segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica Parte I




Meu nome é Abigail, e tenho 87 anos e cinco filhos: duas meninas e três rapazes - todos eles casados e com filhos. Tenho oito netos no total, alguns adolescentes e outros já adultos. Vejo-os tão poucas vezes que confesso que não consigo lembrar-me sempre de seus nomes. Eles acham que é porque estou velha, mas eu sei que é pela falta de contato frequente. 

 Olhando para trás, posso dizer que nem todos os meus anos foram bem vividos, e acredito que na vida de todo mundo é assim, embora alguns tentem passar uma impressão diferente. Sou viúva. Meu marido foi desta para melhor há cinco anos e meio, e até hoje, ainda não consegui recuperar-me completamente da repentina solidão e sensação de absoluta liberdade que acometeu-me nos dias que se seguiram ao seu velório e cremação. Bem, no início, foi um pouco assustador; morávamos sozinhos em nossa própria casa - onde ainda moro-, e a morte repentina dele deixou-me muito amedrontada; será que eu encontraria alguma coisa de útil para fazer, já que não precisaria mais cuidar dele? Mas estranhamente, não  lamento a falta física de meu marido. Talvez porque eu saiba que para onde ele foi, eu irei daqui a pouco... só não sei se me agrada esta ideia; não a da morte, pois com esta, já me conformei, mas a de ir para o mesmo lugar aonde ele se encontra. Acho que depois de cinco anos, não teremos muito o que conversar. Na verdade, já não tínhamos mesmo.

A lembrança mais forte que me ficou dele, é quando ele acordava pela manhã e sem o menor cuidado para não fazer barulho, ia para o banheiro e começava a tossir alto e escarrar na pia. Depois, ia arrastando os chinelos pelo corredor até a cozinha, de onde bradava: "Abigail! Estou com fome!" Ou então: "Abigail! Onde está o meu remédio do coração?" Meu marido era, literalmente, o que se pode chamar de um homem velho. Morreu aos noventa e sete anos, e tenho certeza de que se eu tinha algum pecado a pagar, agora eu tenho crédito. Talvez por isso ainda esteja por aqui... se bem que não era bem esse tipo de bônus que eu esperava que Deus me daria. Pensei em um  namorado bonitão,  mais jovem, mais forte e muito bem disposto; mas todos os homens com estas características já estão comprometidos, e não tenho vocação para ser "a outra." Imaginem só, na minha idade... 

Mas foi estranho chegar em casa após o velório e não mais escutá-lo tossindo, escarrando e reclamando o tempo todo. Tinha que atender telefonemas e receber pessoas que me traziam tanta comida, que no fim, eu tive que jogar fora, já que não cabia mais nada no freezer. 

Entre meus filhos, foi aquele constrangimento quando um amigo da família perguntou: "E agora? Onde Abigail vai morar? Com quem ela vai viver? Vocês sabem, é muito perigoso ficar só na idade dela..." Vi como eles se entreolharam, e percebi o silêncio que imperou na sala de velório depois que aquele intrometido levantou tal assunto; a fim de dar-lhes um alívio, eu mesma respondi: "Não se preocupem comigo. Ficarei muito bem sozinha, enquanto eu tiver saúde e puder cuidar de mim mesma."

E cumpri a minha promessa, até agora; e foi a melhor coisa que eu fiz. 

Não tive muito o que fazer depois que meu marido se foi. Não havia remédios para administrar, não havia pratos dietéticos a serem preparados, nem precisava ajudá-lo a tomar banho ou limpar-se. Não havia mais gritos mal-humorados e de repente eu tinha todos os canais da TV disponíveis para assistir o que eu bem quisesse, à hora que eu desejasse. Mal pude lidar com tanta liberdade no começo; mas após alguns dias, já estava mais acostumada. De vez em quando, eu levo-lhe algumas flores; acho horrível quando vou ao cemitério e vejo aquelas campas abandonadas e sem flores. É o cúmulo do esquecimento. Espero que façam o mesmo por mim... mas já estou pensando em contratar os serviços de uma flora para que alguém vá lá a cada três dias colocar flores frescas para mim quando eu tiver ido desta para melhor. Minha neta Juliana (ou será a Luciana?) achou desnecessário, já que eu vou pagar um bom dinheiro por um serviço que eu não sei se vai ser cumprido. Ela tem razão. Quando eu lhe perguntei se ela poderia ir até lá e checar se as flores estariam sendo entregues, ela desconversou, dizendo que detestava cemitérios.

Vocês conhecem alguém que goste?

Na dúvida, contratarei os serviços de uma flora.

Hoje em dia existem muitos eufemismos para mencionar que alguém está velho. Mas no fim, todos eles só querem mesmo é dizer o óbvio: "Você está velha, passou do ponto." Odeio essa coisa de Terceira Idade ou Melhor Idade. A quem eles estão tentando enganar?  O que há de bom em se estar cheio de cabelos brancos e rugas, ter os ossos do corpo doloridos e amolecidos, ver os dentes enfraquecendo e caindo um a um, não poder comer tudo o que se quer, não ser escutado pelos mais jovens, e quando somos, ver nossas ideias e gostos serem criticados? Acho que esta é a pior parte.

Não; a pior parte, é ser tratada como criancinha. Odeio quando chegam aquelas pessoas sorridentes, exageradamente complacentes, e se aproximam de mim, dizendo: "Mas olha só que gracinha que ela é!"  Certo dia, eu mandei um deles para 'aquele lugar,' e ao invés de chocar-se, ela riu bem alto, exclamando: "Mas ela é sapequinha, hein?" Daí, minha única saída, foi atingi-la com minha sombrinha. Só então ela compreendeu. E esta talvez seja a única vantagem de ser velho: quando fazemos coisas malucas, somos imediatamente perdoados.

Certa vez, uma vizinha convidou-me para um desses bailes da Terceira Idade, e após muita insistência, eu fui. Chegando lá, deparei com um salão enfeitado de bolas coloridas, como em aniversários de crianças, algumas mesas abarrotadas de idosos que ora abanavam-se com leques de papel, ora posavam para fotografias, ora paqueravam uns aos outros. A música foi o que mais me incomodou: chatérrima! Aqueles boleros de 1925, chorinhos, marchinhas do carnaval de 1930... pensei: "Esse pessoal nunca ouviu falar de Ivete Sangalo?!" Não era à toa que todos pareciam tão entediados. No sábado seguinte, levei meu CD da Ivete, e pedi ao DJ que o pusesse para tocar; imediatamente, todo mundo se levantou e começou a dançar. Ficou bem melhor! Mas depois de cinco minutos, a organizadora do baile achou melhor retirar a música dançante e frenética. Só porque um dos velhinhos teve um ataque cardíaco fulminante! Ora essa! Não vamos todos morrer? Melhor que morramos felizes! Depois daquilo, eu nunca mais apareci por lá. Minha vizinha me contou que eu virei lenda.










6 comentários:


  1. Ela tem um ótimo senso de humor , e além de ser bem verdadeira.

    bjs

    http://eueminhasplantinhas.blogspot.com.br/

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  2. KKK...Eu amei essa velhinha! Bem real sua maneira de pensar! bjs,

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  3. Muito bom texto, muito bem escrito como sempre. Logo de início essa novela literária nos mostra como filhos podem ser desumanos com seus pais quando estes ficam velhos. Quando a visita perguntou aos filhos quem ficaria com Abigail após a morte de seu pai, todos eles teriam de ter se oferecido para ficar com a mãe, depois logicamente ficaria decidido entre a família com quais dos filhos ela ficaria. Mas repito, alguém ou de preferência todos deveriam ter se oferecido. Para mim tais pessoas não são filhos e muito menos seres humanos. Como podemos abandonar nossos pais quando estes mais precisam de nós?Parabéns Ana, vou continuar a ler essa saga, tenho certeza que aprenderei muito com ela.

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  4. hsauihsiu muuito bom. "Mas depois de cinco minutos, a organizadora do baile achou melhor retirar a música dançante e frenética. Só porque um dos velhinhos teve um ataque cardíaco fulminante! Ora essa! Não vamos todos morrer? Melhor que morramos felizes! "
    kk Isso ai. Com certeza vou continuar a ler. Parabéns

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