domingo, 21 de outubro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - CAPÍTULO XVII - FINAL







O Lar de Ofélia - parte XVII - FINAL


Ofélia acordou sozinha novamente, e com a voz de Anselmo ressoando em sua cabeça: "Lembre-se de quem você é, e do que necessita fazer para ficarmos juntos!"
Ela ergue-se da cama, sentindo-se muito fraca e combalida. Dirigiu-se à cozinha para tomar um copo de água e preparar alguma coIsa para comer, e ao passar pela sua imagem no espelho do corredor, notou o quanto tinha emagrecido e o quanto sua pele estava pálida. Chegou à cozinha, tomou dois grandes copos d'água e sentou-se. Abriu o armário: não havia nada para comer, a não ser um pouco de pó de café e algumas bolachas de nata. Ela não tinha feito compras. Já era madrugada, e teria que esperar até o dia amanhecer a fim de ir ao mercado fazer compras ou encomendar algo. Enquanto isso, ia ter que sobreviver daquelas bolachas e do que restava do café.

Ela comeu, e então sentiu vontade de assistir televisão - algo que já não fazia há tempos. Achou que talvez a TV, os comerciais e as pessoas na tela a lembrassem de que ainda se encontrava no mundo dos vivos, com suas urgências e concretudes. Ela sentou-se no sofá com mais uma xícara de café, e começou a assistir a um velho filme. Aos poucos, as imagens das pessoas na tela foram ficando cada vez mais distantes. Suas bocas se mexiam, mas elas não pareciam dizer nada. 

Quando despertou, uma campainha tocava insistentemente, ao mesmo tempo que alguém batia à porta. Com a cabeça entre as mãos, Ofélia levantou-se e se encaminhou à porta de entrada, sem pensar muito. Ouviu a voz de Magda chamando por ela, aflita. Como Magda descobrira que ela não tinha viajado? Achou melhor abrir a porta; ajeitou um pouco os cabelos com as mãos, e respirando fundo, abriu a fechadura.

Magda olhou para ela, dos pés à cabeça. Ela carregava algumas bolsas de supermercado. Ainda custou a dizer qualquer coisa, surpresa com a aparência macilenta de Ofélia. Deu graças a Deus por Bruno ter telefonado para ela no escritório no dia anterior, preocupado com Ofélia. Achou que mais um pouco, e Ofélia poderia ter ... preferiu não concluir seu pensamento. 

Ofélia tentou um sorriso forçado, mas ele não saiu. Ela fez um gesto para que Magda entrasse, e seguiu-a até a cozinha, onde Magda, sem nada dizer, começou a preparar uma refeição para Ofélia, que sentada à mesa de madeira antiga, a cabeça apoiada na mão, observava a mulher de meia-idade movendo-se pela sua cozinha, procurando por utensílios, acendendo o fogo, fritando os bifes e preparando a salada e o arroz. 

Magda olhou para ela, enquanto Ofélia comia, e disse:

-Você precisa ver um médico. Está deprimida, e não duvido que se eu não tivesse recebido o telefonema do seu vizinho, você poderia ter morrido dentro desta casa! Assim que terminar de comer, vai tomar um banho e eu vou levar você a um psiquiatra.

Ofélia não respondeu. Não tinha a menor intenção de obedecer Magda, mas naquele momento, não queria discutir com ela. Só queria poder alimentar-se, fortalecer seu corpo. Magda continuou:

-Aquele rapaz gosta realmente de você, Ofélia. 

-Ele é muito mais jovem do que eu, Magda. 

-E daí?

Ofélia pensou que aquela pergunta, aquela pequena indagação, fazia muita diferença, mas daria muito trabalho para explicar tudo. Mais tarde, enquanto Magda lavava a louça, Ofélia deixou-se ficar sob a água tépida do chuveiro. Conseguia escutar Magda lidando com as louças na cozinha, enquanto deixava que a água quente a reanimasse um pouco.

Na cozinha, Magda sentia a atmosfera pesada da casa como uma cortina de chumbo sobre seus ombros. Não gostava daquele lugar, e achava que morar ali não podia fazer bem a ninguém, e pensou que talvez fosse melhor demolirem a casa e venderem o terreno. Àquele penamento, uma dor fininha passou por sua testa, indo alojar-se por trás dos olhos. Ela se sentou à mesa, e pegando sua bolsa, agarrou um comprimido e engoliu-o com água. Sentia-se mal naquele lugar. Olhou em volta: apesar do luxo e da beleza da casa, havia algo de maléfico dentro dela. Ela sentia que a casa sugava as energias das pessoas - pelo menos, a dela.

De repente, Magda sentiu-se levemente sonolenta. Imagens começaram a aparecer diante dela. Imagens que ela reconheceu, embora não fizessem muito sentido, como cenas de outras vidas. Algum tempo se passou antes que Magda se recuperasse do seu transe. Já desperta, ela juntos todas as imagens como numa colcha de retalhos, e tudo pareceu fazer sentido então.

Ofélia apareceu diante dela, de cabelos molhados, usando um vestido branco leve. Magda teve um leve sobressalto à presença silenciosa dela.  A cor da sua pele e a cor do vestido eram quase idênticas. 

-Ofélia... você me assustou... bem... vamos?

-Obrigada, Magda, mas não vou a lugar nenhum... por favor. Não insista. 

Magda percebeu que poderia ser mesmo inútil insistir naquele momento, então tentou apenas conversar com ela. Fez a pergunta que não queria calar:

-É esta casa, não é? Existe alguma coisa nela. Você mudou muito desde que veio para cá. Nos vimos poucas vezes desde então, mas deu para perceber. O que está havendo, Ofélia? Você sabe que pode confiar em mim.

Ofélia queria desesperadamente poder confiar nela, em qualquer pessoa, mas temia que se dissesse alguma coisa comprometedora sobre os últimos acontecimentos, algo de terrível pudesse acontecer às pessoas com quem se abrisse. Ela olhou para Magda, e esta viu o desespero nos olhos dela. Sem nada dizer, fez sinal para que Ofélia a seguisse até o jardim.

Lá chegando, o sol da manhã aqueceu a pele de ofélia, que começou a sentir-se um pouco melhor, pois a atmosfera dentro da casa era pesada e obscura. 

Magda caminhou com ela por algum tempo, em silêncio. Pararam junto a um banquinho de madeira, onde se sentaram. Ofélia se perguntava se Anselmo poderia ouvi-las dali, e logo teve a certeza de que sim, pois ele a olhava da janela do quarto, no andar superior. O olhar dele era frio e severo.

Ofélia entendeu que se quisesse conversar com Magda sem colocá-la em risco, teriam que sair dali. Pegando-a pela mão, ela se levantou, levando Magda até o portão e abrindo-o, saiu junto com ela para a rua e para a vida real. Magda deixou-se conduzir; também ela vira o homem à janela, a figura fantasmagórica e ao mesmo tempo, bela e fascinante que as observava, e como fosse médium, logo compreendeu que aquele homem não fazia parte do mundo dos vivos. Na rua, Ofélia implorou-lhe:

-Você precisa ir embora, Magda, e não voltar mais. Aqui, você estará em perigo, podendo ser morta como... como...

-A ex-namorada de seu pai, não é?

Magda assistiu, enquanto o desespero de Ofélia dava lugar às lágrimas e a um leve aceno de cabeça, concordando com ela. Magda ergueu a mão, secando o rosto dela com um lenço de papel que tirara da bolsa. 

-Se eu corro perigo, você também, querida. Não vou deixá-la aqui sozinha. Eu a conheço desde muito pequena... trabalho para o seu pai há anos... conheci sua mãe... não vou abandonar você, que é... como uma filha para mim. 

De repente, Ofélia olhou para o rosto de Magda e percebeu que o que ela dizia fazia todo sentido: viu-a em uma outra vida, sendo, realmente, sua mãe. Lembrou-se do quanto ela sofrera, ao ver sua filha querida adolescente definhar e morrer de uma doença longa e terrível. Magda realmente tinha sido sua mãe!

Ofélia abraçou-a, e Magda sentiu que aquele abraço era uma coisa que ela esperava há anos. Magda e Ofélia começaram a afastar-se de casa aos poucos, caminhando pela rua. A manhã estava belíssima, e pássaros cantavam ali perto. Lá em baixo, Ofélia podia ver Bruno e seus amigos reunidos, conversando. Ele a viu, mas não fez menção de acenar para ela. Ao olhar para ele, Ofélia compreendeu que jamais poderia fazer o que Anselmo lhe pedia. 

Ao olhar novamente para Magda, notou que ela estava de olhos fechados. Chamou por ela, sem obter resposta. Magda estava parada, lívida, respirando quase que imperceptivelmente. As duas estavam sob uma grande árvore, um olmo, que fazia sombra sobre elas. Ofélia achou melhor não interromper o que quer que estivesse acontecendo com Magda. após alguns minutos, Magda abriu os olhos, e seu olhar era muito triste e preocupado:

-Não volte àquela casa, Ofélia. Eu lhe peço. Aquelas pessoas... aquelas.. criaturas que lá se encontram, não têm mais nada a ver com você. 

-Não é verdade! Eles são meu marido e minha filha!

-Sim, mas... você reencarnou várias vezes, seu espírito evoluiu. Você é outra pessoa, enquanto eles permaneceram ligados aos seus desejos de vingança, à sua sede de sangue. Eles precisam evoluir também! Se você voltar, estará se prendendo a eles durante séculos, que serão tempos negros, entristecidos e ... pode ser que você leve milênios antes de livrar-se de tal situação! E não os estará ajudando, apenas prolongando suas penas, além de infringir a si mesma um carma terrível! 

-Anselmo me ama! Eu o amo também!

-Não é amor, não mais! Anselmo quer usá-la para poder voltar e continuar com suas maldades. Ele e Vivian. Sem a sua ajuda, eles não podem. Ficarão presos até que compreendam que necessitam morrer para renascerem e terem uma nova chance de evoluir espiritualmente. Ele agarra-se à existência física, uma existência de sangue, sonha com ela enquanto seria tão mais sensato morrer! Deixar-se morrer, libertar seu espírito...

-Mas eu nunca mais os verei!

-Se for amor o que os une, certamente vocês se reencontrarão, Ofélia!

Ao ouvir aquilo, Ofélia sentiu que uma nuvem pesada saía de seus ombros. Magda continuou:

-Eu vi suas vidas passadas também, Ofélia, eu sou médium. Aquelas crianças em volta de você, quando você morreu... sua própria mãe nesta vida, seu pai, e também sua ex-namorada... todas aquelas pessoas... são pessoas das quais você e Anselmo se alimentaram. Você teve que voltar com elas, resgatar suas dívidas. Quando fui sua mãe, eu também fui uma delas. Em uma outra vida, eu lhe fiz muito mal.  Somos todos heróis e algozes nas vidas que vivemos. Quando morremos como algozes, retornamos como vítimas, e depois, nos tornamos heróis na vida de alguém. 

Ofélia sentia o quanto aquelas palavras eram verdadeiras. Ofélia estava chorando, mas era um choro de alívio.

Magda segurou a mão dela:

-Vamos embora, não olhe para trás. Sabe que se entrar lá novamente, jamais conseguirá sair. Eles não a deixarão. Amanhã contratarei uma firma de demolição, e colocaremos a casa abaixo. Assim, libertaremos as almas deles. 

Ofélia olhou para trás. A silhueta da casa desenhava-se contra as nuvens brancas e esfiapadas e o azul profundo do céu. No jardim, maravilhoso e verdejante, pássaros cantavam entre roseiras e árvores frondosas.  Quem passasse por ali, não saberia que aquela linda casa estava cheia de energia pesada e negativa. 

Ela olhou para o rosto de Magda, aceitando-a como sua mãe amorosa. Assentiu com a cabeça, e as duas começaram a se afastar da casa. Após alguns metros, Ofélia olhou para trás novamente, mas tudo o que viu, foi uma velha casa de paredes escurecidas e em ruínas, no meio de um jardim seco e cheio de plantas mortas e retorcidas. 

Bruno viu que elas caminhavam juntas na direção dele, e sorriu enquanto elas se aproximavam pouco a pouco. 



FIM



sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O Lar de Ofélia - Capítulo XVI





Ofélia despertou do seu transe momentaneamente, e olhou em volta; estava sentada no sofá da sala, e Anselmo segurava sua mão. A casa já estava obscurecida pelo crepúsculo, o que destacava ainda mais o clima de irrealidade: teria ela imaginado todas aquelas vidas, todas aquelas histórias? Será que aquele homem sentado ao seu lado não seria um embusteiro, alguém que estava brincando com ela, uma pessoa real, daquele século, que lhe dera algum tipo de droga que fizera com que ela imaginasse todas aquelas coisas?

Ofélia olhou para ele, e ao deparar com aquele olhar se entornando sobre ela, teve certeza de que suas suspeitas eram infundadas, e de que todas as histórias das quais se recordara, todas as vidas passadas que já vivera, eram reais. Tinham sido experiências verdadeiras. 

Anselmo sorriu-lhe, mas apenas com os lábios, pois ele jamais sorria com os olhos. Os olhos dele pareciam sempre tristes e cansados. Afinal, eram olhos que já enxergavam há muitas vidas, e já tinham visto muitas coisas e passado por sofrimentos terríveis. Ela entendeu o cansaço que via em seus próprios olhos, ao olhar-se no espelho, e o tédio que sentia quando estava junto de outras pessoas. Ela sorriu para ele de volta, e entendeu que aquela maneira triste de sorrir era também dela. 

Ele tocou-lhe a testa com a palma da mão, e ela fechou os olhos. Ao abri-los novamente, estava de volta àquela mesma sala, mas há vidas atrás. 

Viu-se indo deitar-se na noite em que Anselmo demitira Leôncio. Acordou assustada de repente, e tudo o que conseguiu ver, foi o próprio Leôncio debruçado sobre ela com o olhar maldoso (ou seria amedrontado?). Ele segurava um martelo e uma estaca, e antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, ele fincou-a no coração dela. Ofélia lembrou-se de ter gritado, mas por um breve tempo apenas, e então tudo ficou escuro. Dali em diante, aquela vida apagou-se para ela. 

Novamente, ela teve a experiência de entrar por um túnel, mas daquela vez, ela foi cair em um local escuro e sombrio, como que desembocada ali, por onde outras pessoas atormentadas vagavam. Não sabe quando tempo passou ali naquele ermo e escuro lugar de sofrimentos, onde não tinha amigos e não era feliz. Ninguém seria capaz de ser feliz ali. Procurava por Anselmo e Vivian, e a falta deles doía-lhe a alma. Passaram-se anos - ou teriam sido apenas horas?

Novamente, ela abriu os olhos em um local iluminado, e viu o rosto bonito e sorridente de uma mulher que a embalava. Sua nova mãe. Era novamente uma mortal, mas aos dezessete anos, ela adoeceu por um longo tempo, e finalmente, após um período de muitas dores e sofrimentos, ela morreu. Renasceu ainda uma vez, mas também teve uma vida sofrida e curta, morrendo aos cinco anos de idade após sérios problemas de coração. Ainda assim, ela voltou. Viveu até os cinquenta anos de idade. Era uma mulher pobre, e com muitos filhos. Morreu sufocada, após contrair uma forte gripe. As suas crianças estavam todas em volta dela. 

Em todas aquelas vidas posteriores, ela teve a experiência de estar sempre triste, infeliz, vazia. Procurava por alguma coisa que jamais encontrava, mas agora ela sabia que tinha procurado por Anselmo e Vivian. mas eles tinham ficado em algum lugar bem longe dela. 

Nasceu novamente, agora em sua vida atual. Ofélia reviveu experiências que tivera com seus pais, e reconheceu outras pessoas que encontrara em outras vidas. Magda e Bruno estavam entre elas. 

Finalmente, Ofélia abriu os olhos novamente. A sala estava escura. Anselmo caminhou até o interruptor, acendendo as luzes. A pequena Vivian serviu-lhe um cálice de licor. Aquilo ajudou-a a recuperar as forças. 

-O que aconteceu naquela noite, Anselmo?

Ele suspirou:

-Naquela noite, Leôncio tirou você de nós. Consegui pará-lo antes que ele atingisse Vivian. Eu o transformei e o aprisionei nesta casa, e como castigo, dei-lhe uma aparência de velho e  a missão de guardar a casa para sempre, até que eu conseguisse trazer você de volta. Mesmo se ele tivesse tentado ir embora, não teria conseguido. Quando ele passava mais que uma ou duas horas longe da casa, sentia dores insuportáveis. 

-Como assim? E você... e Vivian...?

-Nós ficamos suspensos no tempo. Guardamos nossos corpos, pois fazemos parte de um clã, e eles teriam envelhecido sem sua energia. Eles estão escondidos  lá em baixo no porão, mas nossos espíritos estão livres, e por isso só você consegue nos ver. Por este motivo, é importante que você faça o que eu pedi. É a única forma de trazer nossos corpos de volta à vida. 

Ofélia ergueu-se do sofá, brandindo os braços:

-Eu... eu não posso, Anselmo! Você não entende? Não conseguiria!

Ele correu até ela, obrigando-a a olhar para ele:

-Minha querida, lembre-se de quem você é! 

Ela voltou a sentar-se. Sua mente dava mil voltas. Ofélia tocou a própria cabeça, pois esta lhe doía um pouco. 

-Aquele homem que nos vendeu a casa... ele era...

-Sim! Ele era Leôncio. Está livre agora. Seu castigo acabou. Mas nós ainda somos prisioneiros nesta casa, longe de nossos corpos, Ofélia. 

-Então me transforme para que eu possa ficar com vocês!

-Não é assim... não posso transformá-la sendo espírito. Preciso voltar ao meu corpo antes. 

-Mas... mas... eu não posso!

Existe uma coisa que você não sabe ainda, minha querida. 


Dizendo aquilo, Anselmo aproximou-se dela, colocando a mão aberta sobre sua testa. Ofélia teve uma visão. Ela viu Bruno. 

Reconheceu nele o homem que, em uma das vidas passadas, dos tempos antes de eles serem transformados, queimara a ela e à sua família vivos somente porque eles estavam doentes com a peste! 

Aquela visão encheu-a de dor. Ofélia começou a chorar compulsivamente.

-Viu, minha querida? Viu quem ele realmente é?

-Mas ele... não se lembra mais! Foi há tanto tempo, e ele... e nós... 

-Ele também tem um carma a pagar. Veja as coisas desta forma. Derramar seu sangue sobre nossos corpos será também uma libertação para ele. Se você não o fizer até a próxima lua cheia, jamais poderemos ser trazidos de volta, e nos perderemos para sempre uns dos outros... 

-E o que acontecerá então, Anselmo, a você e à nossa filha? 

-Permaneceremos no limbo, presos a esta casa, a este terreno... até que... até que... eu não sei dizer. Não sei o que acontecerá, mas acho que estaremos eternamente presos aqui. Mas você será livre para viver sua própria vida, concluir sua existência. Sem nós. Porque nós vamos desaparecer para você. Para sempre. 

(continua...)




segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XV








Daquela forma, a família de Ofélia viveu por trezentos anos, mudando-se constantemente de um local do mundo para o outro a fim de evitar que as pessoas percebessem que eles jamais envelheciam, fazendo e abandonando amigos e inimigos, acompanhando de longe os fatos históricos para que não fossem jamais notados. Nada mais lhes faltava, e aqueles que antes tinham sido vítimas oprimidas do mal agora eram os opressores, escolhendo suas vítimas à dedo entre a escória da humanidade - criminosos que não tinham famílias ou que fariam muito mais bem ao mundo não estando nele, prostitutas ou mendigos de quem jamais alguém sentiria falta. 

Ainda se reuniam com os seus semelhantes, pois eram parte do clã, mas raramente, porque não aprovavam seus métodos cruéis, sua loucura maldosa. Evitavam a companhia deles, mas os semelhantes se atraem e se reconhecem. Ofélia estava feliz na companhia de sua família, estava feliz sabendo que nunca mais seria vítima da doença, da miséria e da fome, pois sua condição atraía sobre eles riquezas imensas, que ela não tinha certeza de como chegava tão facilmente a eles, e preferia não saber. 

Então, no ano de 1767, eles adquiriram a mansão cuja história contamos. Por ser afastada dos grandes centros, pensaram que poderiam estar seguros ali. Pretendiam passar ali talvez uma centena de anos, sem se envolverem em atividades sociais e sem se deixarem notar. Queriam férias do mundo. Contrataram apenas um único empregado, um rapaz de trinta e um anos a quem revelaram sua condição, e este prometeu guardar segredo se ele próprio fosse transformado. Seu caráter não era muito limpo; passara alguns anos na prisão por roubos e pequenos delitos; mas como ninguém dava-lhe emprego devido á sua falta de cultura e pelos anos que passara encarcerado, e como estivesse à beira de cometer atos que garantiam não apenas o seu sustento, mas também sua inevitável volta à prisão, Leôncio aceitou aquela proposta de trabalho. Seria responsável por pequenos reparos na mansão, e também pela jardinagem e outros funções menos nobres que lhe fossem delegadas. Para ele, tais funções não seriam problema.

Assim, a família viveu por muitos anos ainda, desfrutando dos confortos da mansão e também de tudo o que a riqueza lhes proporcionava; quando queriam ir ao teatro, bailes  ou a outros eventos para se distraírem, sempre o faziam nas cidades vizinhas, de modo que não estabelecessem conexões com as pessoas do local onde viviam. 

Leôncio, apesar de ter aceito as condições de ser transformado apenas após vinte anos trabalhando para a família (eles sabiam que assim que desfrutasse de seus próprios benefícios Leôncio os deixaria) estava começando a ficar impaciente. Queria poder, ele mesmo, ter todas as riquezas que o cercavam e as quais ele só podia invejar. Assim, certa noite, após a família retornar de umas férias em uma cidade longínqua, Leôncio os confrontou:

-Preciso que vocês me transformem.

Anselmo ficou surpreso, e lembrou-o do trato:

-Você ainda não está aqui por vinte anos, e este foi o trato. 

-Sim, mas... quero escolher a minha aparência eterna. Não desejo ser eternizado com a aparência de alguém que tem 50 anos! Quer se jovem eternamente, e não velho. 

Anselmo replicou:

-Não se preocupe. Ao sermos transformados, nossa aparência rejuvenesce imediatamente. Fique calmo, cumpra o trato e terá muito mais do que jamais sonhou.

Leôncio bufou de raiva, e respondeu em voz alta:

-E se eu disser que não desejo mais cumprir trato nenhum? E se eu for agora lá na cidade e contar a todos sobre quem vocês são? 

Naquele momento, Vivian ia passando e ouviu a ameaça. Entrou na sala segurando uma de suas bonecas, e rodeando Leôncio enquanto o percorria com olhar irônico, ela disse:

-Ora, tio Leôncio... mordendo a mão que o alimenta? Vou responder à sua questão no lugar de meu pai, propondo-lhe uma outra: E se nós o matássemos aqui e agora? Do que reclamaria, ou teria para reclamar? 

Anselmo repreendeu a filha:

-Minha filha, não somos desse jeito. Não diga mais isso!

Ela caminhou até o pai:

-Talvez o senhor tenha razão, e seja melhor que eu morra. Deixe-o ir até a cidade e trazer aqui todos os curiosos e caçadores de gente como nós, que nos trarão um fim! Ou então vamos por um fim nele!

Anselmo ficou preocupado com a reação da filha. Ele vinha notando que, com o passar dos anos, ela vinha se transformando em uma pessoa amarga, cínica e cansada de tudo. Temia que sua doce filha estivesse se transformando em uma daqueles que ele evitava por serem cruéis.

Em um canto da parede, Leôncio, assustado com as ameaças feitas pela menina, suava frio e não se atrevia a dizer mais nada. Ofélia entrou na sala, perguntando:

-O que se passa aqui? Qual o motivo de tanta gritaria?

Leôncio pediu licença, e com uma reverência de cabeça, retirou-se. Anselmo, sentado em sua poltrona enquanto observava a cena, nada disse. Mas Vivian respondeu à mãe:


-Nada, mamãe. Apenas uma insatisfação proletária passageira. 

Leôncio rolou na cama, e não dormiu naquela noite. Sua revolta e humilhação pesavam sobre ele. Ser afrontado pela pequena Vivian, a quem sempre tratara tão bem... estava cansado, e queria ter a sua vida de volta, queria... uma mulher! Queria poder escolher sua companheira eterna e transformá-la, e ela seria a mais bela mulher da vila, e após a transformação, ela o amaria para sempre, por absoluta falta de alternativa. Eles sempre permaneciam entre os clãs daqueles que os transformavam. A família de Anselmo passaria a ser também a sua família; a riqueza que ele tinha passaria a ser também sua. Nunca mais seria humilhado. 

Alguns meses se passaram, e ninguém mais tocou no assunto. Aos quarenta e cinco anos, Anselmo sentia o peso dos anos que passavam, e via seu rosto enrugar-se todos os dias. Aquilo o deixava desesperado! Mais ainda, sentia-se muito mal ao deparar, todos os dias, com seus patrões, sempre jovens e bonitos, e ricos também. 

Ainda faltavam muitos anos para que o trato fosse cumprido, e novamente, ele decidiu afrontar Anselmo. Aproveitou um dia em que Vivian e Ofélia estariam ausentes, e foi ter com seu patrão, que era bem mais maleável, mas daquela vez, de forma mais veemente:

-Sr. Anselmo, se não fizer o que peço, irei embora hoje mesmo. 

Olhando para ele com tristeza, Anselmo espondeu:

-Sinto muito, Leôncio. Acreditei em você e em sua palavra. Só me resta fazer suas contas e mandá-lo embora, e infelizmente, também teremos que partir desta casa que tanto amamos. afinal, você provou não ser de confiança. 

Leôncio esperou até que seu patrão reunisse a quantia que lhe devia - acrescida de mais alguns milhares, que ele decidiu pagar por conta própria, porque era um homem generoso - e retirou-se da casa. 

Quando Vivian e Ofélia retornaram, ele explicou-lhes o acontecido e disse-lhes que deveriam deixar a casa na noite seguinte, pois já amanhecia um dia ensolarado e quente, e a luz do sol forte podia ser fatal para pessoas como eles. A família recolheu-se aos seus quartos a fim de descansar, entristecidos por terem que deixar a casa. 

Ofélia, antes de recolher-se, percorreu toda a casa, parando diante do quadro da família que estava pendurado na parede da sala de estar. Ficou olhando para ele por um longo tempo, e teve um pressentimento horrível que causou-lhe uma imensa tristeza. Parecia-lhe certo de que algo aconteceria, e ela nunca mais veria sua família. Anselmo abraçou-a por trás:

-O que há, meu amor?

Ela agarrou-se a ele, chorando em seu peito:

-Eu não sei... tive um pressentimento...

-Está tudo bem, querida, lembre-se que ninguém pode nos fazer mal. Somos imortais!

-Sim, a não ser que...

-Shsh... Leôncio levará o dia todo até chegar à cidade, e quando lá chegar, já será noite, e teremos partido. Voaremos daqui para outro lugar e recomeçaremos nossas vidas. Onde está Vivian?

-Ela dorme. Também estou preocupada com ela. Você sabe, ela não é o que aparenta ser. Não é uma menininha... isto a está deixando amarga. 

-Eu sei, querida. Existe uma forma de fazer pessoas como ela crescerem alguns anos. Cuidaremos disso. Tentaremos achar o curandeiro que faz este procedimento. É que sempre achei necessário que ela fosse a nossa menininha para sempre... 

-Mas ela não é. Vivian é uma mulher.

Eles se beijaram. Sempre que se beijavam, Ofélia esquecia de todas as suas preocupações.

Mas não muito longe dali, Leôncio aguardava... planejava sua vingança... 

(Continua...)





A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...