quarta-feira, 8 de maio de 2013

O LOUCO DA PRAÇA





Quando conseguia algum dinheiro, ele comprava algo para matar a fome ( apenas para manter-se vivo, pois não sentia gosto nenhum em alimentar-se) e com o restante comprava cachaça. O homem que trabalhava no bar já o conhecia, e ele nem precisava dizer-lhe nada; colocava alguns trocados amassados sobre o balcão e o outro lhe trazia um salgadinho que tinha sobrado do dia anterior e um litro de cachaça barata. O Louco apanhava seus pertences , virava as costas e saía, e nenhum diálogo se estabelecia entre eles. Na verdade, o Louco só abria a boca para pedir, mesmo assim, apenas se estritamente necessário, quando o simples ato de estender a mão não surtia efeito. 

Dividia o que conseguia com um cão de pelos castanhos, que o seguia aonde quer que fosse. Não que ele dispensasse ao cão a atenção e carinho que um dono geralmente dedica ao seu animal, mas ambos compreendiam que só tinham um ao outro, e que tudo o que conseguiam um do outro, por menos que fosse, era melhor do que nada.

Aparentava ter uns cinqüenta anos, devido à emaranhada barba crescida, com uns fios grisalhos e foscos, e também por causa das roupas escuras, sujas e fedorentas. O cabelo, uma massa opaca e repugnante, ia-lhe até os ombros, sem corte, sem cor e sem brilho. Como eu já disse, aparentava ter cinqüenta anos, mas na verdade, tinha apenas trinta e cinco. 

Costumava abrigar-se nos jardins dos fundos da Catedral, onde as pessoas raramente iam, a não ser `a noite, quando os casais de classe média-baixa, as prostitutas e os travestis iam procurar por alguma moita sombria que lhes servisse de motel. O Louco fingia nada ver. Nem se sentia excitado, pois há muitos anos não pensava em sexo, e seu próprio membro só era tocado quando precisava satisfazer suas necessidades fisiológicas. 

Se era noite de lua, ele preferia dormir no banco de pedra, que forrava com alguns jornais ou panos sujos, e ficava olhando o céu até que se sentia parte da constelação, e navegando no espaço sideral, adormecia. Quando chovia, uma pequena gruta de mais ou menos metro-e-meio de altura e dois de comprimento, onde ficava a imagem de Nossa Senhora ( ele nunca soube qual Nossa Senhora era aquela) lhe servia de cama. Acomodava-se como podia sob o pequeno altar, tomando cuidado para não causar nenhum dano ( não por devoção, mas por não querer ser enxotado de lá). Mal clareava o dia, ele pegava sua tralha e saía dali antes que o padre abrisse a igreja. Já estava neste arranjo há mais de um ano, e nunca ninguém o perturbara. Pelo contrário, durante as comemorações dos dias santos o padre tornava-se tão caridoso que até lhe servia um prato de sopa ou dois. 

Assim navegava em sua existência: como um rato de porão. E nem almejava ser nada mais do que aquilo. Não tinha memória. Não sabia seu nome, ou de onde tinha vindo, ou se alguém em algum lugar talvez chorasse por ele. Era completamente só, e como não tinha memória, este fato não o incomodava realmente, pois não sabia o que era ter companhia. Alguns mendigos tentaram aproximar-se dele, mas depois de ter tido sua garrafa roubada mais de uma vez, ele aprendeu a desencorajar qualquer tentativa de aproximação; soltava um grunhido profundo, quase pré-histórico, e quem quer que fosse, afastava-se dele imediatamente. 

Talvez por este motivo ficara sendo conhecido pela alcunha de “O Louco da Praça”. 

Num dia de sol, enquanto estava sentado em seu banco de pedra olhando para o nada, percebeu que uma mulher se aproximava dele. Pigarreou, pronto a emitir seu grunhido gutural, mas ao vê-la de perto, o grunhido sufocou-se. O sol por trás dela, formava uma aura de luz à volta de sua cabeça. Seu hábito parecia-se com aquele da santa da gruta, com um véu cobrindo-lhe a cabeça tão completamente que nenhum fio de cabelo ficava de fora. Ele esfregou os olhos com ambas as mãos, pensando tratar-se de uma alucinação. E o cheiro dela... era o cheiro de maçãs frescas, um cheiro que quase trazia à sua memória alguma lembrança enterrada que ele não conseguia atinar. Parecia que a qualquer momento suas lembranças começariam a jorrar para fora de sua cabeça, enquanto uma dor seca percorria cada parte do seu cérebro.Mas nada aconteceu.

Bem, após hesitar um pouco, a mulher esticou o braço e colocou-lhe uma maçã grande, bem vermelha e brilhante diante do nariz. Como ele não fizesse menção de pegar a fruta, ela sacudiu-a levemente, e sorriu. Aquele sorriso despejou-se diante dele como um rio de água fresca diante de alguém a morrer de sede. Ele pegou a maçã, levou-a às suas narinas e aspirou-lhe o cheiro, esfregando-a pelo rosto e pescoço, depois levando-a à boca e desferindo-lhe uma suculenta dentada. O sumo escorreu-lhe pelo canto da boca, e ele lentamente espalhou-o pelo rosto com os dedos. Queria ter aquele cheiro. Nisso, a mulher sorriu-lhe novamente, virou as costas e se foi. Ele ficou ali, saboreando sua maçã até o fim, e de repente a maçã era a mulher, a mesma carne branca, o mesmo cheiro suave porém penetrante, e antes que ele percebesse, seu órgão sexual tornou-se vivo como um vulcão extinto que, após mil anos , entrasse novamente em atividade. Ele dirigiu-se para trás de uma moita e desajeitadamente fez o que pôde para aplacar a fúria de seu vulcão.




A vida passou a ter um significado para ele depois aquele dia. A cachaça tinha mais sabor, e ao invés de entorpecer-lhe os sentidos, parecia trazer de volta o calor do vulcão que havia estado extinto dentro dele. A santa dentro da gruta fazia com que ele se lembrasse da mulher, a única lembrança que ele finalmente tinha. Mas desejava que ela pulasse do passado de volta para ele. Os dias e as noites sucediam-se lentamente, e ela não voltava. A doce lembrança começava a tornar-se levemente amarga e dolorida. 

Começou a sentir-se melancólico nos dias chuvosos. Ficava sentado dentro da gruta, olhando a goteira que pingava no chão, e o som da pequena enxurrada que descia pelo meio-fio parecia o som de milhares de pessoas que choravam. Muitas vezes, sua memória tinha quase explodido de volta à sua mente, e nesses momentos ele sentia uma forte pressão dentro do cérebro, mas nada vinha à tona. A mulher passou a ser sua obsessão. Queria que ela fosse o receptáculo da sua lava vulcânica. Sentia frustração a cada vez que via seu prazer a transbordar-se sobre as folhas dos arbustos.

Um dia, algumas crianças apareceram para brincar no jardim da catedral. Ele acordou com seus gritos e correrias, e como estivesse mais melancólico naquele dia em especial, puxou de lá do fundo de sua alma um uivo pré-histórico que fez com que as crianças saíssem em debandada, uma delas esquecendo uma prancheta com um caderno e um estojo de lápis e canetas. O Louco abriu o caderno e viu que conseguia ler o que estava escrito ali. Achou estranho. Notou que havia muitas folhas brancas, e ficou algum tempo a folhear o caderno, as folhas brancas soltando um cheiro de papel e chiclete de menta ao serem viradas. Quase sem pensar – aliás, ele nunca pensava muito – pegou um lápis e começou a desenhar. Pouco a pouco , foram surgindo formas e mais formas da ponta de seus dedos: lugares, pessoas, objetos. Ele não sabia seus nomes, mas as imagens jorravam aos borbotões, e ele ficou o dia todo desenhando-as, até que a escuridão da noite tornou impossível que ele continuasse. 

Adormeceu com o caderno e o lápis sobre o colo. 

Na manhã seguinte, vieram as palavras. Elas simplesmente surgiam em sua mente, alinhando-se no papel de um modo quase automático, rimando entre si, ritmadas, profusas, através de uma caligrafia longa e simétrica. Era como se ele estivesse psicografando a si mesmo, pois percebeu que sua vida, de algum modo, estava contida naquelas palavras e naqueles desenhos. Faltava um fio, um elo de ligação para que finalmente se lembrasse de tudo.

À noite, veio a dúvida: haveria alguma coisa em sua vida que valesse à pena ser lembrada? Se sua memória o tinha deixado, não seria melhor que tudo continuasse como estava? Porque toda vez que alguma coisa ameaçava vir à tona, ele sentia aquela dor enorme... aquela angústia...

Mesmo a lembrança da mulher e da maçã, que tinham sido a única coisa boa que lhe acontecera da qual podia se lembrar, agora causava-lhe apenas dor e sofrimento.

Por isso, quando a mulher finalmente reapareceu com sua maçã, encontrou apenas um caderno sobre o banco de pedra, cheio de imagens, cheio de palavras. 


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