quinta-feira, 18 de julho de 2024

A RUA DOS AUSENTES - PARTE 8

 





PARTE 8 –

O DESPERTAR

 

Eduína, que era sempre fria e calma, levou um susto. Achou que aqueles olhos que a olhavam fixamente eram apenas sua imaginação, e piscou para afastar aquela imagem, mas quando olhou-a novamente, os terríveis e ao mesmo tempo maravilhosos olhos verdes emitiram um brilho de vida, e Hélida se mexeu. Eduína, fascinada, afastou-se um pouco do caixão de vidro, tentando não demonstrar medo, até que Hélida empurrou a tampa com a mão, sentando-se e espreguiçando-se. Olhou para Eduína como se ela fosse um inseto, enquanto bocejava, perguntando:

-O que você está fazendo aqui, e quem é você?

Instintivamente, Eduína sabia que aquela pergunta era desnecessária: Hélida já tinha a resposta. De repente, Félix desceu as escadas do porão, indo sentar-se no colo de Hélida, que o acariciou enquanto o gato ronronava, esfregando-se nela. Após alguns segundos, ela o afastou e saiu do caixão, espreguiçando-se mais uma vez, batendo a poeira do vestido com as mãos. A cena era simplesmente bizarra, e Eduína nem percebeu que seus olhos estavam arregalados, e ela, boquiaberta. Hélida olhou-a novamente, desta vez com mais atenção:

-Você é a filha dela. Hum... vamos lá para cima. E obrigada por cuidar do meu gato. Ele esperava pela minha volta há muito tempo.

As duas mulheres subiram as escadas seguidas por Félix. Ao chegarem na cozinha, Hélida olhou em volta, dizendo:

-Aquele velho não cuidou muito bem da minha casa nesses anos todos. Olhe só quanta poeira! Você não abre a boca, não fala nada?

Eduína balbuciou:

-Bem, é que... você há de convir que essa história toda é meio difícil de engolir... quem tem a chance de estar diante de uma bru... digo, de uma mulher que morreu há 300 anos e conversar com ela, vendo-a se mover enquanto prepara um chá?

Hélida pareceu ignorar a fala da outra, enquanto pediu:

-Me ajude a acender esse fogão. É moderno demais para mim. E por favor, pode me chamar de bruxa. É o que eu sou. E eu não morri, fui colocada para dormir.

Eduína acendeu o fogo, enquanto Hélida a observava atentamente. Depois, a moça foi até o interruptor elétrico e a cozinha encheu-se de luz. Hélida olhou para cima, surpresa, e deu um leve sorriso:

-Hum, modernizaram tudo por aqui. Isso é bom. Mas... o que você faz aqui em minha casa? Como entrou?

- Você sabe. Mas tudo bem, eu posso responder mesmo assim.

A outra riu abertamente:

- Mesmo sabendo, há coisas que devem ser ditas. 

Elas colocaram duas xícaras sobre a mesa. Eduína se perguntava sobre o que beberiam, já que a casa estivera tanto tempo vazia, mas Hélida abriu o armário sobre a pia e Eduína viu potes de ervas frescas e um pão de centeio também fresco. As duas se entreolharam, e Hélida disse:

-Não se esqueça que eu sou uma bruxa. De verdade.

Eduína decidiu que gostava de Hélida. Mal sabia ela que a bruxa esperava por aquele momento há anos e anos.

As duas mulheres tomaram chá de ervas e comeram o pão ainda quente servido pela bruxa. Eduína contou-lhe sua história brevemente, e partilhou a vontade que alguns tinham de finalmente não voltarem. A bruxa a escutou atentamente, fazendo algumas perguntas de vez em quando. Enquanto isso, as sombras do dia vagarosamente se transformavam em noite. Quando Eduína terminou de contar sua história, Hélida ficou em silêncio durante algum tempo, olhando para seus próprios trajes com insatisfação. E então, diante dos olhos da moça, as roupas de Hélida começaram a se transformar vagarosamente em um vestido moderno, de cor marinho, com uma saia rodada na altura dos joelhos, e um par de botas de cano médio se materializaram sobre os sapatos antigos. Quando Eduína ergueu os olhos, viu também que os cabelos emaranhados de Hélida estavam limpos e sedosos, deixando-a ainda mais bonita. Por um momento, Eduína invejou a bruxa, mas lembrou-se de que ela poderia adivinhar seus pensamentos e varreu aquele sentimento para longe.

Finalmente, Hélida respondeu:

- Eles querem saber se é possível não voltar? Eles me puseram em uma caixa de madeira por duzentos anos! Depois, me transferiram para aquele mausoléu de vidro no porão da minha própria casa, onde passei os últimos cem anos. E por que? Simplesmente porque eu era uma bruxa.

-Mas como isso aconteceu?

Hélida franziu as sobrancelhas, parecendo zangada. Depois, em um tom de voz calmo e quase cínico, começou sua narrativa:

- Porque bruxas deveriam ser destruídas. Queimadas vivas, torturadas, presas, privadas de todos os seus bens, humilhadas em praça pública, enfim, postas para dormir e trancadas em caixas de madeira, quando eram poderosas demais para serem mortas. No meu caso, eles fizeram um pacto. Se eu fosse posta para dormir indefinidamente, sacrificariam treze almas ao demônio, e construiriam doze casas parecidas com a minha, que seriam seus templos. E ainda diziam que eu era a coisa ruim!

Eduína ficou chocada:

- Quer dizer então que as treze casas são...

- Templos. E a cada treze anos, a sua maravilhosa família sacrifica treze jovens mulheres ao seu “deus” a fim de aplacarem sua fúria e manterem o pacto. E adivinhe só quem será uma delas dentro em breve?

Eduína engoliu em seco, levando a mão instintivamente ao próprio pescoço:

A bruxa riu alto. Eduína sentiu um arrepio percorrer sua espinha, reconhecendo o medo pela primeira vez em sua vida.

-Mas... como? Me disseram que eu sou uma deles, e que me tiraram daqui para que eu não fosse morta por minha avó...

-Querida, como você é ingênua. Acha mesmo que herdou aquela casa, aquela fortuna? Acha mesmo que Lázaro é seu papai e Viviane a sua mamãe? Você é uma das treze, só isso. As outras serão trazidas dentro em breve pela mesma história que trouxe você aqui. Estão sendo criadas por pais adotivos – seus verdadeiros pais foram mortos... “acidentalmente.” E vocês são especiais, todas vocês. Porque sofrem de algum grau de sociopatia. E não têm nenhum parente vivo, ou seja, ninguém sentirá falta de vocês.

-Sociopatia?

-Exato. E você sabe muito bem que jamais conseguiu amar ninguém, ou sequer gostar de alguém. Sempre foi solitária, nunca sentiu falta de ninguém, nunca realmente sentiu necessidade de amigos. Você é fria como uma pedra de gelo, e ambiciosa. E eles a criaram assim. Você inclusive foi medicada para tal.

-Mas eu assinei vários documentos assumindo a herança!

-Todos eles falsos, sua tola. E toda a fortuna que eles adquiriram pertenceu a mim, à minha família. Nada disso pertence a eles.

- Mas... e como eles podem... e quanto a você, como você despertou?

-Você me despertou, embora eu não estivesse realmente dormindo. Minha alma vagou livremente, e eu pude acompanhar tudo o que acontecia por aqui.  Não pude escapar de suas armadilhas, pois fui presa, amordaçada e drogada; mas durante esses acontecimentos, eu pude lançar-lhes uma maldição, que foi a de retornarem e continuarem retornando sem terem descanso.

Eduína começou a sentir-se bastante desconfortável.

-Mas... por que eu a despertei?

- Eles não sabem, mas você foi parte da maldição que eu lancei: uma mulher chamada Eduína me despertaria. E me ajudaria em minha vingança.


(continua)





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