segunda-feira, 29 de abril de 2019

INOCÊNCIA - PARTE I, CAPÍTULO XVI






APAIXONADA

Naquela noite eu não consegui dormir. Ainda com a mão perto da narina, tentando absorver o que restara do perfume de Duílio, eu me toquei várias vezes, e todas as vezes, chamei repetidamente pelo nome dele baixinho. Quando finalmente peguei no sono, o dia já começava a clarear. Acordei por volta das dez da manhã, me sentindo zonza e enjoada. Logo pensei em meu drink batizado com vodka, e aquele pensamento me fez correr até o banheiro e vomitá-lo no vaso sanitário. Imediatamente depois disso, comecei a sentir-me bem. Tomei uma chuveirada, removendo os restos de laquê e maquiagem, e optei por usar um de meus vestidos de mocinha, como minha mãe os chamava. Prendi os cabelos em um coque que me deram um ar mais maduro, e calçando novamente meus sapatos de saltos altos, desci para o café da manhã. Mas para minha decepção, só encontrei meu pai lendo o jornal no sofá da sala, ainda de pijamas.

Perguntei por mamãe e Duílio, e ele me explicou que ele já tinha ido embora, e aproveitara para dar uma carona à mamãe, que precisara ir até a cidade para devolver alguns livros na biblioteca. Meu coração murchou. Meu pai, desviando os olhos do jornal, me olhou dos pés à cabeça: 

-Vai sair, filha?

Sacudi a cabeça, negando, e voltei para o meu quarto, desanimada. Tirei os sapatos, que deixei jogados perto da cama, e em um acesso de raiva, chutei-os para longe. Mas na minha fúria, acabei atingindo em cheio o pé da cama. A dor subiu rapidamente, arrancando-me um berro desesperado. Olhei para os meus pés: os dedos estavam em um ângulo esquisito. Papai entrou no quarto, e ao ver o meu pé, pegou-me no colo e colocou-me no carro, levando-me ao hospital.

Tive que sofrer uma pequena cirurgia para colocar os ossos dos dedos no lugar, e depois ganhei uma bota de gesso. Quando despertei da anestesia, algumas horas mais tarde, já era noite, e mamãe dormia na cadeira ao lado da cama do hospital. Chamei por ela, mas ela estava profundamente adormecida, e acabei desistindo de acordá-la. Por volta das oito da noite, despertei com o ranger da porta do quarto, e mamãe não estava mais ao meu lado. Ao invés dela, deparei com Duílio, que me observava. Ergueu-se da cadeira quando acordei, beijando-me na testa, e explicou-me que mamãe e papai estavam muito cansados por causa da festa, e que ele me faria companhia naquela noite. Naquele instante, eu adorei ter quebrado o pé. Agradeci, dizendo: 

-Obrigada, Duílio.

 Ele me perguntou o que tinha acontecido com o “Tio”, e eu disse que ele ficara naquela pista de dança. Duílio franziu as sobrancelhas, e eu sabia que ele tinha entendido muito bem o que eu quisera dizer.

Ele se debruçou na grade da cama, aproximando o rosto do meu: 

-Você cresceu, - ele disse, me encarando. 

Eu concordei com a cabeça, dizendo: 

-Que bom que você reparou.

 Achei que eu estivesse dando as respostas certas naquela noite, deixando para trás a garotinha desajeitada e trazendo à tona a mulher madura que sabia exatamente o que queria. Ele me olhou longamente, me fazendo derreter:

-Yara, nós nos conhecemos há bastante tempo, não é? Desde que você era uma menininha. Você… se lembra das muitas vezes em que sentou-se em meu colo, ou quando saíamos para passear de mãos dadas e sua mão era tão pequena que a minha, segundo você dizia, ‘engolia’ a sua?  E quando eu a levava para pescar, mas você não tinha coragem de retirar o peixe do anzol, e eu fazia aquilo para você? Lembra-se das vezes em que eu chegava em sua casa e você corria para mostrar-me as bonecas novas que eu ainda não conhecia?

Eu fiquei sem palavras; não sabia aonde ele queria chegar com aquela conversa sobre quando eu era criança. Resolvi ficar calada, deixando que ele concluísse sua fala. Duílio continuou:

-Eu ontem percebi o quanto você cresceu, o quanto está deixando de ser aquela menininha, e eu nunca tinha percebido isso antes. Mas eu vi você crescer… acho que você partilhou coisas da sua vida comigo que nunca partilhou com ninguém.

 Concordei com a cabeça. Sabia que por causa daquilo, Duílio me conhecia até mesmo melhor que meus próprios pais. Ele continuou: 

-Isso tudo faz com que eu me sinta muito grato por ter conhecido você, e por ter sido tão bem recebido em sua família. Você sabe, quando os conheci, estava me recuperando da morte de minha mulher. Antes, também tinha passado por uma perda terrível, e eu contei isso a você. Partilhamos coisas que nos tornaram grandes amigos. Mas eu simplesmente não posso amá-la desse jeito. Não seria certo.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu estava perdendo terreno. Imediatamente, achando-me brilhante, repeti a frase que ouvira de Cristina naquela tarde, quando eu ainda era apenas uma menininha: 

-Às vezes, é preciso derrubar convenções, Duílio.

Ele me encarou, em silêncio. Tentei conservar uma postura forte, enquanto eu derretia por dentro, pronta a jogar-me nos braços dele e beijar sua boca, pois seu rosto estava próximo ao meu: 

-Eu amo você. Descobri isso ontem.

 Os olhos dele brilharam, e ele respirou profundamente. O hálito dele chegou até mim, e cheirava a hortelã e fumo de cachimbo. Másculo. 

-Também amo você, Yara, amo muito.

 E após uma pausa, ele completou: 

- Mas não desse jeito.

Mais uma vez, senti meu coração murchar e encolher. Ele baixou os olhos, deixando expostas suas longas fileiras de cílios negros e maciços. Vi o quanto os olhos dele eram lindos, encimados pelas sobrancelhas grossas e arqueadas. Certa vez, uma das amigas de Berta referira-se a ele como “Um belo exemplar masculino.” Na época, aquilo não fez muito sentido para mim, mas naquele momento, compreendi exatamente o que ela quisera dizer. Entendi que Duílio teria que ser meu marido. Aquilo sim parecia a coisa mais certa a se fazer, mas eu precisaria mostrar a ele o quanto ele me amava, e que estava apaixonado por mim e não sabia ainda. Num impulso, ergui a parte superior do meu corpo, e apoiando meus dois braços em volta do pescoço dele, puxei seu rosto em direção ao meu. Senti meu pé operado latejar com o esforço, mas mesmo sentindo dor, beijei-o. Agarrei seu rosto com força. Eu nunca tinha beijado ninguém antes, mas tentei fazer como nos filmes que assistia na TV, ou como vira Berta beijando Sebastian algumas vezes, e principalmente, tentei usar a minha língua apaixonadamente, como vira Cristina e Marcelo fazendo naquela noite na cozinha.

Duílio tentou soltar as minhas mãos usando as suas, delicadamente. Acho que ele tinha medo de me machucar. Tentou virar o rosto, mas eu o mantive preso, enquanto abria os lábios dele com a força dos meus. Finalmente, ele parou de resistir, e começou a me corresponder. Foi uma das melhores sensações que eu já experimentara na vida!  A felicidade que eu senti naquele exato momento jamais foi superada por nenhum outro acontecimento da minha vida – nem mesmo a chegada do meu filho, anos depois.

Eu havia quebrado as convenções. Eu havia corrido atrás daquilo que eu queria. Eu tivera uma atitude madura e corajosa, e me tornado uma mulher de verdade. Aquele beijo roubado me fez conhecer uma outra Yara, adormecida dentro de mim, e ela jamais poderia voltar a dormir ou a se aquietar novamente. Eu lutara pelo amor de minha vida, e o fizera ceder. Eu conquistara o direito de ser amada pelo homem mais lindo do mundo, o que mais me conhecia, o que sabia me ler por dentro e por fora.

Aquela certeza durou apenas o tempo de um beijo roubado: alguns segundos; mas eu jamais me arrependi daquele ato. Nem mesmo depois de todo o sofrimento que ele me trouxe. Lembrar-me daquele beijo, trazer de volta aquele momento glorioso no qual eu fui forte e agarrei o que eu queria, fez com que eu superasse momentos horríveis pelos quais passei em minha vida. Aquele beijo tem sido a minha referência, a fonte da minha força quando eu me sinto fraca, a lembrança de um momento no qual eu fui corajosa, arrojada, bem-sucedida – afinal, ele me correspondera.

Depois daquele beijo, ele acariciou meus cabelos de leve, e disse: 

-Você é muito jovem, Yara. Vai superar isso.

Dizendo aquilo, sentou-se na cadeira em frente a cama, e cobrindo-se com a manta do hospital, fechou os olhos. Eu acho que eu chorei até dormir. Mas eu estava feliz, estranhamente feliz, e me sentindo vitoriosa. Cristina se orgulharia de mim.

Mas todo ato traz junto a si uma consequência, e depois daquela noite, Duílio passou a me evitar. Quando tinha que ir até a nossa casa, tratar de negócios com papai, os dois se trancavam no escritório e ele ia embora no mesmo dia, recusando-se a passar a noite. Mamãe começou a achar aquelas recusas muito estranhas, e papai logo veio com uma explicação: 

-Duílio jamais comenta comigo sobre sua vida particular, mas talvez ele tenha encontrado uma namorada. Afinal, ele ainda é jovem, e segundo as mulheres, atraente.

Mamãe não respondeu. Estávamos jantando, e notei que ela apenas continuara comendo – deu mais uma ou duas garfadas – e depois descansou os talheres. Dispensou a sobremesa, e foi dormir mais cedo, alegando cansaço.


(CONTINUA...)



3 comentários:

  1. Oi Ana, estou super curiosa para saber, porque a mãe foi dormir?
    Será que ela esperava que ele namorasse a filha?
    Aguardando cenas do próximo capitulo.
    Muitos beijos,Vi

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