quinta-feira, 30 de maio de 2013

Sobre as Folhas Secas - Minimalista









Mãe e filho passeiam por um parque em uma manhã cinzenta de outono, quando deparam com um pássaro morto sobre uma pilha de folhas secas. O menino aponta para o pássaro:

-Mãe, o que aconteceu? Por que ele não está voando?

A mãe responde:

-Ele está morto, meu filho. Como estas folhas secas...

O menino olha para as folhas secas, pensa por alguns momentos, e volta a indagar:

-Mãe, quanto tempo dura uma vida?

A mãe suspira, pensativa, elaborando  uma resposta que possa satisfazer a curiosidade da criança:

-Depende, meu filho... uns morrem mais cedo, outros mais tarde... mas o mais natural, é que morramos todos velhinhos, velhinhos, como estas folhas secas.

O menino  pega entre os dedos algumas folhas, e as esmigalha, deixando cair ao solo o pó que se forma. Ao mesmo tempo, olha para a árvore que as deixou cair, e se lembra de que quando eles passam por ali no verão, a árvore está cheia de folhas, e não tem os galhos nus como agora. Olha para a mãe,  limpando das mãos as últimas migalhas do pó de folhas secas e dizendo:

-Você não entendeu minha pergunta, mãe! Eu quero saber quanto tempo dura uma vida!





segunda-feira, 27 de maio de 2013

O Anel da Verdade - Conto minimalista




Ganhou o anel de presente de um admirador secreto. Na caixa que continha o anel, um bilhete: "Todas as vezes que uma mentira for proferida por quem estiver usando este anel, sua pedra brilhará com grande fulgor."

Nunca se viu uma pedra tão brilhante!


sábado, 25 de maio de 2013

AS DUAS COMADRES






AS COMADRES


Duas comadres conversavam ao portão de suas casas, sentadas em cadeiras de poliuretano que tinham sido colocadas na calçada, sob a frondosa sombra de uma jaqueira. A tarde era quente, e elas, de olhos semicerrados pela claridade do sol, observavam a vida e os vizinhos que passavam.

De vez em quando, uma delas fazia um comentário:

-Olha lá, Dona Maria! Lá vai a Gigi, da casa amarela! Até que enfim pôs a cara pra fora de casa!
-Pois é, Dona Joana! A mulher fica o dia inteiro enfurnada dentro de casa, fazendo só Deus-sabe-o-quê... não sai nem para ir à missa!
-Que pecado!
-Pois é, que pecado! E enquanto isso, a tal da Lurdinha passa o dia inteiro batendo perna na rua!
-Dizem até que está corneando o marido, aquele coitado...
-Coitado!
-Pois é, coitado... também, quem mandou casar com mulher bonita e bem mais nova?
-Falando nisso, e o trouxa do Zezinho que casou com aquele museu?
-É mesmo! Coisa estranha, mulher mais velha com rapaz novo... com certeza, deve ter um fogo entre as pernas que nem maremoto apaga!
-Se é! E enquanto isso, a Maricota... tá sabendo? Dizem que o marido arranjou outra, porque ela é frígida! Não sente nada!
-Nada? Nadica?
-Nadica de nada!

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Alguns minutos depois, Dona Joana retoma a conversa:

-Você viu que pouca vergonha aquele programa de ontem?
-O tal de' rialitichou?'
-Esse mesmo! Foi dia de festa, e depois da bebedeira e da rebolação, aquela esfregação debaixo do edredon... que horror!
-E mesmo! Esse tipo de programa deveria ser proibido!
-E não é que é mesmo?
-Ora, se é! E eu acho que aquela sirigaita loura, a da trança...
-A Juliana?
-Essa mesma! É ela que tem que ser eliminada, pois é a mais falsa ali dentro!
-Você acha mesmo? Eu acho que a morena é pior.
-Quem, a Paula?
-Essa! Eu nunca lembro os nomes direito...

O calor da tarde só aumentava. Enxugando o suor da testa com as costas da mão, Dona Maria comenta:




- Sabe, meu filho anda frequentando um centro espírita.
-Que horror!
-Pois é. Já fiz de tudo para ele parar de ir. Já até pedi ao Padre Jackson para conversar com ele, mas não adiantou!
-Olha, eu conheço uma rezadeira que é tiro e queda! Ela faz cada simpatia que não falha!
-É mesmo? Me dá o endereço?
-Faço melhor: vou lá com você amanhã, topa?
-Topo! Mas... não olhe agora, comadre... mas a filha da Dona Gigi acaba de passar de mãos dadas com aquele motoqueiro!
-O de cabelo comprido?
-Esse mesmo.
-Dizem que não vale nada!... Mas... aquela lá que está chegando, não é a Lucinha, sua filha? Na garupa da motocicleta?!


Empertigando-se, a outra responde:

-É ela sim, ora. Por que?
-Mas não fica bem pra moça de família andar por aí de moto com cabeludos, comadre! Se eu fosse você, dava uma chamada nela!
-Ora, amiga! O padre ensinou que não se deve julgar os outros!
-Tem razão, comadre. Tem razão...

Naquele momento, uma enorme jaca despenca da árvore, espatifando-se no chão, bem aos pés das duas comadres.

domingo, 19 de maio de 2013

O Teatro





O Teatro


Era um velho teatro abandonado. A caiação caía aqui e ali, mas os dourados e cristais dos lustres que ainda restavam, falavam de tempos de glória. Entre as paredes, quem fosse mais sensível poderia adivinhar ecos de aplausos e vozes que pediam 'bis' e ovacionavam performances. Alguns dos assentos luxuosamente estofados de vermelho, ainda resistiam. No chão, uma sujeira de muitos anos: velhos programas de ópera, papeizinhos de balas que nem eram mais fabricadas e marcas arredondadas dos muitos saltos agulha que passaram por ali, ainda impressas nas madeiras do piso. Tudo coberto por uma densa camada cinzenta de poeira.

O palco, lindamente adornado por figuras de rostos em madeira trabalhada, ainda tinha aquela atmosfera de sonho que só os teatros muito antigos apresentavam. Ainda estavam penduradas as cortinas de veludo, embora cobertas de pó e rasgadas aqui e ali devido à ação das traças.

E foi numa noite de tempestade, enquanto procurava por abrigo, que ela chegou até ali. Os raios pincelavam a noite com rajadas de uma luz maldita, acompanhada pelo horrível e assustador trovejar da voz de mil deuses. Ela, uma mulher de meia-idade, corria pela rua, tendo alguns livros apertados contra o peito, procurando por uma marquise ou um prédio onde poderia abrigar-se. Seu velho casaco de pele marrom estava totalmente encharcado. Os cabelos pingavam, e seu olhar enlouquecido divagava, enquanto andava rapidamente pelas ruas totalmente vazias. Parecia murmurar alguma coisa inaudível, apertando ainda mais os livros a cada ribombar de trovão.




Finalmente, ela avistou as ruínas do imponente teatro. Correu para lá. A porta da frente estava trancada por cadeados e correntes, embora houvesse uma greta - abertura pela qual ela olhou para dentro, onde reinavam o silêncio e a escuridão. E foi através daquela abertura que ela conseguiu passar. Não conseguia ver nada, e deitou-se no chão, adormecendo.

Na manhã seguinte, ao abrir os olhos, a primeira coisa que ela viu foi o imenso lustre de cristal bem no meio do teto, e levantando-se, apoiou-se nos cotovelos e deu com o palco. O teatro era bem grande, e ecoava seus passos. Sentiu que tinha finalmente chegado ao seu lugar; aquilo tudo era para ela! Ouviu uma tosse; descobriu que não estava sozinha. Outros haviam se abrigado ali antes mesmo dela. Eram uns poucos mendigos que já tinham acendido o s seus fogareiros para preparem um pouco de chá ou café aguado para começarem o dia.

Fazia frio. Seu casaco de pele encharcado fazia com que ela tremesse, mas ela não tinha outros agasalhos. Um dos mendigos dirigiu-se a ela:

-Olá! Se achegue mais, venha aqui desfrutar do calor do fogo.

Ela olhou para ele, considerando a oferta. Ele percebeu, após uma simples olhadela, que a moça vestia roupas de qualidade, embora sujas e rasgadas, e que seu braço era ornado por um reloginho antigo e valioso que já não funcionava. Viu que ela - se não tivesse ganho as roupas de alguém - tinha berço. Percebeu os livros apertados contra o peito e contou-os; eram três.

Ela suspirou, e retirando o pesado casaco de pele - ele o esticou no chão, perto do fogo, para que secasse -  sentou-se junto ao fogo, os livros ainda no colo da saia. Esticou as mãos para o fogo, deixando que o calor descongelasse seus magros dedos, em cujas unhas ainda havia resquícios de esmalte vermelho. O mendigo olhava para ela de soslaio, e sabia que se tratava de alguém de berço. Agora, tinha certeza!

-De onde você vem? - ele perguntou. Ela olhou para ele com um certo desprezo, como se tivesse sido perturbada pelo som de sua voz. Respondeu-lhe:

-Você não me conhece? Não, claro que não... como poderia? Vê-se que você não frequenta os mesmos lugares que eu! Sou uma escritora famosíssima! Já viajei o mundo todo, e escrevi muitos livros. Mas só sobraram esses três...


Naquele momento, o mendigo teve pena dela, pois percebeu que ela delirava, os dedos da loucura acariciando de leve seus cabelos sujos. Por piedade, decidiu incentivar-lhe a fantasia:

-Mesmo? Quanta honra, então! Posso ver seus livros?

Ela voltou a apertá-los contra o peito, negando com a cabeça.

-Calma! Não vou tomá-los de você... Mas diz aí: só estes sobraram por que?

Ela sorriu, erguendo a cabeça:

-Porque todos os outros foram vendidos, é claro! Meu editor é muito bom. E sabe, eu também sou uma excelente atriz. Canto , danço e represento muito bem. Enfim, sou uma artista completa!

-Nossa! Não me diga! Então por que não faz um show para nós?

Os demais mendigos fizeram uma roda em volta dos dois, e aplaudiram o pedido do primeiro. Ela olhou para eles, e sentindo-se amedrontada, levantou-se de repente.

-Eu vou embora...

Mas ao chegar à porta do teatro, viu que chovia torrencialmente, e teve que voltar. Sem nada dizer, sentou-se novamente entre eles, e um dos mendigos ofereceu-lhe uma caneca de plástico com um pouco de chá e um pedaço de pão velho, que ela aceitou sem a menor cerimônia, e devorou imediatamente. Um deles, com ar zombeteiro, perguntou:

-O que é que a madame está fazendo por essas bandas? Se é tão famosa assim, por que está vestida com essas roupas sujas e velhas?

O primeiro mendigo mandou que ele se calasse, pois não desejava ferir os brios da mulher. Mas ela, com ares de dama de alta sociedade, respondeu:

-É que eu estou disfarçada. Sabe como é, gente famosa não pode andar por aí de cara limpa, pois os fãs - eu tenho muitos fãs - nos cercam e nos pedem autógrafos o tempo todo.

Todos começaram a rir alto! A mulher, muito séria, levantou-se, dirigindo-se ao palco:

-Não acreditam em mim, não é? Pois eu vou provar a vocês quem eu sou!


Começou a dançar, e sua dança era quase atáxica; os movimentos eram  desconexos, acompanhados por gritos de loucura, num arremedo de canção. Ela rodopiava, emitindo notas dissonantes, enquanto os mendigos riam até não poder mais; mas no final da performance, eles perceberam que ela tinha conseguido fazê-los rir de verdade, pela primeira vez, em muitos anos. Começaram a aplaudi-la.

E ela, ao erguer a cabeça após curvar-se em agradecimento, com os olhos embaçados pelas lágrimas, levou à mão ao coração e agradeceu novamente. Olhou para o teatro quase vazio, e teve a ilusão de vê-lo cheio, as cadeiras luxuosas ocupadas por cavaleiros de fraque e damas ornadas de jóias. O lustre iluminado brilhou, deixando que faíscas coloridas de cristal chegassem até suas pupilas.

 Ela entrou em um imundo só seu, optando por deixar o que lhe restava de sua sanidade para sempre em algum lugar daquele teatro; a loucura a fazia muito mais feliz.


A Resposta - conto minimalista





Quantas e quantas vezes ela tentou encontrar a resposta... talvez porque nem sempre formulasse a pergunta corretamente; alguém lhe dissera que uma pergunta bem formulada, já continha, em si, a resposta.

Mas não aquela pergunta! Já tinha pesquisado em livros e enciclopédias, tinha tentado achar a resposta na internet, perguntara aos sábios e profetas... mas ninguém sabia responder. Até viajou pelo mundo, tentando, em vão, encontrá-la. Anos e anos de sua vida dedicados ao impossível! Quanta coisa boa havia perdido, devido à sua mórbida obsessão... os anos passaram, ela começou a envelhecer. 


Quem sabe, pensou, com a maturidade, a resposta que desejava não viria até ela? Mas nada aconteceu... os anos trouxeram-lhe problemas de memória. Logo, acometida pelo Alzheimer, faleceu entre as brumas do esquecimento, sem lembrar-se, sequer, qual tinha sido a pergunta.





terça-feira, 14 de maio de 2013

O Apartamento 401





O APARTAMENTO 401

Não me importei com os restos de velas queimadas nos cantos dos cômodos, no dia em que o corretor de imóveis levou-me para ver o apartamento. Achei o aspecto meio-sombrio – afinal, ele estivera fechado durante muitos anos, e precisava de reformas. Além disso, eu tinha acabado de vir de um dia claro de sol para a penumbra úmida de um apartamento fechado. Natural que sentisse um leve arrepio ao entrar.
O preço estava um pouco abaixo do mercado, e o corretor explicou-me que o proprietário estava interessado em vendê-lo logo. Era um apartamento amplo, bem-dividido, e com a vantagem de estar em um prédio antigo de apenas quatro andares, em uma rua não central, e por isso, tranqüila. Eu sempre tivera preferência por apartamentos em prédios antigos, pois os cômodos eram sempre maiores, principalmente as cozinhas e banheiros, em comparação aos cubículos modernos que já tinha visitado. Seria meu primeiro apartamento, digo, meu mesmo, como proprietária, e não simples inquilina. Como todo mundo, eu também tinha o sonho da casa própria, e juntando minhas economias às economias que acabara de herdar de uma tia distante, poderia, finalmente, realizá-lo.

Ele ficava no último andar, número 401, o que dava ao proprietário a vantagem de desfrutar de um pequeno terraço, que media vinte metros quadrados. Ali eu planejava colocar alguns vasos de plantas, umas cadeiras, quem sabe até uma pequena piscina plástica no verão. A vista era bonita, dando para a parte principal da rua asfaltada larga e arborizada, algumas poucas casas antigas e os outros prédios igualmente baixos. Apaixonei-me pelo terraço, mais do que havia gostado do apartamento.

As reformas começaram logo depois de fechado o negócio. George, meu namorado, ajudou-me a contratar os trabalhadores e comprar o material necessário. Eu mal podia conter minha alegria, e nós dois saímos para comemorar ao final da primeira semana dos trabalhos de reforma. Fomos jantar em um restaurante caro, e bebemos uma garrafa de excelente vinho.

Como eu tinha que economizar, estava temporariamente morando novamente junto com meus pais, mas confesso que fiquei um tanto decepcionada com a reação de mamãe ao visitarmos o apartamento. Enquanto papai, entusiasmado, dava sugestões para a reforma, ela apenas olhava tudo, caminhando de braços cruzados atrás de nós, sem nada dizer.

Ao perguntarmos o que ela estava achando, ela apenas disse: “Eu não sei... não me sinto tranqüila neste lugar. É como se alguém nos observasse...” papai ralhou suavemente com ela, que não disse mais nada até sairmos. Mas quando chegamos em casa, eu estava na cozinha, preparando uma xícara de chá, quando ela entrou, já pronta para deitar-se:

“Olá, filha, vim desejar-lhe uma boa noite.”
Dizendo isso, ela pegou uma xícara de chá para si mesma e ambas nos sentamos à mesa da cozinha, bebericando nosso chá com biscoitos. Eu percebi que ela queria dizer alguma coisa, mas não sabia como começar. Encorajei-a:

“Algum problema, mamãe?”
Ela me olhou, e após tomar um gole de chá, começou:
“Filha, eu sei o quanto você está feliz com seu novo apartamento, e quero que saiba que pode contar conosco para o que precisar.”
“Obrigada, mas acho que não é isso que você quer dizer-me, mamãe.”
“Olha, Rose, eu sou sua mãe, e jamais gostaria de vê-la magoada, mas preciso falar... eu não gostei daquele apartamento. Ele é... sombrio, triste, e... e...”

Antes que ela continuasse, eu disse:
“Ora, mãe, você nunca aprova as minhas escolhas! Assim como não aprovou meu trabalho, meu namorado, é claro que não ia mesmo gostar do apartamento!”
“Querida, você sabe que mudei de ideia quanto ao George, e sei que ele é um bom rapaz. Acho que só fiquei um pouco apreensiva por ele ser divorciado. Quanto ao seu trabalho, você tem formação em Psicologia, e de repente, resolve abrir uma loja de flores... que não tem nada a ver com seu ramo de trabalho, mas tudo bem, a loja está dando certo, e eu respeito. Mas... aquele lugar me dá arrepios!”

Lá em um canto escuro e distante de minha mente, eu já sabia que ela tinha razão, mas não podia deixar-me levar por superstições. O aspecto sombrio do apartamento era devido ao fato de ele estar fechado há muito tempo, e o elevador barulhento de portas pantográficas também não ajudava, mas após uma reforma, tudo ficaria perfeito. E foi o que eu disse a ela, embora percebesse que não a tinha convencido.
Na segunda-feira seguinte, ao chegar ao apartamento para verificar o andamento das obras, Paulo, um dos pedreiros, veio falar comigo um tanto contrariado:

“Dona Rose, eu não entendo! Colocamos todos os azulejos do banheiro na sexta-feira, e quando chegamos, hoje de manhã, eles estavam todos caídos no chão, muitos deles, quebrados...”
“Ah, não, Paulo! Custaram uma fortuna, você deveria ter tomado mais cuidado!”
“Mas nós fomos cuidadoso, Dona Rose! Olha, eu trabalho nisso há mais de trinta anos, e nunca vi nada assim acontecer. Pode ter sido a umidade, não sei... choveu muito no sábado. Mas olhe... os azulejos que sobraram nas caixas vão ser suficientes para substituir os que quebraram. O jeito é fazer tudo de novo...”

Fiquei enfurecida, e liguei para George, mas ele me garantiu que Paulo e seus dois auxiliares eram da maior confiança, e acabou me convencendo a dar a eles uma outra chance. Naquele mesmo dia, eles recolocaram os azulejos e ficou tudo bem. Paulo fez questão de não cobrar pelo dia de trabalho.

Depois daquilo, outros contratempos aconteceram: a parede da sala, pintada de novo, apareceu com uma enorme mancha marrom-escura, e teve de ser repintada; o cano da cozinha quebrou-se dentro da parede recém-azulejada, e a água inundou o apartamento durante a noite; todo o trabalho na cozinha teve que ser refeito, e apartamento, o corredor e escadas do prédio, tiveram que ser secos. Além disso, tive que pagar pela repintura do teto do apartamento do andar inferior, para onde a água vazou.

Os vizinhos reclamavam do barulho no apartamento à noite, e foi difícil convencê-los de que ninguém ficava à noite no apartamento, e que as reformas eram todas feitas durante o dia. Com medo de que fossem ladrões, pedi a Paulo que passasse uma ou duas noites no apartamento, e os barulhos cessaram.

Além de tudo isso, as lâmpadas novas queimavam em questão de horas, o que fez Paulo pensar que toda a fiação elétrica precisava ser trocada. E mesmo após conseguirmos um eletricista que fez todo o serviço, as lâmpadas queimavam após pouco tempo de uso. Resultado: as reformas que estavam planejadas para durarem apenas seis meses, estenderam-se para quase um ano!

Quando, finalmente conseguimos terminar, meus pais e George ajudaram-me com a mudança em um final de semana. Após arrumarmos tudo, George perguntou-me se eu queria que ele ficasse comigo durante a noite, mas eu disse estar cansada, e preferia tomar um banho e ir cedo para a cama. Assim fiz: após todos saírem, enchi a banheira antiga com água bem quente, meus sais perfumados e mergulhei dentro dela até o pescoço, fechando os olhos. Eu me sentia feliz, tranqüila e realizada.
Alguns minutos depois, percebi que a luz do banheiro tinha se apagado. Fiquei no escuro, e como não havia nenhuma luz acesa nos outros cômodos, enrolei-me na toalha e acendi a luz do corredor, voltando para a banheira em seguida. Mas em menos de cinco minutos, a luz do corredor também queimou-se.

Contrariada, desisti de meu banho, e após vestir-me, fui até a área de serviço para pegar novas lâmpadas. Instalei-as e fui dormir. Tive um sono pesado e sem sonhos, até as sete da manhã, quando acordei e comecei a vestir-me para o trabalho.

Como ainda houvesse algumas caixas para serem esvaziadas, achei minha blusa branca dentro de uma delas, amarrotada... liguei o ferro de passar para poder alisá-la antes de vesti-la. Estava calmamente passando a blusa, quando de repente, o ferro começou a entrar em curto, soltando faíscas; e era um ferro novo em folha! Puxei-o da tomada, com o coração ainda aos pulos, e escolhi outra blusa.
Chamei o eletricista novamente para rever a fiação elétrica naquela semana, mas apesar de verificar tudo pela segunda vez, ele não encontrou nada errado.

Na sexta-feira, convidei George para passar a noite comigo. Antes de sair de minha floricultura, escolhi algumas rosas e flores do campo para enfeitar o apartamento, e antes que George chegasse, coloquei-as em vasos espalhados pela casa – sala de estar, mesa de jantar e quarto – e fui escolher uma música, enquanto a carne assava no forno. Mas o aparelho de som não ligou, embora eu tentasse repetidamente. O mesmo se deu com a TV: não ligava.

Quando George chegou, surpreendeu-se, olhando em volta, e pelo seu olhar, percebi que a surpresa não era nada agradável... acompanhei seu olhar, e notei, estarrecida, que as flores que eu trouxera e acabara de colocar nos vasos com água, estavam totalmente secas. Estorricadas, como se tivesse sido expostas ao sol durante muito tempo!
Ele olhou para mim de uma maneira estranha, e sorriu, dizendo:
“Ora, Rose, como a proprietária de uma loja de flores deixa as flores em sua própria casa ficarem feias desse jeito?”

Não sei bem porque, decidi que seria melhor não estragar a nossa noite, e fingindo distração, balancei a cabeça, recolhi as flores e joguei-as no lixo.

Jantamos – ou melhor, tentamos, pois a carne estava estranhamente seca, o vinho tinha virado vinagre e o arroz estava com um gosto metálico horroroso que eu não soube explicar de onde vinha – e fomos para o quarto. 

Na manhã seguinte, George acordou mau-humorado, dizendo que aquela tinha sido a pior noite de sua vida. Eu também não vinha dormindo muito bem, mas disse nada. Perguntei-lhe qual tinha sido o problema, e ele me respondeu que tivera pesadelos horríveis, tão horríveis, que nem gostaria de contar-me a respeito deles. Enquanto tomávamos o café da manhã, ele pegou sua caneca e foi sentar-se no sofá, para assistir a um programa matinal sobre carros do qual gostava muito. Eu ia dizer-lhe que a TV não funcionava, mas não tive tempo, pois ao ligá-la, a imagem entrou normalmente.

No final da tarde, fomos até a casa de meus pais visitá-los. Mamãe logo percebeu que George estava com a aparência cansada, e ele confessou-lhe que não dormira bem. Mamãe não resistiu:

“Ah, é aquele apartamento... eu não disse, Rose?”
Perdi a paciência, mesmo sabendo que ela podia ter razão:
“Mãe, por favor, não me venha novamente com essa história!”
Papai tentou amenizar a situação, mas George interrompeu-o, dizendo:
“A senhora também notou? Notou que tem alguma coisa estranha naquele apartamento?”

Ela ia responder, mas papai mudou de assunto:
“Esqueça, George, essa mania que ela tem de espiritismo faz com que ela veja fantasmas atrás de qualquer pilastra, árvore ou cortina. Minha esposa tem a imaginação muito fértil!”

Enfurecida, mamãe respondeu:
“Não sou apenas eu a perceber, e George não é espírita! O que você sentiu, filho?”
“Não sei dizer... pouco antes de dormir, tive a sensação de que alguém me observava. E tive pesadelos a noite toda!”
“Exatamente! Eu também tive esta mesma sensação, de que alguém me olhava de algum canto!”

Levantei-me e pegando minha bolsa, disse:
“Mamãe, se vocês não pararem com isso, eu vou embora! Imaginem só! Investi uma fortuna naquele apartamento, e toda a herança que tia Janete me deixou! Acham mesmo que vou dar importância a estas... estas... bobagens que vocês enfiaram na cabeça?”
“Tudo bem filha, mas... me desculpe, mas eu não posso mentir para você... mas não vou mais tocar no assunto hoje, prometo. Sente-se, por favor!”

E assim, terminamos aquela tarde desconfortável: mamãe pisando em ovos e trocando olhares significativos com George, papai tentando fingir que nada acontecera e eu, emburrada.

Quando George deixou-me em casa, perguntou-me se queria que ele passasse a noite comigo novamente, mas eu disse que achava melhor que ele fosse para casa descansar; afinal, dormira muito mal. Ele me chamou para ir com ele, mas eu disse que não queria ir, pois ainda precisava arrumar algumas coisas.

Assim que abri a porta e entrei, o telefone tocou. Atendi, antes mesmo de acender as luzes, mas do outro lado da linha, apenas escutei uma respiração forte, que me deixou em pânico. Desliguei, mas o telefone voltou a tocar mal o coloquei no gancho, e novamente, apenas ouvi a respiração do outro lado da linha. Desliguei novamente, e ao acender as luzes da sala, mal pude acreditar no que vi:

Bem no meio da parede, a enorme mancha marrom-escura voltara!
Não pude conter um grito assustado, o que fez com que o vizinho da frente abrisse a porta e me perguntasse se estava tudo bem. Era João, um senhor que morava sozinho, aparentando ter algo em torno de sessenta anos. De vez em quando, a filha o visitava. Ele abriu a porta e ficou me olhando, e finalmente, perguntou-me:

“Está tudo bem com você, Rose?”
Ainda ofegante, perguntei-lhe: “Sr. João... será que eu poderia conversar com o senhor um minuto?” Fiz um gesto convidando-o a entrar, mas ele abriu a porta de seu apartamento, dizendo: “Importa-se se conversarmos aqui?”

Entrei, e ele me trouxe um copo de água, enquanto eu me sentava no sofá da sala.
“Sr. João, eu... nem sei como começar, mas... o senhor mora aqui há muito tempo?”
“Bem, quase cinco anos, por que?”
“Nunca notou nada de... estranho no prédio?”

Ele continuou olhando-me, intrigado, antes de responder:
“Você quer dizer... no seu apartamento, o 401?
“Bem, eu... pode ser... quero dizer, quem morava aqui antes de mim?”
“Quando eu me mudei para cá, o apartamento já estava vazio, mas todos nós escutávamos barulhos vindos dele durante a noite. Como se alguém estivesse dando pancadas fortes em uma mesa de madeira. Às vezes, sons de sinos tocando. Gemidos... achamos que poderiam ser ratos, dedetizamos o prédio várias vezes, e o zelador abria o apartamento com a chave-mestra para dedetizá-lo também, mas os ruídos persistiam.”

Terminei meu copo com água, colocando-o na mesinha de centro. Ele continuou, com um meio-sorriso constrangido:
Uma das vizinhas, a Dona Clara, que era espírita, teve a ideia de fazer um ritual. Bem, eu não acreditava muito nessas coisas, mas...”

“E o que aconteceu então?”
“Entramos no apartamento sem a autorização do proprietário. Ela trouxe um grupo de pessoas, oito ao todo, vestidos de branco. Eles cantaram algumas canções, acenderam incensos,velas, charutos... alguns pareciam ter incorporado alguma entidade – lembre-se, eu não sei se acredito nisso- enfim... no final do ritual, ela despediu-se deles e contou-me que eles tinham visto um espírito dentro do apartamento, mais precisamente, na cozinha. E não se tratava de alguma coisa boa... mas que tinham fechado a passagem para ele, e que os ruídos cessariam.”
“E cessaram?”
“Sim, até você comprar o apartamento e dar início à obra.”
“Mas... então, se isso tudo for verdade, isso significa que de alguma forma, eu reabri este... portal, e o espírito voltou!”




Ele encolheu os ombros. Ao invés de responder-me, sugeriu que eu fosse passar a noite em outro lugar, e chegou a oferecer-me o sofá de sua sala. Agradeci, e voltei ao apartamento. Ou melhor: tentei voltar, pois assim que abri a porta da sala, fui invadida por uma sensação paralisante de medo. Pavor, mesmo! Parecia que havia alguma coisa no ar, dentro da casa, algo muito forte e aterrorizante, impedindo a minha entrada.

Decidi entrar no carro e passar a noite com George, mas não mencionei nada sobre o que tinha se passado; apenas menti, dizendo-lhe que havia mudado de ideia e decidido aceitar seu convite. Eu sabia que ele não tinha acreditado... mas não insistiu.
Na manhã seguinte, resolvi não ir trabalhar, e avisei a meus funcionários que passaria o dia em casa. Eu precisava desvendar aquele mistério, e se o problema era meu, e havendo algum perigo, achava que tinha que fazê-lo sem envolver outras pessoas.

Apreensiva, girei a chave na fechadura, e abri a porta. A luz da manhã i
Invadia a sala, e pássaros cantavam lá fora. A atmosfera estava leve, como se nada houvesse por ali, pelo menos, nada de errado. Subi as escadinhas para o terraço e sentei-me ao sol. Fiquei ali pensando, tentando tomar uma decisão. Nunca acreditara em almas do outro mundo, e jamais aceitara os convites de mamãe para participar das reuniões do centro que ela frequentava. Tinha ‘puxado’ o lado cético de papai. Mas chegara um momento em minha vida em que tudo o que enxergava, estava envolvido por uma nuvem de dúvidas. Eu não imaginara nada daquilo – as flores murchas, as luzes se queimando, os azulejos que caíram durante as obras, os aparelhos que não funcionavam direito, as manchas na parede – tudo acontecera realmente. A mancha ainda estava lá! Teria que dar conta dela. Com este pensamento, voltei à sala e, olhando a horrível mancha, disse em voz alta: “Vou dar conta de você primeiro!”

Peguei a lata de tinta na área de serviço, pincel e bandeja. Fiz a mistura e comecei a repintar a parede. Terminei uma hora depois. O resultado ficou bom. Satisfeita, eu disse:

“OK! Esta é a minha casa, e se você quiser ficar aqui, vai ter que entender que quem manda, sou eu! Comporte-se ou então, dê o fora!”
Naquele exato momento, vi a mancha voltando a formar-se diante de meus olhos, desta vez, em vermelho-escarlate, e o toque do telefone quase me fez cair da escada. Atendi, e novamente, a respiração do outro lado da linha. Berrei:

“Escute aqui, seu... seu... desgraçado! Acha que pode divertir-se às custas dos outros? Quem está aí? Quem está aí?”
Uma voz de mulher fez-se ouvir, entre muita estática: “Você... vai morrer!”
“Ora, vá para o inferno!”
“Você vai morrer! Vai morrer! VAI MORRER!!!”

Puxei o telefone da tomada, assustada demais para fazer qualquer outra coisa. Dizia a mim mesma, no meio de todo o terror que tomava conta de minha mente, minha própria voz tentando passar pelas camadas de medo: “Acalme-se, deve haver uma explicação para tudo isso... você vai conseguir desvendar tudo... tudo vai ficar bem!”
Olhei para a parede, e vi que a mancha tinha se tornado novamente castanho-escura. O telefone celular tocou, trazendo-me de volta à realidade. Atendi, apreensiva, mas era mamãe. Nervosa, caí em prantos e contei-lhe tudo.

Ela me encorajava a contar, pedia detalhes. Quando eu já estava no final do relato, ouvi uma gargalhada na linha.
“Mamãe, como você pode rir deste jeito?!”
“Rose, do que está falando? Eu não estou rindo, é claro que não!”
“Está sim,” gritei. Ela reafirmou que não faria algo assim, enquanto a gargalhada ressoava em minha cabeça. Joguei o celular contra a parede, espatifando-o. Vinte minutos depois, mamãe e papai tocavam a campainha. Abri a porta correndo. Eles me abraçaram. Mamãe falou:

“Rose, você vai para casa conosco. Não pode continuar neste lugar.”
Papai olhava a mancha na parede, enquanto tentava montar meu celular quebrado. Eu já estava convencida a ir com eles, mas quando toquei a maçaneta para abrira porta para que pudéssemos sair daquele lugar, ela não girou.

A noite caiu de repente. Tudo ficou escuro e sombrio. Abracei-me a meus pais, enquanto, ao nosso redor, as coisas dentro do apartamento chacoalhavam, e a mancha na parede se abria e uma horrível forma não humana desenhava-se aos poucos. Depois, tudo ficou muito confuso, e pensamos, muitas vezes, que estamos dentro de um mundo onírico, aonde pesadelos estranhos se intercalam. Tudo é irreal. E ao mesmo tempo, tão real! Não sinto meu corpo. Mas sei que estou aqui. Sinto a presença de meus pais, e eles, a minha, mas não nos vemos. Na maior parte do tempo, não vejo nada, mas quando os pesadelos chegam, e começo a enxergar, preferiria não ver. É tudo tão feio, sombrio... estamos presos aqui. Por favor, ajudem-
nos!




****************************************************************




A médium largou a caneta. Estava ofegante, e suava frio. Teve que ser segurada pelos participantes da sessão espírita, ao tentar levantar-se. As pessoas sentadas à mesa soltaram as mãos umas das outras, terminando o ritual.

Um dos participantes aproximou-se da médium que conduzira a sessão, perguntando-lhe em voz baixa:

“E então? Acha que pode ajudá-los?”
Ela suspirou, antes de responder:
“Não sei... bem, pelo menos, já conhecemos parte da história deste local. Seria preciso ficar sabendo do que aconteceu antes. Mas infelizmente, o antigo proprietário desencarnou logo após vender o apartamento à moça, Rose... e ele não tinha parentes. E depois que os corpos de Rose e seus pais foram encontrados aqui, a prima que o herdou vendeu o apartamento sem nem sequer entrar nele.”

Ela parecia muito cansada. Ele perguntou:
“Você está bem?”
“Sim... apenas um pouco cansada, você sabe... bem, a polícia não encontrou evidências de um assassinato ou suicídio. A causa mortis para os três foi ataque cardíaco. Ao mesmo tempo. Parece que todos morreram à mesma hora. Os vizinhos dizem ter ouvido gritos, e quando o senhor do apartamento em frente tocou a campainha, e viu que a porta estava entreaberta, achou-os todos mortos, caídos no tapete da sala.”
“Muito estranho... acho que estamos diante de um dos casos mais estranhos que já estudamos.”

Enquanto os médiuns discutiam na cozinha, um jovem casal estava sentado no sofá da sala, ambos muito assustados, olhando fixamente para uma mancha marrom na parede em frente a eles.


quarta-feira, 8 de maio de 2013

O LOUCO DA PRAÇA





Quando conseguia algum dinheiro, ele comprava algo para matar a fome ( apenas para manter-se vivo, pois não sentia gosto nenhum em alimentar-se) e com o restante comprava cachaça. O homem que trabalhava no bar já o conhecia, e ele nem precisava dizer-lhe nada; colocava alguns trocados amassados sobre o balcão e o outro lhe trazia um salgadinho que tinha sobrado do dia anterior e um litro de cachaça barata. O Louco apanhava seus pertences , virava as costas e saía, e nenhum diálogo se estabelecia entre eles. Na verdade, o Louco só abria a boca para pedir, mesmo assim, apenas se estritamente necessário, quando o simples ato de estender a mão não surtia efeito. 

Dividia o que conseguia com um cão de pelos castanhos, que o seguia aonde quer que fosse. Não que ele dispensasse ao cão a atenção e carinho que um dono geralmente dedica ao seu animal, mas ambos compreendiam que só tinham um ao outro, e que tudo o que conseguiam um do outro, por menos que fosse, era melhor do que nada.

Aparentava ter uns cinqüenta anos, devido à emaranhada barba crescida, com uns fios grisalhos e foscos, e também por causa das roupas escuras, sujas e fedorentas. O cabelo, uma massa opaca e repugnante, ia-lhe até os ombros, sem corte, sem cor e sem brilho. Como eu já disse, aparentava ter cinqüenta anos, mas na verdade, tinha apenas trinta e cinco. 

Costumava abrigar-se nos jardins dos fundos da Catedral, onde as pessoas raramente iam, a não ser `a noite, quando os casais de classe média-baixa, as prostitutas e os travestis iam procurar por alguma moita sombria que lhes servisse de motel. O Louco fingia nada ver. Nem se sentia excitado, pois há muitos anos não pensava em sexo, e seu próprio membro só era tocado quando precisava satisfazer suas necessidades fisiológicas. 

Se era noite de lua, ele preferia dormir no banco de pedra, que forrava com alguns jornais ou panos sujos, e ficava olhando o céu até que se sentia parte da constelação, e navegando no espaço sideral, adormecia. Quando chovia, uma pequena gruta de mais ou menos metro-e-meio de altura e dois de comprimento, onde ficava a imagem de Nossa Senhora ( ele nunca soube qual Nossa Senhora era aquela) lhe servia de cama. Acomodava-se como podia sob o pequeno altar, tomando cuidado para não causar nenhum dano ( não por devoção, mas por não querer ser enxotado de lá). Mal clareava o dia, ele pegava sua tralha e saía dali antes que o padre abrisse a igreja. Já estava neste arranjo há mais de um ano, e nunca ninguém o perturbara. Pelo contrário, durante as comemorações dos dias santos o padre tornava-se tão caridoso que até lhe servia um prato de sopa ou dois. 

Assim navegava em sua existência: como um rato de porão. E nem almejava ser nada mais do que aquilo. Não tinha memória. Não sabia seu nome, ou de onde tinha vindo, ou se alguém em algum lugar talvez chorasse por ele. Era completamente só, e como não tinha memória, este fato não o incomodava realmente, pois não sabia o que era ter companhia. Alguns mendigos tentaram aproximar-se dele, mas depois de ter tido sua garrafa roubada mais de uma vez, ele aprendeu a desencorajar qualquer tentativa de aproximação; soltava um grunhido profundo, quase pré-histórico, e quem quer que fosse, afastava-se dele imediatamente. 

Talvez por este motivo ficara sendo conhecido pela alcunha de “O Louco da Praça”. 

Num dia de sol, enquanto estava sentado em seu banco de pedra olhando para o nada, percebeu que uma mulher se aproximava dele. Pigarreou, pronto a emitir seu grunhido gutural, mas ao vê-la de perto, o grunhido sufocou-se. O sol por trás dela, formava uma aura de luz à volta de sua cabeça. Seu hábito parecia-se com aquele da santa da gruta, com um véu cobrindo-lhe a cabeça tão completamente que nenhum fio de cabelo ficava de fora. Ele esfregou os olhos com ambas as mãos, pensando tratar-se de uma alucinação. E o cheiro dela... era o cheiro de maçãs frescas, um cheiro que quase trazia à sua memória alguma lembrança enterrada que ele não conseguia atinar. Parecia que a qualquer momento suas lembranças começariam a jorrar para fora de sua cabeça, enquanto uma dor seca percorria cada parte do seu cérebro.Mas nada aconteceu.

Bem, após hesitar um pouco, a mulher esticou o braço e colocou-lhe uma maçã grande, bem vermelha e brilhante diante do nariz. Como ele não fizesse menção de pegar a fruta, ela sacudiu-a levemente, e sorriu. Aquele sorriso despejou-se diante dele como um rio de água fresca diante de alguém a morrer de sede. Ele pegou a maçã, levou-a às suas narinas e aspirou-lhe o cheiro, esfregando-a pelo rosto e pescoço, depois levando-a à boca e desferindo-lhe uma suculenta dentada. O sumo escorreu-lhe pelo canto da boca, e ele lentamente espalhou-o pelo rosto com os dedos. Queria ter aquele cheiro. Nisso, a mulher sorriu-lhe novamente, virou as costas e se foi. Ele ficou ali, saboreando sua maçã até o fim, e de repente a maçã era a mulher, a mesma carne branca, o mesmo cheiro suave porém penetrante, e antes que ele percebesse, seu órgão sexual tornou-se vivo como um vulcão extinto que, após mil anos , entrasse novamente em atividade. Ele dirigiu-se para trás de uma moita e desajeitadamente fez o que pôde para aplacar a fúria de seu vulcão.




A vida passou a ter um significado para ele depois aquele dia. A cachaça tinha mais sabor, e ao invés de entorpecer-lhe os sentidos, parecia trazer de volta o calor do vulcão que havia estado extinto dentro dele. A santa dentro da gruta fazia com que ele se lembrasse da mulher, a única lembrança que ele finalmente tinha. Mas desejava que ela pulasse do passado de volta para ele. Os dias e as noites sucediam-se lentamente, e ela não voltava. A doce lembrança começava a tornar-se levemente amarga e dolorida. 

Começou a sentir-se melancólico nos dias chuvosos. Ficava sentado dentro da gruta, olhando a goteira que pingava no chão, e o som da pequena enxurrada que descia pelo meio-fio parecia o som de milhares de pessoas que choravam. Muitas vezes, sua memória tinha quase explodido de volta à sua mente, e nesses momentos ele sentia uma forte pressão dentro do cérebro, mas nada vinha à tona. A mulher passou a ser sua obsessão. Queria que ela fosse o receptáculo da sua lava vulcânica. Sentia frustração a cada vez que via seu prazer a transbordar-se sobre as folhas dos arbustos.

Um dia, algumas crianças apareceram para brincar no jardim da catedral. Ele acordou com seus gritos e correrias, e como estivesse mais melancólico naquele dia em especial, puxou de lá do fundo de sua alma um uivo pré-histórico que fez com que as crianças saíssem em debandada, uma delas esquecendo uma prancheta com um caderno e um estojo de lápis e canetas. O Louco abriu o caderno e viu que conseguia ler o que estava escrito ali. Achou estranho. Notou que havia muitas folhas brancas, e ficou algum tempo a folhear o caderno, as folhas brancas soltando um cheiro de papel e chiclete de menta ao serem viradas. Quase sem pensar – aliás, ele nunca pensava muito – pegou um lápis e começou a desenhar. Pouco a pouco , foram surgindo formas e mais formas da ponta de seus dedos: lugares, pessoas, objetos. Ele não sabia seus nomes, mas as imagens jorravam aos borbotões, e ele ficou o dia todo desenhando-as, até que a escuridão da noite tornou impossível que ele continuasse. 

Adormeceu com o caderno e o lápis sobre o colo. 

Na manhã seguinte, vieram as palavras. Elas simplesmente surgiam em sua mente, alinhando-se no papel de um modo quase automático, rimando entre si, ritmadas, profusas, através de uma caligrafia longa e simétrica. Era como se ele estivesse psicografando a si mesmo, pois percebeu que sua vida, de algum modo, estava contida naquelas palavras e naqueles desenhos. Faltava um fio, um elo de ligação para que finalmente se lembrasse de tudo.

À noite, veio a dúvida: haveria alguma coisa em sua vida que valesse à pena ser lembrada? Se sua memória o tinha deixado, não seria melhor que tudo continuasse como estava? Porque toda vez que alguma coisa ameaçava vir à tona, ele sentia aquela dor enorme... aquela angústia...

Mesmo a lembrança da mulher e da maçã, que tinham sido a única coisa boa que lhe acontecera da qual podia se lembrar, agora causava-lhe apenas dor e sofrimento.

Por isso, quando a mulher finalmente reapareceu com sua maçã, encontrou apenas um caderno sobre o banco de pedra, cheio de imagens, cheio de palavras. 


sábado, 4 de maio de 2013

Flores Secas - Final






Flores Secas - Um Romance - Epílogo


Dias depois, Amaro, já recuperado, deixara a clínica onde passara tanto tempo. Cândida levou-o para casa e ajudou-o a terminar sua recuperação, pois sabia que ele, tanto quanto ela, era uma vítima de Margarida. 

Aos poucos, eles foram se conhecendo melhor e tornaram-se grandes amigos. Cândida aguardava que Amaro estivesse suficientemente recuperado para que pudesse mostrar-lhe as páginas do diário que faltavam, as que Margarida entregara ao seu pai, Fernando, durante seus encontros. Amaro tornava-se cada vez mais forte, recuperando os belos traços do seu rosto e a robustez masculina de seu corpo. 

Cândida nem percebia, ainda, que a amizade dos dois estava se transformando em algo bem mais forte. Adorava passear com ele ao final das tardes de verão, quando conversavam sobre vários assuntos, conhecendo-se cada vez melhor.  E Amaro também adorava a companhia da jovem, sentindo que seu coração finalmente se reabria para o amor, deixando para trás as lembranças de Margarida. 

Uma noite, Cândida percebeu que era hora de deixá-lo saber de toda a história; sentados à mesa da sala de sua casa após o jantar, Amaro e Cândida juntavam todas as informações que tinham, montando um tétrico quebra-cabeças sobre Margarida. A verdadeira Margarida. Ela lhe mostrara as páginas do diário que Margarida tinha arrancado e entregue à Fernando, uma a uma, durante seus encontros. Ela as deixava sobre a mesa antes de ir embora, sem nada dizer. 


É claro que Fernando percebeu que aquela era a maneira de ela dizer que precisava de ajuda. Estava louca. Margarida estava totalmente louca. Ele tentou ajudá-la e ter paciência com ela. Fazia com que ela comparecesse aos encontros e tentava conversar com ela, fazê-la falar. Mas ela tinha medo dele, permanecendo muda o tempo todo, comendo compulsivamente. E sempre deixava uma folha de papel embolada sobre a mesa antes de sair: as páginas de seu diário.

Mas ele teve de confrontá-la após sua esposa e filha terem sido envenenadas, a menina- Cândida – escapando por sorte. Como Margarida tinha descoberto onde elas estavam, ele nunca soube dizer. Então, colocou as páginas em um envelope e disse à Carlos que, se qualquer coisa acontecesse a ele, Cândida deveria ficar sob seus cuidados. Dizendo isso, deu à Carlos o envelope contendo as páginas do diário.

Conforme os anos se passaram e Cândida crescia, Carlos temia que a menina se envolvesse em tramas perigosas. Achou por bem esconder dela a existência das páginas, e também a causa da morte de Fernando, seu pai. 
Só mesmo em seu leito de morte, anos depois, ele lhe revelou a existência do diário. Sabia que Cândida merecia uma vida melhor, e que era seu direito tentar.



A partir daí, a vida de Cândida resumiu-se em recuperar a herança do pai , que legalmente lhe pertencia, e passar a limpo toda a história. Queria limpar a honra de seu pai , que fora enterrado como o amante indigente de Margarida.
Ao terminar sua história, Cândida olhou para Amaro, sentado do outro lado da mesa. Ele parecia-lhe mudado, mais jovem, como se um enorme peso tivesse sido retirado de seus ombros. Ainda estava muito magro, mas a cor voltara-lhe aos olhos, e recuperava seu peso rapidamente.

Cândida disse a ele que sabia que aquela casa lhe pertencia, e que agora que ele estava bem novamente, só restava a ela ir embora. Mas pediu-lhe que desse a ela sua parte no legado. 
Amaro continuava a fitá-la, sem nada responder.
De repente, ele levantou-se e caminhou até ela, fazendo com que ela se erguesse da mesa e segurando-a gentilmente pelos ombros. Os olhos dele estavam presos ao dela, e ela sentiu-se envolvida por um sentimento novo, que nada tinha a ver com ternura filial.

Ele disse:

“Fique nesta casa. Você veio para fazer com que ela voltasse a ser como nunca deveria ter deixado de ter sido: alegre e cheia de vida. Aprendi a lidar com as tragédias de minha vida, que a partir de agora, ficam todas para trás. Hoje compreendo que tudo o que vivi com Margarida foi verdadeiro. Afinal, ela me amou e me fez o mais feliz dos homens durante muitos anos. Devo olhar as coisas pelo seu lado melhor: ela me tirou tudo, mas também me deu tudo.

Sendo assim, eu a perdoo, e sinto meu coração leve e pronto a recomeçar.

Quero recomeçar minha vida, recuperar o tempo perdido.”
Neste momento, ele baixou os olhos e corou levemente, mas logo voltando a encará-la:

“ Você, Cândida, você... se casaria comigo?”

Ela olhou-o bem dentro dos olhos, e viu a si mesma aonde sempre desejaria estar: dentro dele. Ao lado dele.



 


                                                     
Lá, onde o menino Diogo estava, havia uma grande festa. Margarida chegara. Finalmente, ele pudera abraçar sua mãe, que agora estava recuperada para viver junto deles. Mas Diogo e Lucinda sabiam que seria por pouco tempo, pois logo ambos renasceriam. Como os filhos de Amaro e Cândida.
Para Margarida, a nova existência não seria tão glamourosa, pois teria que resgatar seu passado.

Mas afinal, todos o faremos, um dia...




Flores Secas - Parte VII







Diogo estava sentado no banquinho de madeira, junto ao portão da casa de seus avós. Eles lhe disseram que teria uma visita naquela tarde, e ele olhava ansioso para a estradinha curva que seguia depois do portão da casa , entre as muitas árvores, sumindo de vista, tentando segurar sua expectativa. Seria sua mãe? Será que ela estaria vindo para ficar junto deles?

Finalmente, viu quando três pessoas se aproximavam da casa, vagarosamente, iluminadas pelo sol poente. Naquele momento, ele se levantou. Havia duas pessoas mais velhas e um homem, mais jovem, que sorriam para ele. Os mais velhos se apresentaram como Hugo e Idalina, seus avós maternos; e o rapaz apresentou-se como Fernando, seu tio, irmão de sua mãe. 



                                                     
Cândida passeava pelos cômodos do casarão, apreciando sua obra de bom-gosto. Trazia um grande sentimento de justiça. Pensava que , finalmente, após tanto sofrimento, desfrutava do que era seu por direito. Pena que sua mãe não estava mais viva. Pena que ela não tinha irmãos, nem ninguém que realmente a amasse. Pena que seu coração tornara-se duro e frio, impenetrável. Tinha tudo o que sempre sonhara, e ao mesmo tempo, não tinha nada.
Continuava a dar suas festas, que iam ficando cada vez mais mal-faladas. Mas começava a enfadar-se delas.
 Notava que quando andava pela rua, os homens viravam as cabeças para olhá-la, com voracidade nos olhos, e as mulheres – quando acompanhadas de suas crianças – viravam-lhe o rosto, puxando os filhos para junto de si. Era conhecida como Cândida, a devassa. Alguns atá diziam que o casarão tornara-se um antro de prostituição, onde o amor e o sexo eram obtidos através de altas taxas. Mas pelo menos isso, não era verdade. Cândida tinha dinheiro de sobra, administrando tudo o que Amaro juntara durante todos aqueles anos em que vivera afastado da beleza, em sua vida espartana.Ademais, seus advogados tinham finalmente conseguido localizar a fortuna de Margarida em um banco Suíço, graças à Guiomar, que devolveu-lhe uma chave e alguns documentos que achara num bauzinho que pertencera à Margarida. Claro, não sabia do que se tratava, mas Cândida sabia muito bem.
Agora, tinha mais dinheiro do que conseguiria gastar em muitos anos. E ela fazia questão de não economizar em nada. Fora os bens e propriedades , das quais ela tinha vendido algumas, havia muito dinheiro acumulado nos bancos. E o cheque de pagamento mensal , que era entregue religiosamente pelos sócios de Amaro. 


Sabia que os advogados já moviam em silêncio uma ação contra ela, a fim de bloquear os bens de Fernando. Queriam evitar que ela dilapidasse toda a fortuna. Mas, como única herdeira dos bens, não estava sendo fácil para os advogados defenderem a fortuna de Amaro. Sem contar que ela mesma contava com excelentes advogados, que sempre ganhavam as ações que moviam contra ela.E Cândida tinha a favor de si o fato de que pagava todos os meses para manter Amaro na clínica onde estava internado, uma instituição caríssima. Ela no fundo sentia pena dele, e pensava nele como mais uma vítima de Margarida.
Até ia visitá-lo, mas ele apenas olhava através dela. Ela tentou conversar com ele. Disse-lhe quem era. Contou-lhe sua estória. Mas Amaro parecia não poder ouvi-la. Num dado momento, movida pela piedade, ela segurou-lhe a mão. Aquele gesto inesperado fez com que ele a olhasse e a enxergasse pela primeira vez. Mas não disse nada, voltando à sua apatia após alguns segundos. Mas durante aqueles poucos momentos em que ela estava ali, segurando-lhe a mão, ele criou vida novamente. Ela percebera. E também percebera o quanto Amaro ainda era um belo homem, embora destruído. 
Depois disso, ela passou a contratar os melhores médicos para cuidar dele. Queria relatórios semanais sobre tudo o que acontecia com Amaro: os tratamentos a que era submetido, suas menores reações, o que lhe davam para comer, etc. Mandou que redecorassem seu quarto no hospital, pagando muito caro por isso. Assim, ele não se sentiria mais como um doente, pensava ela. 



Cuidou pessoalmente dos detalhes: mandou que cobrissem uma das paredes com tecido xadrez escocês, combinando com uma confortável poltrona que instalou num dos cantos do quarto. Acarpetou o chão com um belo e caro carpete cor-de-chocolate e acortinou as janelas com seda bege. Pôs um vaso de flores na cabeceira da cama que deveria ser trocado a cada dois dias, mantendo assim flores sempre frescas ao lado dele. Também providenciou-lhe trajes mais dignos que ele pudesse usar, abolindo os ridículos camisolões do hospital. Pagava bem aos enfermeiros para que cuidassem de Amaro com especial atenção. 
De vez em quando, ela ia visitá-lo. Sentava-se ao lado dele e lhe falava sobre muitas coisas. Contava-lhe sobre seus anseios de moça jovem, rica e solitária, muitas vezes contando detalhes picantes de seus relacionamentos esporádicos. Ele tornou-se uma espécie de confidente para ela, com a vantagem de que não ouvia o que ela dizia.
Uma vez, perguntou ao médico a idade dele: 44 anos. Ela tinha 22. Amaro poderia ser seu pai. Isso fez com que ela passasse a olhá-lo mais do que com simples piedade, mas com uma certa ternura.
                                                    
Lá de dentro de sua mente, ele contemplava a bela jovem que vinha visitá-lo. Gostava de sua presença, e fragmentos do que ela dizia conseguiam alcançar sua mente, embora ele não pudesse comunicar-lhe isso. Vê-la fazia com que ele se sentisse diferente. 
Mas havia uma memória alojada no canto mais escuro de sua mente, que ele vinha tentando trazer à tona desde o dia em que fora encontrado por Guiomar, caído no chão. Desde então, fechara-se totalmente para o mundo e seu único esfôrço era acessar aquela memória. Mas parecia-lhe que uma força maior tentava afastá-la dele. O rosto de Margarida se sobrepunha entre ele e o que ele queria lembrar. E era o mesmo lindo rosto, mas tomado de pavor. 
Até que um dia, enquanto ainda era madrugada e todos dormiam no hospital, ele acordou com um grito. Logo enfermeiras entraram correndo no quarto, encontrando Amaro sentado em sua cama, banhado em suor. Mas apesar de toda a sua angústia, ele estava de volta. Ele se lembrara.
O homem que agonizava no chão dissera-lhe algo. O que ele dissera ficara apagado de sua mente durante aqueles anos todos, pois o que ele havia dito era terrível demais. Mas, durante um sonho, tudo se revelou.
Ele estava novamente de volta àquele horrível dia. Acabara de chegar em frente à casa, empurrando o carrinho de seu bebê, que estava vazio. Sabia de antemão o que iria encontrar, pois já tinha vivido aquela cena antes. A rua estava deserta e silenciosa, e um vento forte soprava, espalhando folhas secas pelo chão. Deu um passo em direção ao portão, que rangeu quando ele o empurrou. 
A casa estava envolta pela penumbra, mas às vezes uma fraca luz amarelada iluminava a tétrica cena. Um forte cheiro metálico, um cheiro de sangue, chegou-lhe ao nariz.



Ele ouvia um choro de mulher – o choro de Margarida, à medida que ia subindo os degraus da varanda, aumentando de intensidade. Ele deixou o carrinho vazio na varanda, empurrando a porta de casa. O choro era tão forte que deixava-o quase louco, e o vento soprava mais forte. Mas ele precisava continuar, precisava ir em frente e descobrir a verdade. Foi então que ela apareceu na frente dele, bloqueando-lhe o caminho. Ele parou e olhou para ela, e leu em seus olhos a angústia e o medo. Teve pena dela e abraçou-a. Mas quando olhou para ela novamente, seu lindo rosto tinha se transformado em uma horrível máscara. Ele soltou um grito, empurrando-a. Viu quando ela foi erguida pelo vento, como uma boneca, e subiu às alturas, sendo engolida por um tufão cinzento. Ele entrou na casa.
No chão, a mesma cena de anos atrás. Ele sabia que aquilo tudo já tinha acontecido, e não passava de um cenário que ele teria que atravessar para chegar ao que realmente precisava saber. Assim, caminhou até o homem que jazia no chão. Ele agonizava. Mas abriu os olhos e com as forças que lhe restavam, ergueu o braço, puxando a cabeça de Amaro de modo que seu ouvido ficasse bem junto à sua boca:
“Margarida. Ela é minha irmã. Ela matou nossos pais. Ela matou todos nós. Eu tenho... as páginas do diário... a confissão.”
Agora tudo se tornara claro. Ele abolira de sua vida toda a beleza, acreditando que ela o traíra; depois, enlouqueceu, acreditando que ela era inocente. Agora, toda a verdade sobre Margarida viera à tona. E era muito mais terrível do que simplesmente uma traição.
Mas onde estariam as páginas do diário, as que continham a confissão de Margarida?



Flores Secas - Parte VI





Flores Secas - Um Romance - Parte 6


Seu pai a abraçou, e disse-lhe que daquele dia em diante, ela seria livre novamente. Devolveria seus talões de cheques e permitiria que ela voltasse a sair com seus amigos. Não mencionou o fato de que tinha antes procurado seu ex-namorado e lhe oferecido uma enorme quantia de dinheiro para que ele ficasse longe de sua filha , ameaçando-o de que, se não obedecesse, tinha meios de destruí-lo para sempre. Como a quantia oferecida fosse muito generosa, o jovem em questão embarcou naquela mesma semana para uma viagem à Paris, dizem que acompanhado por uma linda jovem.

Logo que amanheceu, Margarida tomou seu café da manhã e esperou dar a hora de Fernando sair para o escritório; então, telefonou à Cristina perguntando-lhe se poderia visitá-la em seu apartamento por algumas horas, e esta ficou muito feliz.

Passaram uma manhã radiante, olhando as fotos do casamento. Margarida reparou o quanto o apartamento de Fernando era simples, mas decorado com bom-gosto, e pensou que para ela seria impossível viver longe do luxo e do conforto aos quais estava acostumada. Mas é claro, não cansou em tecer elogios à cunhada pela arrumação do apartamento.





Em alguns meses, estavam todos amigos novamente.
Foi quando o ex-namorado de Margarida voltou de sua viagem.
Margarida encontrou-se com ele casualmente, enquanto passeava pela avenida numa linda manhã de sol. Ele tentou desvencilhar-se dela, mas ela gritou seu nome. Ele foi obrigado a parar a fim de evitar um escândalo, pois conhecia muito bem Margarida, a verdadeira, não a que todos pensavam conhecer.
Ele foi direto ao ponto, dizendo-lhe que não mais se interessava por ela e que já até tinha uma outra garota, conhecida de ambos, com quem acabara de voltar de uma viagem à Paris. Ela não podia acreditar que ele a tinha esquecido. A fim de fazer pouco dele, ela disse que não acreditava no que ele estava dizendo, principalmente por saber que ele não tinha onde cair morto, e muito menos a coitada com quem ele dizia estar se relacionando, pois todos sabiam na cidade que a família da tal garota tinha falido, e que ela não estava em condições de financiar uma viagem à Paris para um morto-de-fome como ele.



Então, com um brilho de maldade nos olhos, ele disse-lhe que fora o pai dela que o fizera. E contou-lhe toda a história. Em seguida, deixou-a estarrecida, parada na calçada, e segui seu caminho sem olhar para trás.
Todo o ódio que ela sentiu seria suficiente para encher de energia uma bomba atômica. Mas aquele ódio não tinha como alvo o rapaz em questão. Na mente de Margarida, ele fora corrompido por seus pais, e Fernando tinha sido o principal causador da separação deles. Nem lhe passava pela cabeça que o seu ex-namorado fosse uma pessoa sem escrúpulos, que se vendia barato. Margarida tinha uma visão totalmente destorcida dos fatos.
Ela entrou num parque, escolheu um banco afastado e sentando-se, chorou de raiva e humilhação. E naquele momento, ficou bem claro em sua cabeça o que teria de fazer: vingar-se!
Ao chegar em casa, seu semblante estava novamente como sempre: radiante, cheio de inocência e absolutamente cativante. Beijou os pais, riu com eles durante um programa de comédia que eles estavam assistindo na sala de TV e depois do almoço, foi descansar em seu quarto.
Mas, na verdade, queria ficar sozinha para arquitetar sua vingança.



Numa tarde de domingo, ela pediu aos pais se não poderia convidar Fernando e Cristina para um jogo de cartas. Eles imediatamente concordaram. Ela telefonou-lhe fazendo o convite, e foi para seu quarto aprontar-se. Então, ela fechou a porta e fingiu ter ficado presa. Bateu à porta, gritando, e logo seus pais estavam do outro lado, tentando libertá-la. Ela disse-lhes que ligassem novamente para Fernando e pedissem que ele trouxesse sua caixa de ferramentas, pois o motorista e o caseiro estavam de folga – era domingo- e a empregada certamente não poderia fazer nada para ajudar. Os pais fizeram o que ela dissera, e Fernando , usando suas ferramentas, conseguiu abrir a porta.
Ela agradeceu a seu irmão, fingindo estar muito aliviada, e enquanto todos a rodeavam tentando acalmá-la, ela tratou de dar um jeito de fazer com que Fernando esquecesse sua caixa de ferramentas na casa.
Dias depois, seus pais saíram para uma viagem, da qual nunca retornariam: o carro perdeu os freios numa descida perigosa, despencando em um abismo.
A polícia logo percebeu que os freios tinham sido cortados. Ao examinarem a garagem da casa , encontraram uma caixa de ferramentas, que uma Margarida absolutamente horrorizada, dissera pertencer ao seu irmão de criação. E ela tratou de contar à polícia – sob forte emoção – o quanto o relacionamento entre seu irmão – de criação , ela fazia questão em frisar – e seus pais estava abalado, desde que eles tinham tido uma briga e Fernando tinha sido expulso de casa. Disse que o irmão vivia em um humilde apartamento com sua esposa, e que apesar de ter sido aceito como um empregado na firma do pai, jamais o perdoara totalmente, segundo ele mesmo confessara a ela num momento de tensão.



Quem poderia duvidar daqueles sinceros olhos azuis de anjo, marejados, daquela face rosada totalmente inocente e daquela voz doce e totalmente magoada? Ela teve um desmaio, precisaram chamar o médico da família.Ao mesmo tempo, Fernando e Cristina chegavam na casa.
Mas antes que entrassem, foram impedidos por Carlos, o motorista da família, que conhecia Fernando e Margarida desde pequenos, e que havia escutado toda a estória dela atrás da porta. Carlos não acreditava que seu patrãozinho fosse capaz de uma barbaridade daquelas, e desconfiava de Margarida, justamente por conhecê-la desde pequena. Ela nunca tinha tido nenhum gesto de gentileza para ele ou para os outros empregados da casa, tratando-os com frieza e até rispidez. Carlos lembrava-se claramente de ter visto Margarida, ainda uma menininha pequena, afogando na piscina um gatinho que acabara de ganhar, e depois chorando copiosamente, fazendo beicinho, pois não sabia que gatinhos não sabiam nadar. Mas Carlos nunca esqueceria a expressão fria da menina, e o prazer que ela parecia sentir enquanto o pobre animal agonizava, tentando libertar-se. Carlos tentou interromper, mas já era tarde. 
Destinos parecidos tiveram outros animais de estimação: um cachorrinho que Carlos encontrara morto no jardim, a boca cheia de barro, o que provavelmente causou-lhe o sufocamento; um pássaro que apareceu morto na gaiola, pescoço torcido, apenas algumas horas depois de ter-lhe sido presenteado. 



Então, os pais desistiram de dar-lhe animais de estimação, achando que ela os matava por excesso de zelo. Talvez, quando estivesse mais madura, diziam.
Fernando e Cristina ouviram a estória de Carlos, escondidos na edícula. Cristina queria entrar e desmascarar Margarida, mas Fernando sabia que tinha poucas chances de provar sua inocência se estivesse preso. Resolveu fugir. Naquele momento, Cristina contou-lhe que estava grávida.
Ele disse que voltaria. Um dia. E que sempre mandaria algum dinheiro para ela e para a criança.
Ele comprou um carro usado, e com a ajuda de Carlos conseguiu providenciar documentos falsos. Mudou-se para uma cidade distante, e continuou mudando-se durante todos aqueles anos, trabalhando como caixeiro viajante, servente de obras, pintor de paredes, garçom, enfim, toda espécie de empregos temporários que não exigiam tanto sobre a identidade de seus empregados. Sempre mudando a cor dos cabelos, ora usando barba, ora de rosto liso. Usava sempre óculos escuros e chapéu. Nunca ficava em um lugar por muito tempo.
A polícia estava à sua procura, mas Fernando acabou tornando-se uma espécie de “mestre dos disfarces”. Soube do nascimento de sua filha através de Carlos, para quem às vezes telefonava. Ninguém suspeitava da amizade dos dois. Com o passar dos anos, e tendo Margarida vendido o casarão e se mudado para outro estado, sem que ninguém soubesse para onde, as buscas foram tornando-se menos intensas.
Carlos ajudou-o a encontrar-se com a esposa e a filha, nas poucas vezes em que isso aconteceu. Durante estes encontros, Cristina chorava muito. Ela e a filha sabiam que Fernando tinha por direito parte da herança de seus pais adotivos, enquanto ele e elas viviam na miséria.
Fernando resolveu que encontraria Margarida. Para isso, recorreu à listas telefônicas das várias cidades por onde passava. Tinha uma foto dela, e às vezes mostrava a alguém, na esperança de que a reconhecessem, mesmo sabendo que isso era perigoso para ele. Mas ninguém jamais a reconheceu.
Foram anos de buscas. Ele traçou sua trajetória como um cão farejador, até que um dia, por mero acaso,ele a encontrou. Ficou observando-a de longe durante vários meses. Descobriu onde ela morava, quem era seu marido e quem todos pensavam que ela era. Tinha recortes de jornais onde ela aparecia, sorridente, junto ao seu marido.



Um dia, resolveu fazer contato. 
Ela atendeu a seu chamado prontamente. O primeiro encontro dos dois tinha sido nos fundos de um restaurante barato de beira de estrada, onde ele tinha um emprego temporário como lavador de pratos. Quando ela entrou, envolta em seu casaco de peles brancas e escondida atrás de um enorme par de óculos escuros, todos pararam de falar para vê-la passar. Ele pediu que ela fosse mais discreta da próxima vez.
Ele queria que ela dissesse alguma coisa sobre o que tinha acontecido. Desejava que a irmã confessasse seu crime. Talvez assim ele pudesse convencê-la a entregar-se à polícia e livrá-lo das falsas acusações. Apelou várias vezes para o lado sentimental, mas aos poucos percebeu que a irmã estava inabalada. Parecia mesmo que tinha um desvio mental. Não queria que ela se assustasse, pois sabia que ela seria capaz de largar tudo- inclusive seu marido e filhos – e fugir, desaparecer novamente. Durante meses , tentou abordá-la cuidadosamente.
Ela sempre ia aos encontros, e aparentava ter muito medo dele. Talvez por saber que ele poderia a qualquer momento desmascará-la junto ao marido. Cada vez mais ficava claro para Fernando que Margarida tinha problemas mentais, uma personalidade distorcida e doentia. Chegou mesmo a sentir pena dela.
Um dia, ela não compareceu a um dos encontros.
Ele lhe telefonou e marcou um outro encontro, ao qual ela também não foi. Passou a evitá-lo. 



Fernando tinha medo de que ela estivesse planejando alguma coisa contra ele. Resolveu ir até a casa dela. Ficou um longo tempo escondido , observando o movimento da casa. Esperou que os sogros de Margarida saíssem e logo depois, seu marido, com o bebê. Margarida estaria sozinha em casa com sua filha mais velha. Talvez tivesse uma empregada, mas ele saberia como disfarçar sua verdadeira identidade. Poderia dizer que era um vendedor ambulante.
Ele ficou algum tempo esperando, tentando tomar coragem para fazer o que queria fazer. Tinha a intenção de abordar Margarida com a verdade. Faria com que ela admitisse tudo. Se necessário, ele a forçaria, ou ameaçaria contar tudo à Amaro. Estava reunindo coragem para bater à porta, quando viu a empregada saindo da casa. Era tudo o que ele precisava.
Ele cruzou a rua e bateu . Margarida atendeu. Tentou fechar-lhe a porta, mas ele a empurrou e entrou na casa. Ele a segurou pelo pulso, e disse -lhe como ele tinha vivido durante todos aqueles anos; ela gritou, dizendo que não sabia do que ele estava falando, e que nem sequer o conhecia. Ele continuou falando, quase aos berros, da morte dos pais. Queria que ela confessasse, e dizia-lhe isso. Ela começou a chorar, e conseguiu desvencilhar-se dele. Empurrou-o, e ele caiu, batendo a cabeça na quina da mesa de centro, ficando um pouco tonto.Enquanto isso, ela correu até a gaveta da escrivaninha , no escritório, e pegou a arma que tinha comprado naquela semana. Ninguém sabia que ela a tinha. Voltou à sala e apontou na direção de Fernando, que estava ainda se levantando. Apontou-lhe a arma e atirou; só que naquele momento, atraída pelos gritos, sua filha Lucinda entrou correndo na sala de estar, ficando entre Fernando e a bala. Foi atingida, e caiu. Alucinada, Margarida atirou novamente, atingindo Fernando. 


Depois, ela ficou parada no meio da sala segurando a arma, os olhos turvados pelas lágrimas, a mente totalmente confusa.
Tentou pensar no que poderia fazer. Pensou que ainda lhe restavam Amaro e Diogo. Poderiam ser felizes juntos, se ela conseguisse consertar aquela situação. Diria que Fernando era um ladrão que invadiu a casa e atirou em todos ao ser surpreendido. 
Correu até a filha e abaixou-se junto à Lucinda. Ela tinha os olhos entreabertos, e não respirava mais. Por um minuto, ela chorou. Mas logo recuperou sua frieza. 
Andou pela sala, estudando ângulos. O lugar onde Fernando jazia era próximo à porta de entrada.
Friamente, Margarida estava tentando arquitetar seu plano. Andava de um lado para o outro, segurando a arma.
 Foi quando seus sogros chegaram e a surpreenderam naquele ato de pura frieza, e ambos soltaram um grito ao perceber os corpos no chão e a arma nas mãos de Margarida. Mal tiveram tempo de perceber o que estava acontecendo, pois ela apontou a arma para eles e atirou, matando a ambos. Fora de si, ela correu até Fernando, que agonizava. Tirou-lhe o lenço que pendia de seu bolso, limpando da arma suas impressões digitais. Colocou a arma entre os dedos dele e atirou em sua própria cabeça. Queria que pensassem que ela era inocente, e que ele tinha matado a todos. Tencionava apenas um tiro de raspão. Mas calculou mal, e a bala penetrou-lhe o cérebro.



Alguns minutos depois, ela despertou, para o que lhe parecia uma cena de algum filme dramático, onde várias pessoas encontravam-se mortas no chão da sala de estar de uma casa luxuosa. Levou algum tempo para perceber que ela estava entre aquelas pessoas. Quis gritar de terror, mas nenhum som saiu de sua boca escancarada. Então ela teve a sensação de ser sugada rapidamente para o alto, e depois foi cercada por uma escuridão pesada e úmida que tomou conta de sua mente, fazendo-a dormir. Às vezes tentava despertar, mas sua mente ficava muito confusa, e logo ela voltava a cair em seu sono pesado e sem sonhos. Percebia que estava sendo cuidada por alguém, mas jamais conseguia ver quem essa pessoa – ou pessoas- eram. Não tinha noção de tempo, ou lembranças . Achava que talvez estivesse em um hospital. Em coma.


A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...