mas isso não era tão relevante assim para ele.

Bem, durante o velório, as pessoas iam cumprimentá-la, lamentando pela "terrível perda." Ela enxugava uma lágrima com o lencinho bordado, e agradecia, sentada à cabeceira do morto, que nem mesmo depois da morte, assumira um ar menos arrogante. Aquela coisa toda, aquele ritual macabro foi me enchendo por dentro, e finalmente, chegou à minha garganta.

De repente, eu me levantei, e batendo palmas, pedi a atenção de todos. As pessoas me olharam, caladas e atentas, com certeza, pensando que eu fosse dizer alguma coisa em favor do morto. Mas as palavras simplesmente escorregaram da minha boca, e não pude me conter mais. Meu discurso foi mais ou menos assim:

"Todo mundo sabe que a Dora (viúva) foi casada com Guilhermino aqui (apontei para o caixão)   por mais de quarenta anos. Todos aqui também sabem que Guilhermino era um crápula rude, hipócrita, arrogante, mulherengo e mentiroso. Sugou desta mulher (apontei para a viúva) todos os seus anos de juventude. Os filhos, contanto que recebessem seu quinhão, jamais se levantaram para defendê-la durante as muitas humilhações pelas quais ela passou." (Naquele momento, os três bastardos ergueram-se de seus assentos, vindo em minha direção. Mas como eu sei que ninguém vai atrever-se a tocar em uma idosa de oitenta e tantos anos, não me intimidei): "pois é... e agora vocês vem aqui, dizer o quanto sentem pela morte desse crápula? Vocês deveriam estar é comemorando!" 


Dirigi-me diretamente à viúva: "Querida, você ainda tem sessenta e poucos anos, se não me engano. Pegue a grana que esse safado deixou e vá conhecer o mundo! faça uma viagem! Não deixe que seus rebentos interesseiros ponham a mão no dinheiro antes que você morra. Viva o que lhe resta com dignidade e em grande estilo!"

Depois daquilo, a viúva ficou me olhando de olhos esbugalhados, e quando o pessoal começou a murmurar, e conforme o murmúrio foi aumentando de intensidade, peguei minha sombrinha e saí dali apressada.

Mais tarde, soube que Dora, a viúva, partiu em um cruzeiro pelas Bahamas com seu motorista, quinze anos mais jovem, que sempre estivera interessado nela, mas para quem ela nunca dera uma chance em respeito ao marido. Limpou o dinheiro da conta bancária naquela mesma tarde, após o velório,  transferindo tudo para um paraíso fiscal, para que os filhos não conseguissem bloquear-lhe os bens. Ainda fechou a venda de algumas propriedades que já estavam iniciadas pelo marido antes de sua morte, escondido dos filhos. O  novo casal, com o dinheiro da herança e da venda das propriedades, mudou-se para Buenos Aires, onde abriram um hotel cassino. 

Ando pensando em dar uma passadinha por lá nas minhas férias.


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica - Parte II




"Dona Abigail!!!" Acordei com alguém tocando a campainha na manhã de domingo, ao mesmo tempo que vociferava meu nome à porta. Calcei meus chinelos de pompom e fui atender, ainda descabelada, e muito curiosa a respeito de quem seria capaz de acordar uma velha senhora em uma manhã fria e chuvosa como aquela. Será que a casa estava pegando fogo?

Abri a gretinha da porta, e o vento gelado entrou, congelando-me as pupilas; mas ainda tive tempo de ver meu vizinho da porta ao lado, um linguarudo contumaz, acompanhado por um outro senhor de quepe usando um uniforme... da polícia! Escancarei a porta sem dizer nada, mas expressando toda a minha insatisfação através do meu olhar. O vizinho sorriu, meio-sem graça, enquanto o  policial perguntava:

-Bom dia, senhora. Está tudo bem? Precisa de alguma coisa?

Respondi:

-Estou ótima, ou melhor, estava, antes de ser incomodada. O que está acontecendo aqui?

Naquele momento, meu vizinho explicou-me, com aquela voz condescendente que se usa com os retardados mentais:

-É que eu não a via há quase dois dias, Dona Abigail, e então eu supus que alguma coisa terrível pudesse ter acontecido... decidi verificar se a senhora estava bem!

Olhei-o como se ele fosse o ET de Varginha:

-Bem,  com um frio desses, o que eu vou fazer aí fora? Para que abrirei as janelas? E por que chamou a polícia antes de verificar por si mesmo?

-Ora, sabe como é, dona Abigail... da última vez, a senhora espantou-me com a vassoura!

-E passou pela sua cabeça lesada usar o telefone, ou ligar para um de meus filhos?

Ele deu um sorriso amarelo:

-Na verdade... não.

Naquele momento, o policial fuzilou-o com o olhar,  dizendo-me que se eu precisasse de qualquer coisa, telefonasse para o número que estava no cartão que ele me entregou. Gostei dele! Enquanto isso, bati a porta na cara do infeliz vizinho bisbilhoteiro. Eu sei muito bem que ele aguarda meu passamento ansiosamente, pois há anos ele anda querendo comprar a minha casa, pois tem interesse em ampliar seu jardim. Fez várias propostas ao meu falecido marido, mas como metade da casa me pertencia, não permiti tal absurdo. Também abordou meus filhos no dia do velório. Bem que eles tentaram me convencer a vender e mudar-me para "Um lugar maravilhoso" que eles conheciam, mas deixei bem claro que eles só colocariam a mão na herança após a minha morte.

As pessoas se esquecem de um pequeno e importante detalhe: elas também vão ficar velhas! E ainda há  um outro detalhe, do qual elas se esquecem mais ainda: nem todo velho é idiota.



segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica Parte I




Meu nome é Abigail, e tenho 87 anos e cinco filhos: duas meninas e três rapazes - todos eles casados e com filhos. Tenho oito netos no total, alguns adolescentes e outros já adultos. Vejo-os tão poucas vezes que confesso que não consigo lembrar-me sempre de seus nomes. Eles acham que é porque estou velha, mas eu sei que é pela falta de contato frequente. 

 Olhando para trás, posso dizer que nem todos os meus anos foram bem vividos, e acredito que na vida de todo mundo é assim, embora alguns tentem passar uma impressão diferente. Sou viúva. Meu marido foi desta para melhor há cinco anos e meio, e até hoje, ainda não consegui recuperar-me completamente da repentina solidão e sensação de absoluta liberdade que acometeu-me nos dias que se seguiram ao seu velório e cremação. Bem, no início, foi um pouco assustador; morávamos sozinhos em nossa própria casa - onde ainda moro-, e a morte repentina dele deixou-me muito amedrontada; será que eu encontraria alguma coisa de útil para fazer, já que não precisaria mais cuidar dele? Mas estranhamente, não  lamento a falta física de meu marido. Talvez porque eu saiba que para onde ele foi, eu irei daqui a pouco... só não sei se me agrada esta ideia; não a da morte, pois com esta, já me conformei, mas a de ir para o mesmo lugar aonde ele se encontra. Acho que depois de cinco anos, não teremos muito o que conversar. Na verdade, já não tínhamos mesmo.

A lembrança mais forte que me ficou dele, é quando ele acordava pela manhã e sem o menor cuidado para não fazer barulho, ia para o banheiro e começava a tossir alto e escarrar na pia. Depois, ia arrastando os chinelos pelo corredor até a cozinha, de onde bradava: "Abigail! Estou com fome!" Ou então: "Abigail! Onde está o meu remédio do coração?" Meu marido era, literalmente, o que se pode chamar de um homem velho. Morreu aos noventa e sete anos, e tenho certeza de que se eu tinha algum pecado a pagar, agora eu tenho crédito. Talvez por isso ainda esteja por aqui... se bem que não era bem esse tipo de bônus que eu esperava que Deus me daria. Pensei em um  namorado bonitão,  mais jovem, mais forte e muito bem disposto; mas todos os homens com estas características já estão comprometidos, e não tenho vocação para ser "a outra." Imaginem só, na minha idade... 

Mas foi estranho chegar em casa após o velório e não mais escutá-lo tossindo, escarrando e reclamando o tempo todo. Tinha que atender telefonemas e receber pessoas que me traziam tanta comida, que no fim, eu tive que jogar fora, já que não cabia mais nada no freezer. 

Entre meus filhos, foi aquele constrangimento quando um amigo da família perguntou: "E agora? Onde Abigail vai morar? Com quem ela vai viver? Vocês sabem, é muito perigoso ficar só na idade dela..." Vi como eles se entreolharam, e percebi o silêncio que imperou na sala de velório depois que aquele intrometido levantou tal assunto; a fim de dar-lhes um alívio, eu mesma respondi: "Não se preocupem comigo. Ficarei muito bem sozinha, enquanto eu tiver saúde e puder cuidar de mim mesma."

E cumpri a minha promessa, até agora; e foi a melhor coisa que eu fiz. 

Não tive muito o que fazer depois que meu marido se foi. Não havia remédios para administrar, não havia pratos dietéticos a serem preparados, nem precisava ajudá-lo a tomar banho ou limpar-se. Não havia mais gritos mal-humorados e de repente eu tinha todos os canais da TV disponíveis para assistir o que eu bem quisesse, à hora que eu desejasse. Mal pude lidar com tanta liberdade no começo; mas após alguns dias, já estava mais acostumada. De vez em quando, eu levo-lhe algumas flores; acho horrível quando vou ao cemitério e vejo aquelas campas abandonadas e sem flores. É o cúmulo do esquecimento. Espero que façam o mesmo por mim... mas já estou pensando em contratar os serviços de uma flora para que alguém vá lá a cada três dias colocar flores frescas para mim quando eu tiver ido desta para melhor. Minha neta Juliana (ou será a Luciana?) achou desnecessário, já que eu vou pagar um bom dinheiro por um serviço que eu não sei se vai ser cumprido. Ela tem razão. Quando eu lhe perguntei se ela poderia ir até lá e checar se as flores estariam sendo entregues, ela desconversou, dizendo que detestava cemitérios.

Vocês conhecem alguém que goste?

Na dúvida, contratarei os serviços de uma flora.

Hoje em dia existem muitos eufemismos para mencionar que alguém está velho. Mas no fim, todos eles só querem mesmo é dizer o óbvio: "Você está velha, passou do ponto." Odeio essa coisa de Terceira Idade ou Melhor Idade. A quem eles estão tentando enganar?  O que há de bom em se estar cheio de cabelos brancos e rugas, ter os ossos do corpo doloridos e amolecidos, ver os dentes enfraquecendo e caindo um a um, não poder comer tudo o que se quer, não ser escutado pelos mais jovens, e quando somos, ver nossas ideias e gostos serem criticados? Acho que esta é a pior parte.

Não; a pior parte, é ser tratada como criancinha. Odeio quando chegam aquelas pessoas sorridentes, exageradamente complacentes, e se aproximam de mim, dizendo: "Mas olha só que gracinha que ela é!"  Certo dia, eu mandei um deles para 'aquele lugar,' e ao invés de chocar-se, ela riu bem alto, exclamando: "Mas ela é sapequinha, hein?" Daí, minha única saída, foi atingi-la com minha sombrinha. Só então ela compreendeu. E esta talvez seja a única vantagem de ser velho: quando fazemos coisas malucas, somos imediatamente perdoados.

Certa vez, uma vizinha convidou-me para um desses bailes da Terceira Idade, e após muita insistência, eu fui. Chegando lá, deparei com um salão enfeitado de bolas coloridas, como em aniversários de crianças, algumas mesas abarrotadas de idosos que ora abanavam-se com leques de papel, ora posavam para fotografias, ora paqueravam uns aos outros. A música foi o que mais me incomodou: chatérrima! Aqueles boleros de 1925, chorinhos, marchinhas do carnaval de 1930... pensei: "Esse pessoal nunca ouviu falar de Ivete Sangalo?!" Não era à toa que todos pareciam tão entediados. No sábado seguinte, levei meu CD da Ivete, e pedi ao DJ que o pusesse para tocar; imediatamente, todo mundo se levantou e começou a dançar. Ficou bem melhor! Mas depois de cinco minutos, a organizadora do baile achou melhor retirar a música dançante e frenética. Só porque um dos velhinhos teve um ataque cardíaco fulminante! Ora essa! Não vamos todos morrer? Melhor que morramos felizes! Depois daquilo, eu nunca mais apareci por lá. Minha vizinha me contou que eu virei lenda.










quarta-feira, 2 de outubro de 2013

AREIAS DE UM TEMPO SEM FIM - PARTE III - FINAL




Quando abriu os olhos, Ingrid percebeu que estivera desmaiada por algum tempo, já que o sol já se erguia alto no céu. Testou os músculos do corpo e dobrou as pernas vagarosamente, verificando se estaria ferida. Sentiu apenas uma fraca dor nas costas - caíra deitada - mas estava bem. Levantou-se devagar; pegou seu chapéu, colocando-o na cabeça e amarrando bem a fita sob o queixo para não perdê-lo novamente.  Começou o caminho de volta, subindo o penhasco e segurando-se bem. Era bem mais fácil subir do que descer.

Ao chegar à plataforma, procurou pela mancha de sangue no vestido, mas achou-o imaculadamente branco. Também surpreendeu-se ao perceber que o feio corte da mão não estava mais lá. Talvez tivesse imaginado tudo, devido ao susto da queda.

Voltou para casa, caminhando lentamente. O dia estava maravilhoso, e a temperatura, muito agradável. Parecia-lhe que as cores estavam mais vivas do que nos últimos dias, e a sensação de melancolia que a acompanhara durante aquele triste período de sua vida, tinha estranhamente desaparecido... Ingrid sentia-se leve e cheia de vida. 

A subida da colina não a deixou cansada; pelo contrário: ao chegar à casa, ela olhou o mar lá embaixo e respirou fundo, tendo a impressão de que o marulhar das ondas estava mais intenso, e havia no ar um agradável perfume de flores que ela não havia notado antes. Notou que havia pássaros azuis pousados na árvore próxima - espécies que ela não conhecia. Ficou algum tempo admirando-os.

Foi quando ela ouviu uma voz conhecida chamando-a de dentro da casa.



Seu coração deu um salto: era a voz de Tia Agnes! Perplexa, Ingrid entrou correndo na casa. Deveria ser o efeito do sol. Tinha que ser! Mas ao passar porta aberta, seguindo a voz que a chamava até a sala de almoço, viu a mesa pronta decorada com alguns vasos de flores como Agnes costumava fazer, e mal pode acreditar ao ver Tia Agnes de pé junto a ela, terminando de arrumar os copos, mais bela e jovem do que jamais vira. Usava um vestido esvoaçante e delicado de cor amarelo-pálido, tinha a pele levemente bronzeada e sem rugas. Ingrid achou que parecia muitos anos mais jovem do que quando a conhecera. 

Agnes saudou-a alegremente, dizendo:

-Não fique parada aí! Entre logo, pois estávamos esperando por você!

Ingrid adentrou a casa, e com os olhos cheios de lágrimas, achou que estava sonhando. Aproximou-se de Agnes, abraçando-a forte. Agnes pareceu adivinhar-lhe os pensamentos, e disse:

-Não é um sonho, cara Ingrid. Você está mesmo aqui. É real!
-Mas como pode ser, Tia Agnes? Você já... quero dizer, eu fui ao seu... velório, e...
-Mas isso foi há muito tempo, em outro lugar. Agora, você está aqui conosco, e tudo ficará bem.

Naquele momento, Ingrid viu seus pais entrarem na sala, também muito mais jovens e sorridentes do que quando ela os vira pela última vez. Ela jogou-se nos braços deles, chorando de alegria.

Eles sentaram-se à mesa na qual Tia Agnes já se encontrava sentada, servindo o vinho.

Ingrid olhava toda aquela cena da qual ela fazia parte, tendo certeza absoluta de que não podia ser verdade; era um lindo sonho do qual ela despertaria a qualquer momento. Com certeza, ainda encontrava-se caída naquele penhasco, desmaiada, e logo a terrível realidade que vivia iria novamente ao seu encontro.



Mas quando viu Jonas entrando pela sala, os cabelos molhados , cheirando à colônia após barba que sempre usava, ela levantou-se da mesa e correu até ele, caindo em seus braços. Ela podia sentir seu perfume, tocá-lo, ouvir seu riso, sentir seus braços fortes segurando-a. A textura da camiseta muito branca que ele vestia era real sob seus dedos. Seu peito junto ao dela, movia-se ao ritmo normal da respiração. No entanto, seus sentidos pareciam bem mais aguçados: via as cores mais vivas, sentia perfumes suaves que jamais sentira antes, e fisicamente, tinha a energia de uma saudável menina de dez anos de idade. 

Após um longo e apaixonado beijo, Jonas conduziu-a até a mesa onde se juntaram aos outros e desfrutaram do delicioso almoço servido por Tia Agnes.

***


Os três pescadores olharam para baixo, e avistaram um corpo de mulher caído sobre uma das plataformas do penhasco. Alarmados, desceram rapidamente a fim de socorrê-la; ao se aproximarem, viram o sangue que escorria sobre a pedra, tingindo a saia do vestido da moça. Chamaram-na; ela permaneceu imóvel.

Um deles tocou-lhe o pescoço, mas não sentiu qualquer sinal de pulsação. Ele olhou para os outros, e eles compreenderam, e tiraram seus chapéus em sinal de respeito. O pescador passou a mão pelo belo rosto da moça, fechando-lhe os olhos.

Um chapéu branco foi jogado ao mar pelo vento, e as ondas o recolheram.



A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...