quarta-feira, 28 de agosto de 2019

INOCÊNCIA - PARTE III, CAPÍTULO I





PARTE III, CAPÍTULO I – RESGATES

Eu ainda fingia olhar o cardápio quando Marcelo se levantou e veio até a minha mesa, de mãos dadas com a sua fada loira. Coloquei o cardápio sobre a mesa e olhei para o casal, forçando um sorriso, e esperei que ele se manifestasse. Marcelo pigarreou:

-Há quanto tempo, Cristina! Jamais pensei que a veria de novo por aqui!

Acenei levemente com a cabeça, olhando de um para o outro e estendendo minha mão para ele, que a pegou e apertou levemente, dizendo:

-Deixe-me apresentar-lhe minha esposa Cândida.  Cândida, esta é Cristina. Lembra, eu lhe falei sobre ela.

Cândida sorriu forçadamente para mim, respondendo com frieza:

-Sim, eu sei tudo sobre você, Cristina. Como vai?

Respondi com frieza:

-Bem obrigada.

Ficamos os três nos olhando, e notei o quanto Marcelo estava embaraçado enquanto Cândida nos lançava chispas de ódio com o olhar. Achei que nada mais havia a dizer. Não tentei ser sociável. Marcelo indagou o que eu estava fazendo na cidade, e respondi que estava ali para ver Yara, e que tínhamos um encontro marcado. Não entrei em detalhes sobre a minha vida pessoal. O desconforto visível de Cândida e o olhar úmido de Marcelo, cujos olhos plantados em uma face visivelmente ruborizada quase me comiam, me fizeram perceber que Cândida estava pronta para fazer uma cena de ciúmes, mas que estava tentando controlar-se. Ela olhava de mim para Marcelo, os olhos marejados, a boca entreaberta de indignação. Ele não conseguia disfarçar o quanto eu ainda o deixava louco, mesmo após tantos anos. Ambos tinham peles muito claras e não conseguiam disfarçar o rubor. 

O garçom trouxe minha bebida, anunciando que meu prato estaria pronto em dez minutos. Peguei minha taça de vinho branco, e fazendo menção de brindar, ergui-a diante do meu rosto e olhei para eles. Bebi um pequeno gole, colocando a taça na mesa. Cândida quase puxou Marcelo pelo braço, e ele pareceu acordar de um transe:

-Bem, Cristina... foi... muito bom ver você de novo. Espero que goste da refeição. Se precisar de alguma coisa, eu...

Naquele momento, Cândida desferiu-lhe uma cotovelada. Eu olhava tudo divertida. Ele me acenou um adeusinho, e ambos deixaram o restaurante, ela, pisando duro. Seja lá o que tinham para fazer ali, desistiram. 

Almocei, e mais tarde, passei na cidade para fazer compras. Ao parar em frente a uma vitrine, dei-me conta de minha aparência excelente, e do porquê as pessoas me encaravam e se viravam para me olhar quando eu passava. As coisas em Rio da prata não tinham mudado: as pessoas continuavam curiosas a respeito de todos e de tudo que lhes pareciam diferentes. Comprei um vestido, apenas para passar o tempo enquanto a hora do encontro não chegava. Depois voltei para o hotel, onde encontraria Yara. Ela já estava me aguardando na recepção – eram cerca de quatro horas da tarde. 

Ao me ver, Yara ergueu-se do sofá, e vindo em minha direção, me abraçou sem nada dizer, e nós choramos.

(Continua)





terça-feira, 20 de agosto de 2019

INOCÊNCIA - PARTE II, CAPÍTULO XXX









PARTE II, CAPÍTULO XXX – ANOS DEPOIS...

E assim, começou realmente a minha vida, a vida que eu merecia: eu e Marcelo nos casamos em uma cerimônia discreta alguns meses depois da morte de minha avó, que ocorreu duas semanas após sua hospitalização. A herança foi devidamente partilhada segundo os desejos dela. É claro que nem tudo foram flores, pois houve a oposição de uma sociedade inteira ao nosso casamento, a começar pela família de sua ex-noiva, que escreveu-me uma carta horrível, destilando ódio e despeito, me fazendo lembrar de minhas origens humildes e do quanto eu havia arruinado a vida da moça e estava arruinando a vida de Gustavo. Li a carta sentada na poltrona preferida de minha avó, e depois joguei-a no fogo da lareira. 


Quanto a Jandira, depois que vendemos a fazenda e repartimos os bens, nunca mais soubemos dela. Apenas nos disse que partiria em uma viagem pelo país, a fim de recuperar o tempo que passara enfurnada naquela fazenda. E a parte que recebera certamente seria mais do que suficiente para que esta viagem durasse muitos e muitos anos.

Meu marido e eu procuramos por meus pais a fim de comunica-los sobre a morte de minha avó. Eu não queria participar do encontro, pois ainda estava muito magoada com eles, mas Gustavo, como advogado de minha avó Helena, era responsável pelo testamento. Ele conseguiu me convencer a rever meus pais, dizendo:

-Meu amor, o passado mal resolvido é uma carga muito pesada para se carregar durante uma vida. Mesmo que sua relação com seus pais jamais seja muito boa, é preciso que se reconcilie com eles, e mantenha pelo menos um relacionamento cordial, mesmo que distante. 

Aquelas palavras me fizeram pensar, e eu concordei com ele. 

Nós nos encontramos em um restaurante, pois eu não desejava voltar à casa onde eu crescera e rever aquela família que tanto me magoara. Eu não queria rever Marcelo – soubera que ele estava noivo. Ao me ver, minha mãe derramou lágrimas verdadeiras, e nos abraçamos. Ao saber-me casada com um advogado rico e bem relacionado, meu pai pareceu orgulhar-se um pouco de mim. Rever meus pais foi muito emocionante, mas eu não conseguia me esquecer da maneira como eles tinham me tratado em relação ao meu romance com Marcelo. Não podia entender como eles me trataram como se eu não fosse boa a o suficiente para namorar Marcelo apenas por causa de nossas diferenças sociais.

Eu e Gustavo nos mudamos para Porto Alegre, onde compramos uma linda casa e comecei a fazer um curso de cabeleireira. Afinal, aquele ainda era o meu grande sonho: ter um salão de beleza. Mesmo que eu não precisasse mais trabalhar. 

Anos se acumularam. Abri meu salão em 1981 no centro de Porto alegre. Comecei a ter o meu trabalho reconhecido e cheguei a dar entrevistas para algumas revistas sobre beleza feminina. Eram meados dos anos oitenta. Mamãe me escrevia longas cartas. Contou-me as novidades sobre a família – o noivado de Yara com Duílio, a volta da doença de Sr. Nelson e da grande confusão em que mãe e filha tinham se metido na noite de noivado. Eu gostava muito de Yara, e lamentava que ela estivesse ficando noiva de Duílio, que não passava de um homem bonitão, mulherengo e fanfarrão que enganava a todos.

Eu, como filha da empregada da casa, vira coisas que ninguém mais vira. Uma noite, quando todos estavam reunidos para o final de semana, vi quando ele insinuou-se para D. Aurora, apenas algumas semana após a sua viuvez, e como ela o repeliu. Mas D. Mirtes, fragilizada pela doença de Sr. Nelson, caíra na lábia dele. Não sei se chegaram a se tornar amantes, mas eu vira os dois se beijando uma madrugada no jardim da casa, quando todos dormiam. Até mesmo para mim Duílio se insinuara uma vez! E eu era apenas uma menina naquela época. Achei que Yara precisava saber da verdade antes de casar-se com ele. Mas não foi necessário, visto que ela desmanchou o noivado.

Após anos, telefonei para ela. Yara tinha então vinte e seis anos, e eu, trinta e um. Ela ficou realmente feliz em ouvir a minha voz, e marcamos para nos encontrar dali a alguns dias, já que eu estava de passagem para visitar meus pais. Gustavo ficara em Porto alegre, e eu estava hospedada em um hotel da cidade.

Andar por aquelas ruas novamente me encheu de lembranças. Nada mudara muito. Lá estava o restaurante da família, que eu tinha frequentado por caridade na minha infância algumas vezes. Parecia decaído, mas ainda lhe restava um pouquinho do antigo glamour. Eu estava parada na calçada remoendo minhas lembranças, quando vi Marcelo do outro lado da calçada com uma moça tão branca, mas tão branca, que mais parecia um fantasma. Ela era um tanto exótica: demasiadamente magra, os cabelos lisos e quase brancos, a pele mortalmente branca, e se movia como se fosse uma fada ao lado dele, aproximando-se para falar alguma coisa junto ao seu ouvido. Marcelo continuava sendo um belo homem, mas parecia muito infeliz; não: infeliz não era a palavra certa, e sim, indiferente.

Os dois entraram no restaurante, e mesmo estando do outro lado da rua, senti um rastro de perfume de rosas no ar, que emanava dela. Movida por impulso, atravessei a rua; ainda faltava uma hora para o meu encontro com Yara. Nem sei porque eu entrei no restaurante, mas quando dei por mim, estava sentada em uma das mesas olhando o cardápio.

Olhei em volta, e vi o casal sentado em uma mesa junto ao bar. Eles não conversavam. Apenas olhavam em volta, e ele, consultava o relógio de vez em quando, enquanto ela mantinha as mãos cruzadas sobre a mesa e brincava com o guardanapo de vez em quando. De repente, ele olhou na minha direção. Vi que o rosto dele corou, e sua boca se entreabriu devagar.

Eu tinha plena consciência do impacto que minha presença lhe causava. Estava linda, bem vestida, elegante e muito confiante da minha beleza. Notei que a mulher olhou na direção do olhar de Marcelo, e deu comigo. Eu desviei os olhos, fingindo concentrar-me no cardápio.  Naquele o momento o garçom se aproximou e fiz o meu pedido.

Fim da parte II

(CONTINUA...)




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...