quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

 





PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA

 

Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio fustigava seus cabelos, fazendo com que eles cobrissem seu rosto de vez em quando. Ela tinha as mãos nos bolsos do sobretudo de lã marrom, que estava um tanto surrado, e vestia calças jeans desbotadas, as pernas justas para dentro das botas longas de camurça. Em volta dela, um grupo de pombos e passarinhos marrons se alimentavam do alpiste que ela jogava no chão de vez em quando.

Já estava sem emprego há quase duas semanas, e a casa ainda não tinha sido vendida. Porém, ela estava otimista, pois naquela tarde, o corretor anunciou que receberiam um cliente em potencial. E ela pensava que estava vendendo sua casa sem sequer ter para onde ir. Pela primeira vez na vida, sentiu um arrepio de medo na base da espinha, e exatamente naquele momento, uma voz que não era dela falou alto dentro de sua cabeça:

-Não se preocupe! Tudo vai dar certo, e você vai ser feliz.

Ela olhou em volta, procurando alguém que pudesse estar por perto, mas não viu ninguém. Estava frio demais, e o parque se encontrava quase vazio. Ela começou a caminhar de volta para sua casa, que não ficava muito longe dali.

Eduína ainda não sabia, mas naquela manhã, seu destino estava sendo desenhado com cores fortes e precisas. Porque na cidade de Pico Negro, um advogado taciturno e idoso preparava uma carta que seria enviada para ela naquele mesmo dia, convidando-a para a leitura do testamento de sua bisavó Évora Siqueira Camargo – de cuja existência Eduína sequer suspeitava.

Tudo então começou a acontecer rápido demais: o visitante adorou sua casa, e na manhã seguinte, foram ao cartório efetuar a transferência do imóvel, pagando à vista. Deram-lhe 30 dias para entregar o imóvel. Mas ela sabia que não precisaria de tanto tempo. Ao mesmo tempo, vendeu também o terreno. E quando ela voltou para casa naquela tarde, encontrou o sóbrio envelope de cor creme na sua caixa de correio. Dentro dele, além do convite para a leitura do testamento, havia uma passagem de avião.

Eduína, que sempre fora uma moça calma e quase fria, de repente se viu em um turbilhão. Não sabia que tivera uma bisavó. E esta bisavó era a avó de sua mãe verdadeira, que ela nunca conhecera. Pensou, pela primeira vez na vida, que em algum lugar, ela tinha ou tivera uma família de verdade, que era sangue do seu sangue, e que eles a tinham mandado embora quando criança.

Ela não estava familiarizada com aqueles sentimentos. Na verdade, ela nunca estivera muito familiarizada com qualquer sentimento intenso, e ela não gostava daquilo. Uma coisa, era ter a impressão de que seu destino estava escrito, e outra, era recebê-lo dentro de um envelope e ter que pegar um avião indo para uma cidade distante e estranha para encontrar alguma coisa que ela ignorava totalmente.

Era a primeira vez que Eduína viajaria de avião. Não tinha medo, estava se sentindo confortável na primeira classe, paparicada pelos comissários de bordo bonitões que flertavam com ela. Quando o avião decolou, ela sentiu um leve arrepio na base da coluna, mas logo se acalmou, e duas horas mais tarde, estava de pé no aeroporto, onde um senhor de idade com a cara fechada segurava um cartaz com o nome dela.

Lázaro carregou a única bagagem da moça para o Buick preto, cumprimentando-a entre os dentes, e Eduína não tentou ser simpática. Seguiram mudos todo o trajeto até a Rua dos ausentes, e ela reparou que por onde passavam, as pessoas seguiam o carro com olhares curiosos. Lázaro estacionou em frente ao portão de ferro da guarita e saiu do carro para abri-lo. O portão rangeu. Enquanto ele dirigia vagarosamente pela Rua dos Ausentes, Eduína contemplava as mansões antigas e sombrias, as árvores centenárias e os paralelepípedos entremeados de musgo verde-escuro aveludado. Era como se estivessem em uma realidade paralela, totalmente diferente do clima alegre e festivo da pequena cidade por onde tinham acabado de passar.

A rua era quieta, e ela não via viva alma. Os casarões silenciosos pareciam guardar segredos. Eram como pessoas idosas de olhos fechados, mas prontas para despertar a qualquer momento. Ela falou pela primeira vez, dirigindo-se a Lázaro:

-Não mora ninguém aqui? As casas estão todas vazias?

Lázaro grunhiu uma resposta:

- Algumas estão vazias, outras não.

Ela quase perguntou uma outra coisa, mas foi interrompida por ele:

-Chegamos. É esta a sua casa. Foi devidamente pintada e limpa, e a despensa e o freezer estão abastecidos. O advogado a espera na sala de estar. Pode entrar, a porta está aberta. Se precisar de alguma coisa, moro na casa branca junto à entrada.

Eduína olhou para a casa imponente e quase ameaçadora, e não conseguiu acreditar no que via.

-O senhor disse ‘minha casa?’

Lázaro saiu do carro e colocou a bagagem de Eduína na entrada, junto ao portão. Depois, entrou no carro e saiu sem despedir-se dela.

A moça respirou profundamente. Reparou na beleza do lugar, que embora sombrio, parecia seguro. Havia muitos pássaros nas copas das árvores, e eles pareciam observá-la. Também avistou alguns esquilos, e junto ao portão, encontrou um gatinho preto que a seguiu para dentro da casa. Ela empurrou a pesada porta de madeira, que rangeu, saudando-a.

Adentrou o living de piso de mármore preto e branco, onde deixou sua bagagem, e caminhou vagarosamente pela sala de estar, onde uma grande  lareira que ocupava toda uma parede tinha sido acesa. Em volta dela, sofás de veludo verde escuro, e uma escura mesa de centro de madeira pesada, cujos pés imitavam patas de leão. As paredes pintadas de creme suavizavam a austeridade da mobília. Ela olhou para sua esquerda, onde viu um senhor de costas para a porta, sentado à mesa da sala de jantar examinando documentos. Ele parecia ser muito idoso. Eduína pigarreou a fim de chamar sua atenção, e ele se levantou vagarosamente, apoiando-se na mesa.

-Boa tarde, senhorita Eduína! Sou o Dr. Ferdinando Alves. Prazer em conhecê-la.

Ela ensaiou um sorriso que não surgiu nos lábios:

-Olá, como vai?

Ele fez sinal para que ela entrasse na sala de jantar, e se sentasse em frente a ele. Eduína percebeu que suas mãos estavam geladas, e torceu os dedos sob a tampa da mesa. Dr. Alves deu início à leitura do testamento. Equanto ele lia, ela olhava em volta e via retratos pintados de uma mulher, que concluiu que deveria ser sua avó quando jovem, e de algumas outras pessoas que presumivelmente, eram membros de sua família desconhecida. Todas as pinturas retratavam pessoas sérias e elegantes.

Ao final da leitura, ele limpou os óculos:

-Você tem alguma pergunta?

Eduína escutou um relógio bater quatro horas da tarde. A sala começava a escurecer.

-Então... esta casa é minha, e tudo que tem nela me pertence? E também todo esse... dinheiro, propriedades, e até mesmo um avião? Eu sou uma mulher rica?

Ele acenou com a cabeça, concordando, enquanto recolocava os óculos.

-Mas... e os demais membros da minha família? Onde estão?

-Uma coisa de cada vez, mocinha. Por enquanto, instale-se e descanse. Alguém virá amanhã de manhã para assumir os cuidados com a casa, uma arrumadeira e uma cozinheira. Elas já trabalham aqui há muito tempo, desde que sua mãe nasceu. Com o recente passamento de sua bisavó, elas se retiraram por alguns dias. Mas logo estarão de volta.

Eduína finalmente acreditou que tudo aquilo era verdade: aquela casa, onde sua mãe tinha nascido e que pertencia à sua família há mais de duzentos anos, agora era sua. Mas por que ela tinha sido deixada em um orfanato, para que alguém a adotasse, já que eram todos tão ricos?

Após a saída de Dr. Alves, ela decidiu conhecer a casa.

Aquele que seria seu quarto tinha sido arrumado e limpo, e lençóis frescos e perfumados cobriam o colchão de molas macio. Encimando a arrumação da cama, um belíssimo edredom de penas de ganso totalmente branco e travesseiros que de tão macios, pareciam nuvens. A lareira do quarto tinha sido acesa. Uma muda de camisola e robe de cetim tinha sido deixada sobre a cama, junto com um par de pantufas emplumadas cor de creme.

Ela foi até o banheiro, e ao avistar a enorme banheira de louça bem no meio do cômodo, imediatamente começou a enchê-la; sentia-se em um cenário de filme. Entornou na água os sais de banho perfumados e também o líquido sedoso e perolado que produziu uma espuma branca  e densa. Eduína deixou-se ficar ali, e acabou adormecendo. Acordou uma hora e quinze minutos depois, e deu com o gato preto que entrara na casa sentado em frente a banheira, fitando-a calmamente.

Ele a seguiu de volta para o quarto, esperando no tapete enquanto ela se vestia. Seu estômago deu sinal, e Eduína lembrou-se que ainda não comera o dia todo, e já tinha anoitecido. Ela foi para a cozinha, seguida pelo seu novo amigo silencioso. Ao abrir o armário para encontrar ingredientes para um sanduíche, deparou com latas de comida para gatos arrumadas em uma prateleira. Eram dezenas delas. O gato miou, a cauda erguida, andando em volta dela. Eduína serviu-o, pensando que ele morava ali afinal, e deveria ter pertencido à sua bisavó.

Ela encontrou uma terrina de sopa ao abrir a geladeira, e torrando o pão do armário, aqueceu a sopa e começou a comer. Nunca tinha comido algo tão maravilhoso, e era apenas uma simples sopa! “A fome é o melhor tempero”, ela pensou.

Ao terminar de comer e passar pelo corredor, casualmente olhou-se no espelho e percebeu que estava diferente: ainda era a mesma Eduína de sempre, mas incrivelmente, sua beleza aumentara. Ela não sabia explicar o que havia acontecido, apenas que sua pele estava imaculada, sem nem mesmo as sardas discretas que ela sempre tivera sobre o nariz. Os olhos tinham um brilho mais vivo, e os cabelos, que já eram bonitos, estavam mais cheios e sedosos que antes. O contorno do seu corpo também mudara, tornando-se mais elegante. Eduína pensou: “Já faz tanto tempo que eu realmente não me olhava no espelho, que nem tinha reparado no quanto sou bonita. É isso.”  Mas ela sabia instintivamente que não era só aquilo. Havia alguma coisa estranha com aquela casa e aquela rua. E até mesmo, com aquele gato, que a seguia religiosamente aonde quer que ela fosse.

Eduína sentou-se um pouco no sofá de veludo verde da sala de estar, olhando as brasas da lareira ainda estavam acesas. O gato sentou-se na poltrona em frente a ela, as patas dianteiras sob o corpo como um perfeito iogue de olhos entreabertos. Ela o chamou, fazendo sinal para que ele se aproximasse, e ele imediatamente pulou da poltrona e subiu no sofá, acomodando-se ao lado dela, a cabeça em seu colo. Eduína acariciou-o até que ele adormecesse.

Ela acabou adormecendo logo em seguida.

Despertou de repente, mas em torpor, sem conseguir abrir totalmente os olhos ou mover o corpo. Vislumbrava pessoas cochichando em volta dela, e rostos opacos que se aproximavam do rosto dela, observando-a, mas ela não conseguia falar ou se mover. Mas não sentia medo. Estava tranquila, pois estava em família. Nada tinha a temer. Sabia que tomariam conta dela. E o gato velaria por seu sono.


(continua...)


 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 3

 




PARTE 3 - EDUÍNA

 

Há muitos quilômetros dali, mais precisamente, a quase mil quilômetros, Eduína preparava-se para dormir, após um dia de trabalho no shopping center, onde era gerente de uma loja de roupas. Devemos saber que ela era uma moça de cabelos pretos, lisos e escorridos, alta e magra, que chamava a atenção pela beleza de seus olhos verde escuros e seu ar de mistério. Não tinha muitos amigos. Na verdade, não tinha amigo nenhum, apenas os colegas de trabalho com quem se relacionava somente no horário de expediente. Jamais conhecera seus pais, tendo sido adotada e criada por um casal de meia idade que falecera em um acidente de carro quando ela completou dezoito anos. Deles, ela herdou uma pequena casa em um bairro de classe média, algumas dívidas e uma solidão imensa.

Apesar de ser muito bonita, aos quase vinte e dois anos de idade Eduína nunca tivera um namorado, pois os rapazes a evitavam por motivos que nem mesmo eles conheciam. Ela era tratada com respeito e distância desde os tempos da escola. Ninguém a convidava para as festinhas de aniversário ou bailes de debutantes, e ela não se sentia ofendida. No fundo, Eduína sabia que seu destino não estava ali, entre aquelas pessoas comuns e superficiais, e eles intuíam a mesma coisa sobre ela. Alguns comentavam que não se sentiam à vontade perto dela. Uma de suas colegas de classe, durante uma conversa dissera: “Não sei o que é. Não é que ela seja estranha, ou antipática. Só não me sinto à vontade. Tenho a impressão de que ela lê a gente por dentro...”

Após a morte dos pais adotivos, alguns a visitaram levando tortas, bolos e pratos salgados, mas permaneceram por poucos minutos, tal o desconforto que sentiam sob seu olhar penetrante. E eles tinham razão de se sentirem desconfortáveis, pois a moça era capaz de captar os verdadeiros sentimentos das pessoas: medo, curiosidade, pena, indiferença. Quase não havia traços de empatia sincera por ela ou pela sua recente orfandade. A maioria deles estavam ali por obrigação social ou curiosidade.

Eduína continuou sua vida após os três dias de luto concedidos a ela por lei. Na verdade, não sentia um grande amor pelos pais adotivos, apenas gratidão por a terem criado, afeto e uma certa distância. Tratava-os com respeito, partilhando com eles coisas corriqueiras sobre a escola e o que havia aprendido. Comemoravam seu aniversários sempre a três, com um bolo que era confeitado por sua mãe, um refrigerante que o pai levava para casa e um pequeno presente, que era geralmente um livro, alguma peça de roupa ou material escolar. Entre os três parecia haver um acordo silencioso de não se amarem, mas de se tratarem com muito respeito e afeto calculado. Eduína nada sabia sobre seu passado, e nunca se importara em perguntar onde tinha sido adotada, por quê, ou quem eram seus verdadeiros pais. Ela vivia a vida sem se preocupar.

Gostava de caminhar pelo parque da pequena cidade onde viviam e observar os pássaros, esquilos e insetos. Não tinha nenhuma curiosidade sobre seu passado ou sobre seu futuro. Porque ela sabia, instintivamente, que seu destino, embora ela nada conhecesse sobre ele,  já tinha sido traçado, e que bastava esperar por direcionamento.

Após a morte dos pais ela continuou fazendo o que sempre fazia: ia ao trabalho, cumpria suas funções com esmero e dedicação e ao final de cada dia, após passar no mercado, jantava, assistia a algum filme ou lia um dos seus livros e ia dormir. Nos finais de semana, limpava a casa.

Eduína não frequentara a faculdade, pois os pais adotivos não tinham recursos financeiros, e ela, nenhum interesse em aprender mais do que já sabia. E o que ela sabia era alguma coisa que crescia dentro dela a cada dia, aumentando gradativamente a cada aniversário, algo que ela aprendia através do seu instinto. Era sofisticada, discreta, altiva. Interessava-se em ler sobre assuntos que os jovens da sua idade nem cogitavam: espiritualidade, a cura através das plantas, os chakras, aromaterapia, cromoterapia, cristais e seus usos. Também sentia uma grande conexão com os animais. Eles pareciam entendê-la e se aproximarem dela. Alimentava todos os animais de rua que encontrava, mas não os levava para casa, pois entendia que eles tinham amor pela sua liberdade e não gostariam de serem resgatados para viverem trancafiados em abrigos ou quintais mínimos, sujeitos às neuroses de seus tutores ou protetores. Cães e gatos de rua gostavam de serem alimentados, tratados e deixados em paz para viverem suas vidas em liberdade, como sempre haviam sido acostumados. Mas ela tinha grande pena dos animais que haviam sido criados em casas e abandonados por seus donos após algum tempo, pois sentia na pele a solidão e o medo deles. E ela tinha conseguido resgatar alguns e encaminhá-los a novos tutores, apesar da desaprovação dos pais adotivos.

Assim vivia Eduína. É claro que uma moça tão bonita, um dia tivera um namorado.

Cláudio a conheceu no shopping center. Entrara na loja onde ela trabalhava para comprar um presente para sua namorada pelo seu aniversário. Mas ao colocar os olhos em Eduína, ele não conseguiu se concentrar mais no que estava fazendo ali, e convidou-a para tomar um café com ele. Surpresa, Eduína aceitou o convite, mais por curiosidade do que por sentir-se atraída pelo rapaz alto e de pele moreno-escura. Ela nem reparou muito nos músculos acentuados sob a camiseta ou os cabelos crespos cortados rentes ao couro cabeludo, formando uma linha precisa em volta do rosto de queixo quadrado. E ela nunca perguntou sobre sua namorada, nunca quis saber se ele a tinha deixado por ela, apesar de ele tê-la informado sobre aquilo. Os dois começaram a sair juntos na noite seguinte, indo ao cinema e depois, jantar. Eles falaram sobre coisas corriqueiras – o trabalho, as mudanças climáticas, música.

Durante a maior parte do tempo em que estiveram sentados à mesa do restaurante, Eduína sentiu-se fascinada pelas mãos dele, as unhas claras e lisas com meias-luas brancas sobre a pele escura, os dedos longos. Ela sempre se sentia atraída pelas mãos das pessoas, e podia intuir coisas sobre elas observando-as. E ela intuiu que Cláudio era um rapaz sonhador, vaidoso, e ao mesmo tempo que passava a imagem de alguém arrojado, era na verdade bastante tímido e inseguro.

Após o jantar ele a levou em casa, e quando o carro parou diante do portão, ela perguntou se ele gostaria de entrar, o que ele aceitou imediatamente.

Dentro da casa, ela preparou um café forte e serviu-o na sala de estar. Ela mesma não gostava muito de café, e tomou apenas um copo de água. Cláudio olhou em volta e reparou na simplicidade da casa quase nua de adornos, e também na limpeza e organização. Perguntou:

-Você mora aqui sozinha?

Ela pareceu sair de um transe, demorando um pouco para responder, um tom de casualidade na voz:

-Ah, sim. Meus pais morreram há dois anos. Acidente de carro. Desde então vivo sozinha.

Ele achou estranha a frieza dela:

-Nossa, eu... sinto muito!

Ela sorriu:

-Obrigada. O café está bom? Não estou muito acostumada a fazer café, sabe. Não gosto de café. Prefiro um suco de frutas, ou água, ou chá.

Cláudio achou estranha  maneira como ela mudara de assunto, mas não fez comentários e achou melhor não insistir. Tentou soar casual como ela:

-Está muito bom, Eduína, obrigada.

Um silêncio tenso desceu sobre eles, que olharam em volta, para as paredes brancas, as cortinas brancas, a mesa de centro de madeira vazia de adornos, a não ser por um pequeno vaso de flores artificiais que pertencera à mãe. Finalmente, os olhares de ambos foram parar sobre o piso de tábuas corridas imaculadamente encerado e desprovido de tapetes. Cláudio pousou a xícara sobre a mesa:

-Bem, está ficando tarde. E nós trabalhamos amanhã, certo?

Ela se levantou rapidamente, quase em um salto:

-Não vá ainda!

Ele ficou parado no meio da sala, e Eduína caminhou até ele devagar, os olhos verdes sem deixar os olhos dele, quase hipnotizando-o, sentindo o forte desejo que emanava dele e que ele nem tentava disfarçar. Ele apenas sussurrou:

-Você sabe que eu tenho uma garota.

Ela não respondeu, e desajeitadamente, beijou-o na boca. Logo, o beijo desajeitado tornou-se uma fogueira onde os dois se consumiram pelo resto da noite. E ela queria sempre mais, deixando-o totalmente esgotado na manhã seguinte, e ele percebeu que ela era virgem, o que o deixou ainda mais excitado.

Quando o dia clareou, Cláudio sentia-se ao mesmo tempo feliz e estranho. Não sabia explicar a si mesmo as suas sensações, a não ser que terminaria com sua namorada naquele mesmo dia, pois achava ter encontrado o amor da sua vida. Era como se Eduína tivesse feito com que cada dia de sua existência finalmente fizesse sentido.

E eles namoraram durante seis meses, encontrando-se diariamente. Não falavam muito quando estavam juntos, a não ser o essencial, e ele logo se acostumou com a maneira de ser da moça. Eduína era quieta, e diferentemente de sua ex-namorada, não demonstrava ciúmes e não gostava de sair com seu  grupo de amigos, que aos poucos, foram se afastando, embora ela jamais tivesse exigido aquilo dele. Eles diziam que não se sentiam à vontade perto dela. Cláudio foi aconselhado por eles a não se envolver tão rapidamente, mas ele estava completamente apaixonado. Nem percebia que seu sentimento não era compartilhado por Eduína, achando que suas maneiras frias e seu jeito calado eram apenas a personalidade dela.

O sexo era sensacional; algo que ele jamais pensara em experimentar antes. Eduína era sexy, naturalmente sexy. E quando estavam juntos, ela se entregava totalmente a ele, que pensava estar dominando a situação, mas na verdade, sem que ele percebesse, ficava totalmente à mercê dos desejos dela.

Iam ao cinema, pois lá, podiam ficar algumas horas sem falar (pensamento de Eduína). Gostavam também de passear pelo parque, e Cláudio sempre se espantava com a facilidade com que os animais se aproximavam dela, comendo da sua mão. Durante a semana, eles trabalhavam. Cláudio era engenheiro civil, e trabalhava em uma construtora local. Assim, a vida deles ia acontecendo sem sobressaltos, e Cláudio cada vez mais se sentia envolvido por ela, como se Eduína estivesse destinada a ele desde sempre. E ele fazia muitos planos; alguns compartilhava com ela, que o escutava calada, sorrindo às vezes, mas delicadamente mudando de assunto.

Até que em uma noite de sábado, após uma sessão de cinema, enquanto comiam pipoca e caminhavam juntos na calçada em direção ao carro, ela disse:

-Cláudio, acho melhor nos separarmos.

Ele estancou o passo, e ela continuou caminhando um pouco, até que parou e olhou para trás:

-Você me leva em casa?

Atônito, Cláudio balbuciou:

-O que você... Eduína, você quer terminar comigo? É isso, ou é brincadeira? É brincadeira, não é?

Ela arregalou os olhos:

-Não. Eu não brincaria com uma coisa dessas, Cláudio. É que já estamos juntos há seis meses, e eu não quero me casar agora.

Ele riu:

-Mas... eu também não quero!

-Então, para quê continuar? Eu não quero me casar, e nem você. Por que continuar?

-Ora, Eduína... é claro que eu contei a você sobre meus planos de nos casarmos, mas não é para agora...

- Disse bem: seus planos. Alguma vez você se perguntou se os meus planos eram os mesmos que os seus? Por que continuar, Cláudio?

Ele tentava esconder seu desespero, torcendo os dedos dentro dos bolsos do casaco.

-Porque eu... eu amo você, estou apaixonado! E você também. Não é? O que isso tem a ver com casamento?

-Olha, eu sou sempre muito objetiva, sabe.  Gosto muito de você, Cláudio, mas não me vejo casada com você, tendo filhos, acordando juntos todos os dias... eu preciso ser sincera. O sexo é excelente, mas sexo não é tudo. Existem mais coisas que são importantes para ficar com alguém. A gente se diverte juntos, é verdade, e gosto da sua companhia, mas não sinto que fomos feitos um para o outro, sabe.

Aquelas palavras atingiram-no como um soco. Ele percebeu que nunca a vira tão eloquente. E ela estava sendo eloquente justamente no momento em que estava causando a ele uma grande dor. Era impressão ou ela sentia um pequeno prazer ao destruir seus sonhos? Não; não poderia ser verdade, ela o estava testando. Cláudio sorriu, mais uma vez tentando esconder o nervosismo:

-Ah, já percebi! Na verdade, você acha que eu não estou levando a gente a sério. Mas eu estou, e quero provar para você. Vamos noivar!

Ela riu alto:

-O que é isso, você ficou louco? Eu estou terminando com você, Cláudio, será que não fui clara?

Ele pareceu confuso. Lágrimas chegaram à tona dos seus olhos, e ele engoliu em seco, pois chorar na frente dela seria humilhação demais. Mas logo após aquele pensamento, ele se viu de joelhos diante de Eduína, que olhava para os lados, vendo as pessoas que passavam pela calçada e os observavam.

-Case-se comigo, Eduína! Por favor!

Ela ergueu as mãos para cima, num gesto de impaciência:

-Cláudio, pare de fazer papel ridículo! As pessoas estão olhando!

Ele olhou em volta e se pôs de pé. Olhou para ela, impotente, sentindo-se cada vez mais triste. Eduína sacudiu a cabeça, respirando fundo, e segurando as mãos dele, tentou chamá-lo à razão:

-Cláudio, por que tornar a vida tão complicada? Nós tivemos momentos bons, nos divertimos, construímos uma grande amizade. Mas eu tenho que dizer a verdade, e ela é: eu não quero me casar com você! Então não vejo motivos para continuarmos juntos.

-Você tem outra pessoa, não é? É isso, você conheceu alguém!

Ele puxou as mãos, cruzando os braços e tentando conter o choro. Ela respondeu, a voz quase implorando por compreensão:

-Não, eu não tenho ninguém, e nem quero ter. Eu... estou pensando em... mudar a minha vida, sei lá... minha rotina está chata, sem sentido. Eu quero descobrir coisas. É como se algo me puxasse para um determinado destino que eu ainda não sei qual é, mas a única coisa que eu sei, é que você não vai caber nele. Não tem como encaixar você ou qualquer outra pessoa.

E naquela noite, Eduína deixou de encontrar-se com Cláudio. O rapaz ficou arrasado, mas decidiu que seria melhor aceitar e seguir com sua vida, pois quando um não quer, dois não brigam. Foi uma separação inconformada e dolorida da parte dele, e libertadora da parte dela.

Na cama, enquanto os primeiros clarões da manhã de domingo penetravam pelas frestas das persianas, Eduína sentiu-se mal. Foi algo repentino, um forte enjôo, e ela quase não teve tempo de chegar ao banheiro para vomitar. E ela vomitou durante vários minutos, colocando para fora litros de um líquido amarelo escuro que ela não sabia de onde vinha. As sensações foram horríveis, de dor no peito e esgotamento, mas ao mesmo tempo, ela sabia que estava sendo limpa. E não era apenas o seu corpo que estava sendo limpo, mas toda a sua energia, sua alma. De manhã, ligou para a loja e disse que não trabalharia, pois estava doente. As pessoas estranharam, pois em quatro anos de trabalho, aquela era a primeira vez que Eduína faltava. Ela agradeceu pela preocupação, disse que já se sentia melhor, embora esgotada, mas que não se sentia bem o suficiente para trabalhar, e que compensaria trocando sua folga de segunda-feira com outra pessoa.

Naquele dia, ela tomou muito chá. Fez uma dieta liquida que limpou-a por dentro, e ficou na cama, dormindo por horas.

Na segunda-feira de manhã acordou sentindo-se melhor, mas a caminho do trabalho, teve que sair do ônibus às pressas para vomitar na calçada. Foi ajudada por uma mulher de meia-idade, que conduziu-a a um posto de saúde e ficou com ela até que fosse atendida.

Pediram-lhe vários exames. Deram-lhe alguns antieméticos na veia e mandaram-na para casa com um atestado médico para três dias.

Mas ela não melhorou. Vomitava absolutamente toda a água, suco ou sopa que colocasse no estômago. Acabou tendo que voltar ao posto médico, onde foi internada. Uma enfermeira que cuidava dela, perguntou:

-Quer que eu chame alguém da família?

E ela se deu conta de que não tinha ninguém. Mas aquilo não causou nenhuma dor, apenas uma compreensão conformada de que sua vida seguiria por um caminho solitário.

Os exames não mostraram nada de errado com a saúde de Eduína. Como ela estivesse se sentindo melhor e os vômitos tivessem passado, deram-lhe altas e ela foi para casa. Na manhã seguinte, ao chegar ao trabalho, disseram-lhe que estava sendo demitida.

Eduína assinou os papéis da demissão sem questionar ou tentar se defender, sabendo que estava assinando permissão para uma nova fase de sua vida que começaria em breve. Despediu-se brevemente dos colegas e saiu da loja sem olhar para trás. Ao invés de se sentir insegura a respeito do futuro, antes de ir para casa ela caminhou até uma imobiliária e pediu que fizessem uma avaliação de seu imóvel, colocando-o à venda. Os pais o tinham doado para ela em vida dias antes do acidente, portanto, não haveria nenhum problema em vendê-lo.

Ela ainda se lembrava da noite, após o jantar, em que eles tinham comunicado o fato a ela. Sua mãe e pai adotivos a chamaram para uma conversa, e sentaram-se à mesa da cozinha. Os dois se entreolharam, e o pai disse:

-Eduína, queremos que saiba que fizemos uma doação em vida a você da casa e de tudo o que há nela. Temos também um pequeno terreno fora da cidade que não vale muito, mas é seu. Ainda não acabamos de pagar o carro, mas ele está no seguro, e caso alguma coisa aconteça, você terá direito a uma indenização. Fora isso, tenho algumas dívidas no banco... mas eles não podem tomar a casa de você.

Eduína indagou:

-Mas por que fizeram isso?

A mãe, torcendo as mãos nervosamente, respondeu:

-Filha, a gente nunca sabe o dia de amanhã.

Mas o olhar trocado entre a mãe e o pai deu a ela a certeza de que sim, eles sabiam exatamente o que o dia de amanhã lhes traria. Ela ficou preocupada com eles, mas uma voz interior lhe disse que não se preocupasse, pois tudo seria como deveria ser.


(CONTINUA...)






 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A RUA DOS AUSENTES - Parte 2

 





PARTE 2 – NOTÍCIAS

 

E aquela sexta-feira 13 ainda tinha muitas histórias para contar. A primeira delas ocorreu no final da tarde, quando Lázaro adentrou o pub Mário’s. A porta rangeu mais que o normal quando ele a empurrou, e o burburinho típico do local silenciou durante alguns segundos enquanto o velho encurvado se dirigia ao balcão pedindo uma dose de gin. Ele já não era visto por ali há meses. Conhecido por não falar quase nada e só responder por monossílabos, sem nunca olhar diretamente no rosto das pessoas – apenas quando ele mesmo o desejava – Lázaro parecia ainda mais soturno do que o normal, se é que isso era possível.

Os homens curiosos desejavam saber mais, e a curiosidade deles causava desagradáveis calores e coceiras pelos corpos agasalhados. Finalmente, um deles se aproximou de Lázaro, sendo observado por todos os demais, e pigarreando ruidosamente, cumprimentou-o:

-Boa noite, Lázaro, há quanto tempo, hein?

Lázaro apenas tocou a aba do chapéu que jamais tirava, mas sem olhar para ele. O homem olhou em volta, procurando apoio, e alguns o incentivaram com um leve aceno de cabeça. Ele continuou:

-Então. Vimos quando o carro fúnebre entrou na cidade esta manhã e foi até a Rua dos Ausentes.

Ele aguardou, esperançoso, achando que Lázaro contaria a história. Naquele momento, o bar estava em silêncio quando Lázaro olhou-o brevemente, e passou os olhos pelo bar, tomando seu gim de uma só vez, finalizando o evento com uma breve careta e colocando o copo de volta sobre o balcão com força.

Lázaro se levantou, dizendo:

-E viram mesmo.

Enquanto ele cruzava a distância do balcão até a saída do bar, uma voz se fez ouvir:

-Conte-nos mais, Lázaro! Quem morreu?

Ele estancou, a mão na maçaneta, e respondeu sem olhar para trás:

-Como vocês podem ver, não fui eu.

E dizendo aquilo, ele saiu para a cidade onde uma névoa cinzenta e gelada encobria as luzes dos postes e faróis de carros. Entrou em seu Buick preto, e acelerando, foi embora.

No dia seguinte, sábado, as pessoas percorriam os jornais em busca de alguma nota fúnebre – e a encontraram.

Morrera Évora Siqueira Camargo, 98 anos de idade, moradora da Rua do Silêncio, e seria cremada em uma cerimônia particular na cidade vizinha de Porto Seguro. “Que Deus desse paz à sua alma,” diziam as velhas da cidade, falsamente demonstrando um luto que não sentiam e  fazendo o sinal da cruz, se entreolhando significativamente. Algumas pessoas diziam: “Nem sabia que ela ainda estava viva!”

Alguns curiosos ainda tiveram o trabalho de, na manhã de domingo, percorrer os 120 quilômetros que separavam as duas cidades a fim de tentarem ver o que acontecia no velório da velha senhora, mas como era uma cerimônia totalmente privada, nada ou quase nada conseguiram vislumbrar. Porém, trouxeram consigo algumas histórias fragmentadas sobre um pequeno grupo de pessoas – não mais que doze, não menos que dez - elegantemente vestidas que mal se comunicavam umas com as outras, mas que ao mesmo tempo, pareciam demonstrar um enorme conforto e intimidade entre elas. Todas elas aparentavam estar na idade madura, entre quarenta e setenta anos. Após a cerimônia, o pequeno grupo deixou o local, entrando imediatamente em seus carrões, alguns dirigidos por motoristas particulares, rumo a lugares que os curiosos não sabiam explicar.

Voltando ao dia anterior – sábado – após a remoção do féretro pela manhã, logo após o almoço um  acontecimento inédito  trouxe uma onda de mistério e especulações ainda maiores à cidade de Pico Negro: um enorme bando de pássaros negros percorreu os céus da cidade. Eram corvos. Eles passaram voando e grasnando, sem pousarem em qualquer local, indo em direção à Rua do Silêncio. Dizem os mais exagerados que eram mais de mil e quinhentos pássaros, mas como alguém poderia tê-los contado? Após o estranho evento, eles não foram mais vistos.

Naquela tarde, caiu uma chuva torrencial que durou quase uma hora, com muitos raios e trovões, o que era atípico para aquela estação. Os moradores recolheram-se em suas casas, deixando as ruas e estabelecimentos comerciais totalmente vazios até o anoitecer, mesmo após a chuva ter parado. Então, no início da noite, após o fechamento do comércio local, alguns homens dirigiram-se ao Mario’s a fim de compartilharem suas superstições uns com os outros.


(Continua)



 

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 1




A RUA DOS AUSENTES

 

PARTE 1 – A RUA E A CIDADE

 

Algumas pessoas acreditam que as casas têm almas. São vestígios e influências das almas que as habitaram ao longo dos anos, mas também possuem uma alma própria, uma personalidade, que se cria independentemente de quem vive ou viveu nelas. O Feng Shui ensina que há vários fatores que influenciam a energia de uma casa: o local onde ela é construída, se é voltada para o norte ou para o sul, se os cômodos são harmoniosamente distribuidos, se os habitantes são pessoas que brigam muito ou se são pacíficos, se passam veios d’água sob o terreno, etc., e cada um desses e de outros  fatores não mencionados aqui dirão se uma casa e suas energias são saudáveis ou não.

Para outras pessoas, uma casa nada mais é do que um lugar para onde se volta à noite após o trabalho, como um dormitório, uma caixa que os abriga apenas. Não se preocupam sequer em decorá-la ou limpá-la, nem sentem qualquer vínculo com ela. Ao escolherem uma moradia, levam em conta somente a conveniência do local onde ela se encontra, sem se importarem com coisas como a vizinhança, o barulho, se há árvores por perto ou não. Basta que esta casa ou apartamento estejam situados próximos ao local de trabalho ou estudos.

As casas da Rua do Silêncio, que ficava na pequena cidade montanhosa de Pico Negro, eram todas construídas há mais de cem anos (dizem que, algumas delas, há mais tempo do que isso)  são da primeira espécie. Pelo menos, é o que a história conta. A Rua do Silêncio, segundo dizem, foi escolhida por antigos membros de uma seita misteriosa devido à sua proximidade com um bosque, que fica bem ao final desta rua sem saída, e das muitas árvores antigas, que existiam antes das construções e que foram preservadas até os dias atuais. Era uma rua larga, de calçadas também largas, e as casas ficavam alguns bons metros de distância umas das outras. O bosque era cercado por um lago muito profundo, e a única entrada por terra era através da rua. Devido às lendas que foram crescendo ao longo dos anos (e de alguns afogamentos que ocorreram no local, de adolescentes que decidiram desafiar uns aos outros nadando no lago nos anos setenta), os moradores da cidade evitavam o local, alegando que seria perigoso ou até mesmo, assombrado.

Também era fato conhecido (embora ninguém mais se lembrasse de como eles haviam surgido) de que a geometria das casas seguia uma ordem estabelecida, e que todas elas tinham o mesmo número de cômodos, dispostos exatamente da mesma maneira. Todas elas eram casas brancas. Todas elas ficavam no fundo do terreno, tendo a parte dos fundos bem próxima e voltada para a floresta, totalmente impossível de ser avistadas por quem passasse na rua (mesmo que apenas os próprios moradores o fizessem). Todas elas tinham um pequeno lago com uma fonte no terreno do jardim da frente, e a água de cada fonte jorrava das mãos, jarras ou  bocas de figuras mitológicas, como Pan, Diana, dragões, fadas, etc.

Por causa do grande número de árvores dispostas em ambos os lados, a Rua do Silêncio não era exatamente uma rua ensolarada e luminosa. O sol incidia principalmente no verão, entre oito da manhã e cinco da tarde, sendo filtrado pelas folhas das árvores e indo iluminar os quintais protegidos por grades de ferro. Já nos meses mais frios – final de outono e todo o inverno – o grande astro dava o ar de sua presença apenas entre dez da manhã e duas da tarde, pois passava rente às copas das árvores do bosque. Sendo assim, o musgo grudava em espessas camadas de veludo verde escuro nos cantos dos muros, calçadas e troncos de árvores, e a rua tornava-se especialmente fria e úmida nesta época.

Não era qualquer pessoa que tinha acesso à Rua do Silêncio; sendo uma rua sem saída, era também uma rua com entrada limitada por uma guarita, sempre vigiada. Apenas os moradores e seus convidados podiam entrar. Por esse motivo, e também devido às histórias contadas sobre as pessoas que lá moravam e a seita misteriosa à qual pertenciam, entrar na Rua do Silêncio era como um rito de passagem para grupos de crianças e adolescentes, que apostavam que seriam capazes de circundar a guarita pela mata e de, entrando na rua, pular a cerca de alguma casa, tocar a campainha e sair correndo antes de serem descobertos.

E assim tem sido por muitos anos, desde que a rua existe, e muitas das histórias contadas (ou inventadas) sobre os moradores e suas casas vinham dessas visitas furtivas feitas pelos adolescentes – embora com a total desaprovação dos pais destes.

As treze casas eram daquele tipo de casas dos tempos em que as construções eram obras de arte: o esmero estava presente em cada detalhe, grade, formato de telhado (todas elas tinham a fachada de chalés vitorianos, com algumas variações) e jardins. As casas tinham roseiras de várias cores, e também folhagens exóticas que não eram encontradas facilmente entre as plantas locais. E tudo parecia crescer e florescer sem muito esforço, assim como o musgo nos caminhos de pedras que levavam do portão às portas de entrada das casas. Havia total harmonia entre as construções, mas mesmo assim, mas dizia-se que cada casa tinha a personalidade de quem nela morava.

Sim, o verbo está no passado. Porque nos dias de hoje, dizem que ninguém mais vive na Rua do Silêncio – a não ser Lázaro, o vigia, um homem muito velho, de cuja idade ninguém se lembra mais, porém cada pessoa daquele bairro afirma têlo conhecido quando criança, e ele já era velho desde então. Em tempos antigos, Lázaro era visto na mercearia, nas farmácias, nos mercados e demais estabelecimentos comerciais, sempre dirigindo um elegante Buick preto cuja origem era desconhecida – (alguns diziam que tinha sido presente de um dos moradores da rua), fazendo compras e cumprindo tarefas que lhe eram encomendadas. Porque os habitantes não eram de sair muito, nem de se relacionar com outras pessoas que não morassem na Rua do Silêncio. Lázaro respeitava a privacidade de seus patrões e jamais tecia qualquer tipo de comentário sobre suas vidas. “Era mais fiel do que um cão,” as pessoas diziam. Talvez por isso tivesse mantido seu emprego há tanto tempo.

E nos dias de hoje, todos afirmam que o vigia atual é outra pessoa, pois não seria possível que alguém vivesse por tantos anos, já sendo tão velho. Ninguém se lembra mais quando Lázaro tinha começado a trabalhar como vigia na Rua do Silêncio, ou quem cumpria sua função antes dele, e quando alguém toca no assunto, durante as conversas tardias nos bares do bairro, ou nas calçadas onde mulheres seguram suas vassouras e fingem estar varrendo, as pessoas ficam estranhamente confusas e acabam mudando de assunto.

Os antigos dizem que os moradores das treze casas da Rua do Silêncio eram pessoas muito misteriosas. Era difícil ver uma delas, pois quando saíam de casa, era quase sempre no final da tarde ou à noite, em seus carros luxuosos cujas janelas estavam sempre fechadas. Ocasionalmente, porém, alguém dizia ter visto um deles, dizendo ser pessoas muito elegantes que  sempre vestiam marrom, preto ou cinza. Mas quando alguém pedia mais detalhes sobre eles, ninguém conseguia se lembrar de mais nada. Era estranho.

Dizem que havia crianças em algumas casas, mas elas não frequentavam as escolas locais, nem tinham amigos na vizinhança.

Duas gerações viveram e morreram naquele bairro, e por isso, a Rua do Silêncio foi aos poucos sendo esquecida, tornando-se uma lenda muito vaga, uma história que os antigos contavam, algo como uma lenda urbana, e apesar da presença constante na guarita  de um homem velho com cara de poucos amigos que diz chamar-se Lázaro, ninguém tem mais paciência de ficar especulando sobre mais nada. E assim, todos concluíram que os moradores das treze casas da Rua do Silêncio já tinham ido dessa para melhor ou se mudado para outros locais, e que as casas estão todas desabitadas, e que os herdeiros, desinteressados nos antigos mausoléus cuja manutenção deveria custar muito caro, mantém Lázaro na guarita apenas para vigiar o que resta do seu patrimônio até que as casas sejam vendidas. Mesmo assim, ninguém parece interessado em comprá-las.

Apesar da placa enferrujada onde se lê “Rua do Silêncio,” as pessoas se referem ao local apenas como Rua dos Ausentes, justamente por acreditarem que ninguém mais mora ali, a não ser Lázaro, que habita uma casinha modesta no começo da rua, junto à guarita.

O restante do bairro tinha sido invadido pelo progresso, mas a Rua dos Ausentes conserva-se intacta, imutável, com todos os seus mistérios e segredos imaginados e inimagináveis.

Se há algum poder mágico sobre a rua que faz com que os moradores da cidade a deixem em paz nos dias de hoje, é controverso. Alguns acreditam que sim, há alguma coisa estranha a respeito da rua; já outros, menos supersticiosos, declaram que é tudo bobagem, uma lenda criada pelos próprios moradores para que ninguém invada suas propriedades.

Se você chegasse junto à guarita nos dias de hoje e olhasse através das grades de ferro, veria além delas uma curva fechada em rua larga de paralelepípedos cobertos de musgo, ladeada por pinheiros e eucaliptos. Mal conseguiria vislumbrar a ponta do telhado da primeira casa, que fica à direita. E é claro, veria também a casinha branca encardida pelo musgo e pelo passar dos anos onde habita nosso controverso Lázaro (ou seja lá quem for). Há, quase sempre, fumaça saindo pela chaminé. Raramente alguém vê Lázaro na cidade nos dias atuais, pois dizem que ele se rendeu à tecnologia e faz a maior parte de suas compras de casa, através da internet. Mas ninguém tem certeza. As pessoas adoram especular sobre a vida alheia. Os mais imaginativos afirmam que Lázaro se alimenta de caça e pesca, e de algumas coisas que ele mesmo cultiva. Na verdade, ninguém sabe.

A Rua dos Ausentes (vamos usar este nome, o mais popular, daqui em diante) e suas histórias estiveram adormecidas por muitos anos, desde que o último morador foi visto. Mas ela não morreu; suas casas permaneceram adormecidas (quem sabe, seus estranhos moradores também estivesse imersos em um profundo sono), esperando que alguma coisa acontecesse. Quase esquecida, a rua aproveitou-se da passagem do tempo para criar novo fôlego. E na calada da noite, enquanto a cidade dormia, algo estava em ebulição dentro daquelas casas, saido pelas chaminés e subindo pelos troncos das árvores, indo mergulhar nas profundezas verdes do lago.

E foi em uma manhã fria de junho, sexta-feira 13, que a cidade ainda sonolenta de Pico Negro viu chegar um antigo carro fúnebre preto reluzente, dirigindo vagarosamente pelas ruas  geladas pelas temperaturas baixas da noite, indo em direção à Rua dos Ausentes. As crianças que estavam a caminho da escola paravam boquiabertas, apontando para ele. Os donos das pequenas casas comerciais, mercadinhos e padarias chegavam até as portas de seus estabelecimentos, seguidos por funcionários mais afoitos que logo eram enxotados de volta para os seus postos de trabalho, todos eles tecendo comentários especulativos em voz baixa.

Sr. Antônio, português de nascença, um homem de sessenta e dois anos que vivia com sua esposa Maria e proprietário da Padaria do Pão Português, torceu o bigode, e sua esposa (mais velha que ele alguns anos e que ostentava um buço considerável) repetiu o gesto do marido.

Logo, o Mario’s único pub da cidade, estava cheio àquela hora nada usual. As doze mesas de quatro cadeiras cada e o velho balcão de madeira escura com dez assentos encontravam-se totalmente lotados, e algumas pessoas permaneciam de pé, espalhadas em grupos de três ou quatro, todos bebericando cafés e chás batizados com licores e rum.

E foi por volta do meio-dia que o carro fúnebre passou de volta, cruzando novamente o centro da cidade em direção à estrada. As pessoas deixaram seus afazeres novamente para observar a fumaça do cano de descarga desaparecendo em direção ao sol.


 




(Continua)




 

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

O ANDARILHO





 Não conseguia ficar parado por muito tempo - por isso, todos o conheciam como O Andarilho. Ninguém se lembrava quando ele tinha aparecido na cidade. No início, chamou atenção devido à sua figura tristonha e calada. A maneira como ele alugou um quarto na pensão local sem fazer qualquer exigência, e já na manhã seguinte desapareceu mata adentro por três dias, despertou a curiosidade alheia. 


Mas apenas momentaneamente.


Ele não era de muita conversa, e nem dava abertura a perguntas íntimas. Vivia a sua vida e não pisava duro no viver alheio. Nada perguntava, nada queria saber. Seu ofício consistia na venda de peças de bijuteria que ele mesmo fabricava e vendia, mas as pessoas achavam que sua renda não provinha dali; era apenas um hobby. O que ele ganhava através da venda de suas pobres peças com certeza não seria suficiente sequer para pagar o aluguel do seu quartinho.


E ele de vez em quando sumia mata adentro por três dias. Certa vez, um grupo de adolescentes seguiu-o para ver o que fazia. Viram-no pescando no rio, descansando sobre as pedras escaldadas pelo sol de inverno, observando os pássaros. 


Havia uma pequena caverna onde ele se escondia quando chovia. Os meninos viram quando ele entrou nela, mas apesar de terem ficado horas observando-o de seus esconderijos, jamais o viram sair. Quando o dia cedeu lugar ao crepúsculo, eles voltaram para suas casas e para seus pais aflitos. O Andarilho só retornou três dias depois. 


O Andarilho era uma dessas figuras curiosas, quase folclóricas, que existem em todas as cidades. Ele envelhecia seus anos, as pessoas iam envelhecendo junto com ele, novas pessoas nasciam, outras morriam e algumas iam embora pra sempre da cidade. E ele estava ali. E de vez em quando, ele sumia. Por três dias.


Até que um dia ele não voltou. Cinco dias se passaram antes que alguém decidisse que seria melhor ir atrás dele. 


Encontraram suas roupas dobradas dentro da caverna, sobre os sapatos gastos. Dele, nem sinal. Vasculharam o rio, a mata, os vãos sob as montanhas. E então desistiram. E quando o fizeram, se deram conta de que não sabiam nem mesmo o seu nome verdadeiro. Um deles decidiu que deveria haver algum registro sobre ele na pensão. E foram todos até lá para verificar.


O dono da pensão - o mesmo, desde que O Andarilho surgira - verificou seu grosso e encardido livro de registros, e encontrou o dia no qual O Andarilho tinha chegado. Não foi nada difícil, já que poucas pessoas se hospedaram na pensão decadente naquela época. 


Ele tinha escrito o nome dele ali, e também registrado um número de documento. Havia também uma assinatura, ele se lembrava bem. 


Mas ao abrir o livro naquela página, percebeu que nada mais havia. Estava vazia. Em branco.


O Andarilho sumiu. E de repente, sua figura tornou-se lenda local, nome de loja e de alameda. Alameda do Andarilho. Logo, surgiram relatos sobre algumas pessoas que o viram ascender em uma nuvem, e de milagres que havia realizado. Construíram um templo em sua homenagem, e os peregrinos começaram a chegar. Todos contavam lendas sobre como ele tinha ascendido aos céus e sido levado por uma nave interestelar. 


Enquanto isso, seu corpo jazia no fundo negro do rio, preso sob uma pedra. Mas os milagres continuavam. E os peregrinos chegavam. E a cidade prosperava. 




quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

SOB CONTROLE




 Joanna chegou àquela festa à qual preferiria não ter ido - mas como vocês já devem saber, muitas vezes sacrifícios são necessários para que se mantenha a paz... sua mãe havia implorado para que ela fosse; afinal, não aguentava mais dar desculpas pela sua ausência nas reuniões de família. 

Assim que Joanna pôs os pés na porta, viu a prima Margareth, filha do aniversariante, vir quase correndo em sua direção:

-Demorou por que? 

- Oi, Margareth, tudo bem? Boa noite pra você também.

Desvencilhando-se da prima, Joanna tentou levar seu presente ao aniversariante, seu tio Lúcio, que dava gargalhadas em um grupo de amigos de risos amarelos após ele mesmo ter contado (quem sabe, pela milésima vez) uma de suas piadas sem graça. Ao vê-la, o tio pegou o presente, e sem abri-lo, jogou-o dentro de uma caixa de papelão junto com outros presentes e aceitou os cumprimentos de feliz aniversário, lascando mais uma gracinha:

- Olá, querida sobrinha! Grato pela sua nobre presença desta vez, já que nas últimas duas festas você não compareceu. Mas e o cara metade? Não veio?

Joanna deu uma risadinha, sentindo todos os olhos presos nela:

- Ele está em uma viagem de negócios, tio. 

Lúcio riu, e procurando a aprovação dos demais com os olhos, umedeceu os lábios antes de soltar mais um comentário profano:

- Viagem de negócios, hein... sei... e essa viagem deve ser alta, loira, com peitões...

Joanna franziu as sobrancelhas e não respondeu, pedindo licença e se afastando, sentindo os olhos alheios pregados em suas costas e escutando a gargalhada insana do tio. Tia Helga passou com uma bandeja de copos de uísque barato, e Joanna, agarrando um deles, entornou o líquido garganta abaixo sem pensar. Ao sentir o peito e a garganta queimarem, ela fez uma careta.

Resolveu sentar-se em uma poltrona afastada do grupo, enquanto observava a festa. Mas sua paz durou bem pouco, pois logo viu sua avó caminhando em direção a ela:

-Não fala mais com os pobres, menina?

-Ah, oi, vó, desculpe, não vi a senhora.

-Então precisa colocar óculos o quanto antes. E como vão as coisas?

Logo, duas outras tias idosas juntaram-se a elas. A mais velha, ao sorrir, deixou aparecer o batom vermelho na ponta do dente. Joanna tentou soar simpática:

-Está tudo indo bem, vó. E a senhora, tudo bem?

-Melhor se eu pudesse morrer conhecendo meu bisneto antes. Já engravidou? Ainda não? Qual o seu problema?

A tia do batom no dente emendou:

-A função do casamento é ter filhos. Mulher que não tem filhos não é natural. E você já passou dos trinta, pelo que eu sei.

A outra tia acrescentou, arregalando os olhos:

-Você sabe... o relógio biológico...

A avó concordou com a cabeça, enquanto Joanna olhou o seu relógio de pulso - não o biológico:

-Sabe, está ficando tarde. Preciso ir. Amanhã tenho que acordar cedo.

A avó respondeu:

-Mas amanhã é sábado! Fica mais um pouco.

-Mas eu tenho uma reunião logo cedo, e...

A avó interrompeu-a:

-Já disse, você vai ficar até partir o bolo, é falta de educação sair da festa antes do bolo.

O rosto de Joanna esquentou, e ela respirou mais profundamente, se perguntando o que ela estava fazendo ali. De repente, uma das tias começou a falar com detalhes da sua cirurgia de apêndice, dos sintomas, sobre como ela descobriu o problema, o que o médico tinha dito. A tia do batom emendou a conversa falando sobre seu colesterol, e a avó abriu a bolsinha para mostrar os remédios controlados que tomava.

 Ao olhar para o outro lado da sala, Joanna deparou com Cláudia, sua irmã mais velha, olhando para elas com ar divertido. Joanna arregalou os olhos, pedindo para ser resgatada, mas Cláudia soltou uma gargalhada e sumiu no corredor em direção à cozinha. As duas nunca tinham sido grandes amigas, e Cláudia sustentava uma certa inveja da irmã mais nova.

Uma hora mais tarde, com uma dor fininha no meio dos olhos e bocejando sem parar, ela finalmente conseguiu uma brecha para interromper a conversa, ao ver sua própria mãe adentrar a sala trazendo o bolo de aniversário. Disparou:

-Olhem, é o bolo. Já vão cantar parabéns.

E dizendo aquilo, levantou-se correndo, seguida pelas três "gentis" senhoras. Uma delas falou às suas costas: 

-Mas Joanna, você não me explicou ainda: não tem filhos porque não quer ou porque é seca mesmo?

Joanna mal acreditava no que tinha acabado de escutar. Virou-se tão bruscamente, que acabou esbarrando na mãe, fazendo com que o bolo se esparramasse no chão. Ela instintivamente cobriu os lábios com as mãos, enquanto a tia berrava:

-Mas que desastrada! 

O tio bradou:

-Paguei uma nota preta nesse bolo para isso! Como você conseguiu estragar tudo, menina?

Enquanto a mãe tentava recolher o que tinha sobrado do bolo, ajudada pela esposa de seu tio aniversariante, a irmã gargalhava. A avó desferiu um doloroso beliscão em seu braço:

-Mas que porcaria, Joanna! Isso é coisa de hormônios! Teus hormônios não estão sendo utilizados como devem, e dá nisso! Destempero!

Naquele momento, Joanna explodiu; sentiu a sala tornar-se cada vez mais abafada, como se as paredes se curvassem sobre ela. Viu a raiva e o escárnio no rosto de cada um dos parentes e conhecidos - alguns riam, outros cochichavam, outros xingavam. De repente, Joanna não era mais ela mesma. Ou então, quem sabe, finalmente ela se tornara ela mesma?

-Vão todos vocês para o inferno - ela gritou.

Houve um silêncio geral, interrompido apenas por alguns 'ohs' escandalizados. Aquilo apenas incentivou-a:

-Quero que vocês todos vão para os quintos dos infernos! Comam esse bolo do chão como porcos que são! Lambam o piso, e depois sirvam-se de bebida no vaso sanitário! Eu odeio vocês! Desde sempre, tenho sido abusada e criticada por todos vocês, que só são gentis comigo quando precisam de alguma coisa! Mas agora acabou a assistência jurídica gratuita, por parte de meu marido, e as consultas médicas gratuitas da minha parte! Vão todos para os quintos dos infernos! Eu não aguento maaaaais!!!

Lentamente, Joanna acordou do seu próprio delírio, enquanto sua mãe, que tinha conseguido salvar uma parte do bolo, espetava nele algumas velinhas. O "Parabéns a você" começou a ser cantado, seguido pelo tradicional "É pique!", e depois pelo irritante "Com quem será."




sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

A MENINA E O LEÃO


Era uma vez uma menina que adotou um leão perdido que ela achou na floresta, junto à sua fazenda, enquanto ela mesma também estava perdida. Ela se apaixonou pela beleza dos seus olhos dourados, e a maciez aveludada do seu pelo, que se deitava ao peso dos seus dedos vagarosos.

Os dois voltaram juntos para a casa da menina, e naquela noite, eles conversaram até adormecer, se aquecendo junto à lareira, enquanto uma noite fria e branca se desenhava lá fora, nas molduras das vidraças. 

Na manhã seguinte, ao preparar o café da manhã, ela percebeu que o leão não se agradava das coisas que ela comia; ele queria carne. Mas por algum motivo, ele se fez de cansado demais para ir à caça do seu próprio alimento, e então a menina, com pena do leão, resolveu fazer aquilo por ele. Assim estabeleceu-se um acordo silencioso entre os dois: ela caçava para o leão e ele protegia a casa enquanto ela estivesse fora, caçando ou trabalhando.

Às vezes a menina chegava em casa e não encontrava o seu leão; ele desaparecia por horas e horas, só voltando à noite, faminto e cansado. Um dia ela resolveu segui-lo para ver para onde ele ia, e surpresa, descobriu que o leão tinha uma família - pai, mãe e irmãozinhos. Ele sempre levava um pedaço da sua carne - a que a menina caçava - para alimentar sua família. Ela teve pena, e convidou a todos para viver com ela na fazenda.

Logo, ela percebeu que teria que trabalhar muito mais a fim de sustentar a todos eles, que nada faziam, a não ser tomar conta da fazenda enquanto ela estava fora. E isso eles faziam muito bem, pois ninguém mais se aproximava do local! O carteiro, o leiteiro, o padeiro e os amigos da menina desapareceram de vista ao serem recebidos por leões ferozes ao tentar visitá-la. Logo, a menina mal mantinha contato com sua própria família. E a família do leão era absorvente e muito exigente.

Quando estavam todos em casa, a menina percebia que eles a deixavam de fora das conversas e atividades. Quando ela os interrompia, tentando fazer parte do grupo, era olhada com desdém e tratada com complacência e indiferença. Às vezes, eles deixavam bem claro que ela jamais seria uma deles, pois não tinha o mesmo pedigree. A mamãe leoa era muito ciumenta, e fazia de tudo para humilhar a menina. Os leõezinhos, muito dependentes e frágeis, estavam sempre pedindo coisas ao leão, recusando-se a aprender a fazer as coisas sozinhos, e também eram demasiadamente ciumentos. Papai leão, um patriarca feroz, defendia a sua clã de qualquer admoestação da menina, dizendo que ela deveria sentir-se honrada por ter permissão de pelo menos permanecer perto deles.

Mas a menina amava o leão, e fazia tudo por ele, que só era realmente bom com ela quando precisava de alguma coisa. 

Um dia, a menina adoeceu, e não pôde sair para caçar a comida dos leões. Eles até cuidaram dela no início, mas logo se cansaram. Após três dias de cama, eles a devoraram, repartindo suas carnes magras entre eles. Depois, voltaram para a floresta a procura de outra menina que lhes desse guarida.




sexta-feira, 28 de outubro de 2022

A VISITA DO AVÔ - conto curto


A tarde tinha sido quente, e o sol se punha entre as cores fortes do horizonte, o canto insistente das cigarras  e os piados dos sabiás se recolhendo para dormir. Georgia brincava nos degraus que de sua casa que davam para a cozinha, alheia ao canto modorrento das cigarras e a tudo o mais que acontecia em volta dela. Sua mãe estava no banho.

Rapidamente, a noite tomava o espaço. Georgia ergueu a cabeça ao ouvir ruídos de passos vindos da lateral da casa, e ao ver o avô, que parou junto à parede e abriu os braços, ela correu na direção dele, largando sua boneca nova sobre o degrau. O avô enfiou a mão no bolso do paletó, e retirou-a cheia de balas que a menina recolheu na saia do vestido, indo depositá-las na mesa da cozinha enquanto o avô a seguia. 

No fogão, a panela de pressão chiava no fogo baixo. O avô depositou sobre a mesa um pacote, onde havia um doce de leite que era metade de chocolate, geleia marmorizada e algumas maçãs perfumadas. Georgia estava feliz ao ver o avô, que não aparecia muito, pois morava longe. Ao mesmo tempo, ela sabia que alguma coisa estava errada, embora não soubesse dizer o quê.

O avô e a menina conversaram durante algum tempo. Ele perguntou sobre as coisas da escola, e ela mostrou a ele a sua boneca nova, sentando nos joelhos do avô. A conversa ia bem, enquanto  lá fora o canto dos sabiás e cigarras tinha sido substituído pelo cricrilar dos grilos. Dentro da  casa só havia luz, mas a porta da cozinha que dava para o quintal dos fundos estava aberta, mostrando a escuridão intensa e aveludada que se acumulara. 

Georgia percebeu que, aos poucos, a escuridão se aproximava dos degraus, subindo um a um. Ela se sentia segura na presença do avô, entretanto. Mas de repente, ele ficou sério, dizendo:

-Georgia, minha querida, eu não posso ficar muito tempo. 

Ela não entendeu nada, pois a mãe sequer tinha terminado o banho, e ele nunca ia embora tão rápido. 

- O avô não vai dormir aqui hoje?

Ele sorriu tristemente, dizendo que não, e acrescentou:

- Só vim para me despedir de vez. Estive esse tempo todo olhando por vocês, mas agora eu preciso ir embora. 

Georgia sentiu que estava crescendo aos poucos no colo do avô, e foi sentar-se em uma cadeira que arrastou para ficar bem em frente a dele, de onde ela podia olhá-lo melhor. Ela só então notou que ele não parecia mais tão velho. O avô segurou as duas mãos da agora moça, dizendo:

-Antes de ir, preciso alertar a você: algo muito ruim está para acontecer no mundo. 

Georgia ficou confusa:

-Mas... eu e a mamãe ficaremos bem?

O avô olhou-a profundamente antes de responder:

- Não se preocupe, sua mãe já está comigo há alguns anos. Você não se lembra, Georgia?

E ela se lembrou. Não havia ninguém tomando banho, e nem poderia haver, pois sua mãe já estava morta há treze anos. 

Ao olhar novamente para o avô, percebeu que ele estava um pouco transparente em algumas partes, o que a deixou bastante desconfortável, pois lembrou-se que o avô morrera quando ela tinha oito anos de idade, há mais de vinte anos. Ele ainda pôde dizer:

- Pegue todo o dinheiro que você tiver, e compre comida e água. Compre enlatados, coisas que duram, pois estão chegando tempos em que será muito difícil comprar certas coisas. Compre velas, querosene, remédios, e consiga uma arma para se proteger. Avise ao seu marido. Considere plantar alguma coisa, você tem um quintal grande. 

E então Georgia se lembrou que era casada. 

Havia muitas perguntas que ela gostaria de fazer ao avô, mas não havia mais tempo.

A escuridão começou a entrar pela porta da cozinha cada vez mais rápido. Ela pensou em fechar a porta, mas estava paralisada. Fechou os olhos por um curto espaço de tempo, e ao abri-los novamente, o avô tinha desaparecido e ela estava completamente cercada pela escuridão, que acariciava sua pele de maneira mórbida e com dedos extremamente gelados e ásperos. 

Georgia despertou no sofá da sala de seu apartamento, o coração disparado. Lá fora, os sabiás e cigarras cantavam. 

Sobre a mesa, havia algumas balas iguais às que seu avô costumava levar para ela quando a visitava.







A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...