segunda-feira, 29 de abril de 2019

INOCÊNCIA - PARTE I, CAPÍTULO XVI






APAIXONADA

Naquela noite eu não consegui dormir. Ainda com a mão perto da narina, tentando absorver o que restara do perfume de Duílio, eu me toquei várias vezes, e todas as vezes, chamei repetidamente pelo nome dele baixinho. Quando finalmente peguei no sono, o dia já começava a clarear. Acordei por volta das dez da manhã, me sentindo zonza e enjoada. Logo pensei em meu drink batizado com vodka, e aquele pensamento me fez correr até o banheiro e vomitá-lo no vaso sanitário. Imediatamente depois disso, comecei a sentir-me bem. Tomei uma chuveirada, removendo os restos de laquê e maquiagem, e optei por usar um de meus vestidos de mocinha, como minha mãe os chamava. Prendi os cabelos em um coque que me deram um ar mais maduro, e calçando novamente meus sapatos de saltos altos, desci para o café da manhã. Mas para minha decepção, só encontrei meu pai lendo o jornal no sofá da sala, ainda de pijamas.

Perguntei por mamãe e Duílio, e ele me explicou que ele já tinha ido embora, e aproveitara para dar uma carona à mamãe, que precisara ir até a cidade para devolver alguns livros na biblioteca. Meu coração murchou. Meu pai, desviando os olhos do jornal, me olhou dos pés à cabeça: 

-Vai sair, filha?

Sacudi a cabeça, negando, e voltei para o meu quarto, desanimada. Tirei os sapatos, que deixei jogados perto da cama, e em um acesso de raiva, chutei-os para longe. Mas na minha fúria, acabei atingindo em cheio o pé da cama. A dor subiu rapidamente, arrancando-me um berro desesperado. Olhei para os meus pés: os dedos estavam em um ângulo esquisito. Papai entrou no quarto, e ao ver o meu pé, pegou-me no colo e colocou-me no carro, levando-me ao hospital.

Tive que sofrer uma pequena cirurgia para colocar os ossos dos dedos no lugar, e depois ganhei uma bota de gesso. Quando despertei da anestesia, algumas horas mais tarde, já era noite, e mamãe dormia na cadeira ao lado da cama do hospital. Chamei por ela, mas ela estava profundamente adormecida, e acabei desistindo de acordá-la. Por volta das oito da noite, despertei com o ranger da porta do quarto, e mamãe não estava mais ao meu lado. Ao invés dela, deparei com Duílio, que me observava. Ergueu-se da cadeira quando acordei, beijando-me na testa, e explicou-me que mamãe e papai estavam muito cansados por causa da festa, e que ele me faria companhia naquela noite. Naquele instante, eu adorei ter quebrado o pé. Agradeci, dizendo: 

-Obrigada, Duílio.

 Ele me perguntou o que tinha acontecido com o “Tio”, e eu disse que ele ficara naquela pista de dança. Duílio franziu as sobrancelhas, e eu sabia que ele tinha entendido muito bem o que eu quisera dizer.

Ele se debruçou na grade da cama, aproximando o rosto do meu: 

-Você cresceu, - ele disse, me encarando. 

Eu concordei com a cabeça, dizendo: 

-Que bom que você reparou.

 Achei que eu estivesse dando as respostas certas naquela noite, deixando para trás a garotinha desajeitada e trazendo à tona a mulher madura que sabia exatamente o que queria. Ele me olhou longamente, me fazendo derreter:

-Yara, nós nos conhecemos há bastante tempo, não é? Desde que você era uma menininha. Você… se lembra das muitas vezes em que sentou-se em meu colo, ou quando saíamos para passear de mãos dadas e sua mão era tão pequena que a minha, segundo você dizia, ‘engolia’ a sua?  E quando eu a levava para pescar, mas você não tinha coragem de retirar o peixe do anzol, e eu fazia aquilo para você? Lembra-se das vezes em que eu chegava em sua casa e você corria para mostrar-me as bonecas novas que eu ainda não conhecia?

Eu fiquei sem palavras; não sabia aonde ele queria chegar com aquela conversa sobre quando eu era criança. Resolvi ficar calada, deixando que ele concluísse sua fala. Duílio continuou:

-Eu ontem percebi o quanto você cresceu, o quanto está deixando de ser aquela menininha, e eu nunca tinha percebido isso antes. Mas eu vi você crescer… acho que você partilhou coisas da sua vida comigo que nunca partilhou com ninguém.

 Concordei com a cabeça. Sabia que por causa daquilo, Duílio me conhecia até mesmo melhor que meus próprios pais. Ele continuou: 

-Isso tudo faz com que eu me sinta muito grato por ter conhecido você, e por ter sido tão bem recebido em sua família. Você sabe, quando os conheci, estava me recuperando da morte de minha mulher. Antes, também tinha passado por uma perda terrível, e eu contei isso a você. Partilhamos coisas que nos tornaram grandes amigos. Mas eu simplesmente não posso amá-la desse jeito. Não seria certo.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu estava perdendo terreno. Imediatamente, achando-me brilhante, repeti a frase que ouvira de Cristina naquela tarde, quando eu ainda era apenas uma menininha: 

-Às vezes, é preciso derrubar convenções, Duílio.

Ele me encarou, em silêncio. Tentei conservar uma postura forte, enquanto eu derretia por dentro, pronta a jogar-me nos braços dele e beijar sua boca, pois seu rosto estava próximo ao meu: 

-Eu amo você. Descobri isso ontem.

 Os olhos dele brilharam, e ele respirou profundamente. O hálito dele chegou até mim, e cheirava a hortelã e fumo de cachimbo. Másculo. 

-Também amo você, Yara, amo muito.

 E após uma pausa, ele completou: 

- Mas não desse jeito.

Mais uma vez, senti meu coração murchar e encolher. Ele baixou os olhos, deixando expostas suas longas fileiras de cílios negros e maciços. Vi o quanto os olhos dele eram lindos, encimados pelas sobrancelhas grossas e arqueadas. Certa vez, uma das amigas de Berta referira-se a ele como “Um belo exemplar masculino.” Na época, aquilo não fez muito sentido para mim, mas naquele momento, compreendi exatamente o que ela quisera dizer. Entendi que Duílio teria que ser meu marido. Aquilo sim parecia a coisa mais certa a se fazer, mas eu precisaria mostrar a ele o quanto ele me amava, e que estava apaixonado por mim e não sabia ainda. Num impulso, ergui a parte superior do meu corpo, e apoiando meus dois braços em volta do pescoço dele, puxei seu rosto em direção ao meu. Senti meu pé operado latejar com o esforço, mas mesmo sentindo dor, beijei-o. Agarrei seu rosto com força. Eu nunca tinha beijado ninguém antes, mas tentei fazer como nos filmes que assistia na TV, ou como vira Berta beijando Sebastian algumas vezes, e principalmente, tentei usar a minha língua apaixonadamente, como vira Cristina e Marcelo fazendo naquela noite na cozinha.

Duílio tentou soltar as minhas mãos usando as suas, delicadamente. Acho que ele tinha medo de me machucar. Tentou virar o rosto, mas eu o mantive preso, enquanto abria os lábios dele com a força dos meus. Finalmente, ele parou de resistir, e começou a me corresponder. Foi uma das melhores sensações que eu já experimentara na vida!  A felicidade que eu senti naquele exato momento jamais foi superada por nenhum outro acontecimento da minha vida – nem mesmo a chegada do meu filho, anos depois.

Eu havia quebrado as convenções. Eu havia corrido atrás daquilo que eu queria. Eu tivera uma atitude madura e corajosa, e me tornado uma mulher de verdade. Aquele beijo roubado me fez conhecer uma outra Yara, adormecida dentro de mim, e ela jamais poderia voltar a dormir ou a se aquietar novamente. Eu lutara pelo amor de minha vida, e o fizera ceder. Eu conquistara o direito de ser amada pelo homem mais lindo do mundo, o que mais me conhecia, o que sabia me ler por dentro e por fora.

Aquela certeza durou apenas o tempo de um beijo roubado: alguns segundos; mas eu jamais me arrependi daquele ato. Nem mesmo depois de todo o sofrimento que ele me trouxe. Lembrar-me daquele beijo, trazer de volta aquele momento glorioso no qual eu fui forte e agarrei o que eu queria, fez com que eu superasse momentos horríveis pelos quais passei em minha vida. Aquele beijo tem sido a minha referência, a fonte da minha força quando eu me sinto fraca, a lembrança de um momento no qual eu fui corajosa, arrojada, bem-sucedida – afinal, ele me correspondera.

Depois daquele beijo, ele acariciou meus cabelos de leve, e disse: 

-Você é muito jovem, Yara. Vai superar isso.

Dizendo aquilo, sentou-se na cadeira em frente a cama, e cobrindo-se com a manta do hospital, fechou os olhos. Eu acho que eu chorei até dormir. Mas eu estava feliz, estranhamente feliz, e me sentindo vitoriosa. Cristina se orgulharia de mim.

Mas todo ato traz junto a si uma consequência, e depois daquela noite, Duílio passou a me evitar. Quando tinha que ir até a nossa casa, tratar de negócios com papai, os dois se trancavam no escritório e ele ia embora no mesmo dia, recusando-se a passar a noite. Mamãe começou a achar aquelas recusas muito estranhas, e papai logo veio com uma explicação: 

-Duílio jamais comenta comigo sobre sua vida particular, mas talvez ele tenha encontrado uma namorada. Afinal, ele ainda é jovem, e segundo as mulheres, atraente.

Mamãe não respondeu. Estávamos jantando, e notei que ela apenas continuara comendo – deu mais uma ou duas garfadas – e depois descansou os talheres. Dispensou a sobremesa, e foi dormir mais cedo, alegando cansaço.


(CONTINUA...)



segunda-feira, 22 de abril de 2019

INOCÊNCIA - Parte I, Capítulo XV







UM CASAMENTO

No dia do casamento de Berta, a casa estava em polvorosa: havia pessoas decorando os corrimões com cordas entrelaçadas de flores do campo, e o pessoal do buffet andava de lá para cá arrumando tendas no jardim, mesas brancas e cadeiras forradas de organza branca. Havia flores por todos os lados, e graças à Tia Aurora, aquele foi o melhor buffet de casamento que eu já vi na vida, até hoje. Meu pai e Tio Duílio, vestindo seus ternos elegantes, fumavam cachimbos na varanda, as pernas cruzadas, envolvidos em longas conversas, esperando a hora do casamento. Notei que meu pai estava nervoso, mas mantinha o controle, enquanto mamãe gritava ordens às pessoas, os cabelos cheios de rolinhos, ainda usando um robe atoalhado, o rosto coberto de um creme branco pegajoso.

Eu usava meu vestido esvoaçante de dama de honra, juntamente com Cândida, Joana e Clara, uma amiga de Berta. Os vestidos eram iguais: saias rodadas esvoaçantes, de várias camadas, um largo laço de cetim rosa-claro amarrado na parte de trás, ombros nus, meias-calças brancas transparentes e sapatos fechados de salto. Era a primeira vez que eu usaria saltos altos, e estava morrendo de medo de cair. Passara horas ensaiando caminhar com eles, e acho que fiz um bom trabalho, fingindo naturalidade ao caminhar.

O quarto de Berta, onde ela se arrumava, estava cheio de amigas excitadíssimas com a ocasião. Todas elas também disputavam vagas em frente ao espelho do armário, ajeitando vestidos e cabelos, dando os últimos retoques na maquiagem, partilhando perfumes, batons, grampos e fitas. Eu estava feliz por ser uma delas. Berta parecia uma deusa grega, com seu vestido longo de saia justa, ombros nus e grinalda de camélias brancas; um vestido ao estilo anos cinquenta. Nunca a tinha visto tão bonita, e senti vontade de chorar. A costureira dava os últimos retoques, verificando se o vestido não tinha nenhum defeito, e ajeitava o véu em volta da minha irmã.

Foi um dia muito feliz. O casamento, que se deu no jardim, foi simplesmente maravilhoso. Nunca me esquecerei do brilho nos olhos de minha irmã quando ela caminhava para o altar de braços dados com papai, que ostentava orgulho, em direção a Sebastian, que a esperava, os olhos vidrados de emoção e paixão. Mamãe finalmente deixou caírem as lágrimas de felicidade, abraçada à Tia Aurora. Até mesmo Eugênio e Flora concordaram em ir ao casamento, aceitando o convite de Berta, que declarou fazer questão da presença deles. Cândida revirava os olhinhos em direção a Marcelo, murmurando segredinhos em seu ouvido. Ele a olhava e sorria de leve, mas será que apenas eu percebia o que estava acontecendo com ele? Seus olhos estavam tristes, e ele parecia deslocado ali. Cândida, agarrada ao braço dele durante a cerimônia e também durante a festa, não o deixava livre um só momento, seguindo-o a todos os lugares, sempre com aquele sorrisinho doce e meiguinho (que para mim, parecia falso). Ele aceitava a presença dela, dirigindo-se a ela com educação e bons modos, mas eu não sentia ali nenhum amor dele por ela, nenhum traço de paixão. Não havia ali a mesma coisa que eu vira naquela noite na cozinha da casa, entre ele e Cristina; não existia ali a alegria de estar junto de Cândida, como quando ele e Cristina estavam juntos.

Quando a festa estava terminando, depois que minha irmã e Sebastian partiram em sua viagem de lua de mel, os convidados começaram a ir embora, e a festa foi esvaziando. Por volta das sete e trinta da noite, restavam apenas algumas mesas ainda ocupadas, e a orquestra se preparava para tocar as últimas músicas. Mamãe estava sentada à mesa, tomando uma bebida. Eu estava ao lado dela, sentindo-me cansada e desanimada, brincando com as pérolas falsas de minha pulseirinha. De repente, Tio Duílio se aproximou, chamando mamãe para dançar. Surpresa, ela aceitou, e os dois caminharam para o meio da pista vazia. Olhei para os lados, procurando por meu pai num gesto automático, mas ele não estava em lugar nenhum.

Minha constatação: Eu estava com ciúmes. Não sabia de onde vinha aquele sentimento.

E de repente, mais uma constatação: eu estava apaixonada por Tio Duílio. Vê-lo dançando com mamãe, a mão em volta de sua cintura fina, os olhos presos nos olhos dela, me pareceu não somente inadequado, mas atrevido, desrespeitoso e escandaloso. Senti meu rosto esquentar e ficar vermelho. Olhei para as outras mesas para ver a reação das outras pessoas, mas parecia que ninguém estava prestando atenção ao que estava acontecendo naquela pista de dança. Seria apenas minha imaginação? Se Cristina estivesse ali, ela com certeza saberia me dizer! Aquele momento foi apenas um dos muitos durante os quais senti a falta de Cristina.

Finalmente, a música acabou. Os dois voltaram à mesa, sentando-se ao meu lado. Me ouvi perguntar, a voz zangada: 

-Onde está papai?

Mamãe me olhou de olhos arregalados: 

-Foi ao toalete.

 Tio Duílio, que me conhecia como ninguém mais, derramou seu olhar macio sobre mim, e fazendo sinal para a orquestra, que já se preparava para recolher os instrumentos, pediu que tocassem “Moonlight Serenade.” E me arrastou para a pista – tentei resistir, mas ele me puxou delicadamente.

E durante os dois ou três minutos mais longos da minha vida, eu me deixei apaixonar completamente por ele. A sua mão em volta da minha cintura queimava; a outra mão segurava a minha e quase fazia com que ela desaparecesse. Eu tinha medo de me mover e quebrar o feitiço. O perfume dele entrava pelas minhas narinas, fazendo com que partes do meu corpo, que haviam estado adormecidas durante um longo tempo, vibrassem e se aquecessem. O olhar dele penetrava o meu, e eu me sentia como se tivesse desaparecido e me tornado invisível para o resto do mundo, exceto para ele. Naquele momento, eu me esqueci do fato de que ele tinha trinta e sete anos, e eu, quase dezesseis; me esqueci que ele era o melhor amigo de meu pai, e sócio também. Nem me lembrei de que eu ainda era virgem, e ele, um homem que já tinha sido casado, e que com certeza, andava cercado de mulheres maduras e belíssimas.

Eu só sabia que eu o queria: estava totalmente apaixonada por Duílio. Se ele me beijasse ali, naquele momento, eu não me importaria com o que os outros iriam pensar, com o escândalo da situação, ou com a possível desaprovação de meus pais: eu iria embora dali com ele, para qualquer lugar. Largaria a escola, a família, as convenções. Lembrei-me de minha conversa com Cristina sobre quebrar convenções, e eu estava disposta a fazer aquilo, se ele quisesse.

Mas a música terminou. Os membros da orquestra, desmontando os instrumentos e colocando-os  em caixas, conversavam entre si, soando cansados. A magia tinha se quebrado. Ele me conduziu pela mão de volta à mesa. Estávamos ambos sérios e calados. Eu tinha certeza absoluta de que ele sabia exatamente como eu me sentia, ele sabia do turbilhão de emoções que ele me despertava. Quando voltamos à mesa, papai e mamãe conversavam. Os dois nos olharam quando nos sentamos. Duílio largou minha mão, que ficou durante algum tempo ainda, sentindo o calor deixado pela mão dele. Disfarçadamente, levei-a às narinas, e pude sentir seu perfume. Papai começou a falar de negócios, e Duílio, prestando atenção ao que ele dizia, de vez em quando me olhava rapidamente. Mamãe estava muito séria, e mantinha os olhos baixos. De repente, dizendo-se cansada, deu boa noite a todos e foi para dentro de casa.

Achei que eu deveria segui-la. Mas não consegui. Fiquei ali, sentada, fingindo que terminava meu suco de frutas batizado com Vodka, enquanto fazia de tudo para não encarar Duílio, sendo que o que eu mais queria naquele momento, é que papai se erguesse da cadeira, desejasse boa noite e nos deixasse à sós.

As outras mesas já estavam vazias, e o cerimonial começava a recolhê-las. Havia garçons e homens de macacão em toda parte, gritando ordens uns aos outros enquanto enchiam caminhões. A noite mais mágica de minha vida chegava ao fim: a noite em que eu me apaixonei pela primeira vez. A noite em que Tio Duílio passou a ser apenas Duílio, o meu amor. A minha paixão.


(continua...)




quinta-feira, 11 de abril de 2019

INOCÊNCIA - PARTE I, CAPÍTULO XIV






NOIVADOS

Eu tinha quinze anos – três anos depois que Cristina se fora - quando Berta e Sebastian ficaram noivos. Lembro-me da noite em que ele fez o pedido, as duas famílias reunidas. Foi uma ocasião alegre e festiva, e eu gostaria muito que Cristina pudesse ter participado dela. Também senti falta da presença amiga de Eugênio e Florença, que apenas adentraram a sala para servir o jantar.

Mamãe tinha convidado Tia Aurora, Marcelo e Joana, e a presença deles à mesa fez com que Flora permanecesse altiva e calada. Tia Aurora às vezes a olhava de rabo de olho, e eu sabia que no fundo, ela estava arrependida por tê-la ofendido; mas as coisas eram como eram, e na nossa família, as pessoas não estavam acostumadas a pedirem desculpas. Ao contrário, quando algo acontecia, esperávamos que o tempo passasse e curasse as feridas.

Marcelo também ficara noivo de uma moça chamada Cândida. A primeira palavra que me veio à cabeça quando nos apresentaram, foi: “Branca.” Cândida era tão branca, de olhos azuis tão claros, que parecia uma boneca de louça. Franzina, longos cabelos loiros volumosos, ondulados e quase brancos, ela era a imagem da fragilidade. Minha mãe disse que ela parecia uma fada, 'etérea.'

Totalmente o oposto de Cristina, que era um furacão moreno e sensual, de olhos azuis escuros profundos e intrigantes, voz forte e gutural. A voz de Cândida parecia ter medo de sair da garganta, e era quase musical. 

Eu não sabia se gostava dela. Berta me disse para não tratá-la mal ou criar bloqueios contra a moça apenas porque ela não era Cristina, e aquilo me alertou: eu não tinha o direito de tratá-la mal ou de não gostar dela apenas porque ela não era Cristina, e nem tinha culpa alguma por não ser. Eu tentava, de verdade, ser o mais agradável possível com ela. Mas havia alguma coisa nela que eu realmente não conseguia engolir.

Ela não estava presente no noivado de Berta, o que de certo modo, me deu um certo alívio: não teria que bajulá-la. Porque a minha tentativa e esforço para gostar dela já tinha se tornado bajulação, e acho que Cândida já tinha percebido, e por isso tinha uma atitude mais reservada em relação a mim. Mamãe dizia que eu estava tentando demais, e que aquilo já estava se tornando ridículo.

O noivado de Berta me trouxe alguns receios: ela logo ia casar-se, ir embora de casa, e sem Cristina, eu ficaria totalmente sozinha. As festinhas e os amigos de Berta também iriam embora junto com ela, e a casa se tornaria um deserto silencioso e cheio de lembranças.  Eu também não podia mais contar com o carinho de Flora para me consolar, pois ela mudara totalmente em relação a mim. Mamãe passava horas fora de casa – estava fazendo cursos de culinária, costura, economia doméstica e estética. Papai passava o dia todo no escritório, chegando apenas após as sete da noite, e Joana estava quase sempre ocupada com suas amigas ricas. Além disso, depois que eu descobri que tinha sido ela a dedurar Cristina e Marcelo, eu mesma não fazia mais questão da companhia dela. Nós nos falávamos, e nos víamos nos almoços de família, mas não era mais a mesma coisa, pois eu perdera a confiança nela.

E na escola, eu não tinha muitos amigos, apenas colegas. Nunca os chamava para irem até a minha casa. Também continuava não sendo convidada para ir até a casa deles, e tratava de recusar os convites que Joana me fazia para ir às suas festinhas. Estava me tornando uma moça reclusa, silenciosa e desconfiada. Alguns achavam que eu era tímida, mas não era verdade. Eu estava passando por uma fase difícil, e ninguém me ajudava. Perdera Cristina; perdera o carinho de Eugênio e Flora; perdera a confiança em Joana, minha melhor amiga, e também a companhia de minha mãe, a comodidade de tê-la em casa o tempo todo. E dentro em breve, perderia Berta e seus amigos, que ainda traziam um pouco de luz e vida àquela casa. E quanto mais eu perdia, mais eu me fechava.

Mas ainda me restavam as visitas de final de semana de Tio Duílio. Depois do almoço, ele passava tempo comigo. Nós conversávamos, ele escutava meus discos, me contava histórias sobre as pessoas que conhecia. Quando estávamos juntos, eu via nele um grande amigo, e nem importava que ele tivesse quase a idade dos meus pais. Ele me dava aquilo que eu mais precisava naquele momento: atenção. Saíamos para fazer caminhadas, e eu mostrava a ele meus lugares prediletos. Ele me ensinou a pescar, e às vezes, papai nos acompanhava.

Ele estava presente no noivado de Berta, e piscou para mim sobre a mesa do jantar ao notar a minha tristeza. Tio Duílio parecia ser a única pessoa que compreendia ou que se importava com o que eu estava sentindo. E ele mais tarde me disse que tinha passado quase pela mesma coisa quando era adolescente: uma perda muito grande, mas muito pior que a minha: a morte de seu irmão mais velho, de tuberculose. Depois que ele me contou aquela história terrível, comecei a me sentir um pouco melhor, talvez mais 'sortuda' do que eu me considerava, pois se ele tinha superado uma perda tão grande, aquilo era sinal de que eu também ficaria bem.

Ele me pediu que tivesse paciência com meus pais, pois todas aquelas mudanças também eram difíceis para eles. Principalmente com mamãe. Ela era 'durona', mas no fundo, estava sentindo a falta de Cristina, e em breve veria sua filha mais velha ir embora também.  Talvez por isso ela estivesse se enchendo de novas atividades, e quem sabe, eu também não devesse fazer a mesma coisa?


-E quem sabe, comprar umas roupas novas e me vestir como a mocinha na qual eu me tornara, - ele disse, rindo.

Comecei a pensar seriamente no que ele estava dizendo. Havia um curso de pintura que ia começar na escola, uma atividade extraclasse, e todo mundo dizia que eu tinha talento para pintura. Por que não tentar? Quanto às roupas novas, eu andava mesmo precisando de algumas. Ao falar com mamãe sobre aquilo, ela me levou às compras feliz da vida, e passamos uma tarde na cidade grande, percorrendo as melhores lojas. Daquele dia em diante, eu mudei, ou pelo menos, tentei; mas por debaixo dos vestidos novos e sapatos elegantes, ainda guardava a mesma menina que acreditava que poderia (e deveria) mudar a cabeça das pessoas a fim de defender aqueles que eu considerava mais fracos do que eu.






A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...