sexta-feira, 3 de maio de 2013

FLORES SECAS Parte III






Guiomar é uma mulher de quarenta e cinco anos agora. Nunca foi bonita, nem rica, nem inteligente ou interessante, muito menos, interessada. Cresceu em um colégio interno longe dos pais, que nunca chegou a conhecer. Lá, ela era apenas um número, como todas as outras crianças. Algumas tiveram sorte e foram adotadas, pois eram bonitas ou espertas, até mesmo manipuladoras ao extremo a fim de cativar pais adotivos. Mas ela era apenas uma menininha sem-graça, muito tímida, que no fundo rezava para não ser notada, para não ser levada para fora dali, onde a vida era desconhecida e onde ela teria que conviver com um monte de gente que ela não nunca tinha visto.

Tentava viver sua vidinha sem incomodar ninguém, tentando não ser percebida, estudando com afinco aquilo que lhe ensinavam e tirando boas notas , mas sem nunca compreender realmente o que estavam lhe ensinando.Fazia aquilo que achava que esperavam que ela fizesse, da melhor maneira possível. Apenas porque não queria chamar a atenção.
Cresceu. Disseram-lhe que estava grande demais para permanecer no asilo, então ela pediu-lhes que lhe dessem um emprego de arrumadeira e um quartinho nos fundos da instituição onde pudesse morar, e seu desejo foi prontamente atendido. Irmã Clara sabia que ela não seria capaz de sobreviver no mundo lá fora, a teve pena dela.
Passou ali toda a sua vida. Nunca se casou ou sequer apaixonou-se. A não ser pelo jovem frei Estêvão.



Uma noite , quando Guiomar tinha dezessete anos, ela estava na cozinha adiantando o café da manhã seguinte, pois o dia seria atribulado por causa da visita dos freis à instituição. Alguns até estavam hospedados ali, e ela teria muito trabalho na preparação do café da manhã e do almoço. Preferia comandar tudo sozinha, não confiando nas ajudantes contratadas, que sempre chegavam atrasadas e eram incompetentes. 
Chovia torrencialmente. Ela usava uma saia de algodão azul-marinho e uma blusa de cambraia branca, de segunda-mão, mas em bom estado. De repente percebeu que faltava açúcar na cozinha, e que teria que ir até o depósito buscar mais. Saiu noite adentro pela chuva até o depósito, maldizendo as ajudantes de cozinha, pois não tinham feito seu serviço.
Quando retornou com o saco de açúcar, estava encharcada. Enxugou-se como pôde com um saco de estopa que trouxera do depósito e continuou seu serviço.
Enquanto isso, em algum quarto da instituição, frei Estêvão tentava dormir. Mas como em muitas outras noites, sentia um calor percorrendo-lhe as entranhas. Outros freis disseram-lhe que ele tinha que ser forte e superar as tentações, mas Estêvão era jovem e viril, e muitas vezes, precisava aliviar-se no banheiro ou no escuro de sua cela. Não conseguia adormecer com aquela “coisa” ereta e dura apontando para o teto. Depois, vinham a culpa, o medo da punição eterna.
Nunca tinha conhecido uma mulher, mas não conseguia pensar em como seria estar com uma. Começava a duvidar de sua vocação, mas prometera à mãe que seria frei.
Resolveu ir até a cozinha tomar um pouco de água ou café, para tentar acalmar-se. Mas deparou com a figura esguia de Guiomar, que devido ao estado de urgência de frei Estêvão, parecia bela com sua blusa branca transparente colada ao corpo , a barra da saia amarrada num dos lados, os pés descalços e os cabelos castanhos pingando. 
Apenas se olharam. Não disseram nada. Em minutos, anos de vontade estavam sendo resgatados sobre a mesa da cozinha, no chão, encostados à parede, sobre a pia. 


Enquanto frei Estêvão permaneceu hospedado na instituição, o que durou cerca de duas semanas, a cena repetiu-se todas as noites. Mas depois ele se foi e nem sequer despediu-se dela.
Guiomar viu-se grávida. Usou roupas largas para que as freiras não percebessem, e quando chegou a hora, teve seu bebê no depósito, na calada da noite. Após o parto, ela adormeceu. Quando acordou e procurou pelo bebê, viu que nascera morto. Sem nada sentir, embrulhou-o num pano e enterrou-o nos fundos do jardim, num canteiro abandonado.
Aquilo fora a ocasião em que estivera mais perto de ter uma família, mas ela não se importava. Acostumara-se a viver sem uma. Por isso, enterrou seu bebê sem culpa e sem tristeza.
Ela viveu na instituição até os trinta anos de idade. Então, a casa foi fechada e ela conseguiu emprego em uma casa de família da região, onde trabalhou durante os próximos dez anos.
Chegou a tomar conta de uma senhora idosa durante algum tempo, mas ela queria que Guiomar lesse para ela, o que ela não suportava fazer. Aguentou o quanto pôde. Assim que viu o anúncio que Amaro pusera no jornal, resolveu checar, embora achasse que não teria muitas chances. Ouvira falar na tragédia que abatera aquela família há algum tempo atrás, mas isso não fazia a menor diferença para ela. Decidiu tentar, apesar de ter se sentido um pouco desconfortável ao saber que teria que tomar conta de um menino, ainda um bebê, mas achou melhor do que ter que ler romances idiotas para uma velha assanhada.
E ali permanecera . 




Falava com o menino o mínimo possível. Cuidava para que andasse sempre limpo e estivesse sempre saudável e bem-alimentado. Levava e buscava o menino `a escola, tomando cuidado para que não se perdesse na rua. Zelava para que ele estivesse na cama às oito e meia da noite e determinava horários para que ele fizesse os deveres de casa. Tratava-o com educação e cortesia, mas de uma maneira totalmente impessoal. Valia-se da boa educação que as freiras tinham lhe dado – ou tentado lhe dar - e era sempre polida, distante, discreta. Cozinhava bem, sabia manter a casa em ordem , lavava e passava roupas com perfeição. E tinha tudo o que sempre quisera na vida: um pequeno quartinho onde descansar ao final do dia e um pequeno salário que supria suas necessidades básicas, que não eram muitas. Ainda economizava um pouco para a velhice.
Ninguém a aborrecia ou reclamava de seus serviços. Como Amaro nunca recebia convidados, não precisava preocupar-se em preparar banquetes. Quando Diogo estava na escola, podia sair quando quisesse – embora raramente o fizesse, a não ser para comprar coisas para a cozinha- e tinha muito tempo livre para assistir TV ou ouvir rádio em seu quarto.
Quanto aos seus sentimentos pelo menino, simplesmente não os tinha. Guiomar nunca aprendera a ter sentimentos; somente sobrevivia. Não tinha nenhuma saudade – nem mesmo de frei Estêvão - nenhum medo, nenhuma paixão, nenhuma lembrança que valesse a pena trazer à memória . Não era feliz ou infeliz, e nunca tinha pensado muito no assunto. E depois de padre Estêvão, nunca mais pensou em homens. Baniu-os de sua vida. Para ela, aquela experiência tinha sido apenas... uma experiência. E se às vezes pensava nela, era sem nenhuma saudade ou dor. Apenas recordava fatos. Quanto ao prazer que sentira – ou deixara de sentir algumas vezes – encara-o apenas como um fato curioso da raça humana.



Às vezes trocava algumas palavras com as outras empregadas quando ia ao mercado ou à feira, mas não passavam de banalidades polidas. Aliás, Guiomar era muito polida. Jamais alterava seu tom de voz, nem mesmo quando Diogo fazia uma de suas travessuras. E nem as contava ao pai do menino, pois percebera desde sempre que ele não estaria mesmo interessado em ouvi-las.
 As pessoas comentavam sobre a sorte grande que deveria ser para Amaro ter conseguido alguém tão competente para cuidar de sua casa e de seu filho.
*** 
                      
Ela entreabre os olhos e vê formas se movendo na penumbra. Sente-se confusa. Acha que está em seu quarto, mas não consegue se lembrar de como fora parar ali e nem consegue mover-se. Dorme durante longas horas, e ocasionalmente desperta por alguns segundos. Às vezes lhe vêm à cabeça imagens de rostos . Acha que os conhece, mas imediatamente eles lhe fogem, antes que ela possa lembra-se de quem são. Apenas alguns segundos, e ela adormece. Profundamente.
Quanto tempo tem se passado desde que ela chegou ali?


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