sexta-feira, 3 de maio de 2013

Flores Secas - Parte V






Ele passa voando pelos telhados da rua onde morava. Vê as pessoas como formiguinhas, e sente que está bem perto das nuvens. Não tem ideia do que está lhe acontecendo, mas sente-se livre e verdadeiramente feliz pela primeira vez em sua curta vida. 

Ao mesmo tempo em que voa livremente, sentindo a brisa fresca que parece passar através dele, ele ouve vozes e um choro triste de homem. Mas não fica muito tempo ligado naqueles sons, pois começa a pensar em o que seu amigo Plínio diria se o visse naquela situação. Imediatamente, sente-se puxar para dentro de um vácuo – sente um pouco de medo – mas logo tranquiliza-se ao perceber que está diante de seu amigo Plínio, que nesse momento assiste a uma aula em alguma escola estranha para ele. Tenta chamar a atenção de seu amigo sem que a professora perceba, sussurrando em seu ouvido, mas Plínio parece ignorar sua existência. Fica parado diante dele fazendo caretas , mas o amigo não o enxerga. Ao contrário, copia algo do quadro negro que se encontra logo atrás de Diogo. Então, o menino compreende que Plínio está enxergando através dele.

Realmente não entende sua situação. Tenta tocar no amigo, mas é impossível. 

Começa a ficar com muito medo. 




Deseja estar em sua casa novamente, o que se dá em um segundo. Então vê Guiomar em seu quarto, parada num canto da parede, mãos estendidas ao longo do corpo, olhando distraída para uma figura coberta com um lençol na cama. Ajoelhado diante desta figura, segurando-lhe uma das mãos, está Amaro, seu pai. Ele chora. O doutor coloca a mão sobre seu ombro, dizendo-lhe o quanto lamenta, e o quanto tinha feito tudo o que podia.
Então Diogo olha para a figura cinzenta e magra, frágil e sem vida sobre a cama: vê a si próprio. Imediatamente, compreende que não está mais naquele corpo. Mas como?! Seria possível voltar para ele? Ele tenta arduamente, mas todas as vezes que se joga sobre o corpo, ele passa através dele e enxerga seus chinelos debaixo da cama. Diogo sente-se angustiado. Quando está para tentar mais uma vez, sente-se puxado por uma mão firme, mas delicada. 
Eram duas pessoas, um casal idoso. Olha à sua volta e percebe que não está mais em seu quarto, mas em uma casinha linda, como uma das casinhas da “sua” vila. As paredes são pintadas de um rosa-pálido, e sentada à mesa da cozinha, está uma menininha muito bonita. Ela se parece com sua mãe, a mulher que Diogo tinha visto no quarto proibido.Ela brinca com algumas margaridas, tentando arrumá-las em um vaso. 
Quando ela o vê, corre para abraçá-lo.
Diogo fica conhecendo seus avós e sua irmã. Mas eles lhe dizem que ainda falta algum tempo para que sua mãe se junte a eles. Fica sabendo que também tem outros avós, e que um dia, eles viriam visitá-lo. Ele caminha até a porta de mãos dadas com sua irmã Lucinda. Lá fora, está uma linda tarde. 
                                                          
Passaram-se vários meses desde que Diogo morrera. Mais uma vez, Amaro tinha vivido num filme de terror. Passava as tardes lendo e relendo o diário de Margarida, tentando entender como ele poderia ter existido durante todo aquele tempo sem que ele se desse conta. 
Ficara sabendo de coisas sobre a vida de Margarida que ele não poderia sequer ter sonhado. Descobriu o quanto sua esposa tinha sido uma mulher sofrida e perturbada, fortemente influenciada pela personalidade de seu irmão de criação.
Amaro pensava em Diogo, no quanto tinha errado em relação a ele, fazendo-o pagar por sua própria dor, pela morte de todos, pela sua desconfiança e vergonha. E o menino o pagara injustamente. Fora ignorado, tratado com rispidez e injustiça. 
Compreendia agora o que ia pela alma de sua mulher,cujo irmão havia planejado o assassinato dos próprios pais. Ela nunca conseguira reunir provas suficientes para incriminá-lo, e mesmo que o tivesse conseguido, ele tinha fugido logo após o funeral dos pais.
Mas ela não o traíra, pelo menos, no que diz respeito a ter um amante. Aquele homem que Amaro havia encontrado agonizando no tapete de sua sala de estar era seu cunhado, Fernando, irmão de Margarida. 
Na casa, Guiomar continuava fazendo seu serviço. Mantinha tudo impecavelmente limpo, cozinhava – apenas para si mesma, pois as refeições servidas a Amaro retornavam para a cozinha quase que intocadas. Aliás, ela percebia que seu patrão emagrecia a olhos vistos. Estava obcecado por um caderno que ele carregava consigo o tempo todo, lendo e relendo, e depois sentava-se durante horas naquela poltrona que ficava bem no meio do quarto vazio, e de costas para a porta, - Guiomar pensava – ficava olhando o vazio. Às vezes escurecia, e quando ela ia olhar novamente, percebia – embora não pudesse vê-lo, pois a poltrona tinha o encosto bem alto – que ele ainda se encontrava sentado na semi-escuridão. Ela pensou se não deveria chamar alguém . Não por preocupação, mas por desencargo de consciência. Afinal, se algo acontecesse a ele, não queria que os outros dissessem que fora por sua culpa, que não fizera nada ao vê-lo naquela situação. 
Mas tinha um certo receio por si mesma e sua posição naquela casa. Sabia que permanecia ali todos aqueles anos porque era discreta, jamais fazia perguntas ou se entrometia na vida do patrão. Se ele a despedisse, para onde iria?
Mas, e se ele morresse, para onde iria?



Ele quase não comia. Não ia para o trabalho. Não atendia o telefone, nem aceitava receber visitas . Pedia que Guiomar as despachasse. Ela achava que ele já não tomava banho há alguns dias, e nem se barbeava mais. Tornara-se um homem feio, de olhar perdido, andar hesitante. Muito magro, suas roupas dançavam em volta do corpo. Amaro era o retrato da dor e da decadência.
Uma noite, enquanto ouvia a novela no rádio de seu quarto – bem baixinho, pois Amaro não admitia qualquer ruído na casa – ela ouviu um baque surdo. Vinha do andar de cima. Contrariada, ela se levantou de sua cama , onde já estava pronta para dormir, e foi verificar o que tinha ocorrido.Mal acabara de subir as escadas quando deparou com o vulto de seu patrão, caído no chão.Apressou-se e tocou-lhe a veia jugular, que ainda pulsava fracamente. 
Levou as mãos à cabeça, num gesto de impotência e impaciência, e telefonou para o médico da família.
Em alguns instantes a ambulância levava Amaro para uma longa estadia em uma clínica. O diagnóstico, os médicos disseram a Guiomar, era alto nível de estresse e depressão, acompanhado de desnutrição e exaustão.
Como Amaro não tivesse parentes próximos na cidade, e como Guiomar ignorasse completamente se ele os teria em alguma outra parte do país, os amigos do escritório de advocacia acharam melhor que ela continuasse na casa, tomando conta de tudo até que ele deixasse a clínica e pudesse retomar seu lugar. Providenciaram que seu salário continuasse sendo pago religiosamente pelo escritório.
Mas ele jamais recuperou-se. Parecia totalmente ausente do mundo, e apenas balançava-se para a frente e para trás. Comia, quando o alimentavam. Se guiado por algum enfermeiro, dava alguns passos pelo jardim de manhã, mas parecia não perceber nada que acontecia à sua volta. Se deixado sozinho, permanecia onde estava, os olhos sempre perdidos no vazio.
Guiomar fora vê-lo algumas vezes, mas como ele não a reconheceu, desistiu após a terceira ou quarta tentativa. 




Após quase dois anos, a situação não mudara. E Guiomar continuou ocupando seu quartinho nos fundos da casa, apesar da mesma não ser mais tão limpa quanto antes. Ela agora ouvia seu rádio a todo o volume, cantarolava junto com suas canções preferidas, atrevera-se a colocar cortinas nas janelas de seu quartinho e até mesmo recuperara aos poucos o jardim, pois não tinha quase nada com o que se ocupar.
Com suas mãos desajeitadas e calosas, trouxera de volta as margaridas. Achara um tesourão e um cortador de grama enferrujado nos fundos da garagem, e pôs-se a podar arbustos e árvores ressequidas, cortou a grama onde ela ainda existia, afofando a terra para que ela se espalhasse onde o chão estava nu, esfregou a velha fonte com um escovão e uma boa dose de sabão até que ela voltasse à sua brancura original, enfim, fez o melhor que pôde. O jardim pareceu agradecê-la; em alguns meses, as margaridas encantavam novamente quem passasse na rua e olhasse através das grades do jardim. A grama começou a brotar, e logo cobriu todas as áreas falhadas. Novamente podiam ser vistas algumas tangerinas, pitangas e pêssegos, que timidamente começavam a ter coragem de sair. 
Um dia, ela surpreendeu-se com alguns galhinhos secos de onde começavam a brotar umas plantinhas indecifráveis. Passou a observar todos os dias, e logo descobriu que se tratavam de roseiras. E elas cresceram, floriram, encheram de vida e perfume aquele jardim outrora tão abandonado.
Os vizinhos passavam e sorriam para Guiomar, comentando o quanto ela tinha feito um verdadeiro milagre naquele jardim. Mas quando passavam, comentavam maldosamente uns com os outros que “ela já se estava achando a dona da casa.”



E assim, pela primeira vez na vida, Guiomar passou a dedicar-se a algo além dela mesma, por vontade própria, e não porque alguém a ordenara ou a estava pagando por isso. Percebeu que gostava de afundar as mãos na terra fofa e trazer feixes de capim entre seus dedos; gostava do cheiro da terra, e dava-lhe imenso prazer ver o quanto as plantas reagiam bem aos seus cuidados.
Durante a noite, podia ouvir seu rádio no volume que lhe aprouvesse, ou assistir ao aparelho de TV que comprara com parte de suas economias. Ou passava seu tempo lendo o diário de Margarida. Mas não entendia muito bem. “essa gente é meio-louca”, pensava. “Ricos, bonitos, cheios de vida. Mesmo assim, acabam mal.” E dava graças à Deus por não ter conhecido sua família, pois vivia muito bem sozinha, sem se meter em encrencas.
Mas ela notou uma coisa estranha naquele caderno. Bem junto do miolo, percebeu algumas páginas que faltavam.Tinham sido cuidadosamente cortadas com uma tesoura. Também notou que sobre os restos de algumas destas páginas tinham sido coladas outras , como que para substituir as que faltavam. Mas por que? Será que Amaro não percebera nada daquilo? Encolheu os ombros.
Mas a curiosidade de Guiomar tornava-se cada vez maior. Se as tais páginas ainda existissem, e não tivessem sido destruídas, deveriam estar ainda em algum lugar daquele casarão.
Como tinha muito tempo disponível e ninguém para fiscalizá-la, resolveu procurá-las.
No primeiro dia, vasculhou dentro do quarto proibido. Sentira um calafrio percorrer-lhe a espinha dorsal ao abrir aquela porta pela primeira vez em sua vida. Parecia-lhe que algo se escondia entre as sombras , junto as cortinas. Mas Guiomar não era mulher de se deixar impressionar, e caminhou rapidamente até a janela com seus passos duros e pesados, escancarando-as. A luz do sol matinal invadiu tudo, formando um facho ao incidir sobre a poeira que saía pela janela. Uma atmosfera quase surreal.
Fascinada, ela olhou em volta. Sobre a cômoda, havia vários frascos de perfume, cada qual mais lindo e exótico, embora cobertos de poeira. Também havia uma caixa grande, de madrepérolas, que deixou-a totalmente encantada. Ao abri-la, uma musiquinha suave começou a tocar, e dentro dela, Guiomar achou uma fileira de pérolas, alguns anéis de pedrarias, alguns braceletes e um lindo broche de ametistas.



Ao abrir as gavetas, deparou com langeries finíssimas, lenços e echarpes de seda pura, cada qual mais lindo e de várias cores, todas muito suaves. Havia blusas rendadas no guarda-roupas, tão leves  que esvoaçavam ao serem tocadas pelo vento que entrava pela janela. No fundo do armário, casacos de pele, de pura lã e até mesmo de pelica macia.
Os vestidos, sapatos, jóias, tudo enfim, embora antiquados, deixavam claros o bom gosto e o alto poder aquisitivo de quem os vestira. 
 A cama estava coberta com um edredom mofado de cetim cor-de-rosa pálido, e em ambas as laterais havia tapetinhos de pelo de carneiro num rosa mais intenso. Guiomar pensou que era um desperdício deixar aquelas coisas todas se estragando daquele jeito. Imediatamente pensou em fazer uma arrumação no quarto. As paredes estavam cobertas de bolor, mas ainda deixavam ver as cores creme e rosa que antes as tingiram.
Ela quase se esquecera do que realmente a levara a abrir aquela porta, tão encantada estava diante de toda aquela beleza. Pois Guiomar não estava acostumada à beleza.


Mas, apesar de ter vasculhado o quarto cuidadosamente , olhando até mesmo debaixo do colchão, apalpando-o para tentar sentir alguma coisa escondida nele, ela não achou nenhum traço das páginas do diário de Margarida. Mas achou outra coisa: um álbum de fotografias sob o travesseiro.
Ela sentou-se na cama e começou a olhar as fotografias do álbum, e pensou que jamais tinha visto uma mulher tão linda como Margarida. Quase não reconheceu seu patrão naquelas fotos, pois ele aparecia bem mais jovem e extremamente bonito. Parecia um galã de cinema, ela pensou. E as crianças... tinha-se a impressão de que eram como os anjos que ela vira pintados nos tetos das igrejas , só que muito mais bonitos.
Ao ver e rever aquelas fotos, Guiomar se deu conta de que nunca vivera, realmente. Em sua cabeça, imaginava-se no lugar de Margarida naquelas fotos. Se ao menos ela tivesse nascido com um pouco daquela beleza... talvez sua vida tivesse sido diferente. E ela não estragaria tudo, como aqueles ricaços tinham feito. Imaginou-se sendo mãe daquelas lindas crianças, vestindo aquelas roupas, usando aqueles perfumes e maquiagens. Se seus cabelos tivessem aquela cor dourada... e caíssem em cascatas de cachos sobre seus ombros, como os de Margarida!



Começou a criar cenas dela mesma sendo conduzida pela mão por aquele lindo cavalheiro que sorria nas fotos. Eles atravessariam salões e seriam notados por todas as pessoas presentes com olhares de admiração e inveja; jornais e revistas exibiriam suas fotos em colunas sociais, falando sobre o quanto eram belos, ricos e felizes; sua casa seria visitada pelas mais ilustres pessoas, e dariam festas inesquecíveis e incomparáveis.
Mas Guiomar foi subitamente despertada de seu sonho por um vidro de perfume que tombou sobre a cômoda. 
A tampa soltou-se e algumas gotas foram derramadas, exalando uma fragrância exótica, sedutora e, ao mesmo tempo, suave.
Ela ficou intrigada porque o vidro tombara sozinho, mas Guiomar não tinha medo de nada. Apenas voltou a tampar o frasco e recolheu com os dedos o perfume que se derramara, espalhando-o sobre a pele do antebraço. Aspirou bem forte: como é que poderia existir um perfume tão bom neste mundo? Deveria custar uma fortuna!



Na semana seguinte, Guiomar passou a maior parte do tempo esfregando chão, paredes, tapetes; conseguiu recuperar uma pouco do rosa e creme das cores da parede; lavou cuidadosamente , por fora, cada vidrinho de perfume e voltou a arrumá-los sobre a cômoda; arejou roupas, edredons, sapatos; lavou e esfregou tudo até que toda a poeira e bolor tivessem sido removidos.
E então resolveu mudar-se para aquele quarto. Afinal, quem iria reclamar? Amaro nem sequer sabia quem ele próprio seria. Provavelmente, nunca voltaria para casa. E ela poderia usufruir de todas aquelas coisas: roupões aveludados e chinelos de pelo delicados e finos, perfumes, vestidos, lenços de seda, roupas de cama de cetim macio – que ela lavara cuidadosamente – enfim, tudo o que estava naquele quarto. Carregou seu aparelho de TV e instalou-o sobre uma mesinha que ficava oposta à cama, e passava suas noites assistindo a seus programas favoritos e desfrutando de todo aquele conforto e beleza. 
Jamais tinha sido tão feliz!
Às vezes tinha sonhos em que a moça das fotos – Margarida – a olhava furiosa, mandando-lhe que saísse de seu quarto e deixasse suas coisas em paz. Mas Guiomar não tinha medo nem de seus pesadelos. 
Acabou tingindo os cabelos de louro dourado, desmanchando seu eterno coque e cortando-os na altura dos ombros. Eles formaram cachos naturais. Era naturalmente esbelta, e as roupas de Margarida serviram-lhe como uma luva. Em pouco tempo, começou a usar alguns de seus vestidos para ir às compras ou à igreja. Também procurou suavizar suas passadas antes pesadas e desajeitadas, tentando andar da maneira como ela imaginava que alguém tão elegante quanto Margarida andaria. As pessoas notaram sua mudança radical, e faziam comentários entre si. Mas ela não se importava. Todos os meses, um dos advogados do escritório de Amaro mandava-lhe o cheque. Isso sim era o que importava.



Isso durou algum tempo; meses. Até que um dia, alguém bateu à porta.
Guiomar estava diante de uma beldade em torno de seus dezoito ou dezenove anos, com cabelos muito negros ,lábios cheios, olhos de um azul-escuro profundo e longas sobrancelhas arqueadas.
Apresentou-se como Cândida – a filha de Fernando, irmão de Margarida. Dizia-se a única herdeira viva e mentalmente sã da família, portanto, aquela casa e tudo o que ela continha, lhe pertencia. Para provar o que dizia, trouxera consigo alguns documentos, cujas cópias já haviam sido encaminhadas aos advogados de Amaro. Ela não perdera tempo, e já tinha documentos médicos declarando-o mentalmente incapacitado, tornando-se assim, a única administradora de todos os bens.
Guiomar teve de recolher-se novamente ao seu quartinho. Cheia de ressentimentos, é claro. A moça era realmente quem dizia ser.
Cândida tratava-a bem, com delicada frieza e uma certa distância. Até deixou que ela ficasse com todos os pertences de Margarida, incluindo vestidos, cobertas, sapatos, jóias e perfumes. Achava-os antiquados demais, e não lhe agradava a ideia de ficar com os pertences pessoais daquela que destruíra a vida de seus pais e a sua própria. Guiomar foi conformando-se aos poucos com seu destino, e passou a servir-lhe, como sempre servira a todos durante toda a sua vida: com eficiência, discrição e indiferença.
Cândida promoveu-a à governanta e contratou mais alguns empregados para a casa: uma arrumadeira, um motorista, uma cozinheira e um jardineiro. Agora, Guiomar sentia-se hierarquicamente superior, e não precisava trabalhar arduamente. Apenas inspecionava o serviço dos demais empregados, fazia a lista de compras, organizava as tarefas, etc.
Após contratar novos empregados, a primeira providência de Cândida foi ordenar uma reforma completa no casarão. Contratou empreiteiras, paisagistas, decoradores.



Um ano depois, a linda mansão da Rua Amália voltava à velha forma. Cândida tinha muitos amigos, e dava festas que adentravam as madrugadas. Não eram nada parecidas com as festas que aquela casa já tinha visto. Havia bandos de jovens, que bebiam, dançavam e depois acabavam adormecendo pelos cômodos da casa, alguns nus, e Guiomar fazia o sinal da cruz quando entrava em algum cômodo de manhãzinha e deparava com eles, tão emaranhados uns nos outros que às vezes ficava difícil contar quantos eram.
Cândida estava à procura do dinheiro de Margarida- aquele, que ela herdara dos pais, roubando a parte que tinha sido de seu pai, Fernando, e depositando-a em algum banco. Ela dissera a ele que tinha doado todo o dinheiro para caridade, mas Fernando nunca acreditara naquela versão. Cândida era quase uma criança, quando finalmente, seu pai conseguira encontrar Margarida, após anos de procura, e após anos de viver escondido, sendo acusado de um crime que não cometera.
Tivera que viver longe da mulher e da filha. Viam-se raramente, mas seus encontros eram sempre intensos. 
Nas noites que passava sozinha com a mãe, Cristina, esta contava-lhe a verdadeira versão de toda aquela sórdida estória:
Fernando fora adotado pela família de Margarida quando ele tinha cinco anos de idade. O casal vinha tentando ter filhos sem sucesso, então resolveram adotar uma criança. Sete anos depois, nasceu Margarida.
Ele sempre fora tratado como se fosse um filho legítimo, e sentia-se seguro, amado e incentivado por seus pais. Adorava automóveis, e assim que teve idade para dirigir, foi presenteado com um lindo carro esporte. Descobriu sua paixão por mecânica de automóveis, que adotou como um hobby.
 Mas Margarida , conforme crescia, revelava uma personalidade um tanto coquete e voluntariosa. Tudo o que pedia era-lhe concedido. Cada desejo seu soava como uma ordem. Os pais eram muito ricos, por isso não havia nenhum problema em conceder aos filhos tudo o que desejassem. Mas Fernando sempre fora mais ajuizado, como diziam os pais, e por isso não tinham nenhum tipo de preocupação com ele.



Margarida tornava-se mais linda a cada dia. Na adolescência, porém, envolveu-se com amigos não muito confiáveis , e acabou namorando um rapaz que os pais não aprovavam. Fizeram de tudo para afastá-la dele: mandaram-na para uma viagem ao redor do mundo, mas mais tarde Fernando descobriu que ela passara todo o tempo de sua jornada com o tal rapaz. Prometeu segredo à irmã, desde que ela parasse de ver o tal rapaz, o que ela concordou..
Mas Margarida engravidou. Ela tinha dezenove anos de idade na época, e foi uma grande decepção para toda a família, inclusive para Fernando. Ela se recusava a confessar a verdade sobre o pai da criança, e Fernando decidiu pressioná-la a fazê-lo. Ele tentou conversar com ela, e os dois tiveram uma briga. Fernando saiu de casa batendo a porta, depois que os pais interferiram na discussão, ao ouvirem os gritos de Margarida.
Então, sendo pressionada a dizer quem era o pai da criança, ela teve uma terrível ideia: disse aos pais, aos prantos, que tinha sido abusada pelo irmão, e que ele era o pai da criança.
Eles ficaram furiosos, e naquela mesma noite, expulsaram Fernando de casa. 
Margarida acabou perdendo a criança após dois meses de gravidez. Estava desesperada , pois assim que soubera que ela estava grávida, seu namorado a tinha abandonado. Agora, que tinha perdido a criança, ele voltara a procurar por ela, que passou a recebê-lo em seu quarto clandestinamente quase todas as noites, até que um dia, seu pai os surpreendeu. Foi uma grande confusão naquela casa. O rapaz foi imediatamente expulso, e os pais de Margarida começaram a duvidar que Fernando tivesse mesmo feito o que Margarida dissera.
Após muita pressão, lágrimas e brigas, ela acabou confessando que tinha mentido a respeito do irmão.



Margarida fazia todas essas coisas sem pensar, nem por um momento, nas pessoas que estaria prejudicando. Só tinha olhos para os seus próprios interesses, e era tão polida, encantadora e doce, que convencia qualquer um de qualquer coisa. Somente aqueles que conviviam diretamente com ela conheciam sua verdadeira personalidade, mas a família recusava-se a admitir a verdade sobre ela, preferindo acreditar que não passava de uma mocinha mimada e um pouco rebelde, mas muito encantadora. Por isso, admitir a verdade sobre Margarida custara-lhes muito sofrimento.
Imediatamente, os pais desculparam-se com Fernando e o convidaram a viver novamente com eles, mas ele estava muito magoado com a irmã e preferiu continuar morando sozinho, em um pequeno apartamento que alugara para si. Porém, aceitou continuar ajudando o pai nos negócios da família.
Meses mais tarde, ele conheceu Cristina, e casaram-se um ano e meio depois.
Durante este período, Margarida estava sendo mantida sob vigilância constante. Só podia sair de casa acompanhada da mãe ou pelo motorista, que deveria segui-la onde quer que fosse. Não tinha mais dinheiro disponível em sua conta bancária para gastar como quisesse, mas apenas uma pequena quantia para as despesas pessoais. Caso precisasse de alguma coisa mais, deveria conversar com sua mãe e , se esta achasse válido, ambas sairiam juntas para comprar o que ela necessitava. Estava proibida de atender telefonemas sem a presença da mãe, e apenas podia falar ao telefone se a mãe a visse discar o número. Quanto às amizades, não podia frequentar a casa de ninguém, mas tinha autorização para receber amigos em casa, desde que um dos pais estivesse lá.



Ela se sentia oprimida. Aos poucos, uma pequena fagulha de ódio instalou-se dentro dela. Mas ela disfarçava tudo muito bem, sendo totalmente doce, submissa e encantadora como sempre. Obedecia aos pais , dizia-se arrependida do que tinha feito e mostrava-se disposta a pedir perdão ao irmão, mas ele não queria nem sequer vê-la. É claro que , fora da família, ninguém jamais ficou sabendo do acontecido, e para todos os fins, eram uma família unida, feliz e impecável.
Quando o dia do casamento de Fernando chegou, ela vestiu um lindo traje cor-de-rosa, que emprestava-lhe um ar de inocência e pureza, e decidiu que compareceria, apesar de tudo. O irmão só deu por conta de sua presença após a cerimônia de casamento, quando, banhada em lágrimas, ela foi cumprimentá-lo.
Desarmado pelo encanto da irmã, Fernando abraçou-a, sem nada dizer. Mas ele não sabia que, sob as asas daquele anjo, existia uma arma que ela estava planejando usar dentro em breve contra ele.
Depois de sua viagem de lua-de-mel, Fernando e sua jovem esposa foram convidado para um almoço na casa dos pais.
Margarida mostrou-se muito feliz em revê-los, e logo estava de mãos dadas com Cristina, a cunhada, mostrando a casa, ambas tagarelando sobre a viagem, como se já fossem íntimas. Cristina ficou, como qualquer um, encantada com a linda moça que fazia de tudo para que ela se sentisse à vontade. Ao final do dia, ambas despediram-se com abraços e promessas de voltarem a se ver em breve. Fernando parecia satisfeito, pois queria acreditar na mudança da irmã.
Naquela mesma noite, quando Margarida estava sentada ao espelho escovando seus cabelos dourados antes de dormir, seus pais entraram no quarto e declararam que estavam muito felizes com seu comportamento em relação a Fernando e sua esposa. Ela disse-lhes, comovida, que também estava muito feliz por eles, mas que lamentava muito que eles não pudessem mais confiar nela, mas que ela os compreendia.


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