segunda-feira, 27 de abril de 2020

MADRE - Capítulo 12





MADRE - Capítulo 12

Saímos da loja carregadas de pacotes. Ela disse que iria ao estacionamento colocar tudo no carro e me pediu que a esperasse na praça de alimentação, em um café chique. Fiquei por lá, olhando minha mãe se afastar e se perder na multidão de pessoas alegres. Minutos depois, pedi uma Coca, e quando comecei a tomar, vi minha mãe voltando. Ela parecia preocupada, mas o que mais me chamou a atenção, é que ela estava usando roupas diferentes da que tinha. Usava um par de calças jeans, um suéter bege com um lenço de seda rosa amarrado ao pescoço e um par de botas de camurça marrom até os joelhos. Estranhei, pois quando me deixou, ela estava usando um vestido verde musgo!

Pensei no quanto Mayara era imprevisível, e ri, mas meu sorriso se fechou quando notei que a mulher que vinha em minha direção não era minha mãe; seus cabelos eram ligeiramente mais curtos e mais escuros, embora ela fosse quase igual a Mayara e tão bonita quanto. Parecia muito nervosa e seu rosto estava avermelhado, suando na testa. Quase derramei meu refrigerante quando ela se sentou diante de mim e me olhou nos olhos profundamente. Disse:

-Não tenho muito tempo. Se ela descobrir que eu a encontrei, vai fugir de novo. Meu nome é Mércia, sou irmã de Mayara. Gêmea. 
Minha cabeça deu um nó:

-Quem??? Então... você é minha tia??? Mas minha mãe me disse que não tinha parentes!

Ela escorregou um cartão de visitas sobre a mesa até mim, e colocou-o na palma da minha mão, dizendo: 

-Venha me ver assim que puder! E por favor, é muito importante que minha irmã não saiba de nada. Não diga a ela que me conheceu, por favor, ou você nunca mais saberá da verdade...

Ela baixou os olhos, e levantando-se apressadamente da mesa, desapareceu na multidão, descendo as escadas rolantes. Ainda olhou para trás antes que eu a perdesse de vista. Enfiei o cartão na bolsa sem olhar para ele, pois avistei minha mãe se aproximando, com um baita sorriso no rosto, caminhando em minha direção. Fiz de tudo para disfarçar o que tinha acontecido, mas ela notou que havia algo estranho. Disfarcei, dizendo que não estava me sentindo muito bem e que deveria ter sido o camarão do almoço que comêramos mais cedo. Ela franziu a testa, e disse que assim que chegássemos em casa, daria uma bronca na cozinheira. Lamentei silenciosamente pela pobre cozinheira, que pagaria o pato por nada! Ainda tentei persuadir Mayara a esquecer o assunto, mas ela disse:

- Aisha, Meus empregados domésticos recebem quase seis vezes mais do que os empregados domésticos geralmente recebem! Cada um têm um carro à disposição, acomodações na casa, caso desejem morar lá ou passar a noite, e todos os seus direitos legais assegurados. O mínimo que eu exijo, é competência e um trabalho impecável. Não admito que tenha sido preparado qualquer coisa na minha cozinha que não seja absolutamente fresco.

-Eu sei, Mayara! Mas você comeu e não está passando mal, não é? Eu é que sou muito sensível a camarões. Olha, tomei esse refrigerante e já estou começando a me sentir melhor. Só vou ao banheiro um instantinho para lavar o rosto.

Ela insistiu para ir comigo, mas eu disse que estava bem, só ia lavar o rosto e voltar logo.

Chegando no banheiro, procurei o privativo e, batendo a porta, deixei que as emoções aflorassem. Me vi trêmula, ofegante e confusa. Fiquei ali pelo menos cinco minutos, tentando entender os últimos acontecimentos: Mayara mentira para mim! Disse que não tinha família, mas tinha uma irmã gêmea. O que mais ela tinha me escondido? Eu teria que procurar por minha tia para saber. Coloquei a mão dentro da bolsa e li o cartão três vezes antes de colocá-lo de volta na bolsa. Mas depois, não sei o porquê, anotei o número do telefone em meu celular com um nome fictício e joguei o cartão fora. Fiquei com medo que Mayara vasculhasse minhas coisas e o encontrasse. Eu precisava tomar cuidado, afinal, não sabia quem ela realmente era. 

Lavei o rosto com água gelada, respirei fundo e ensaiei um sorriso tranquilo antes de juntar-se novamente à minha nova mãe. 

Ao chegar em casa, mandei uma mensagem de texto para minha tia Mércia e marcamos de nos encontrar dali a dois dias. Seria um dia antes da festa de Dalva, amiga de minha mãe.  Eu só precisava de uma desculpa para justificar minha saída para Mayara. Me vi pensando no porquê estar pensando em uma desculpa para poder sair, e aquilo me preocupou. Eu tinha acabado de sair da prisão que era viver fugindo e me escondendo com meus pais, e agora, que eles não estavam mais vivos, eu temia encarar Mayara e continuava me achando presa, tendo que arranjar desculpas para sair. Eu não precisava daquilo! Pelo menos, não deveria precisar. 

Naquela noite, eu não dormi. Tive uma crise de ansiedade terrível e quase fui acordar minha mãe quando a crise chegou ao ápice. Abri a porta da sacada e fui lá para fora, onde uma enorme lua branca parecia me espiar. Olhei fixamente para ela e fui tentando colocar a respiração em um nível suportável novamente, bebericando água e tentando me controlar. Engoli um comprimido para ansiedade, me sentindo péssima, já que eu queria muito deixar de toma-los e estava quase conseguindo. Porém, meus braços dormentes, o coração disparado, a pele coberta de suor, o pânico... tudo aquilo me obrigava a engolir mais um comprimido, sempre me prometendo que seria o último. Logo eles iriam acabar e eu precisaria de uma nova receita. Meu médico estava há quilômetros de distância e eu não tinha nenhum dinheiro. Teria que acabar contando a Mayara sobre o meu problema. 

Lembrei-me muito de meus pais. Senti muita saudade deles, apesar de tudo. Pensei em minha avó e em meus amigos da escola. Eu conversava com eles pela internet agora, mas as conversas online não eram suficientes para manter uma amizade! Eu gostaria de estar com eles... ou esquecê-los de vez e tentar me adaptar à minha nova vida, fazendo alguns amigos. Mas... que nova vida? Eu ia continuar morando com Mayara depois que ouvisse o que Mércia tinha a me dizer? Ou voltaria a viver com minha avó e com Tina?


(continua...)







sexta-feira, 17 de abril de 2020

MADRE- Capítulo 11








MADRE - Capítulo 11

Cada vez mais eu notava a distância entre nós e as três pessoas que trabalhavam na casa – Rosa, Elvira e Ronaldo, o jardineiro de Mayara e ocasionalmente, motorista também. Por mais que eu tentasse conversar com eles, estabelecendo um pouco mais de proximidade, eles se mantinham distantes e polidamente frios, e insistiam em me chamar de senhorita Aisha, mesmo que eu pedisse que me chamassem apenas de Aisha. Se eu fizesse alguma pergunta em relação à casa ou à minha mãe, eles apenas baixavam a cabeça e me diziam que não estavam autorizados a comentar nada ou que não sabiam nada sobre o assunto. Quando perguntei sobre a porta trancada no meu quarto, as duas mulheres se entreolharam e disseram que não passavam a noite na casa, e portanto, nada podiam me dizer sobre aquilo.

Minha mãe também mantinha um certo ar de mistério. Uma tarde, ela me convidou para o seu quarto, e enquanto eu examinava algumas fotos de meu falecido pai e de Georgina, minha falecida irmã gêmea, eu perguntei a ela como meu pai era. Mayara aproximou-se de mim, e pegando a fotografia do senhor distinto e bonito das minhas mãos, olhou para ele longamente antes de responder. 

-Eu era muito jovem e estava totalmente perdida quando o conheci. Tinha minha filha para cuidar e trabalhava em uma loja de roupas finas, que foi onde nos conhecemos. Lúcio se apaixonou por mim imediatamente. Estava lá para comprar um presente para sua namorada.

-Ele era comprometido quando a conheceu?

-Sim. Mas logo terminou. Logo após a primeira noite que me convidou para sair com ele. Seu outro relacionamento não era sério. Segundo ele mesmo, era só sexo. Eu me senti feito uma princesa decaída que encontra seu príncipe encantado de repente. Lúcio me levava a lugares incríveis, que eu jamais imaginava que poderia frequentar! Em alguns deles, eu tinha trabalhado como garçonete durante alguns eventos... agora eu entrava pela porta da frente, em grande estilo. Ele era gentil, e doce... a diferença de idade – ele era quase trinta anos mais velho – não foi importante. Lúcio não tinha família, a não ser um tio distante que já faleceu... era muito sozinho antes de me conhecer, e talvez tenha se identificado comigo por causa disso.

Enquanto ela falava, eu notava que ela revivia sua história. Dava pequenas pausas em seu relato, saboreando momentos que só ela enxergava. Perguntei sobre Georgina, e o rosto dela ficou encoberto por uma sombra, que modificava a suavidade de suas feições como uma nuvem negra que corta um céu de brigadeiro.

-Georgina era apenas uma criança quando nós a perdemos. Ela era linda e feliz, como toda criança... eu estava casada com Lúcio há dois anos. Ela era a luz e a alegria da vida dele! 

Notei um certo ressentimento quando ela disse aquilo. Não consegui deixar de perguntar:

-E você tinha ciúmes?

Ela se virou para me olhar, o rosto branco feito a parede atrás dela. Seu tom de voz foi cortante:

-Por que diz isso?

Eu engoli em seco, guardando as fotos de volta na caixa e me sentando ereta na cama:

-Nada, é que... não sei, só tive a impressão. Não sei por que perguntei, desculpe. Mas... tem uma coisa que eu gostaria de perguntar. Sobre a minha primeira noite aqui.

Ela suavizou sua expressão:

-Ora, e por que não perguntou antes, querida? Já está aqui há cinco dias!

Eu ri, tentando descontrair a atmosfera pesada do ambiente.

-Bem, vou perguntar agora! 

Ela estava sentada em uma poltrona em frente à cama, e inclinou-se em minha direção para me dar atenção. Por trás dela, a janela aberta despejava relances de verde quando a cortina de seda se levantava com a brisa. Notei o quanto ela era bonita.

-É que eu escutei alguns barulhos que me acordaram naquela noite. Depois vi uma luz debaixo da porta... e quando tentei abri-la, estava trancada.

Ela riu:

-É uma casa antiga, e as fechaduras são todas originais. Com certeza, emperrou. Bem, isso significa que você agora vive em uma casa muito velha. Mas é só tentar mais algumas vezes, e elas acabam se abrindo. 

Me senti uma tola após a explicação dela. Era lógico que ninguém havia trancado a minha porta! Eu e a minha imaginação fértil... também pensei no que ela acabara de afirmar: “Você agora vive em uma casa velha. ” Eu não me sentia assim, como alguém que morava ali, mas apenas como alguém que estava passando um tempo, visitando.

De repente, ela se levantou com um pequeno salto, e batendo as palmas das mãos, sugeriu:

-Hey! Que tal sairmos para fazer umas compras? Preciso de um vestido novo para ir a uma festa, e você também. Vai comigo, certo? Quero apresentar você a todos os meus amigos. A festa é daqui a três dias, na casa de minha amiga Dalva. Você vai adorar ela! Ela é divorciada e tem um filho da sua idade. Você vai adorar o Ian!

A mudança de humor dela foi tão repentina que eu me assustei. Mayara era uma caixinha de surpresas! Ela me segurou pelo braço, e começamos a sair do quarto, enquanto ela dizia:

-Vamos às compras! Vá se trocar. Te encontro na sala em quinze minutos!

E eu a obedeci, incapaz (e sem a menor vontade) de confrontá-la e, ao mesmo tempo, curiosa para sair um pouco e andar pela cidade. Conhecer gente nova também me faria bem. Nós fomos ao shopping center, onde Mayara me levou nas melhores lojas. Os homens viravam a cabeça quando nós passávamos por eles, esfuziantes e sorridentes. Eu estava começando a gostar muito de minha mãe, mas ao mesmo tempo, tinha alguma coisa que estava me deixando insegura e eu não sabia o que era. 

Ela experimentou vários vestidos, até que se decidiu por um longo preto todo esvoaçante que a deixava simplesmente estonteante. Eu escolhi – ou melhor, ela escolheu para mim – um vestido longo mais simples e mais condizente com a minha idade, segundo ela, de cor prata com detalhes em preto. Enquanto eu me olhava no espelho, fascinada pela beleza do que eu via, Mayara chegou perto de mim e pegando meus cabelos soltos, ergueu-os em um coque no alto da minha cabeça. Notei pela primeira vez o quanto éramos fisicamente parecidas: o mesmo nariz afilado, a mesma curva do queijo sob o lábio inferior, os olhos cinzento-azulados que costumavam trocar de cor conforme a claridade. Me senti tão bonita quanto ela! E pela primeira vez, também me senti parte dela – sua filha. Senti vontade de abraça-la, e eu o fiz. 

Quando nos separamos, notei que ela chorava. Enxugou as lágrimas furtivamente com as costas da mão, e me olhando nos olhos, sugeriu:

-Que tal me chamar de mãe daqui pra frente? Eu ficaria muito feliz.

Eu abri a boca para responder, mas minha voz não saiu. Ela tomou aquilo como uma atitude precipitada de sua parte, e logo se desculpou:

-Desculpe, eu não quero pressionar você... eu só pensei que...

Mas eu a interrompi:

-Mãe! Está tudo bem! 

Eu disse aquilo sem o menor esforço. Ela sorriu para mim, e pela primeira vez em muitos anos, eu me senti segura. Nunca mais eu precisaria sair correndo no meio da noite. Nunca mais teria que abandonar meus amigos e minha escola para fugir correndo de alguém que era parte de quem eu realmente era. Nunca mais teria que sentir medo de gostar das pessoas por  ter que perde-las mais tarde. Eu agora teria raízes. Teria um lar, uma mãe, uma vida de verdade!

(Continua...)








quarta-feira, 8 de abril de 2020

MADRE - Capítulo 10





MADRE - Capítulo 10

O jantar foi muito tranquilo. Mayara escolhera uma música suave como pano de fundo, e fomos servidas por uma das empregadas da casa, que permaneceu junto à mesa o tempo todo, em silêncio absoluto, as mãos entrelaçadas na frente do corpo. Eu realmente não estava acostumada a tanto luxo e reverência, e estava achando aquilo tudo fantástico, mas também assustador. Mayara falava com a mulher suavemente, mas notei algo de cortante em sua voz. Era como se ela quisesse que suas ordens fossem bem compreendidas e jamais questionadas. A mulher parecia acostumada a servir, mas prestava muita atenção às ordens e tinha movimentos seguros, precisos, como alguém muito bem treinado. Fiquei pensando no que poderia acontecer se ela derramasse algo ao servir. Durante o jantar, fiquei sabendo que seu nome era Elvira. Mayara me disse que sempre que eu precisasse de alguma coisa poderia pedir a Elvira, caso ela não estivesse por perto.
A comida era algo tão delicioso e leve que nem sei descrever. Algo macio e espumoso de entrada, que derretia na boca, seguido por carne assada e legumes. As porções eram pequenas, mas após a sobremesa, descobri que eu estava satisfeita. Ela me convidou para tomarmos um chá digestivo na varanda. Chá digestivo?, pensei; aquela comida não precisava de nada digestivo, pois era perfeita! Mesmo assim, eu concordei com a cabeça. 

A outra mulher, chamada Rosa, serviu-nos um chá aromático com biscoitinhos bem pequenos de damasco. As xícaras eram tão finas que dava medo de segurá-las. Notei que Mayara colocava sua xícara de volta no pires sem fazer nenhum ruído, e mesmo que eu tentasse, não conseguia imitá-la. Eu era como um elefante em uma loja de louças. Mas ela não parecia reparar ou se importar. 

Conversamos sobre coisas mais corriqueiras, como a minha escola e meus amigos, minhas músicas e filmes prediletos, animais de estimação. Rimos muito das nossas histórias sobre eles. Mayara adorava animais de estimação, e disse que me mostraria seus dois cavalos e seus três cães de caça na manhã seguinte. Ela também tinha um casal de faisões que ficavam soltos pelo jardim, e uma águia que pertencera ao seu marido e que ela libertara após a morte dele, mas que continuava voltando para casa todas as tardes. Seu nome era Fênix. Também havia um pequeno lago com patos. Ela disse que me mostraria tudo no dia seguinte.
Sem querer, mal consegui disfarçar um bocejo. Já passavam das dez da noite, e eu estava exausta. Imediatamente, ela me disse que eu podia ir dormir, e que ela ainda tinha que dar algumas ordens na casa. 

Entrei naquele cômodo maravilhoso que agora era o meu quarto, vesti a camisola cor-de-rosa esvoaçante que Elvira separou para mim e me deitei entre o edredon macio e os lençóis perfumados. Pretendia telefonar para minha avó e Nina, mas nem deu tempo: Mal pus minha cabeça no travesseiro, adormeci.

Horas mais tarde, ainda tonta de sono, eu escutava as batidas insistentes. Me sentia como se estivesse em um limbo, entre o sono e a realidade. Estava tão cansada, tanto física quanto emocionalmente, que mal podia abrir os olhos. As batidas continuavam no fundo da minha cabeça. Eu achava que tudo não passava de um sonho. Também escutei vozes no corredor da casa, e abrindo os olhos, vi a luz acesa por debaixo da fresta da porta do quarto. Ouvi passos apressados cruzando o corredor, e uma porta ranger. Depois, pés que subiam uma escadaria. Contei: dez degraus. Naquele momento eu já estava totalmente desperta. Vozes abafadas. Alguém parecia estar chorando.

Eu me levantei, e me adaptando à escuridão, vislumbrei o caminho até a porta do quarto. Esfreguei os olhos, encostei a cabeça na porta e escutei. Tentei a maçaneta: eu estava trancada! Alguém tinha trancado a porta do meu quarto! Ainda tentei girá-la várias vezes; afinal, casas antigas podiam ter seus problemas. Nada: eu estava presa. 

Comecei a sentir uma angústia tomando conta de mim, salpicada de medo. Eu estava na casa de uma mulher que era a minha mãe verdadeira, mas quem era ela, realmente? Crescera longe dela, e na verdade, não a conhecia. Por que eu estava trancada no quarto? Minha mão direita se ergueu para começar a bater naquela porta que me impedia de sair, mas antes que ela pudesse baixar sobre a madeira com toda a força do meu desespero, ouvi um ‘click’ na fechadura. Passos apressados se afastaram da porta e morreram ao final do corredor. Uma outra porta bateu, se fechando. Testei a maçaneta: a minha porta tinha sido aberta.
Alguém saiu no meio da noite e trancou a porta do meu quarto por precaução, talvez porque não quisesse que eu visse alguma coisa. 

Abri a porta bem devagar, uma fresta suficiente para que eu pudesse enxergar o corredor escuro e silencioso. Senti calafrios na espinha. 

Na manhã seguinte, às vinte para nove da manhã, antes que eu saísse do quarto, liguei para minha avó. Nós conversamos por alguns minutos. Eu estava na sacada do meu quarto olhando o jardim lá embaixo e o movimento do jardineiro – o mesmo homem que nos recebera quando chegamos. Ele me viu, e me cumprimentou com um aceno de cabeça. Eu acenei de volta para ele. Minha avó me perguntava se eu estava bem, e como era Mayara. Eu disse que ela era linda, e que sua casa era linda. Achei melhor não mencionar a noite anterior. Nina gritava que estava com saudades. Ela às vezes pegava o fone e, chorosa, me pedia que voltasse. Impaciente, minha avó finalmente ralhou com ela, dizendo que se acalmasse e me deixasse em paz, pois toda aquela choradeira estava deixando todo mundo nervoso. 

Depois de lidar com elas, jurando que eu estava bem e que entraria em contato assim que pudesse, liguei também para Mateus, que atendeu o telefone com voz sonolenta. Me lembrei de que ele provavelmente trabalhara a noite toda, e me senti péssima por tê-lo acordado! Mas conversamos durante algum tempo, e como sempre, ele me deu toda a atenção do mundo. Também não mencionei nada sobre a noite anterior. 
Ao desligar o telefone, eu me perguntei o porquê de ter escondido deles aqueles acontecimentos estranhos, e não achei uma resposta. 

Me vesti – uma das roupas maravilhosas que Mayara comprara para mim – e desci as escadas. Ela estava tomando o café da manhã na varanda, entre bules de porcelana e xícaras com formatos e desenhos intrincados que pareciam tão caros, que davam medo de tocar. Ao me ver, seu rosto se iluminou em um sorriso e ela fez sinal para que eu me sentasse ao lado dela, e eu obedeci, me servindo de um brioche recheado com queijo quentinho e maravilhoso. Seria muito fácil me acostumar àquela vida! 

-E então, dormiu bem, - ela perguntou, mas já sabendo a resposta. Olhei para ela, acabei de mastigar meu brioche e tomando um gole de café, respondi:

-Muito bem. E você?

O tom da minha pergunta era bastante inquisidor e soou um tanto irônico, e logo me arrependi, mas ela apenas concordou com a cabeça, mudando de assunto:

-Então,  Aisha... (Ela fez sinal para que Elvira deixasse a sala, e continuou) estive pensando sobre a escola...
Eu a interrompi:

-O ano letivo está perdido, e vou continuar apenas no ano que vem. Fiquei muito tempo fora, por causa do acidente e da morte dos meus... pais. Agora eu prefiro não pensar nisso.

Ela pareceu surpresa, e corou levemente:

-Claro, mas... é que existe uma escola excelente por aqui. Estive conversando com a diretora por telefone. 
Ela acha que com aulas de reforço, você pode recuperar os meses perdidos. O que acha?

Ela parecia ter certeza de que eu ia ficar morando com ela. E também percebi que ela tinha assumido o papel de mãe completamente, não só escolhendo minhas roupas e arrumando meu quarto, mas também tentando decidir sobre minha vida escolar. Eu me lembrei da porta trancada. Me coloquei na defensiva:

-Já disse, agradeço sua preocupação, mas não voltarei para a escola esse ano. Não estou com cabeça para estudar. E nem sei se vou ficar morando aqui muito tempo, sabe. Prometi para minha avó que eu ia voltar para morar com ela. 

Uma sombra passou pelo rosto dela e apagou seu sorriso. Ela esmagou a ponta do guardanapo, e um músculo tremeu em sua testa. Mayara não gostava de ser contrariada, e aquilo estava ficando cada vez mais óbvio, na maneira como ela Às vezes perdia a paciência com os empregados e o quanto ela tentava ‘arrumar’ as coisas para mim e fazer planos para a minha vida, sem nem me conhecer direito. Quando eu vivia com meus pais adotivos, estava sempre cumprindo ordens: Não tenha redes sociais usando seu nome verdadeiro, não publique fotos suas, não ande sozinha sem avisar onde está, não fale com estranhos, arrume suas coisas AGORA e entre no carro! Eu não queria mais aquele tipo de coisa na minha vida. 

(continua...)




sexta-feira, 3 de abril de 2020

MADRE- CApítulo 9






MADRE- Capítulo 9

A última recomendação de Mateus, antes do ônibus sair, foi para eu não deixar de ligar para a minha avó e Nina. E foi o que fiz, assim que o ônibus partiu:

-Vó, eu estou bem. Estou indo conhecer minha mãe. 

-Ah, minha querida! Eu estava aqui, morrendo de preocupação. Nina está comigo. Vai ser minha acompanhante de hoje em diante. Ela está mandando um beijo pra você.

-Mande outro para ela, e diga que eu amo. Estaremos juntas de novo em breve. Nós três. 

-Eu espero que você me perdoe, Aisha...

-Não tem nada para ser perdoado. A senhora fez o que papai e mamãe mandaram. Agora compreendo o porquê das discussões e da distância entre mamãe e você. E Nina... ela... sempre foi tão boa comigo! Se não fossem por vocês duas, acho que eu teria pirado de vez com tantas mudanças repentinas!

-Mas por favor, querida, não odeie seus pais! Eles podem ter errado, mas sempre amaram você demais, e tinham medo de perder você. Um medo que eu partilhava, e que nesse momento, eu confesso, é grande demais. 

-Não! Você não vai me perder, vó! Eu vou entrar em contato, estaremos sempre juntas! Mas eu preciso conhecer a Mayara! Nós devemos isso a ela, e ela é minha mãe, entende?
-Claro, Aisha. Vá conhece-la. 

Desliguei o telefone, e me deixei envolver pela paisagem lá fora, aproveitando para pensar em minha vida e no que estava para acontecer. O ônibus estava quase vazio, e eu estava sentada sozinha, o que era bom, pois pude chorar e rir à vontade, conforme as lembranças chegavam. Pensei no acidente; pensei nos meus amigos da escola, na festa de aniversário que jamais aconteceu. Tive uma ideia: Entrei em uma rede social e abri uma conta. Desta vez, com meu nome e foto verdadeiros! Adicionei todos os meus amigos, e passei a viagem conversando com eles e explicando tudo, pois queria muito resgatar minhas amizades. Elas eram importantes para mim, e não queria perde-las. 

Era tão bom não ter mais nada a esconder! Era tão bom poder postar minhas fotos e dar meu verdadeiro nome! Era tão bom não ter mais medo.

Também passei uma mensagem para meu antigo ‘crush’, que ficou muito entusiasmado ao conversar comigo. Acho que ainda não disse o nome dele: Caio. 

Fiquei sabendo, através dos meus amigos, que a festa foi devidamente aproveitada até o final. Eles me mandaram fotos de tudo, e também de uma homenagem que fizeram para mim. Me disseram que ficaram muito aflitos ao saber que minha família tinha deixado a cidade de repente. Eu pretendia revê-los em breve, na época das férias escolares – mas antes, eu tinha que resolver aonde estudaria. Minha vida escolar tinha sido interrompida no último ano. Ainda faltavam o vestibular, a faculdade. Meu futuro era uma verdadeira incógnita. 

Lá fora, começou a chover, embaçando a paisagem. Adormeci, e acordei quando o ônibus parou. Todos os poucos passageiros já tinham saído, e fui a última a deixar o ônibus. Já era quase noite. 
Torcendo as mãos, minha bela mãe esperava por mim, e ela parecia tão jovem e desamparada, que eu só pude largar a mochila no chão e abraça-la forte. Senti o cheiro dos cabelos dela de encontro ao meu rosto, e meus braços em volta da cintura dela. E tudo me pareceu tão certo, tão familiar! Era como se nós duas nunca tivéssemos sido separadas. 

Ela me levou até sua casa de carro. Após dirigir por mais ou menos cinco minutos, chegamos a um imponente portão de ferro pintado de preto. Minha mãe vivia em uma enorme casa amarela de janelas brancas, nos fundos de um longo passeio cercado por um gramado verde e iluminado por luzes laterais que ladeavam a estradinha. Havia muitas árvores, e sob uma delas, um balanço. Ela me disse que gostava de sentar-se ali, pois balançar a deixava calma.

Minha mãe morava em uma verdadeira mansão! 

Assim que ela parou o carro, um homem veio para leva-lo até a garagem. Ele aparentava ter uns cinquenta anos de idade. Mayara me apresentou:
-Geraldo, essa é minha filha Aisha. Irmã gêmea de minha falecida filha Georgina. Estive a procura dela por muitos anos, e finalmente, ela está aqui!

O pobre homem pareceu muito confuso, mas assim que recuperou a fala, disse:

-Seja bem-vinda, senhorita Aisha. Fico feliz que vocês tenham se encontrado!
Dizendo aquilo, ele entrou no carro e dirigiu para a lateral da casa. Achei estranha a atitude surpresa dele, mas nada disse. Entramos por uma varanda envidraçada e cheia de plantas, como uma estufa, e fomos dar em um salão ricamente decorado. Eu nunca tinha visto tantas coisas bonitas na minha vida.  Havia duas mulheres que trabalhavam na casa e foram nos receber e Mayara me apresentou novamente. As mulheres se entreolharam, parecendo muito confusas e espantadas, e baixando a cabeça, fizeram-me um leve cumprimento e saíram da sala. Mayara disse:

- Deixe eu levar você até o seu quarto.

Achei aquela frase surreal: será que eu ficaria morando naquela casa com ela? Tinha prometido à minha avó e Nina que voltaria! Mas aquela era uma decisão para eu tomar mais tarde. 
Ela me conduziu por uma escadaria curva e larga de madeira encerada, forrada por um belo tapete verde-escuro. Chegamos a um corredor também acarpetado de verde, e abrindo a segunda porta à direita, ela fez sinal para que eu entrasse:

Prendi a respiração: o quarto era enorme! Tinha até uma lareira. A cama era de ferro trabalhado, uma linda cabeceira cheia de rosas de padrões intrincados, pintadas em cores reais; tão reais, que davam a impressão de serem de verdade. Eu nunca tinha visto nada tão lindo! O tapete era cheio de desenhos maravilhosos de flores e ervas, uma verdadeira obra de arte onde eu planejei ficar durante muito tempo até que eu tivesse percorrido todas aquelas tramas. E as paredes... era uma casa antiga, e elas tinham uma pintura maravilhosa, uma paisagem campestre com montanhas, lagos, árvores, céu. Parecia original, embora restaurada.
Mayara abriu o armário: ele estava cheio de roupas! Diante da minha surpresa, ela disse:

-Eu as comprei para você. É claro que mais tarde poderemos sair e você escolherá tudo o que quiser, mas achei que seria bom que você tivesse algo para vestir. Espero que goste. Agora tome um banho, troque de roupa e descanse um pouco. Daqui a duas horas eu a chamarei para jantarmos juntas. 

Ela me beijou suavemente na testa e eu fiquei sentada na cama, olhando embasbacada para tudo aquilo.
Mas depois fiz o que ela tinha sugerido, e escolhi umas calças jeans e uma túnica branca bordada de linha branca na pala. Ela era linda, de mangas longas, e o tecido era macio e esvoaçante. Calcei também umas sapatilhas brancas sem salto. Fiquei espantada porque as roupas serviam perfeitamente, parecendo terem sido feitas sob medida. 

Aquilo era um conto de fadas e eu era a princesa, pensei. 

Saí do quarto e parei no sopé das escadas, a mão no corrimão. Pude vislumbrar o magnífico lustre de cristal, a beleza da escadaria curva, o bom gosto da decoração da sala silenciosa. Depois, respirando profundamente, comecei a descer os degraus bem devagar, tomando posse daquilo tudo com o olhar. Eu era a filha de Mayara, e aquilo tudo também me pertencia, afinal.

(continua...)




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...